Para uma crítica da Economia Criativa no Brasil: empreendendo precariados

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FELIPE DA SILVA DUQUE

Para uma crítica da Economia Criativa no Brasil: empreendendo precariados

Niterói Julho de 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

FELIPE DA SILVA DUQUE

Para uma crítica da Economia Criativa no Brasil: empreendendo precariados Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação. Campo de Confluência: Trabalho e Educação.

ORIENTADOR: Prof. Dr. JOSÉ DOS SANTOS RODRIGUES

Niterói Julho de 2015

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

D946 Duque, Felipe da Silva. Para uma crítica da economia criativa no Brasil : empreendendo precariados / Felipe da Silva Duque. – 2015. 124 f. ; il. Orientador: José Rodrigues. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2015. Bibliografia: f. 114-118. 1. Economia. 2. Brasil. 3. Empreendedorismo; aspecto social. 4. Capitalismo. 5. Trabalhador; aspecto social. 6. SEBRAE. 7. Política pública. I. Rodrigues, José, 1964-. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título. CDD 338.981

Ao meu irmão e amigo: Paulo Henrique Duque

Agradecimentos

De antemão, gostaria de agradecer ao meu orientador, professor José Rodrigues, por todas as proposições e recomendações no decorrer da construção deste trabalho, assim como nas apresentações de novos autores e reflexões que irão ser levadas para o decorrer da vida. Agradeço à professora Vânia Motta (UFRJ), não só por ter gentilmente aceitado estar na banca, mas por toda solicitude em contribuir no projeto e conduzir-me junto ao Coletivo de Estudo Marxismo e Educação (COLEMARX). À querida professora Luciana Requião por aceitar o convite para o julgamento deste trabalho, assim como na contribuição quanto a elementos fundamentais da economia produtiva da cultura. Assim como à professora Kênia que providenciou novas reflexões na qualificação e ao companheiro Lamosa (UFRRJ) por ter se voluntariado a participar deste processo. Ao professor Frigotto, Osmar Fávero, as professoras Regina Leite, Hustana, Eunice Trein, Ciavatta e Zuleide, além dos amigos e amigas da turma de mestrado 2013. Agradeço, também, ao professor Maurício Siqueira da Fundação Casa de Rui Barbosa por ter desenvolvido o tema conjuntamente comigo. À Barbara Harduim por ter me introduzido no debate das Artes e no âmbito da práxis quanto às políticas públicas culturais de ordem institucional governamental. À “Tamininha” por agigantar o meu mundo todos os dias com carinho e palavras de incentivo, assim como minha sogra Rita. À minha mãe por ter proporcionado que cumprisse mais uma etapa e meu “paidrasto” João Carlos, presente em todos os momentos. Minhas irmãs Ana Paula e Alessandra, meus irmãos Lucas e Henrique. Ao meu pai Paulo, pelos milhares copos de café. Ao amigo Rodrigo Dantas e os demais companheiros e companheiras de luta da LSR, Reginaldo, Ian, Lidia, Mayco, Vanessa, Fabrício, Felipe Mesquita, Jesus... Aos amigos da RCEE: Gio, Mesquita, Alemão e Leo. E, finalmente, a CAPES por ter me oferecido subsídios por ter concluído mais esta etapa!

A novidade era o máximo Do paradoxo Estendido na areia Alguns a desejar Seus beijos de deusa Outros a desejar Seu rabo prá ceia.. [...] Oh! Mundo tão desigual Tudo é tão desigual [...] Oh! De um lado esse carnaval De outro a fome total Gilberto Gil

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 1 CAPÍTULO 1 - UM DIÁLOGO SOBRE CULTURA ............................................................... 9 Seção 1.1 - Cultura e materialismo ........................................................................................ 12 Seção 1.2 - Cultura e trabalho imaterial: uma questão conveniente ...................................... 18 Seção 1.3 - A cultura enquanto mercado................................................................................ 27 CAPÍTULO 2 - SOCIAL-LIBERALISMO E O PRECARIADO .......................................... 31 Seção 2.1 - Neoliberalismo: origem e crise............................................................................ 31 Seção 2.2 - O neoliberalismo no Brasil e transição para o social-liberalismo ....................... 36 Seção 2.3 - A formação do “precariado” e sua localização no Brasil contemporâneo .......... 56 CAPÍTULO 3 – GIL E JUCA E A CONSOLIDAÇÃO DO TERCEIRO SETOR NA CULTURA ................................................................................................................................ 67 Seção 3.1 - O Ministério da Cultura no Brasil ....................................................................... 67 Seção 3.2 - A ressignificação do Ministério (2003-2010) ..................................................... 71 Seção 3.3 - Economia Criativa: empreendimentos culturais.................................................. 80 Seção 3.4 - O SEBRAE e a capacitação para a “criatividade” .............................................. 93 Seção 3.5 - O Programa Rio Criativo: empreendendendo precariados .................................. 98 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 107 REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 114 ANEXOS .................................................................................................................................... 119

Resumo Esta dissertação, resultado da pesquisa de mestrado, tem como objetivo compreender a nova política pública denominada Economia Criativa – EC – em diálogo com as transformações da concepção de cultura oriunda das reconfigurações do modo produção capitalista. Diante disso, cabe trazer criticamente ao debate a emersão desta política enquanto característica do governo Lula (2003-2010) representado pela nova modalidade do neoliberalismo chamada de socialliberalismo, ou seja, a parceria do Estado com o setor privado através do terceiro setor. A adesão desta política junto ao Ministério da Cultura (MinC) é praticada nas gestões de Gilberto Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010) marcadas por explorar a produção cultural da periferia em conjunção com o terceiro setor. O legado destes ministros tem sua continuidade com a criação da Secretaria da Economia Criativa (SEC) junto ao MinC (2010), órgão responsável por incentivar e expandir este tipo de política pública para a cultura no país. Em debate com o acúmulo dos documentos apresentados pelos organismos multilaterais internacionais, a SEC busca providenciar o papel “desenvolvimentista” atribuído a EC, esta definida como ferramenta econômica qualificada a integrar iniciativas culturais transformando-as em redes interligadas com potencial ao lucro. Considerações estas que ao serem analisadas sob o método materialista histórico dialético trouxe diversas questões, a começar pela reflexão crítica da transformação da cultura enquanto mercadoria. Adicional a isso, foi possível explorar as denominadas capacitações, geralmente dadas pelo SEBRAE, aos “empreendedores criativos”, ocupação designada aos que desejam atuar na lógica da EC, seja enquanto micro ou pequeno empresário da cultura ou trabalhador “criativo”. Sob uma análise crítica, principalmente no Programa Rio Criativo, tornase perceptível o papel desempenhado pelas Micro e Pequenas Empresas, no caso em apenas orbitar nas grandes empresas e ampliar o trabalhador precariado, categoria de trabalhadores localizado no exército de reserva, agora na cultura. O resultado final da pesquisa identificou que a ampliação da cultura enquanto mercadoria tem incidido numa lógica de deformação das políticas públicas para o setor na área, assim como tem promovido a expansão das condições precárias de trabalho. Palavras-Chave: Economia Criativa, empreendedorismo social, precariado, SEBRAE. Abstract This thesis is the result of a master´s research and aims to understand the new so called public policy of Creative Economy – CE – according to the transformation of culture’s conception as a result of the redesign of the capitalist mode of production. Therefore, this should be made by recognizing the emergence of this policy as a feature of Lula government (2003-2010) represented by the new type of neoliberalism named social liberalism , ie, a partnership between the State and the private sector through the third sector. The adhesion to this policy by the Ministry of Culture (MinC) was put in practice by Gilberto Gil (2003-2008) and Juca Ferreira (2008-2010), who exploited the cultural production of poor peripheries in conjunction with the third sector. The legacy of these ministers was kept by the creation of the Creative Economy Secretary (SEC) in 2010, a MinC branch responsible for promoting and expanding this kind of public policy for the country's culture. According to the consensus of international agencies, SEC seeks to provide the "developmental" role assigned to CE, defined as an economical tool able to integrate cultural initiatives, turning them into networks with profit potential. This context, when analyzed by historical materialist dialectical method, brings several issues foremost the transformation of culture into a consumer good. Furthermore, it became possible to exploit the training, usually provided by SEBRAE (Brazilian Service of Support to Micro and Small

Enterprises), to "creative entrepreneurs", those who want to work with CE, either as a micro or small business owner or as a "creative" worker. Under a critical analyses, mainly in the RIO CREATIVE PROGRAM, it's noticeable the role played by micro and small companies, that orbit bigger companies expanding precarious work, workers in the reserve army of labour, now working in culture. The final results in the research identified that the expansion of culture as a consumer good has deformed cultural public policies as well as promoted the expansion of precarious work. Keywords: Creative Economy, social entrepreneurship, precariat, SEBRAE

LISTA DE ANEXOS LISTA DE SIGLAS

ALCA AMBEV

Área de Livre Comércio das Américas Companhia de Bebidas das Américas

APEX

Agência brasileira de promoção de exportação e investimentos

BID

Banco Interamericano de Desenvolvimento

BNDES

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

CEASM

Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré

CEPAL

Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

CNA

Companhia Nacional de Álcalis

CNDA

Conselho Nacional de Direito Autoral

CNI

Confederação Nacional das Indústrias

CNPQ

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CNRC

Centro Nacional de Referência Cultural

CSN

Companhia Siderúrgica Nacional

CST

Companhia Siderúrgica de Tubarão

CUT

Central Única dos Trabalhadores

CW

Consenso de Washington

DDM

Declaração do Milênio

EC

Economia Criativa

FHC

Fernando Henrique Cardoso

FINEP

Financiadora de Estudos e Projetos

FIRJAN

Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro

FMI

Fundo Monetário Internacional

FNC

Fundo Nacional da Cultura

FS

Força Sindical

FUNARTE

Fundação Nacional de Artes

FUNDACEN Fundação do Cinema Brasileiro IBAC

Instituto de Arte e Cultura

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDH

Índice de Desenvolvimento Humano

IEL

Instituto Euvaldo Lodi

INCE

Instituto Nacional de Cinema Educativo

INL

Instituto Nacional do Livro

IPEA

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPHAN

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

LGBT

Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

MAR

Museu de Arte do Rio

MEC

Ministério da Educação

MIS

Museu da Imagem do Som

MPEs

Micro e Pequenas Empresas

MST

Movimento dos Sem Terra

MTD

Movimento dos Trabalhadores Desempregados

MTST

Movimentos dos Trabalhadores Sem Teto

OEI

Organização dos Estados Ibero-Americanos

OMC

Organização Mundial do Comércio

ONG

Organização não governamental

ONU

Organização das Nações Unidas

OS

Organizações Sociais

OSCIP

Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

PAC

Programa de Aceleração de Crescimento

PC do B

Partido Comunista do Brasil

PCB

Partido Comunista Brasileiro

PIB

Produto Interno Bruto

PL

Partido Liberal

PMDB

Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PMERJ

Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro

PMEs

Pequenas e Médias Empresas

PMN

Partido da Mobilização Nacional

PNC

Plano Nacional de Cultura

PQU

Petroquímica União

PR

Partido da República

PRONA

Partido de Reedificação da Ordem Nacional

PSDB

Partido da Social Democracia Brasileira

PSOL

Partido Socialismo e Liberdade

PT

Partido dos Trabalhadores

PUC

Pontifícia Universidade Católica

PV

Partido Verde

SEBRAE

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SEC

Secretaria da Economia Criativa

SENAC

Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SENAI

Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SESC

Serviço Social do Comércio

SESCOOP

Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo

SESI

Serviço Social da Indústria

SNC

Sistema Nacional de Cultura

SPHAN

Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

UBES

União Brasileira dos Estudantes Secundaristas

UNCTAD

Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento

UNE

União Nacional dos Estudantes

UNESCO

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

UNICEF

Fundo das Nações Unidas para a Infância

UNITAR

Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa

UPP

Unidade de Polícia Pacificadora

Introdução Esta dissertação, resultado da pesquisa de mestrado, tem como objeto central compreender a nova política pública cultural denominada Economia Criativa encarada como desdobramentos das gestões Gil e Ferreira (2003-2010) no Ministério da Cultura. Tendo como perspectiva uma análise crítica da cultura enquanto mercadoria, busquei compreender a legitimação desse processo referenciado às diferentes variáveis do contexto da reestruturação produtiva, assim como das particularidades do Brasil recente, em destaque seus reflexos no mundo do trabalho. No aspecto metodológico, a pesquisa foi desenvolvida, inicialmente, pela análise documental disponibilizadas pela Secretaria da Economia Criativa junto ao MinC e dos relatórios confeccionados pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), além de leituras referentes ao tema. Num segundo momento, busquei incidir pela literatura e documentos oficiais disponíveis pelo Programa Rio Criativo, assim como dos oferecidos pela Firjan, que já faziam um balanço detalhado dessa política junto ao mundo do trabalho. A pesquisa buscou se amparar em quatro eixos ou hipóteses: 1) localizar a cultura no processo de ampliação do capital no capitalismo contemporâneo; 2) apresentar criticamente a relação do “desenvolvimentismo” no governo Lula e seus desdobramentos junto ao MinC; 3) analisar o reflexo destes juntos ao mundo do trabalho e; 4) compreender a chamada “Economia Criativa” e o “Programa Rio Criativo” em debate com as considerações anteriores. A exploração destas questões foi rigorosamente trabalhada com construções e desconstruções de “verdades absolutas” que já haviam incorporado quanto ao tema. A começar pelo conceito cultura, que julgo ainda estar “em aberto” sua definição, se formos nos adentrar nas diferentes caracterizações do mesmo, inclusive dentro do marxismo. Optei por aquela que melhor fornecia elementos para o meu estudo, ciente de que a discussão sobre tal concepção não está esgotada. Concluída esta tarefa, incumbi-me da captação da cultura na lógica “mercadológica”. A julgar, aparentemente, uma análise fácil, adentrei-me na intricada engenharia de compreensão do capital e do trabalho imaterial onde o debate das obras marxianas permitiam reflexões e conclusões para o resto da vida. Desempenhada essa etapa, que talvez não tenha fim, coube relacionar com a forma prática da economia da cultura. Daí foi fundamental a contribuição do 1

trabalho da professora Luciana Requião – “Eis aí a Lapa...”: processos e relações de trabalho do músico nas casas de show da Lapa – na evidenciação dessa noção, para que, em seguida, eu pudesse sintetizar as considerações iniciais. Outro debate foi a questão do “desenvolvimentismo” junto ao governo Lula e sua relação com o Ministério da Cultura, principalmente na gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira (20032010). A reivindicação ao “neodesenvolvimentismo” no governo Lula, seja nos documentos do governo federal ou do MinC, era uma realidade. Porém, pouco se abordava as contradições inerentes a essa questão. As produções acadêmicas intrínsecas à compreensão do fenômeno das ações deste governo tendem, grande parte das vezes, a compreender apenas uma parte da realidade. Confessadamente, isto foi um problema. Somente solucionado com as indicações das professoras Kênia Miranda e Vânia Motta já no período da qualificação. A aproximação com autores mais críticos permitiu desconstruir algumas questões equivocadas junto ao governo Lula. Compreendido o debate, pude analisar similitudes quanto a essência deste governo e o MinC. O avanço de minhas ambições teve seu prosseguimento no objetivo de abranger as questões do mundo do trabalho na contemporaneidade, afinal, tinha como um dos desígnios deste trabalho, localizar estes novos trabalhadores no campo da cultura. Como já havia abordado a reestruturação produtiva do capital anteriormente, percorri esse caminho de forma mais tranquila. Emergi o conceito de “precariado” explorado pelo sociólogo Ruy Braga. De forma sintética, o conceito é o que melhor define uma parcela do trabalhador atual nas recentes transformações do capitalismo, de flexibilização de leis e o desmonte do Estado. Dada o esgotamento de parte dessas questões, insurgi a noção de Economia Criativa, abordada com maior vigor nos últimos anos. Em diálogo com o professor Maurício Siqueira, da Fundação Casa Rui Barbosa, apreendi de forma introdutória suas principais características e os elementos que levaram a sua apropriação enquanto política governamental, seja através da Secretaria da Economia Criativa no âmbito federal, seja através do Programa Rio Criativo no Estado do Rio de Janeiro. Com tais informações e a ampliação delas, através de documentos oficiais e notícias veiculadas nas diferentes mídias, tratei de analisar estes objetos. Procurei compreendê-los sob a luz do materialismo histórico dialético. Ciente da necessidade histórica de transformação do mundo, busquei apresentar as contradições das questões apresentadas na dissertação ao problematizar criticamente aspectos engendrados na lógica de ampliação da produção humana em mercadoria. É interessante pontuar a dificuldade de 2

se trabalhar com categorias deste método na prática de investigação, afinal nele os “princípios são muito bem definidos”, porém não há “o mesmo vigor com os procedimentos” (KUENZER, 2012, p. 62). Isso ocorre, porque metodologicamente, “os procedimentos vão sendo construídos na relação que se estabelece com o objeto, e, neste sentido, o ‘método de investigação’ é caótico e desordenado, marcado por idas e vindas, decisões e negações, clareza e confusão, e, principalmente, porque são únicos para cada investigação” (idem). Conforme Marx (2008, p. 258) afirma: “parece mais correto começar pelo o que há de concreto e real nos dados [...], todavia, bem analisado, esse método seria falso”. Ele toma como exemplo, a população que na economia “é a base e o sujeito de todo o ato social da produção”. O autor alerta que, quando deixamos de lado as classes que compõem essa população, a mesma se torna uma abstração. Assim como “classe” se torna algo sem sentido, se desprezarmos os elementos que a ela repousam como, por exemplo, “o trabalho assalariado, o capital etc.”. Assim como o capital “não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços etc.”. Se começasse, portanto, pela população, “elaboraria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples, do concreto chegando representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples”. Ao chegar esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até voltar à população, que agora seria uma “rica totalidade de determinações e relações diversas”. Para realizarmos este movimento, torna-se fundamental estar munido das ferramentas metodológicas, ou melhor, categorias que dão suporte a pesquisa como, por exemplo, práxis, totalidade, contradição e mediação (KUENZER, idem). Há de se pontuar que a compreensão objetiva da realidade sob o método materialista histórico dialético tem o privilégio de nos fornecer elementos para a transformação da sociedade.

O conhecimento objetivo da realidade, da estrutura econômica e social, da relação de forças e da conjuntura política é, portanto, uma condição necessária de sua prática revolucionária; em outras palavras: a verdade é uma arma de seu combate, que corresponde a seu interesse de classe e sem a qual ele não pode prosseguir. Como escrevia Gramsci no lema de seu jornal Ordine Novo, “somente a verdade é revolucionária” (LÖWY, 2013, p. 251).

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No presente trabalho busco emergir as contradições que permeiam a proposta da chamada Economia Criativa, ou seja, evidenciar a “verdade” do propósito desta política pública cultural. Antes de expor a divisão dos capítulos e seções da dissertação, gostaria de pontuar a trajetória que me levou a este objeto. Segundo (CARDOSO e BRIGNOLI, 1979, p. 483-484), os critérios que podem presidir um tema de pesquisa são: a) o interesse pessoal pelo tema; b) a importância do mesmo; c) a originalidade; d) a documentação e; e) recursos disponíveis. Meu interesse pessoal pelo tema surgiu em 2010, então graduando no curso de História da UFF, iniciei-me na ocupação de estagiário remunerado junto ao Museu de História e Artes do Estado do Rio de Janeiro, popularmente conhecido como Museu do Ingá. Enquanto procurava compreender intelectualmente a institucionalização da cultura no Brasil no âmbito de políticas de governo no curso de História, o estágio fornecia elementos concretos para lidar com a realidade no que compete ao tratamento dos patrimônios públicos no país. As verbas limitadas, atrasos nos salários, condições de trabalhos precárias, especulações quantos aos governos, ambientavam as discussões dos funcionários da instituição. Numa das reuniões mensais com a Superintendência de Museus do Estado, eis que surge talvez a “solução” para os problemas presentes, a “incubação numa incubadora criativa”. Num recorte do Jornal “O Globo”, a reunião transitava para a discussão do porquê um museu público deveria “disputar um edital público” para ter seus funcionários “incubados”. Diante de tais contradições, passei a aprofundar-me junto àquela novidade que nomeavam de Economia Criativa, no Rio de Janeiro essa novidade se localizava no mesmo prédio daquela reunião, e já denominava Rio Criativo. Compreendi a importância de estudar tal tema, ciente da trajetória que a cultura vinha tomando no capitalismo contemporâneo, ou seja, sua transformação em mercadoria. Algo que se aprofundou diante da escolha do Brasil para a sede da Copa do Mundo (2014) e das Olímpiadas (2016), com destaque para o Rio de Janeiro, onde muito se debatia a “economia da cultura”. Outdoors se espalhavam pela cidade, além de propagandas na televisão que reivindicavam a característica “criativa do carioca”, “inventor do frescobol”, dentre outros adjetivos. Daí se introduzia a importância da Economia Criativa tida como um setor da cultura alvo de políticas públicas para a cidade. A necessidade de dar resposta a isso se tornou latente quando providenciei um aprofundamento no tema, a partir daí passei a acompanhar uma “incubadora criativa” em São João de Meriti. Ali travei um contato inicial com a proposição do Rio Criativo, onde profissionais

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do Instituto Gênesis da PUC-RJ1 e do SEBRAE orientavam os artistas, produtores culturais e pequenos empresários locais a transitarem para a condição de “empreendedores criativos”, ou seja, sob o discurso do self-made man, agora na cultura. Esta incubadora2, que seria o polo de “empreendedores criativos” da Baixada Fluminense e meu objeto de estudo, não avançou em suas ambições. Provavelmente, em virtude de problemas contratuais junto à prefeitura. Isso me colocou um primeiro problema, o que exigiu que ampliasse o meu objeto para o Programa Rio Criativo, em especial. Em contraste com a Secretaria da Economia Criativa, órgão do Ministério da Cultura, que detinha material farto, o programa ainda “engatinhava” em seus propósitos, porém, isso não o isentou de cumprir com alguns objetivos: a sua institucionalização a nível governamental através de um decreto, a incubação de algumas microempresas e a capacitação de potenciais “empreendedores culturais” em diferentes áreas do estado do Rio de Janeiro. A própria estrutura física do programa foi concebida com sua sede própria no ano de 2014, na Praça XI, Centro da cidade do Rio de Janeiro. Adicional a isso temos o Centro de Referência do Artesanato Brasileiro (CEBRAC) gerido SEBRAE na Praça Tiradentes. Espaço esse que ficará sob a concessão da entidade pelos próximos vinte anos e tem na sua gestão o setor da economia criativa desta instituição como responsável em administrar o novo ambiente. Apesar da dificuldade de acesso aos documentos do programa, procurei explorar na coleta de dados, o farto material produzido pelo SEBRAE e pela FIRJAN, onde ofereciam elementos para a compreensão das propostas do programa em conjunto com a SEC, assim como preciosos subsídios para entendê-lo no espectro do mundo trabalho, referenciado nas indústrias criativas. Essas condições permitiram que dialogasse com minhas ambições no constructo da concepção que abordei quanto ao aumento da exploração do trabalho imaterial e a formação do precariado. Para melhor visualizar essa relação, trago abaixo a forma que organizei o presente trabalho, onde o divido em três capítulos. No primeiro, denominado “Um diálogo sobre cultura”, procuro resgatar a trajetória do termo e sua transformação, oriundo de suas influências junto aos contextos do século XIX e XX. 1

Programa de extensão do curso de Administração desta universidade.

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Incubadoras são ambientes Uma incubadora de empresas, ou apenas incubadora, é um projeto ou uma empresa que tem como objetivo a criação ou o desenvolvimento de pequenas empresas ou microempresas, formando-as para o empreendedorismo, através do suporte jurídico, administrativo, contabilístico, financeiro etc.

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Introdução necessária para abordarmos a transformação da noção de cultura junto à tradição do método materialista histórico dialético na seção 1.1 denominada “Cultura e materialismo”. Ali procuro abordar a afinidade do conceito em relação ao marxismo. Sua metamorfose e as contribuições de novos autores do campo, principalmente, do Marxismo Ocidental, com destaque para Raymond Williams e seu esforço em desconstruir a velha fórmula, do dito “marxismo vulgar”, de base e superestrutura. Realizada tal empreitada, transito para a seção 1.2 denominada “Cultura e trabalho imaterial: uma questão conveniente”. Trago nesta seção a responsabilidade de refazer o processo identificado como “reestruturação produtiva do capital”, em destaque a transição do modelo de organização produção fordista/taylorista para o toytotista, e seus reflexos no mundo do trabalho, principalmente, na ampliação da exploração do trabalho imaterial. A seção 1.3 tem o papel de sintetizar as anteriores. Sob o título de “Cultura enquanto mercado”, a seção explora a complexificação da cadeia produtiva da cultura em diálogo com as transformações orientadas por organismos multilaterais internacionais como a UNESCO. Essas transformações orientadas por essas organizações procuram acentuar uma caracterização “oficializada” junto a órgãos competentes locais para melhor explorar o potencial de mercado da cultura. Aspectos econômicos da contemporaneidade é o tema do segundo capítulo denominado “Social-liberalismo e o precariado”. Inicialmente, procuro na seção 2.1 resgatar o modelo econômico que antecede o neoliberalismo ortodoxo. Alcunhado de “Neoliberalismo: origem e crise”, esta seção traz ao debate a queda do modelo keynesiano e a emergência da ideologia neoliberal, caracterizada pelo desmonte do Estado. Procuro explorar as diferentes etapas que culminaram na instauração desse modelo no mundo e sua decadência no final dos anos noventa. Na seção 2.2, abordo como se deu a trajetória do neoliberalismo no Brasil e a mudança para o modelo social-liberal. Nomeada evidentemente de “O neoliberalismo no Brasil e a transição para o social-liberalismo”, a seção, inicialmente, disserta quanto à particularidade do país na aplicação do modelo econômico neoliberal quando a contrapartida interna impediu a aplicação de forma imediata, algo que só ocorreria no início dos anos noventa junto ao governo Collor e que se intensificaria na gestão de FHC. Porém, diante do desgaste da fórmula neoliberal e a vitória de Lula, iniciou-se a execução de um novo modelo denominado de social-liberalismo. Com forte apelo junto à burguesia mundial, o arquétipo social-liberal procura “humanizar” o capitalismo e ampliar a relação do Estado com o terceiro setor. 6

A adoção dessa modalidade de neoliberalismo de forma mais efetiva no Brasil tem estreitas relações com a vitória eleitoral do ex-metalúrgico e dirigente sindical Lula em 2002. Fato ocorrido devido às transformações ocorridas dentro de seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT). A flexibilização de alianças na campanha vai demandar uma relação distante do radicalismo de outrora contra a burguesia. Porém, a relação com a classe trabalhadora é de integrá-la ao consumo e providenciar o acesso a bens antes restritos a uma minoria da sociedade brasileira. Essa relação complexa desemboca em diferentes leituras analíticas deste governo que sempre incorrem no equívoco de não compreendê-lo na nova lógica do social-liberalismo, sendo o maior exemplo a que o reconhece como neodesevolvementista. Para aprofundar essa questão, transfiro a análise até então de ordem macro para o debate sobre o mundo de trabalho. Nesse sentido, na seção 2.3, “A formação do ‘precariado’ e sua localização no Brasil contemporâneo”, reforça as transformações ocorridas no capitalismo contemporâneo como a reestruturação produtiva e a adoção do atual modelo social-liberal. O resultado dessas transformações no mundo do trabalho é a ampliação do denominado “precariado”, conceito criado pelo economista britânico Standing. Busco apresentar os avanços e os limites deste autor, para em seguida trazer a melhor definição dada pelo sociólogo Ruy Braga, que desenvolve o conceito incidindo junto a um debate mais sofisticado de classes sociais. Compreendendo o “precariado” enquanto um trabalhador localizado na categoria de “exército de reserva”, é possível enumerar algumas características que o definem. É a partir dessa definição, que procuro conferir o desenvolvimento deste tipo de trabalhador no recente período social-liberal no Brasil. Por fim, é no capítulo três “Gil e Juca: e a consolidação do terceiro setor na cultura” que procuro trazer o acúmulo apresentado dos capítulos anteriores para o diálogo com o objeto escolhido. De antemão, na seção 3.1, “O Ministério da Cultura no Brasil”, faço um breve balanço do MinC, reconhecendo ações anteriores à formação do ministério que envolviam a criação de órgãos competentes ao setor, ações notáveis no período que o Ministério da Cultura era conjugado ao Ministério da Educação e, por fim, o processo pendular que o MinC toma após sua formação em 1985 até o ano de 2002, com a vitória de Lula.

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No âmbito da seção 3.2, trago um panorama e um balanço mais aprofundado das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003-2010) 3 . Sob a nomenclatura de “A ressignificação do Ministério (2003-2010)”, enumero os avanços da gestão quando trazem o MinC para uma condição de protagonista, num setor que até então havia pouco apelo no Brasil. Aliado a isso ocorre uma preocupação em desconcentrar recursos do ministério seja no âmbito regional ou empresarial. Porém, abordo as contradições do social-liberalismo e do terceiro setor, presentes na condução do ministério, além da reinvindicação do discurso desenvolvimentista para alicerça-lo, principalmente, nas políticas direcionadas a cultura popular. Na seção 3.3, “Economia Criativa: empreendimentos culturais”, desenvolvo a caracterização dada ao conceito, sua relação com os organismos multilaterais internacionais e sua proposta de intervenção na economia da cultura. Por fim, trago as questões advindas dessa proposta para o Brasil, oficializada através da criação da Secretaria da Economia Criativa em 2010 e a publicação de plano com diretrizes e objetivos para os quatro anos seguintes. Já na seção 3.4, “O SEBRAE e a capacitação para a ‘criatividade’”, procuro aprofundar a formação humana empregada aos potenciais “empreendedores criativos”. Dali discorro quanto a história do SEBRAE, compreendendo-o enquanto desdobramento dos órgãos do Sistema S anteriores a ele, além de localizá-lo nas recentes transformações do capitalismo contemporâneo, na epidemia das Micro e Pequenas Empresas (MPEs). No âmbito do programa interno, trago as alterações que o SEBRAE sofre desde o seu período embrionário até a atualidade, onde a instituição se guia hoje pela área cultural. Na última seção 3.5, “O Programa Rio Criativo: empreendendo ‘precariados’”, assumo a tarefa de compreender o programa e fazer o balanço de sua atuação abrangendo sua formação recente. Abordo brevemente o destaque que a burguesia brasileira vem dando ao Rio de Janeiro no que se evidencia na adoção da cidade como sede de megaeventos esportivos. As modificações recentes ocorridas na metrópole e o forte apelo ao seu viés cultural motivaram a criação do Programa Rio Criativo através de um decreto estadual. A constituição de uma incubadora para a formação de “empreendedores criativos”, pareado com a formação de cursos rápidos, direcionam a ampliação desta logica de visualização da cultura, ou seja, o “empreendimento criativo” como a principal abordagem do programa. Trago estatísticas de Micro e Pequenas Empresas (MPEs) do 3

Um pouco antes do fechamento deste trabalho, Juca Ferreira retorna ao Ministério da Cultura (2015) do segundo mandato do governo Dilma. Cabe ressaltar as reivindicações de frações internas do PT ligadas a União Nacional dos Estudantes para seu retorno.

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campo cultural e seus resultados no mundo do trabalho, em especial, no alargamento do trabalhador precariado. No decorrer da pesquisa, além da orientação do professor José Rodrigues, foram fundamentais as contribuições dos amigos e amigas em curso do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF, assim como das docentes Eunice Trein, Maria Ciavatta, Zuleide Simas e do professor Gaudêncio Frigotto (UERJ). Expus aspectos parciais do desenvolvimento da pesquisa no “Colóquio Internacional: Marx e o Marxismo” na UFF e na “XIV Jornada do Trabalho: o trabalho e a crise estrutural do capital, resistência, limites e alternativas” na UNESP de OurinhosSP em 2013. No ano seguinte, em 2014, expus junto a “V Semana Acadêmica de Pedagogia; Novos Rumos da Educação: desafios e possibilidades” na UFRRJ de Nova Iguaçu e na “I Jornada de Estudos Marxistas da UFRJ”. Os questionamentos colocados pelos participantes desses eventos também foram fundamentais para melhor trabalhar o objeto. Capítulo 1. Um diálogo sobre cultura Para a melhor compreensão sobre o debate do conceito cultura, torna-se fundamental trazer em essência uma trajetória de sua construção teórica. No presente registro, abordarei a construção do conceito junto ao avanço da expansão imperialista no século XIX até as novas reflexões desenvolvidas no século XX. Elementos que viriam a influenciar até àqueles que comungam do método materialista histórico dialético, posteriormente renovado com as contribuições de novos autores do campo. O resultado foi que o conceito cultura se tornou complexo devido à aquisição de novas determinações, fundamentais para compreender a localização deste no debate contemporâneo. Inicialmente, no século XVIII, na modernidade, a palavra “cultura” encontra seu sinônimo no vocábulo “civilização”, num século envolvido pelo espírito geral do iluminismo, com o culto ao autodesenvolvimento secular e progressivo. Posteriormente, a palavra vem a sofrer uma variação na virada do século XIX. De sinônimo de “civilização” passa a virar seu antônimo. Este é um período onde o imperialismo se sobressaía na dinâmica geopolítica, ou seja, o “civilizador” é o responsável por ampliar a modernização, os ideários da burguesia. Em contraposição, há a resistência promovida pela tradicional “cultura”, vista naquele momento como uma crítica

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romântica pré-marxista ao capitalismo industrial primitivo. A civilização burguesa confrontavase com a cultura aristocrática e populista4, ou seja, se desenhava o conflito civilização/cultura:

A civilização era abstrata, alienada, fragmentada, mecanicista, utilitária, escrava de uma crença obtusa no progresso material; a cultura era holística, orgânica, sensível, autotélica, recordável. O conflito entre cultura e civilização, assim, fazia parte de uma intensa querela entre tradição e modernidade (EAGLETON, 2011, p. 23).

A incorporação da palavra “cultura” junto a Antropologia, no final do século XIX e início do XX, carregaria um caráter descritivo das formas de vida considerada “selvagens”. Porém, com o avanço dos debates por parte da Antropologia, o conceito deixou de comparar culturas rotulando-as de superiores ou inferiores, agora apenas buscaria descrevê-las, em destaque no período de transição da nação pré-moderna para o Estado-nação moderno. A partir daí, vem ao debate, a necessidade de coesão da sociedade, através da reivindicação da linguagem, herança, sistema educacional, valores compartilhados em comum para a formação da unidade social. O colonialismo do século XIX apresenta a cultura como um modo de vida singular, ou seja, há a transferência da versão romântica para a versão científica da cultura, junto à citada Antropologia. Somente quando há uma caracterização sofisticada da cultura como ciência, surge uma melhor definição, trazendo a discussão novas concepções e significantes. Apesar das diferentes abordagens, basicamente, a Antropologia define cultura como a:

Dimensão que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como esse conhecimento é expresso. É uma dimensão dinâmica, criadora, ela mesma em processo, uma dimensão fundamental das sociedades contemporâneas. (SANTOS, 2012, p. 50).

Ou seja, o termo cultura estaria ligado a processo, mudança. Seja ela no âmbito interno, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, ou externo, oriundo do contato com outros sistemas culturais. No primeiro caso, é quase imperceptível essa mudança, tamanha a lentidão, já no segundo se torna mais explícito, portanto pode ser mais rápida ou brusca e, geralmente, ocorre através de eventos históricos (catástrofe, inovação tecnológica ou alguma situação de contato) (LARAIA, 1986).

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Eagleton entendia que a cultura aristocrática tinha um apelo “populista” de crítica a modernidade.

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Avançando na conceituação, cultura seria essa dimensão do processo social, da vida de uma sociedade. Conforme reitera Santos (idem, p.44) “a cultura é uma construção histórica, seja como concepção, seja como dimensão do processo social [...], a cultura é um produto coletivo da atividade humana”. Em parte, a cultura é tudo aquilo que não é geneticamente transmissível, grosso modo:

A cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico. Ela é ‘aquele todo complexo’, como escreve o antropólogo E. B. Tylor em uma célebre frase de seu Primitive Culture (Cultura Primitiva), que “inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ser humano como um membro da sociedade” (EAGLETON, 2011, p. 54-55).

Pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração não constituem, necessariamente, uma cultura; só o fazem quando compartilham a maneira de falar, saber comum, modos de proceder, autoimagem coletiva, ou seja, um modo característico de ver o mundo. (Idem, p. 59). Nos anos 1960, a cultura passa a significar a afirmação de uma identidade específica – nacional, sexual, étnica, regional. Incorpora valores políticos transformando-se num “nacionalismo revolucionário”, “feminismo” e “luta étnica” e atribui a si uma combatividade na agenda global5. Essa transição para uma arena de conflitos vai exigir a reavaliação do conceito por parte dos estudiosos. A Cultura (conceito antropológico), agora tem que lidar com sua criação, a cultura. A relação da criatura com o criador se torna conflituosa:

A cultura não é mais [...] uma crítica da vida, mas a crítica de uma forma dominante ou majoritária por parte de uma forma de vida periférica. [...] Para a Cultura, a cultura é ignorantemente sectária, ao passo que para a cultura a Cultura é fraudulentamente desinteressada. A cultura é etérea demais para a Cultura, e a cultura mundana demais para a Cultura. [...] Se a Cultura é por demais desabrigada e desincorporada, a cultura é muito mais exageradamente ansiosa por uma habitação local (EAGLETON, 2011, p. 68).

Diante dessa metamorfose do conceito, o ponto de vista anterior exige uma maior problematização, e as “velhas ideias de cultura”6, embora ainda em curso, se tornam retrógradas 5

Assim como setores combativos da esquerda se apropriaram do conceito para nortearem sua luta, setores conservadores a integraram em suas diretrizes, como os xenófobos, por exemplo. 6 Segundo (WRIGHT, 1998, p. 130):

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enquanto instrumento analítico. As novas condições políticas e econômicas e a expansão das novas áreas de relações de produção e trocas baseadas no capital exige uma melhor ferramenta para a abordagem da cultura. O método de análise materialista histórico, a exemplo da Cultura, se orienta numa nova percepção, a compreensão da cultura em todos os seus aspectos.

1.1 Cultura e materialismo Embora lateralizada pelo dito “marxismo vulgar”, a cultura vem se tornando um importante componente no que tange a utilização do método de análise do materialismo históricodialético, de transformação da sociedade7. A contribuição de novos autores do campo da cultura (Gramsci, Williams etc.), junto à obra de Marx, acrescentou novos elementos a conceitos como “hegemonia”, “ideologia”, “consciência de classe”, dentre outros. O que viria a orientar as novas perspectivas junto ao campo da cultura. Conforme o Dicionário do Pensamento Marxista aborda: “o conceito de ‘cultura’ não desempenhou um papel essencial no sistema teórico marxista” (OUTHWAITE apud BOTTOMORE, 2001, p. 93). A cultura enquanto “modo de vida”, no sentido antropológico, teve pouca importância para os marxistas, sendo sempre tratada sob uma forma rudimentar, enquanto reflexo da base8. É a partir da década de 1920 que o Marxismo Ocidental9, através de Lukács e Gramsci, aborda as questões culturais em contraste a essa leitura engessada. Gramsci, ao refletir sobre a concepção de hegemonia, contribui para a sofisticação do conceito junto a pesquisadores do campo da cultura no marxismo contemporâneo, em destaque Williams, Thompson e Eagleton.

 Definições em pequena escala;  Características engessadas;  Imobilidade;  [...] “cultura autêntica;  Indivíduos homogêneos, autênticos. 7 Compreendo o método materialista histórico-dialético ou método de Marx como aquele articula as três principais categorias da tradição do marxismo: totalidade, contradição e mediação (NETTO, 2011). 8 Diferentemente do campo da Antropologia, no campo da Estética, o marxismo deu consideráveis contribuições para o conceito de cultura no século XIX e início do XX. 9 Marxismo Ocidental é o termo que viria se referir ao “pensamento filosófico e político marxista” surgido na década de 20, na Europa Central e Ocidental, onde “se deslocava a ênfase do marxismo da economia política e do Estado para a cultura, a filosofia e a arte”. Fazem uma releitura de Marx “dando particular atenção às categorias de cultura, consciência de classe e subjetividade”, com maior atração pelas análises de estruturas “subjetivas” – fetichismo da mercadoria, alienação e ideologia (BOTTOMORE, 2001, pps. 249-250).

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Cabe destacar, porém, para melhor compreensão da construção desse debate, o resgate a abordagem inicial, que se dá no final do século XIX, organizada por Marx e Engels em A Ideologia Alemã. Na obra, os autores apresentam a relação entre conjunto de ideias de cada período histórico e o materialismo:

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. [...] As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [idell] das relações materiais dominantes, as das relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio (MARX e ENGELS, 2009, p. 67).

A cada nova classe que assume o lugar da anterior que a dominou, é colocada uma tarefa, que é apresentar o seu interesse como universal de todos os membros da sociedade, ou seja, como as únicas ideias racionais e universalmente válidas num processo permanente. E como são produzidas tais ideias?

A produção das ideias, das representações, da consciência está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. [...] A consciência [das Bewusstsein], nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente [das bewusste Sein], e o ser dos homens é seu processo real de vida. Se em toda a ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera escura, é porque esse fenômeno deriva do seu processo histórico de vida da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico da vida. (MARX e ENGELS, 2009, p. 31)

Conforme os autores abordam, a atividade material tem relação com a produção de ideias. Tal afirmação, porém, deve ser travado com a devida cautela, afinal, os riscos de se assumir um determinismo unilateral reproduzido da base econômica se tornam evidentes. No caso da cultura, ocorreu a vulgarização do conceito no campo do marxismo ao segmenta-lo da vida material ou concebê-lo como um mero apêndice da superestrutura, ou seja, uma relação mecânica com a base material. Inclusive, a crítica ao “materialismo mecânico” já havia sido explorada por Marx ao criticar o materialismo de Feuerbach:

A crítica de Marx ao materialismo [anterior] aceitava as explicações físicas da origem da natureza e da vida, mas rejeitava as formas derivadas de argumento social e moral, qualificando a tendência inteira como materialismo mecânico. Essa forma de materialismo havia isolado os objetos e negligenciado ou ignorado os sujeitos e em especial a atividade humana como subjetiva. Daí a sua distinção entre um materialismo mecânico convencional e um novo materialismo histórico, que incluía a atividade humana como força primordial (WILLIAMS, 2007 apud MATTOS, 2012, p.129)

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Abordagem reforçada por Kosik:

O marxismo não é um materialismo mecânico que pretende reduzir a consciência social, a filosofia e a arte a “condições econômicas” e cuja atividade analítica se fundamente, por isso, no desmascaramento do núcleo terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética materialista demonstra como o sujeito histórico, cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido (KOSIK, 1976, p. 111).

Nesse sentido, devemos nos atentar para esse importante elemento, a interação entre subjetividade e produção material. Conforme Marx e Engels alertam, são os homens que desenvolvem a produção material e ao fazerem, mudam o seu pensamento e os produtos do seu pensamento, portanto “não é a consciência que determina a vida, mas vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 2009, p. 32). No entanto, devemos considerar as muitas implicações e significados possíveis para a palavra “determinar” dentro do campo do marxismo. Devido a sua herança teológica, temos a noção de: i) causa externa que profetiza ou prefigura por completo e que controla totalmente uma vida ulterior. ii) Mas há também, a partir da experiência e da prática social, a noção de determinação como a de fixar limites ou exercer pressões. Ao analisar as duas significações é sensato dizer que a primeira é utilizada comodamente na análise cultural marxista, porém isso não a absolve de seus limites. Por isso, vamos nos fundamentar na segunda análise por melhor abordar a questão base e superestrutura (WILLIAMS, 2011, p. 44). A noção inicial de superestrutura é aquela que a caracteriza como um “reflexo”, reprodução ou imitação da realidade da base. Porém, no século XX, trabalhou-se com a questão de “estruturas homólogas”, onde se desembocava em “mediação”. Apesar da necessidade de compreender o papel da superestrutura, pouco se abordou quanto ao papel da “base” nessas considerações. Conforme afirma Williams (2011, p.46), a “‘base’ é a existência social real do homem. A ‘base’ são as relações sociais de produção que correspondem a uma fase de desenvolvimento das forças produtivas materiais”. Nesse sentido, devemos compreender a “base” como um processo e não como algo estático.

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[...] temos de reavaliar “a base”, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa aproximando-a das atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado de processo dinâmico (WILLIAMS, 2011, p. 47).

Uma alternativa utilizada para fugir dessa polêmica de “base x superestrutura” foi a noção de “totalidade” social10. Algo que, a priori, dilui a polêmica e se torna mais aceitável, porém, tem suas armadilhas. Quando afirmamos que a sociedade é composta por um grande número de práticas sociais que formam um todo social concreto e cada prática tem um reconhecimento específico em constante interação, estamos falando de realidade, porém, nos afastando do processo de determinação.

Na verdade, a dificuldade da revisão da fórmula de base e superestrutura tem muito a ver com a percepção de muitos militantes – que têm de lutar contra tais instituições e conceitos tanto quanto têm de travar batalhas econômicas – de que se essas instituições e suas ideologias não forem percebidas como tendo esse tipo de relação de dependência e ratificação, se suas reivindicações por uma validade ou legitimidade universal não forem negadas e combatidas, então o caráter de classe da sociedade não poderá ser mais visto. E esse tem sido o efeito de algumas versões da totalidade como uma descrição do processo cultural (WILLIAMS, 2011, p. 51).

Contudo, o acréscimo do conceito marxista de hegemonia orienta a uma caracterização diferenciada e satisfatória ao combinar a noção de “totalidade”. Antes de avançarmos nessa consideração, cabe uma melhor definição do termo hegemonia. Gramsci desenvolveu o conceito na sua obra Cadernos do Cárcere. Segundo Gramsci apud Bottomore:

Nas condições modernas, [...] uma classe mantêm seu domínio não simplesmente através de uma organização específica da força, mas por ser capaz de ir além de seus interesses corporativos estreitos, exercendo uma liderança moral e intelectual e fazendo, concessões dentro de certos limites, a uma variedade de aliados unificados num bloco social de forças, [denominado] bloco histórico. Este bloco representa uma base de consentimento para uma certa ordem social, na qual a hegemonia de uma classe dominante é criada e recriada numa teia de instituições, relações sociais e ideias. Essa “textura de hegemonia” é tecida pelos intelectuais que são todos aqueles que têm um papel organizativo na sociedade (2001, p. 177).

Nesse sentido, a hegemonia vem enfatizar a realidade de dominação. Williams (2011) estende o conceito ao falar em “hegemonias”, no plural, afinal suas estruturas internas são

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Ênfase associada principalmente a Lukács.

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complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas de forma contínua. Ele critica, inclusive, a definição limitada que considera a “hegemonia” como mera opinião ou manipulação. Ela se destacaria por “um conjunto de práticas e expectativas; significados e valores que se confirmam mutuamente” (idem, p.53). Por isso, para conhecermos uma cultura, devemos compreender o seu processo de incorporação. Por exemplo, as instituições educacionais exercem um papel fundamental nessa correia de transmissão. Williams (2011, p. 55) destaca a “tradição seletiva”: a seleção de significados e práticas do passado e do presente que são escolhidos e enfatizados, enquanto outros são negligenciados e excluídos de forma que não contradiz a cultura dominante. Nesse caso, faz-se necessário reiterar a processualidade: Os processos de educação; os processos de uma formação social muito mais ampla no seio das instituições como a família, as definições práticas e a organização do trabalho; a tradição seletiva em um plano intelectual e teórico: todas essas forças estão envolvidas no contínuo fazer e refazer de uma cultura dominante eficaz cuja a realidade, como algo vivido e construído em nossa vida, delas depende. Se o que então aprendemos fosse apenas uma ideologia imposta, ou se fossem apenas os significados e práticas isoláveis da classe dominante ou de uma fração da classe dominante imposto às outras classes ou membros da sociedade, ocupando apenas o topo de nossas mentes, isso seria [...] algo muito fácil de ser derrubado (WILLIAMS, 2011, p. 54).

Ao analisar esse processo, não podemos marginalizar a “experiência” como elemento fundamental para compreender a “hegemonia cultural”. A experiência media o ser social e a consciência social. Thompson (2004 apud MARTINS e NEVES, 2013) compreende a constituição da classe como resultado de experiências comuns herdadas ou compartilhadas que, ao se articularem, confrontam-se com outro grupo social que possui interesses distintos. E nessa experiência devemos salientar a projeção que se dá na arena de conflitos e conscientização da classe. Na contemporaneidade temos o brutal avanço do capitalismo em todas as esferas do planeta, conjugado com o avanço de teorias que negam a luta de classes (JAMESON, 2011). Nesse sentido, compreendemos a cultura nessa lógica, ou seja, inserida nessa dinâmica de avanço do mercado. A cultura enquanto mercadoria buscou unificar a “alta cultura”11 e a cultura pós-

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Cevasco (2003) compreende “alta cultura” como aquela direcionada à classe dominante, ou seja, que carrega elementos culturais pouco popularizados; Ex: a música clássica no Brasil no início do século XX. Embora tivéssemos algumas iniciativas para popularizá-la, havia uma abordagem da classe dominante em limitá-la aos seus círculos.

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moderna12, ou seja, buscou-se criar uma cultura restrita a um nicho, a incorporação de elementos que a transformasse sob a lógica da mercadoria. Essa lógica tem seu avanço, também, na dita cultura de massa ou popular. Outro exemplo é o caso da cultura de identidade13, igualmente, que pode ser cruzada com a cultura pós-moderna ou comercial. O resultado mais factível é o consumismo gay14 , muito evidente nos EUA. Dentro dessa dinâmica, a alta cultura toma a cultura pós-moderna como parte de sustentação da própria ordem social para sua circulação. Elementos que avançam para a cultura de massas, dada a consolidação inicial na alta cultura. Em resposta a isso, podemos encontrar duas expressões em contraste a cultura dominante: a) cultura alternativa; b) cultura opositora. Cada uma está à mercê da variação histórica constante em conjunturas reais. A caracterização da cultura enquanto “a” ou “b” estar suscetível a correlação de forças com a cultura dominante (WILLIAMS, 2011, p. 55). Para melhor elucidar essa questão, é importante destacar outra distinção: residuais e emergentes.

A [cultura] residual não é a mesma coisa que arcaica. [...] Ela é um elemento ativo do presente, uma expressão de valores e experiências que uma cultura dominante não consegue acomodar plenamente. [Exemplos:] comunidade rural e a religião organizada. Uma boa parte da cultura como identidade ou solidariedade é, nesse sentido, residual – enclaves da resistência tradicionalista dentro do presente que tiram a sua força [...] e que pode ser “oposicionista” ou “alternativas” (EAGLETON, 2011, p. 174).

Portanto, cultura residual seriam “aquelas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou expressos nos termos da cultura dominante, são, apesar de tudo, vividos e praticados sobre a base de um resíduo” (WILLIAMS, 2005, p. 218). Em relação à cultura “emergente”, Williams compreende aquela que incorpora os “resíduos” atribuindo-lhes “novos significados e valores, novas práticas, novos sentidos e experiências estão sendo continuamente 12

Segundo Reis (2012), o pós-modernismo é “destituído de qualquer utopia (política, artística, pessoal etc.)”, para essa teoria o “mundo natural [é] encarado como uma extensão da Cultura, na qual subjaz a lógica da rentabilidade.” (pps. 151-152). 13 Williams (2011) define a “cultura de identidade” como aquela que se refere ao sentimento criado por um grupo na medida que ele é influenciado pela cultura. A influência se dá por questões como: lugar, gênero, história, nacionalidade, idioma, crença religiosa, etnia, orientação sexual etc. 14 O “consumismo gay” refere-se ao mercado direcionado a parte do público LGBT, identificado como homem, branco e classe média. No EUA, o exemplo mais evidente disso foi o Pink Dollar (dólar americano onde os gays faziam uma marca cor-de-rosa para mostrar a movimentação de seus dólares). Segundo o IBGE (2010), os gays gastam 30% a mais que os heterossexuais em artigos como roupas, lazer e gastronomia. Em estética, os gays gastam mais de 60%. Fonte: https://oconfessionario.wordpress.com/2010/09/14/empresas-que-apostam-emconsumo-gay-tem-muito-mais-lucro/ Acessado em 26/02/2015.

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criados” (p. 57). A análise de uma cultura “emergente” e “residual” é complexa, pois, ambas, podem ter sido incorporada ou não incorporadas. Fator reconhecido na análise de seu englobamento juntos as práticas e experiências humanas na sua tentativa de incorporação. Essa identificação se complexifica a partir do momento em que nos esforçamos para compreender a cultura enquanto mercadoria, pois se escamoteiam aspectos fundamentais de sua essência direcionando-as para a lógica do lucro. Porém, essas distinções se tornam compreensíveis quando analisadas sob a luz da categoria trabalho imaterial. Ao realizarmos o movimento de compreender a engrenagem da cultura nessa lógica, procedemos de forma privilegiada em sua conclusão, ou seja, a compreensão da cultura enquanto produto final.

1.2 Cultura e trabalho imaterial: uma questão conveniente A abordagem conceitual que define cultura se abrange ao buscarmos compreendê-la sob a lógica do trabalho, no caso, em especial, o trabalho imaterial. Antes de avançar para a cadeia produtiva da cultura, buscarei apresentar a relação que se estabelece no trabalho imaterial à teoria do valor em Marx, para isso resgatarei as transformações ocorridas no mundo do trabalho a partir da década de 1970. De antemão, devemos compreender a expansão do capital no processo da última reestruturação produtiva. Esta reestruturação tem como objetivo duplo de aprofundar as bases de sua dominação e de sua valorização na produção de mercadorias. Diante da crise do capital, esta nova configuração da produção promove a desorganização da classe trabalhadora e inova na restauração de grupos dirigentes, há a transformação do processo de trabalho, da gestão do capital, reformulação dos parâmetros de qualificação do trabalhador, dentre outras questões (AMORIM, 2009, p. 14-15). O filósofo húngaro István Mészaros apresenta em sua obra A crise estrutural do capital (2009) uma importante contribuição no que compete a compreensão desse período e seus resultados na contemporaneidade. Para isso, o autor introduz uma discussão que diferencia capital de capitalismo, já que ocorre a presença do primeiro seja nos períodos pré-capitalistas (capital mercantil, capital usurário etc.) e nos regimes estalinistas do Leste europeu. O capitalismo se configuraria por um sistema metabólico composto pelo tripé capital, trabalho

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assalariado e Estado, sendo os mesmos inter-relacionados. Dada essa engrenagem, o fim do capitalismo só se seria possível eliminando o conjunto das três dimensões15. Esse metabolismo social do capital vem a surgir com a divisão social que opera com a subsunção real do trabalho ao capital. Os seres sociais tornaram-se mediados entre si e combinados dentro de uma totalidade social estruturada, diante de um sistema de produção de trocas, onde a mediação de segunda ordem sobre determinou as mediações de primeira ordem. Antunes (2009) compreende como mediação de primeira ordem aquelas em que a finalidade é a preservação das funções vitais da reprodução individual e societal e que possuem as seguintes características:

1) Os seres humanos são parte da natureza, devendo realizar suas necessidades elementares por meio do constante intercâmbio com a própria natureza; 2) Eles são constituídos de tal modo que não podem sobreviver como indivíduos da espécie à qual pertencem [...] baseados em um intercambio sem mediações com a natureza (como fazem os animais), regulados por um comportamento instintivo determinado diretamente pela natureza, por mais complexo que esse comportamento instintivo possa ser (MÉSZÁROS apud ANTUNES, pps. 21-22).

Dada essas determinações ontológicas fundamentais, compreendemos a reprodução da existência do ser humano por meio dessas funções primárias de mediações, entre eles e no intercâmbio e interação com a natureza, compreendidas pela ontologia humana do trabalho. Essas funções vitais de mediação de primeira ordem incluem:

1) A necessária e mais ou menos espontânea regulação da atividade biológica reprodutiva em conjugação com os recursos existentes; 2) A regulação do processo de trabalho, pela qual o necessário intercambio comunitário com a natureza possa produzir os bens requeridos, os instrumentos de trabalho, os empreendimentos produtivos e o conhecimento para a satisfação das necessidades humanas; 3) O estabelecimento de um sistema de trocas compatível com as necessidades requeridas, historicamente mutáveis e visando otimizar os recursos naturais e produtivos existentes; 4) A organização, coordenação e controle da multiplicidade de atividades, materiais e culturais, visando o atendimento de um sistema de reprodução social cada vez mais complexo;

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Porém, caso não se apresentasse tal alternativa para a finitude do mesmo, a tendência seria a sua expansão de forma voraz numa processualidade incontrolável e profundamente destrutiva. Essa expansão se daria pela busca crescente do mais-valor e destrutiva quando se pontua a aderência a superfluidez e descartabilidade das mercadorias, tendo repercussões aniquiladoras para a natureza, afinal se amplia em todo o planeta a produção e consumo de supérfluos.

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5) A alocação racional dos recursos materiais e humanos disponíveis, lutando contra as formas de escassez, por meio da utilização econômica (no sentido de economizar) viável dos meios de produção, em sintonia com os níveis de produtividade e os limites socioeconômicos existentes; 6) A constituição e organização de regulamentos societais designados para a totalidade dos seres sociais, em conjunção com as demais determinações e funções de mediação primárias (idem, p. 22)

Essas mediações não necessitam de hierarquia para seu pleno funcionamento. Algo que em determinado período da história humana viria a ser corrompido com as mediações de segunda ordem, ao se introduzir elementos fetichizadores e alienantes do controle social metabólico. Nessa nova dinâmica todas as funções reprodutivas sociais estarão subordinadas aos ditames do capital16. O propósito agora é perseguir é: i) expandir o valor, subordinando o valor de uso a ele, e ii) dividir o trabalho hierarquicamente, com uma relação vertical onde o trabalho deve subsumir-se realmente ao capital. As condições fundamentais para essa etapa seriam:

1) A separação e alienação entre o trabalhador e os meios de produção; 2) A imposição dessas condições objetivadas e alienadas sobre os trabalhadores, como um poder separado que exerce o mando sobre eles; 3) A personificação do capital como um valor egoísta – com sua subjetividade e pseudopersonalidade usurpadas – voltadas para o atendimento dos imperativos do capital; 4) A equivalente personificação do trabalho, isto é, a personificação dos operários como trabalho, destinado a estabelecer uma relação de dependência com o capital historicamente dominante; essa personificação reduz a identidade do sujeito desse trabalho a suas funções produtivas e fragmentárias (idem, p. 24)

Nessa abordagem, percebemos o quanto as mediações de primeira ordem são alteradas e subordinadas a expansão do capital. Há a separação dos que produzem e os que controlam. Tendo como norte a expansão, o capital se coloca como ineficaz de atender as demandas sociais. As distorções estruturais se evidenciam devido à incapacidade de controlar a produção, que se expande a nível mundial, estimulada pelo “consumismo” e “globalitarismo”. Essas considerações se acentuam com a crise dos anos 1970, quando o sistema teve que buscar alternativas diante da redução de seu crescimento. As mudanças na organização do trabalho são pedagógicas para compreender o avanço dessas mediações de segunda ordem, principalmente quando travamos o debate da reestruturação produtiva, artifício utilizado como nivelador do sistema para o retorno as

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Traremos o exemplo da cultura na próxima seção.

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taxas de crescimento. Por isso, devemos compreender a metamorfose do modelo de produção no processo transitório. No período que antecede a crise de 70, temos o modelo de produção fordista, criado por Henry Ford (1919), proprietário da fábrica de automóveis Ford em Detroit (EUA). Ao alterar o processo de produção de carros, Ford tinha o objetivo de fabricar seu modelo T com preços baixos e, assim, possibilitar a sua compra em massa pelos agricultores norte-americanos (sua clientela em potencial) (CAVALCANTE, 2006, p. 49). O encarecimento do produto final, devido ao tempo (12 horas e 30 minutos, aproximadamente) e a extrema especialidade dos operários (operários-artesãos) na fabricação dos veículos, se resumia na dificuldade que os mecânicos tinham em encontrar e adaptar as peças nos lugares corretos, isso num modelo de 30 mil peças. Ford adere a taylorização 17 do processo produtivo, visando uma produção em massa de veículos e a ultra-racionalização das operações efetuadas pelos operários e o combate ao desperdício, principalmente, de tempo (idem, p. 50). Esse processo é efetuado em duas etapas: 1) a desqualificação dos operários-artesãos concluindo no parcelamento das atividades. A partir dali, o trabalho passa repetir os mesmos movimentos indefinidamente durante a jornada de trabalho. Para interligar os trabalhos é instalada a esteira rolante, quanto aos problemas das peças, Ford compra fábricas de autopeças e as padroniza (estandardização); 2) Diante da desqualificação da mão de obra para a produção em massa (resultado do parcelamento), Ford dobra o valor da diária do trabalhador nas fábricas de automóveis, gerando uma mão-de-obra semiqualificada. Tal medida pôde ser aplicada diante da diminuição do tempo de fabricação, portando, com a venda em massa e recuperação do lucro (idem). Tal procedimento seria fulcral para agudizar a subsunção do trabalho ao capital.

[...] Paralelamente à perda de destreza do labor operário anterior, esse processo de desantropomorfização do trabalho e sua conversão em apêndice da máquina-ferramenta dotavam o capital de maior intensidade na extração do sobretrabalho. À mais-valia extraída extensivamente, pelo prolongamento da jornada de trabalho e do acréscimo da sua dimensão absoluta, intensificava-se de modo prevalecente a sua extração intensiva, dada pela dimensão relativa da mais-valia. A subsunção real do trabalho ao capital, própria da fase da maquinaria estava consolidada. [...] Esse processo produtivo caracterizou-se, portanto, pela mescla da produção em série fordista com o cronômetro taylorista, além da vigência de uma separação nítida entre elaboração e execução. Para o capital, tratava-se de apropriar-se do savoir-faire do trabalho, “suprimindo” a dimensão intelectual do trabalho operário [...] e reduzia-se a uma ação mecânica e repetitiva. [O resultado disso foi] o desenvolvimento do operário massa. (ANTUNES, idem, p. 39) 17

Parcelamento das tarefas, racionalização das operações sucessivas e padronização dos componentes.

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Conforme aponta Rodrigues (1998, pp. 86-87), o antigo padrão de acumulação fordista, originário das fábricas de veículos da Ford, que se apoiava num pilar de organização – taylorismo – e tecnológico – fordismo –, transita para uma nova etapa, compreendida como padrão de acumulação flexível, originária das fábricas da Toyota, que se sustentaria no just in time produção exata das quantidades vendidas e não mais produção em massa – e autonomação – que seria um mecanismo adotado nas máquinas a fim de perceberem peças defeituosas e paralisar a produção. Essa inovação técnica e organizacional promovida pela autonomação, concluiu na possibilidade de um único trabalhador supervisionar todas as máquinas. Harvey (p. 140, 2012) define como alicerce dessa acumulação, a flexibilização dos processos do trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo. Ocorre o surgimento de novos setores da produção, novas maneiras de fornecimentos dos serviços financeiros, novos mercados e, além disso, transformações comerciais, tecnológicas e organizacionais. Essa nova fase da inovação se aprofundaria com o avanço da tecnologia. Antunes (2011, p.176) alerta para a transformação do trabalho vivo em trabalho morto, “a partir do momento em que, pelo desenvolvimento dos softwares, a máquina informacional passa a desempenhar atividades próprias da inteligência humana [...], objetivação das atividades cerebrais juntos a maquinaria, da transferência de saber intelectual e cognitivo da classe trabalhadora para a maquinaria informatizada”. Então, o trabalho imaterial expressa a substituição, nas empresas e setor de serviços, onde o “trabalho manual direto está sendo substituído pelo trabalho dotado de maior dimensão intelectual” (p. 177). A fundamentação da acumulação flexível é um padrão produtivo organizacional e tecnologicamente avançado, devido à introdução de técnicas inovadoras da era informacional – tecnologia -, apresentada na ampliação dos computadores no processo produtivo e nos serviços. A estrutura produtiva é mais flexível, com a desconcentração produtiva, adoção de empresas terceirizadas etc. As novas técnicas de gestão se caracterizam pelo “trabalho em equipe” 18. O trabalho agora é “polivalente”, “multifuncional”, “qualificado”, combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada entre diversas empresas, inclusive nas empresas terceirizadas (ANTUNES, 2009, p. 54).

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Também conhecido como “células de produção”, “times de trabalho” etc.

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O resultado dessa nessa nova lógica é a intensificação das condições de exploração da força de trabalho, reduzindo ou eliminando drasticamente o trabalho improdutivo. O resultado no mundo do trabalho é a desregulamentação enorme dos direitos do trabalho, aumento da fragmentação no interior da classe trabalhadora, precarização e terceirização da força humana. Esse modelo experimentado pelas fábricas da Toyota no Japão e depois ampliado no planeta tem as seguintes diferenças ao fordismo:

1) É uma produção muito vinculada à demanda, visando atender as exigências mais individualizadas do mercado consumidor, diferenciando-se da produção em série e de massa do taylorismo/fordismo. Por isso sua produção é variada e bastante heterogêna. Ao contrário da homogeneidade fordista; 2) Fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade de funções, rompendo com o caráter parcelar típico do fordismo; 3) A produção se estrutura num processo produtivo flexível, que possibilita ao operário operar simultaneamente várias máquinas (na Toyota, em média de 5 máquinas), alterando-se a relação homem/máquina na qual se baseava o taylorismo/fordismo; 4) Tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do tempo da produção; 5) As empresas do complexo produtivo toyotista, inclusive as terceirizadas, têm uma estrutura horizontalizada, ao contrário da verticalidade fordista. [...] Essa horizontalização estende-se às subcontradas, às firmas “terceirizadas”, acarretando a expansão dos métodos e procedimentos para toda a rede de fornecedores (idem, pps. 56-57).

Esse elemento processual advindo da reestruturação produtiva pode ser encarado como a base material do neoliberalismo19. Nesse novo momento, a profundidade das relações humanas dá lugar à superficialidade: “a flexibilidade cria distinções entre superfície e profundidade; aqueles que são objetos menos poderosos da flexibilidade são obrigados a permanecer na superfície” (SENNETT, 2010, p. 88). Ou seja, os novos trabalhadores flexíveis são imersos na superficialidade das relações de produção, enquanto os do período fordista se deparavam frontalmente com as contradições da mesma numa sociedade de classes. Os projetos em longo prazo, oriundos das “carreiras” perseguidas no período fordista, agora são substituídos pelo pragmatismo da fluidez das relações. Vejam a questão do compromisso e lealdade. “Não há longo prazo” é um princípio que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo. A confiança pode, claro, ser uma questão puramente formal, como quando as pessoas concordam numa transação comercial ou dependem de que as outras observem as regras de um jogo. Mas em geral as experiências mais profundas de confiança são mais informais, como quando as pessoas aprendem em quem podem confiar ou com quem podem contar ao receberem

19

Conceito que iremos abordar no próximo capítulo.

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uma tarefa difícil ou impossível. Esses laços sociais levam tempo para surgir, enraizando-se devagar nas fendas e brechas das instituições (idem, p. 24).

Nessa nova ordem, o trabalho imaterial assume uma maior importância, afinal, as novas formas de exploração demandam um novo tipo de trabalhador, com destaque aos conteúdos comunicacionais, informativos e cognitivos, ou seja, um trabalhador adaptado e essencial às novas necessidades produtivas do capital. Porém, para a melhor compreensão dessa processualidade, devemos aprofundar o processo que se deu a subsunção formal e real do trabalho ao capital, do ciclo produtivo deste na produção de mercadorias, para estabelecermos a relação com a ampliação do trabalho imaterial vindo a desembocar em sua ampliação na contemporaneidade. A evolução da cooperação simples à manufatura (século XVIII-XIX) vem a transitar na reorganização do trabalho e sua segmentação. Há a especialização do trabalho que divide o processo de trabalho em parciais e específicas operações produtivas. A manufatura capitalista instaura a produção seriada, tendo como finalidade geral a produção de mais-valia. A ruptura significativa se dá com a introdução da maquinaria. Tal fator transforma profundamente a produção capitalista, com a grande indústria baseada na máquina, ou seja, a transformação do eixo perspectivo da direção da produção. A força de trabalho que fundamentava a produção, agora se reconfigura em relação aos meios de produção acumulados. O capital fixo acumulado tem uma predominância produtiva e estrutura a elevação das taxas de mais-valia relativas com relação às taxas de mais-valia absolutas produzidas. O capital fixo incorpora as habilidades do trabalhador coletivo e as desenvolve. Daí:

A produção do tipo capitalista baseada na maquinaria é, na prática, a forma pela qual o capital tenta e consegue, até certo ponto, libertar-se do domínio do trabalhador coletivo. O saber-fazer do trabalhador é incorporado à máquina, faz parte dela, permitindo que a força de trabalho seja desqualificada e que o domínio do capital na produção e na sociedade seja expandido. Configura-se, dessa forma, a subsunção real do trabalhador ao capital (AMORIM, 2009, p. 36).

Antes do desenvolvimento da subsunção real do trabalho ao capital, temos a subsunção formal. Esta última localizada antes da complexificação da relação capitalista. Ou seja, quando o dono do capital assume a gerência do processo de trabalho, sua finalidade é ampliação da maisvalia. No caso, da subsunção formal, os meios de extração da mais-valia são limitados, e o capitalista se vê forçado a prolongar ao máximo possível a jornada de trabalho para gerar valor 24

excedente, no caso a mais-valia absoluta. E a característica marcante da subsunção formal é a centralidade do trabalhador no processo produtivo. O trabalhador emprega os meios de produção, submetendo-os às potencialidades e limitações da sua atividade individual (SANTOS, 2013, p. 90), ou seja, suas limitações determinam as limitações da produção. O capitalista ao não dispor de métodos eficazes para a subordinação efetiva do trabalho, atua apenas como comandante do trabalho. A transição da subsunção formal para a subsunção real é o resultado da sofisticação de novas formas de controle do trabalho. Na produção físico-material, o capital passou a subsumir de forma real o trabalho com a inserção da maquinaria e a consolidação de determinas relações sociais. Neste caso, o trabalhador se torna um apêndice dos meios de produção, ao invés de ser um produtor direto. Sua relação com o comprador da força de trabalho é aprofundada com a maior subordinação ao capital. E como se dá essa nova caracterização do indivíduo capitalista industrial? É a posse do capital industrial ser a personificação deste novo indivíduo. Vejamos a análise de Marx em “O capital”:

Nos estágio de circulação, o valor-capital assume duas formas, a de capital-dinheiro e a de capital-mercadoria; no estágio da produção, a forma de capital produtivo. O capital que, no decurso de todo o seu ciclo, ora assume, correspondente, é o capital industrial, industrial aqui no sentido de abranger todo o ramo de produção explorado segundo o modo capitalista (MARX, 2008, p.62).

Ou seja, as formas particulares apresentadas (capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital-produtivo) são formas diferentes do funcionamento do capital industrial 20 . O capital industrial, na forma de capital produtivo, existe enquanto meios de produção e força de trabalho. Na esfera de circulação, manifesta-se na forma de capital-mercadoria e capital-dinheiro, logo, o processo de produção aparece como função produtiva do capital. Para melhor compreensão dessa questão, devemos conceber a indústria como algo ampliado, além da fábrica, cortando a agroindústria e o setor de serviços.

O termo indústria, em Marx, diz respeito a qualquer ramo explorado segundo o modo capitalista. Se a produção capitalista se apodera dos meios de transporte, estes passam a ser considerados peças subordinadas à indústria de transporte. A indústria tem existência 20

O diferencial do último é a busca da mais-valia.

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além da fábrica e existe no contexto do modo de produção específico que se valoriza independentemente da natureza útil do resultado da produção. Essa noção ampliada da indústria na obra de Marx explicita importantes para a compreensão da produção de valor para além da fábrica e fornece um exemplo concreto da produção comandada pelo capital industrial que se destacava em sua época: a indústria de transportes (SANTOS, 2013, p. 122).

Por isso há a apresentação de novas atividades, por Marx, ligadas aos ramos industriais, ou seja, os ramos explorados, segundo os preceitos produtivos capitalistas: telegrafia, navegação e serviços de transporte. Apesar de constituírem em produções imateriais, esses produtos não concluem em efeitos úteis imateriais, para a acumulação de capital, mas sim, estão ligados a lógica do movimento do capital industrial. Quanto mais dinâmico o movimento, maior a produção da mais-valia. Por isso, torna-se fundamental a venda do capital, seja na forma capital-mercadoria ou capital-dinheiro. O desenvolvimento dos transportes e da comunicação dinamiza esse valor-capital aprisionado sob a forma de mercadoria e possibilita que ele volte ao processo de produção e se valorize novamente. Um capital pequeno que roda muitas vezes pode gerar mais mais-valia do que um capital grande que rode poucas vezes. E qual a relação do tempo de rotação com o trabalho imaterial? Vejamos: 1. Como a principal forma de diminuição do tempo de circulação é o progresso dos transportes e das comunicações, o capital, ao promover tal desenvolvimento, impulsiona o crescimento da produção imaterial [a) circulação do produto enquanto mercadoria no intervalo entre produção e consumo; b) quando o produto não é separado do ato da produção]. O resultado útil das indústrias de transportes e de comunicações é imaterial [o resultado do processo de circulação da mercadoria que estes setores contribuem]. Logo, esta parcela da produção imaterial tem um lugar de suma importância na produção capitalista; 2. Uma parcela considerável da produção imaterial, pela própria impossibilidade de ter este uma existência separável do ato de produção, tem seu efeito útil consumido no próprio processo. Em outros termos, o tempo de circulação é drasticamente reduzido, reduzindo também o tempo de rotação, e isso faz com que o capital investido nas referidas produções imateriais se valorize mais rápido. O tempo de circulação limita o processo de produzir mais-valia, e o capital encontra nas produções comandadas pelo trabalho imaterial a possibilidade ampla desse tempo (SANTOS, 2013, p. 128-129).

Essa constatação nos leva a compreender como se dá o ciclo do capital na produção das mercadorias. Nessa distribuição há diversos momentos: produção, distribuição, troca e consumo. Segundo o processo de produção das mercadorias materiais, ele se inicia com o possuidor do capital-dinheiro aplicando uma quantia de dinheiro (D) na circulação a fim de comprar mercadorias (M), força de trabalho (FT) e meios de produção (MP) necessários à formação do 26

produto. Nesse momento há uma pausa na circulação – caracterizada na forma de reticência (...) – para funcionar o processo de produção (P e as variadas capacidades da força de trabalho atuam em ação consumindo material e produtivamente os meios de produção, sem deixar de conservar o valor antigo e criar um novo. O resultado é uma mercadoria material acrescida um novo valor (M’), que é vendida por um montante de dinheiro maior que o adiantado (D’). O processo se encerra no consumo, separado da produção, e o ciclo recomeça. Na produção imaterial, temos a ausência do novo valor (M’). Isso não significa ausência de mais-valia, mas sim, da mercadoria material que nos variados ramos produtivos seria o produto físico do trabalho excedente. No caso, a mais-valia do trabalho seria representada pela fórmula (D’), ou seja, a fórmula geral seria D-MD’, sendo D’ = D+∆D (idem, p. 136-137). Diante disso, fica evidente que o trabalho que não gera valor é improdutivo. Do ponto do vista do capital, é extremamente necessário para sua reprodução. Esse trabalho pago para ser consumido como valor-de-uso e que não gera valor, trabalho improdutivo, é chamado por Marx de serviço: Assim como as mercadorias que o capitalista compra para o consumo privado não são consumidas produtivamente, não se transformam em fatores do capital, também tal não acontece com os serviços, que compra de livre vontade ou forçado por causa de seu valor de uso, para consumo. (MARX apud SANTOS, 2013, p. 145)

O conceito marxiano de “serviço” se distingue do contemporâneo. Hoje, o setor de serviços é definido como bens intangíveis vendido no mercado. Porém, para Marx, serviços se consagra como um efeito útil de um valor de uso, seja de mercadoria ou de trabalho. É o trabalho comprado por causa do seu valor de uso, o trabalhador que apenas troca os seus serviços por dinheiro. Sendo assim, trazemos ao debate a questão do trabalho imaterial, que vem a contribuir nessa definição e dialoga com as recentes transformações do capitalismo contemporâneo.

1.3 A cultura enquanto mercado Diante disso, resgatamos o diálogo com o conceito de “cultura” abordado no início desse texto. Priorizaremos sua compreensão, principalmente, no campo do trabalho imaterial21, ou seja, concluído no consumo. Tal análise se afina com o aspecto aprofundado no capitalismo

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Não aprofundaremos o trabalho material na condição abordada, porém, compreendemos seu papel fundamental no processo produtivo cultural, conforme o exemplo sobre o produto “livro” dimensiona no decorrer do capítulo.

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contemporâneo, que amplia a produção imaterial na economia da cultura ou cadeia produtiva da cultura. Compreendemos a cadeia produtiva da cultura envolvida em sete cadeias: música; livro/imprensa; artes plásticas e antiguidades; cinema e tv; artes performativas; publicidade, arquitetura e design:

Nestas cadeias podemos diferenciar por tipo de produto (bens e espetáculos) e por forma de produção (artesanal e industrial). Todas as atividades culturais nascem da criação humana, isolada ou em pequenos grupos. A diferença aparece no caso da difusão. Alguns produtos são serviços gerados por uma atividade artesanal, que não sobrevivem ao ato de consumo. Aí estão incluídos os espetáculos teatrais e musicais. Outros geram bens não reprodutíveis como é o caso da pintura e da escultura, ou de tiragem limitada, como a gravura. Finalmente, outros ainda entram como insumos em cadeias industriais e transformam-se em bens de consumo de massas – livros, jornais, filmes, vídeos, discos, design, fotografias (Earp apud REQUIÃO, 2008, p. 51).

Essa complexificação e variedade da cadeia produtiva da cultura é fundamental para não nos restringirmos a uma ótica generalizante da cadeia produtiva sem levar em conta os diferentes ramos do setor. Diante da afirmação que o trabalho imaterial transcende a materialidade imediata do objeto, podemos identificar na citação acima esse tipo de trabalho, os que não sobrevivem ao ato de consumo ou que não geram bens não reprodutíveis. Os que se transformam em bens de consumo de massa e se encontram nas cadeias industriais, tem uma relação dupla, ou seja, são trabalho material, afinal temos uma mercadoria transformada, e o trabalho imaterial, relacionado, principalmente, a criatividade humana. Podemos dar como exemplo a produção de um livro. Enxergando-o como um objeto, resgatamos seu processo produtivo. Ocorre a i) formação das florestas (plantio de eucalipto) e seus cortes; ii) produção da celulose; iii) produção do papel; iv) por fim, o produto final numa gráfica, através de impressão e encadernação. Basicamente, etapas que exigem o trabalho material de transformação da mercadoria em contato direto com a natureza, ou seja, a transformação da mesma. Porém, esse livro também é resultado do trabalho imaterial, afinal a editora responsável por publicá-lo, irá divulgá-lo através de toda uma equipe de marketing e propaganda, ou seja, elementos que exigirão a criatividade para torná-lo mais atrativo enquanto mercadoria, gerar mais-valor, concluindo num produto que é o resultado do dois tipos de trabalho. A nossa tarefa se torna mais árdua quando analisamos os patrimônios culturais e o tipo de trabalho envolvido nos mesmos na cadeia produtiva cultural. De antemão, é importante definir o 28

que é patrimônio cultural, segundo a United Nations Education, Scientific and Cultural Organization (UNESCO)22. Para a Convenção Geral de 197223, pode-se definir como patrimônio cultural: a) monumentos: Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; b) conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência; c) locais de interesse: obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico. Dentro dessa definição de patrimônio cultural dada pela entidade, encontramos sua divisão em patrimônio material e imaterial, caracterizações que se alinham com as transformações produtivas do capitalismo. O patrimônio material24 se encontra definido no ano de 1972, ápice do fordismo, sendo reconhecido como bem tangível. Com a reestruturação produtiva e a transição para a era da acumulação flexível e das teorias pós-modernas, é perceptível os desdobramentos junto aos organismos multilaterais. Em 200325, por exemplo, em nova convenção, a UNESCO decide agora reconhecer o chamado patrimônio imaterial ou intangível. Ali o define como aquilo que “compreende as expressões de vida e tradições que comunidades, grupos e indivíduos em todas as partes do mundo recebem de seus ancestrais e passam seus conhecimentos a seus descendentes”, pode ser “conhecimentos enraizados no cotidiano das comunidades; manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; rituais e festas que marcam a vivência coletiva da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; além de mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais”.

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Fundada em 1945, a UNESCO apresenta em seus princípios como como fomentadora da paz e segurança, a nível mundial, através do incentivo a educação, ciência e cultura. 23 http://whc.unesco.org/archive/convention-pt.pdf. Acessado em 08/01/2015. 24 Como vimos, podemos compreender este tipo de patrimônio enquanto cultura residual. 25 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=4718 Acessado em 03/03/2015.

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O órgão no Brasil, ligado à UNESCO, responsável por reconhecer a legitimidade de um patrimônio e tombá-lo 26 é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Dentre os patrimônios imateriais registrados por essa instituição consta o ofício da baiana de acarajé27. Essa questão, portanto, é interessante para compreendermos a relação que vem se dá com o trabalho imaterial. Conforme Fischer e Dias (1998) exploram em seu trabalho, o comércio dos tabuleiros das baianas de acarajé em Salvador - BA, geralmente, eram geridos de forma empresarial-familiar com pequenas margens de lucro e empregados. A lógica do trabalho material, comprar os ingredientes, transformá-lo em acarajé, e vendê-lo para a obtenção do maisvalor. Porém, após o registro do ofício das baianas de acarajé e o reconhecimento delas enquanto patrimônio imaterial, sob a condição de patrimônio mundial pela a UNESCO, portanto, reconhecidas como bem cultural e histórico, que devem ser valorizadas pela humanidade, ocorre a transição destas enquanto trabalhadoras no campo da informalidade e de “cultura residual”, para a formalidade e “cultura emergente”. Esse novo contexto, da institucionalização da cultura sob o amparo do Estado, as coloca uma nova tarefa, a de assumir o ethos de produto cultural, ou seja, agora são um espetáculo a ser consumido, afinal para a sua sobrevivência na nova ordem, devem incorporar novos elementos que as reconduzam à sobrevivência no “mundo dos negócios”, a começar por um registro que as permita exercer suas atividades junto aos órgãos competentes. Além da produção do acarajé sob a forma de trabalho material, agora suas indumentárias e barraquinhas serão melhor exploradas pelas agências de turismo, através do trabalho imaterial, com ferramentas de marketing em panfletos turístico etc. A “emergência” ocorre na construção da cultura (baiana do acarajé) enquanto mercado, por outro lado, não há o fenômeno da aculturação de forma aprofundada, é interessante que elas conservem a “pureza” dessa cultura, o do “autêntico acarajé”. A condição de registro as coloca como um bem a ser preservado e ressignificado, ou seja, agora são mercadorias culturais atendendo a nova lógica cultural do capitalismo.

As transformações ocorridas no mundo ocidental, e das quais o Brasil não escapou, têm seguido a lógica do cultural do capitalismo tardio ou pós-modernismo. Em outras palavras, a cultura se tornou uma “verdadeira segunda natureza”, produzida e consumida 26

“Tombar” significa reconhecer o valor cultural de um bem, levando-o a esfera institucional tutelada o juridicamente pelo Estado, no Brasil foi registrado pelo decreto-lei n 25 de 30 novembro de 1937. 27 O tombamento foi registrado em parecer técnico de 2005. http://bahia.com.br/noticias/baianas-do-acarajeganham-titulo-de-patrimonio-imaterial-do-estado/ Acessado em 26/02/2015.

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como produto igual ao outro. [...] É nesse mundo-objeto – quase que inteiramente moldado pelo ideário burguês – que nos debatemos para apreender o significado dos próximos passos da formação educacional, cultural e política do homem, no pósmodernismo (RODRIGUES, 2012, p. 47).

Diante dessas considerações, é importante destacar as metamorfoses que o conceito “cultura” vem sofrendo em compasso com cada contexto histórico em que é abordado. As transformações do mundo capitalista a colocam numa nova posição no debate, sua legitimação é direcionada a elevá-la ao patamar de mercado, conforme as mudanças no mundo trabalho denunciam, assim como a relação com os organismos multilaterais internacionais. A cultura agora é enxergada como produto e assim como as contradições do sistema capitalista, vem carregada dos conflitos de classe. A transição mais intensificada da cultura para a lógica do mercado tem seus passos afinados com a ampliação do trabalho imaterial na contemporaneidade. Ao se localizar na ordem do trabalho produtivo ao capital, o setor assume novas feições e emerge, principalmente, nas expressões residuais culturais. Conforme vimos, a cultura característica dos setores populares, como as baianas do acarajé, ganham um novo adicional na contemporaneidade, o consumo do produto material é reforçado com a maior exploração do produto imaterial, no caso, a representação da baiana e toda sua indumentária. Capítulo 2. Social-liberalismo e o precariado A crise do modelo neoliberal ortodoxo desdobrou em novas formas de gestão do Estado burguês. O Estado mínimo, os cortes nos gastos públicos, dentre diversas políticas prejudiciais a classe trabalhadora a que viriam acentuar a luta de classes internacionalmente, exigiu dos capitalista medidas que buscassem novamente aliançar capital-trabalho, público-privado. O denominado social-liberalismo, viria buscar travestir as mazelas do sistema capitalista. No caso do Brasil, tivemos ainda, pela setores governantes do PT, a retomada do debate sobre o “neodesenvolvimentismo”, elementos que influenciaram as questões do mundo do trabalho. 2.1 Neoliberalismo: origem e crise A crise geral da economia capitalista em 1929 exigiu do capitalismo uma releitura do modelo de gestão do Estado. A teoria keyneseana, de planejamento racional das atividades econômicas, buscava reformar o capitalismo, antes que o mesmo implodisse. 31

Dir-se-ia que Keynes se apropriou das análises de Marx nas quais explicita o movimento contraditório do capital que desemboca em crises cíclicas. Mas Keynes, ao contrário de Marx, e como representante da burguesia, em lugar de ver nessas crises a necessidade de superação do capitalismo, procurou encontrar os antídotos, isto é, os mecanismos que, se não evitasse as crises, conseguissem, pelo menos, mantê-las sobre controle. Acreditava ainda que, através da adequadas políticas governamentais, seria possível contes as crises cíclicas do capitalismo e garantir o pleno emprego e taxas contínuas de crescimento, se não para sempre, pelo menos por longos períodos (SAVIANI, 2002, p. 20).

Paralelo a Keynes, temos Hayek (economista vencedor do Prêmio Nobel em 1974), que pontuava o influxo do Estado na intervenção da economia para coibir as crises. Já em 1947, no pós-Segunda Guerra Mundial, Hayek, em conjunto expoentes do pensamento conservador (Lionel Robbins, Karl Popper, von Mises, Friedman, dentre outros), organizava reuniões na Suíça, Mont Pélerin, para debater estratégias de combate ao keynesianismo. Para eles, o suposto igualitarismo promovido pelo Estado de Bem-Estar e o intervencionismo estatal, era um entrave às liberdades individuais dos cidadãos e à vitalidade da concorrência. Uma teoria econômica não seria suficiente para tal, por isso, a necessidade transformá-la em doutrina:

Se não havia teoria econômica capaz de cumprir o papel ideológico que era necessário cumprir, então tratava-se simplesmente de afirmas a crença no mercado, de reforçar a profissão de fé em suas inigualáveis virtudes. E para atingir o estágio em que o mercado seria o comandantes indisputado de todas as instâncias do processo de reprodução material da sociedade, era preciso: limitar o tamanho do Estado ao mínimo necessário para garantir as regras do jogo capitalista, evitando regulações desnecessárias; segurar com mão de ferro os gastos do Estado, aumentando seu controle e impedindo problemas inflacionários; privatizar todas as empresas estatais, porventura existentes, impedindo o Estado de desempenhar o papel de produtor, por mais que se considerasse essencial e/ou estratégico um determinado setor, e abrir completamente a economia, produzindo a concorrência necessária para que os produtores internos ganhassem em eficiência e competitividade (PAULANI, 2006, p. 71).

A hegemonia da teoria keynesiana reproduziu seus frutos no chamado “anos de ouro” do capitalismo (pós-segunda guerra mundial), de duração de quase trinta anos. Houve um crescimento da economia em todo o planeta, diminuição do desemprego e inflação reduzida. O denominado “Estado de Bem-Estar” traduziu um grau de compromisso entre Estado, empresas e sindicatos de trabalhadores. Uma fase de crescimento da economia, que assegurava um relativo equilíbrio social e a impulsão do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas28.

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É preciso registrar que tudo isso não se deu de igual maneira em todos os países, nem mesmo entre os centrais.

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Porém, em meados dos anos 70, o mundo é abalado com duas crises do petróleo (1973 e 1979), crises fiscais dos Estados centrais e o retorno da inflação. A crise capitalista se evidencia quando faz-se um balanço de que a taxa de crescimento do capital dos Estados Unidos e Europa tem uma redução de um terço em 1975 em relação aos “anos dourados” do capitalismo do pósguerra (1945-1974) 29 . Em acréscimo a essa crise econômica, ocorre uma crise política do capitalismo, conforme se evidencia nos anos 60 e 70 com as batalhas perdidas pelo imperialismo norte-americano (por exemplo, Cuba, Vietnã) e a segunda onda de processos de descolonização (no Oriente Médio e África, como um todo), sem falar nos conflitos sociais, como o maio de 68, com forte repercussão em toda a América Latina, dominada por ditaduras militares. A resposta do capitalismo para esses fatores foi a conclusão de que havia a emergência de um novo projeto, uma nova doutrina para a manutenção do sistema. A adoção da proposta do grupo de Hayek se efetivou com esse projeto neoliberal. A orientação era reestruturar o capital em escala internacional. Os teóricos compreendiam que a saída seria desenvolver o capital financeiro, flexibilizar as relações trabalhistas, total abertura e desregulação da economia e o reajuste dos setores públicos – privatização dessas empresas. Pareado a isso, no plano político, deveria se maximizar a repressão e perseguição aos movimentos políticos-ideológicos com orientação anti-sistêmica, proposições que viriam a ser executadas. O Estado no neoliberalismo devia garantir os direitos individuais à propriedade privada, o regime de direito e as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio:

O Estado tem portanto de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a custo essas liberdades. Por extensão, considera-se um bem fundamental a liberdade de negócios e corporações (vistos legalmente como indivíduos) de operar esse arcabouço institucional de livres mercados e livre comércio. A empresa privada e a iniciativa de empreendedores são julgadas as chaves de inovação e da criação de riqueza. Protegemse os direitos de propriedade intelectual (por exemplo, através de patentes) a fim de estimular as mudanças tecnológicas. Assim, os contínuos argumentos da produtividade devem proporcionar padrões mais elevados de vida a todos. Sob o pressuposto de que uma “maré montante faz subir todos os barcos” ou sob o do “efeito multiplicador”, a teoria neoliberal sustenta que a eliminação da pobreza (no plano doméstico e mundial) pode ser bem mais garantida através dos livres mercados e do livre comércio (HARVEY, 2011, p. 75).

Este processo se realizou em diversas etapas e diferentes ritmos no mundo. Nos anos setenta, se inicia o ataque brutal aos movimentos populares e sindicais em todas as partes. Na 29

FÉLIZ e LÓPES (2012, p. 26).

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América Latina, temos a derrubada do governo de Unidade Popular no Chile em 1973 através de um golpe militar organizado por Pinochet e outro na Argentina em 1976, também por militares. De fato, a ditadura de Pinochet serviu como laboratório do neoliberalismo, pois, como se sabe, a equipe de Milton Friedman foi contratada pelo governo chileno para reestruturar a economia. Após a experiência chilena, nos países centrais do capitalismo, o ataque contra os setores populares se dá com a ascensão do governo de Thatcher na Inglaterra em 1979, Reagan em 1981 nos Estados Unidos e Helmut Kohl na Alemanha em 1982. Para uma melhor compreensão da adoção desse projeto neoliberal, Féliz e López (2012) exploram três etapas graduais até sua efetiva instauração. A primeira etapa, ocorrida principalmente na década de setenta, conforme o parágrafo anterior aborda, se inicia com medidas impopulares. Ocorre a diluição e o abandono o Estado de bem-estar social na Europa, e a repressão estatal para garantir as novas demandas da classe dominante de reconfiguração da suas estruturas políticas, como ditaduras militares e governos sob essa orientação, além da integração transnacional. A segunda etapa, a partir dos anos oitenta, é a descrita como aquela de intensificação da ideologia neoliberal, após o balanço de aplicação prática nos EUA e Inglaterra. As ditaduras militares-empresariais da América Latina, inclusive, já vinham de um profundo desgaste e alguns países, como o Brasil, já transitavam para um modelo democrático burguês (1985). Nesse sentido, o rigor modernizante das ideias neoliberais encontravam terrenos férteis mundo afora, em alguns casos se tornando até estilo de vida30. Intensificaram-se as ideias hayekianas e com elas, críticas ao antigo modelo econômico adotado no pós-guerra. Buscava-se vincular a crise de setenta, com sua raiz no descontrole orçamentário do Estado nacionais e a regulação deste nos setores privados. Neste primeiro momento, as ações de desmonte do Estado não foram muito generalizadas, porém, as classes dominantes (setor financeiro, industrial e agrário) buscaram através de seus próprios meios, convergirem à nova realidade mundial através da reestruturação. Frente à adesão e a necessidade das empresas capitalistas de ajustar seus processos produtivos, aumentar a exploração do trabalho e recompor suas taxas de rentabilidade, o conjunto das empresas – nem sempre de forma 30

Nos EUA e na Inglaterra já se denunciavam a presença dos famosos Jovens Profissionais Urbanos (Young Urban Profissional), nomeados de “yuppies”. Geralmente, classe média alta, desprezavam as questões sociais e exacerbavam o individualismo, consumismo e a meritocracia. Estereótipo, inclusive, utilizado pelo primeiro presidente eleito na democratização em 89, Fernando Collor de Melo.

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coordenada – cortaram possíveis investimentos em capacitação profissional, acentuaram a flexibilização interna dos processos produtivos e outorgaram um papel mais relevante para o capital financeiro para levar a cabo suas atividades. Foi uma estratégia para desgastar os setores sindicais-populares organizados. Esses transformações no mundo do trabalho provocaram uma forte crise na década de oitenta em toda a América Latina, década que ficou conhecida como “década perdida”31. Tais aspectos, portanto, permitiram que fossem adotadas a terceira e última etapa do neoliberalismo, no início dos anos noventa. As diretrizes dessa nova fase foram encaminhadas no chamado Consenso de Wasghington32 (1989), espaço de referência para a cartilha neoliberal. As famosas dez regras do CW repercutiam a experimentação das etapas anteriores de aplicação do modelo neoliberal e deliberavam seu encaminhamento por todo o planeta.

O Consenso de Washington foi a denominação de uma articulação para implantar o neoliberalismo de maneira ordenada nos diversos países. Em novembro de 1989, pela primeira vez na história, reuniram-se na capital dos Estados Unidos funcionários do governo daquele país e dos organismos financeiros internacionais especializados em assuntos latino-americanos - FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O objetivo do encontro era fazer uma avaliação das políticas econômicas implantadas até então. Para relatar as experiências locais, também participaram do evento diversos economistas latino-americanos. Às conclusões desta reunião dar-se-ia, posteriormente, o nome informal de Consenso de Washington. A novidade era o consenso estabelecido entre as diversas fontes do ideário neoliberal. As políticas recomendadas por aquelas agências e organismos internacionais seriam finalmente unificadas. A mensagem seria transmitida de forma mais vigorosa e seria absorvida pela maior parcela da elite econômica e intelectual da região como sinônimo de modernidade (MARIANI, 2007, p. 5).

A queda do muro de Berlim (1989) e a “fukuymização”33 ideológica reforçou ainda mais a aplicação do projeto neoliberal em todo o planeta. No caso da América Latina, já havíamos a implementação do neoliberalismo junto à ditadura empresarial-militar de Pinochet nos anos setenta. Nos outros países, porém, só se iniciou o processo de implementação do neoliberalismo

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No caso do Brasil, punha fim ao “milagre econômico” da década de setenta. As dez regras são: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas); direito à propriedade intelectual. 33 O cientista político norte-americano Francis Fukuyama elaborou a sua famosa tese no início dos anos noventa, onde afirmava que havíamos chegado ao “fim da História”, ou seja, o liberalismo econômico e político haviam vencido a batalha contra o socialismo e comunismo. 32

35

após o CW. No México com Salinas (1989-1994), Menen na Argentina (1989-1999), Venezuela com Carlos Andrés Pérez (1989-1993), Fujimori (1990-2000) no Peru etc. Ao longo da aplicação dessa terceira etapa, o projeto neoliberal trazia consigo o aumento do desemprego aberto e a pobreza massiva. Aumento da dívida pública, desmonte do Estado, dentre outras medidas com repercussões negativas junto à classe trabalhadora. O resultado foi a intensificação de mobilizações, inclusive com movimentos que pontuavam uma nova dinâmica. A famosa crise da Tequila no México em 1995 e o movimento neo-zapatista nessa região já demonstrava os primeiros resultados reais do neoliberalismo. Apesar dos países centrais não serem tão afetados pela crise, havemos de lembrar a famosa batalha de Seattle nos EUA em 1999, onde se adiou a reunião da Organização Mundial do Comércio, concluindo em repercussões a nível mundial. Nos países periféricos, víamos a queda das economias da Malásia e Indonésia na Ásia. Na América do Sul, o processo de crise se desenvolvia no Brasil, Argentina e Venezuela em meados de 1998. A resposta se daria com diversas mobilizações populares, como a da Argentina em 2001, onde tivemos quatro presidentes em dois meses ou na Bolívia, com as guerras da água (2000), gás (2003 e 2005) e a eleição de Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia. No caso da Venezuela, Hugo Chavez (1999) punha em debate o projeto “bolivariano”, movimento visto com desconfiança pelos EUA. Esse movimento de crise sistêmica cíclica, após o balanço depreciativo do neoliberalismo, começa a borbulhar no final dos anos noventa, principalmente, nos países periféricos, em especial, a América Latina, e a contrapartida é a efervescência de lutas nos movimentos sociais que colocam em xeque o continuísmo do neoliberalismo ortodoxo no mundo. Nesse momento, novas tendências surgem com propostas que buscassem comungar essa insatisfação popular e capitulasse-os a lógica do capital, como o social-liberalismo. Antes de melhor defini-lo, porém, cabe fazermos um resgate específico do neoliberalismo no Brasil. 2.2 O neoliberalismo no Brasil e transição para o social-liberalismo A implementação do neoliberalismo no Brasil exige um tópico a parte, até mesmo para compreender o porquê da efetivação do social-liberalismo aqui e suas relações com o Partido dos Trabalhadores. A especificidade do Brasil é tamanha que enquanto havíamos o desmonte do

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Estado de bem estar-social na Europa, aqui tínhamos as famosas greves do ABC e a fundação da Central Única de Trabalhadores, além de outros movimentos como o Movimento dos Sem Terra. Antes de avançarmos nessa caracterização do neoliberalismo no Brasil, cabe explorar essa complexidade do país, onde visualizamos elementos modernos e atrasados em profunda harmonia. A própria revolução burguesa no Brasil, no início do século XX, se destacou por alianças pelo alto, entre as elites, sem a participação popular:

A oligarquia cafeeira paulista exerceu forte influência em oposição a setores extremamente conservadores apegados a um modelo de produção arcaico. Dado tal panorama, no que tange a dinâmica do processo, percebemos uma aliança burguesaoligarquia, além do capital estrangeiro que veio ditar os trâmites táticos de adesão ao modo de produção capitalista. [...] o conceito de “via prussiana” segundo Lênin seria a penetração do capitalismo na agricultura e manutenção do domínio de setores agrários. Luckács ampliaria tal conceito ao lidar com o papel determinante da burguesia, que apesar de desprovida de poder decisório, arrancaria determinadas concessões econômicas para o Estado que promoveriam o desenvolvimento do capitalismo. Essa aliança seria fundamental para massacrar qualquer possibilidade de organização coletiva vinda de baixo. Seguindo com modelo brasileiro, presenciamos tais particularidades nas alianças já citadas e em algumas instâncias de desenvolvimento capitalista como no campo, por exemplo. O fim do trabalho escravo com a transição para a mão-de-obra assalariada, além da necessidade de construção da nação. Por outro lado persistiam atributos autoritários na condução das decisões, protagonizada pela elite oligárquica cafeeira de São Paulo e Minas Gerais. As relações sociais de produção desse novo período apontam bem a essa nova diretriz, que travestida de um discurso liberal, apenas reproduzia forte autoritarismo do período (DUQUE, 2012, p. 8).

Esse característica do Brasil deu margem a inúmeras interpretações quanto a formação do país. Conforme atesta Marini (2010), alguns setores, como os cepalinos34 e o Partido Comunista Brasileiro, identificavam, em meados da década de cinquenta, a necessidade dos países periféricos romperem

com seu estágio

de sudesenvolvimentismo e transitarem

ao

desenvolvimentismo, grosso modo, deslocarem-se da condição de exportador do setor primário (agricultura) e ampliarem sua condição industrial35. A chamada “teoria da dependência”, de matriz marxista, do final dos anos sessenta e início dos setenta, (de autores como Ruy Marini, Theotônio dos Santos e outros), porém, viria romper com essa análise e buscaria compreender os países da América Latina enquanto 34

A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe-CEPAL foi criada em 1948 pela ONU para integrar economicamente os países dessa região. 35 Cabe um ressalte que a argumentação dos cepalinos era de que tal condição elevaria o Brasil ao patamar de nação desenvolvida, enquanto o PCB, diferentemente dos cepalinos, compreendia que a industrialização seria uma etapa de formação de uma burguesia nacional industrial para, em seguida, a revolução socialista.

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engessados na lógica de periferia, tendo como única alternativa a revolução socialista. Essa teoria trazia ao debate, novamente, a análise do Brasil em seus aspectos “atrasados” e “modernos”. Aquilo que Francisco de Oliveira chamaria contemporaneamente de ornitorrinco:

Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agrobusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial completo, avançando, tatibitate, pela Terceira Revolução Industrial, a molecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas rendas, a rigor, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; noutra, extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres. Um sistema financeiro ainda atrofiado, mas que, justamente pela financeirização e elevação da dívida interna, acapara uma alta parte do PIB (OLIVEIRA, 2013, p. 133).

Ou seja, elementos distintos que convivem harmoniosamente. Esses fatores são interessantes para compreendermos como se deu o processo de inserção do neoliberalismo no Brasil, inicialmente no governo Fernando Collor de Melo, para incidir com maior intensidade no governo FHC. A aplicação do neoliberalismo no Brasil não pode ser processada de forma automática, devido ao contexto especial que o país vivia, logo sendo um entrave. Conforme Martuscelli (2012) aponta, a dificuldade se deu por: a) convocação da Assembleia Constituinte para a elaboração e aprovação da Constituição de 1988. Documento que garantiu pequenas conquistas de direitos sociais aos trabalhadores e que funcionava como um polo de oposição ao neoliberalismo; b) forte crescimento dos grevistas que se iniciou nos anos setenta e se prolongou nos anos oitenta; c) criação de organizações que se tornaram instrumento da classe trabalhadora, seja na cidade ou no campo, como o Partido dos Trabalhadores (1980), Central Única dos Trabalhadores (1983) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (1984), essas que reivindicavam o que a Europa já tinha superado, o Estado de Bem-estar. Em contrapartida a isso, na segunda metade da década de oitenta, a resistência ao neoliberalismo vinha perdendo fôlego e quatro fatores são fundamentais pra isso: a) acordos para a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, em resposta a mobilização de Diretas-Já, derrotando esse movimento; b) insucesso do Plano Cruzado, o último suspiro do “desenvolvimentismo” no Brasil, ainda presente nas políticas de estabilização monetária; c) pressão de Reagan para a abertura comercial, o que afetava a burguesia brasileira; d) eleição de 1989, sua polarização entre Lula e Collor resultou numa vitória “apertada” do segundo e “carta branca” para a ofensiva das políticas neoliberais. 38

Uma das primeiras medidas de Collor foi a centralização do poder na esfera do executivo, com destaque a tecnocracia econômica. O grande capital bancário e financeiro, que já reivindicavam o neoliberalismo desde o início da década de oitenta, foi o primeiro setor a se favorecer com as políticas do então presidente. Martuscelli (2012, p. 44) alerta para a “abertura comercial brusca, o enxugamento do quadro de funcionários públicos, os avanços da política de ‘livre negociação salarial’[limitação de direitos], a eliminação da política salarial que repunha automaticamente a perda salarial decorrenta da inflação”. Pode-se acrescentar a participação do capital bancário e financeiro nos processos de privatização. A abertura comercial e o início das privatizações convergiram com as demandas das grandes industrias da burguesia. Dada a complexidade do Brasil, tais medidas vieram agradar, inclusive, segmentos da chamada classe média e do operariado, em profunda contradição, já que ainda se posicionavam criticamente contra o modelo econômico desenvolvimentista de Sarney. Cabe destacar que é nesse período que se dá a criação da Força Sindical (1991), entidade que funcionava como correia de transmissão da ideologia neoliberal para a classe trabalhadora, em resposta ao sindicalismo combativo da CUT. Inclusive, a FS teve um papel fundamental na privatização das sindicais em que dirigia, como o sindicato da USIMINAS, por exemplo. Apesar de atender as demandas da burguesia e do novo espectro que se anunciava, o governo Collor sofreu um processo de impedimento em 1992. Notícias de corrupção “pipocaram” na mídia e expuseram “esquemões” que beneficiavam o então presidente, parentes e amigos. Sem apoio parlamentar o governo Collor sucumbiu. Sua postura centralizadora e de concentração de poderes, desagradou a burguesia que reivindicava uma maior participação naquele momento em que se aplicava o neoliberalismo no Brasil. Nesse período, foram marcantes as manifestações estudantis do “Fora Collor”. Esses fatores, portanto, são interessantes para introduzir a aplicação do neoliberalismo no Brasil, aplicado tardiamente em relação aos outros países e perpetrado por uma crise de representatividade. Diante de tais acontecimentos, coube aos setores dominantes construir um nome para a disputa das eleições de 1994. Alguém que trouxesse consigo a comunhão da classe burguesa e praticasse o neoliberalismo sem fissuras da mesma.

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O período da “privataria tucana” 36 liderada pelo novo presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) viria consagrar, conforme afirma Frigotto (2002, p. 55) a “desapropriação do país, [tornando-o] seguro para o capital”. Após o impedimento de Collor em 1992 e a condução do vice-presidente, Itamar Franco, FHC assumiu, primeiramente, a pasta de Relações Exteriores, para em seguida, em 1994, ocupar o Ministério da Fazenda. Com o Brasil vivendo altos índices inflacionários, uma equipe de economistas (Pedro Malan, Clóvis Carvalho, dentre outros) cria a Unidade Real de Valor – Plano Real. Busca-se equipar a moeda brasileira ao dólar, ou seja, um real corresponderia a um dólar. A queda da inflação e o Plano Real foram o mote de campanha de Fernando Henrique Cardoso nas eleições daquele ano. Em disputa direta com o Luis Inácio Lula da Silva (PT), FHC venceria ainda no primeiro turno as eleições de 1994 e 1998. Com governos marcados pela aplicação do neoliberalismo ortodoxo da forma mais crua. Se no governo Collor foram 12 empresas vendidas 37 e Itamar, 9 empresas vendidas e 1 concessão rodoviária 38 , nos governos FHC foram 10 empresas vendidas, 5 concessões rodoviárias e 7 concessões ferroviárias 39 . Seguindo a essência da teoria neoliberal, onde o objetivo é “restaurar o mercado como instância mediadora societal elementar e insuperável e uma proposição política que repõe o Estado mínimo como única alternativa e forma para a democracia” (NETTO, 1993, p. 84), o mandato de FHC efetivou as metas elaboradas no Consenso de Washington e as aplicou de forma aprofundada no Brasil. O desgaste do governo FHC veio com famosa crise de desvalorização do real logo após sua posse em 1998, resultado da falência das políticas neoliberais no Brasil e no mundo. A vitória de Luis Inácio Lula da Silva em 2002, representou a adoção de uma nova modalidade do modelo neoliberal, nomeada de social-liberalismo. Conforme pontuamos acima, o neoliberalismo em sua forma ortodoxa não se configurou com êxito diante de suas promessas:

Os resultados prometidos às populações não foram alcançados: as taxas de crescimento econômico continuaram estagnadas, o desemprego cresceu, os empregos gerados foram 36

Termo utilizado pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. que dá título ao seu livro. Nele constam casos de corrupção das inúmeras privatizações cometidas pelo PSDB, lideradas por José Serra e Fernando Henrique Cardoso. 37 Usiminas, Celma, Mafersa, Cosinor (1991) e SNBP, AFP, Petroflex, Copesul, Alcanorte, CNA, CST, Fosfertil (1992). 38 Goiasfértil, Acesita (1992), CSN, Ultrafértil, Cosipa, AçoMinas (1993) e PQU, Caraíba, Embraer e Ponte Rio-Niterói (1994). 39 Escelsa, Via Dutra, BR-O40 (Juiz de Fora), BR-116/RJ (Além Paraíba/Teresópolis) (1995), Light, 5 malhas da Rede Ferroviária Federal (1996), Vale do Rio Doce, Banco Meridional, BR-290/RS (Osório/Porto Alegre), Malha Nordeste da Rede Ferroviária (1997), Telebrás, Gerasul, BR-116/RS, Malha Paulista da Rede Ferroviária (1998), Datamec (1999), Banespa (2000), Banco do Estado de Goiás (2001) e Banco do Estado de Amazonas (2002).

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de baixa qualidade e, principalmente, os índices de pobreza e desigualdade aumentaram. Gradativamente tomou-se consciência de que o receituário-ideal do neoliberalismo não reunia condições políticas e ideologicas para cumprir suas falsas promessas. Um malestar generalizado começou a ser sentido pelas classes subalternas diante dessa situação de deterioração social. Era a hora de o neoliberalismo sofrer um suave ajuste na sua direção estratégica (CASTELO, 2013, p. 244).

Nesse novo ajuste, o Estado teria uma nova função: “regular as atividades econômicas e operacioná-las em parceria com o setor privado, políticas sociais emergenciais, focalizadas e assistencializadas, visando garantir as taxas de acumulação do capital e mitigar as expressões da ‘questão social’”. Essa nova variante ideológica do neoliberalismo – denominada socialliberalismo – tem em sua perspectiva promover o sincretismo do Estado e o mercado, acreditando poder instaurar a justiça social (idem, pp. 244-247). O social-liberalismo desconhece a polarização “esquerda-direita” e atribui uma superação da mesma no cenário político atual. Para o social liberalismo, o chamado terceiro setor tem um papel fundamental. Podemos definir o terceiro setor como iniciativas privadas de utilidade pública originadas na sociedade civil, ou seja, com fins públicos não lucrativos, sendo distinto do primeiro setor (público, Estado) e do segundo setor (privado, mercado). Para seus teóricos, organizações e/ou ações da “sociedade civil” (não estatais e não mercantis). Para Montaño (2010) há uma carência teórica do conceito. A começar por suas referências, pois os mesmos encaram o terceiro setor como: a) organizações não-lucrativas e não-governamentais: ONGs, movimentos sociais, organizações e associações comunitárias; b) instituições de caridade: religiosas; c) atividades filantrópicas: fundações empresariais, filantropia empresarial, empresa cidadã, que teriam “descoberto” a importância da “atividade social”; d) ações solidárias: consciência solidária, de ajuda mútua e de ajuda ao próximo; e) ações voluntárias; f) atividades pontuais e informais. Montaño (2010, p. 182) alerta para a limitação do termo “sociedade civil” a qual o terceiro setor se refere. É perceptível a ausência de entidades representativas dos trabalhadores como organizações sindicais e de movimentos sociais combativos (MST, MTST, MTD etc.)40, por exemplo. Montaño segue sua crítica abordando outra questão do terceiro setor que seria a forma dúbia que seus teóricos tratam da função da mesma.

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Movimento dos Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) e Movimento dos Trabalhadores Desempregado.

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1. Atividades públicas desenvolvidas por particulares. São “iniciativas particulares com um sentido público” [...], “organizações orientadas para a ação”; 2. Função social de resposta às necessidades sociais: “[...] ONGs, ligam o cidadão comum com entidades e organizações que podem participar da solução de problemas identificados”; 3. Valores de sociedade local, auto-ajuda e ajuda mútua: “valores do terceiro setor [...] altruísmo, compaixão, sensibilidade para com os necessitados e compromisso com o direito de livre expressão (MONTAÑO, 2010, p. 184).

Diante dessa descrição, cabe analisarmos criticamente que o que está em jogo “não é o âmbito das organizações, mas a modalidade, fundamentos e responsabilidades inerentes à intervenção e respostas para a ‘questão social’, percebe-se a desresponsabilização do Estado, desoneração do capital e a auto-responsabilização do cidadão e da comunidade local para esta função (típica do modelo neoliberal ou funcional a ele)” (ibidem, p. 185). Percebe-se a transformação político-econômico-ideológica para a restrita questão técnico-operativa.

Opera-se não apenas a já mencionada setorialização do real, mas uma verdadeira despolitização do fenômeno e do debate. A discussão é levada para a comparação entre instituição estatal – tratada como burocrática, ineficiente, corrupta, rígida e em crise (fiscal) – e organizações do “terceiro setor” – tidas como dinâmicas, democráticas, “populares”, flexíveis, atendendo as particularidades regionais e categoriais (ibidem).

O precipitado conceito de terceiro setor é ilegítimo, pois não se refere a um novo setor, mas sim a funções sociais desenvolvidas por organizações da sociedade civil e empresas, não mais pelo Estado, porém com o suporte do Estado. Montaño (p. 186) reconhece o terceiro setor inserido no processo de reestruturação do capital, portanto, alicerçado nos principais neoliberais e, agora, no social-liberalismo. O terceiro setor tem uma função social que é responder “questões sociais”, seguindo valores de ajuda mútua, solidariedade local e autoajuda e deslocar mobilizações sociais organizadas. Embora os teóricos do “terceiro setor” façam esse esforço em defini-lo vagamente como eticamente virtuoso, livre das ingerências impuras do mundo da política, da corrupção e da ineficiência do Estado e das falhas do mercado, percebemos que:

A sociedade civil-contemporânea comporta, em seu seio, aparelhos privados de hegemonia de recortes políticos-ideológicos progressistas e conservadores. Virou moda, no social-liberalismo, empresários bilionários, socialites, celebridades, esportistas milionários e toda sorte de membros das classes proprietárias doarem recursos para instituições do “Terceiro Setor”, sendo que muitos assumem o papel de empreendedores sociais criando suas próprias fundações filantrópicas (CASTELO, 2013, p. 246).

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Conforme Motta (2012) aponta, as desigualdades sociais passaram, mais uma vez, a ser um dilema da burguesia e seus intelectuais. A crise do neoliberalismo na virada do século e o aumento da pobreza empurraram os organismos multilaterais a elaborarem novas saídas para esse contexto, afinal, havia a possibilidade real de colocar em cheque as democracias burguesas dos países periféricos. A protagonização dos principais órgãos internacionais do capitalismo como FMI41, OMC42, Banco Mundial, dentre outros, colocava a questão da “pobreza” na ordem do dia, afinal, já se “pipocavam” mobilizações pela América Latina, além da famosa Batalha de Seattle (1999). A teoria da “terceira via” se fortalece nesse processo. Giddens, diante da agudeza dos conflitos sociais, busca apresentar uma saída passiva a esse contexto: [...] ele propõe então um “programa modernizante da democratização”, um “mix” de conservadorismo moral para remontar a solidariedade social corroída pelo individualismo exacerbado e de desenvolvimento de atitudes ecologicamente modernas para reconhecer o dualismo dos avanços tecnológicos. Segundo o autor, “um programa capaz de controlar adequadamente as forças que a globalização e a mudança tecnológica desencadearam. Para tal, é preciso “combinar solidariedade social com uma economia dinâmica” (MOTTA, 2012, p. 81).

Democracia nesse novo contexto vem a corroborar as demandas do terceiro setor, ou seja, descentralizar as ações sociais do governo. Giddens vai mais além, ele propõe autonomia das comunidades locais e bairros no que tange a renovação social e material dos mesmos. É preciso buscar empreendimentos nesses locais. O autor, porém, diferente do terceiro setor que busca escamotear o papel do Estado, é explícito quanto à necessidade dessas parcerias, conforme aborda Motta (2012, p. 82) “a política de terceira via defende uma ‘nova economia mista’, que busque uma ‘nova sinergia’ entre os setores públicos e os privados; parceria entre o ‘Estado e a sociedade civil’”. O terceiro setor ante uma busca de superação do Estado, agora, diante da abordagem teórica da terceira via no social liberalismo vem exercitar essa nova sinergia das parcerias público-privadas. Característica ampliada já no início da década de noventa, porém, sofisticada

41 42

Fundo Monetário Internacional Organização Mundial do Comércio

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no início dos anos dois mil. Afinal, o balanço da década de noventa quanto ao terceiro setor é factível quanto a sua expansão:

A título de ilustração, pode-se identificar que desde os anos 1990, no Brasil, houve um aumento significativo do número de organizações não governamentais (ONGs) e de empresas ditas “cidadãs” ou “responsáveis socialmente”, que investem ou atuam em atividades em atividades educativas informais, visando ao combate à violência infantil urbana e rural, ou a sanar o problema dos meninos de rua, ou do trabalho e prostituição infantis; também atuam na educação de jovens e adultos da periferia urbana e de favelas, patrocinando programas profissionalizantes e de inclusão digital, e na educação infantil, através da criação de creches etc., além de apoiarem programas e ações governamentais (MOTTA, 2012, p. 106).

O receituário neoliberal produziu uma série de documentos com o objetivo de incitar a uma globalização humanizada, a um capital social. O revisionismo neoliberal atingiu os principais organismos multilaterais do capitalismo e a ONU teve um papel importante nesse momento. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) patrocinou em 1987, um estudo chamado Adjustment with human face 43 . Durante toda a década de noventa, a ONU promoveu ciclo de conferências sociais debatendo e discutindo temas como infância (NY-90), meio-ambiente e desenvolvimento (Rio-92), direitos humanos (Viena-93), população e desenvolvimento (Cairo-94), desenvolvimento social (Copenhague-95), mulher (Pequim-95) e habitação (Istambul-96). Para intensificar o apoio dos sociais-liberais, a ONU confeccionou a Declaração do Milênio (2000), onde 189 países assinaram e se comprometeram a cumprir as metas como erradicação da miséria, fome, analfabetismo etc. No caso da América Latina, a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL) vinculada a ONU, publicou uma série de documentos onde visava adequar seus objetivos as novas demandas do social-liberalismo. Em clima de nostalgia, os cepalinos agora se regozijavam com a possibilidade de combate ao liberalismo ortodoxo e do resgate as teses desenvolvimentistas. Os fóruns internacionais, como o de Davos (2000), traziam as principais estrelas acadêmicas, política e do mercado como Bill Clinton, Lula, FHC, Kirchner, Tony Blair etc. Nesse espaço se buscava o debate de temas para a humanização do capitalismo e, consequentemente, a adesão ao social-liberalismo.

43

Adjustment with human face , ONU, p. 61, 1987.

44

O social-liberalismo foi discutido, preparado e fermentado em círculos fechados por seus ideólogos ativos antes de chegar ao senso comum. Evocando antigos signos da modernidade, como a razão, a justiça, a ciência e seus signos matemáticos, busca-se atualizá-los de acordo não somente com um linguajar contemporâneo, mas com técnicas modernas de dominação, como a propaganda e o marketing. A ideologia social-liberal é produzida e difundida por uma ampla rede de aparelhos privados de hegemonia: agências multilaterais de desenvolvimento, organizações não governamentais, fundações filantrópicas laicas e religiosas, mídias impressas e televisivas, intelectuais tradicionais e orgânicos da direita, bem como egressos da esquerda, e business man. São inúmeros os agentes do social-liberalismo, desde os ideólogos ativos – os formuladores das propostas neoliberais – até os passivos, que propagam esta ideologia, às vezes sem muita clareza do que realmente está em jogo, reproduzindo no nível do senso comum (e próximo a ele) as teses formuladas no plano da filosofia (CASTELO, 2013, p. 257).

A problemática principal do social-liberalismo – comportar a primazia do mercado em harmonia com o Estado, através do terceiro setor, para evitar questões como a “questão social” e revoltas populares – é conservar a manutenção da ordem burguesa através de uma política de conciliação de classes. Castelo (2013) traça quatro eixos teóricos que sustentam essa modalidade do neoliberalismo, o social-liberalismo: 1)

Busca pela desideologização dos discursos e práticas políticas. Quando Giddens

afirma que “não há mais direita ou esquerda” depois do fim dos regimes estalinistas no Leste europeu (1989) e da falência do modelo neoliberal ortodoxo, ocorre por parte dos teóricos do social-liberalismo a busca através de uma saída intermediária entre os neoliberais e as antigas (e arcaicas) esquerdas, sejam elas social-democratas ou revolucionárias. Tal afirmação viria dar eco as teorias pós-modernas do fim das ideologias; 2)

A crítica acrítica ao mercado como sistema social de distribuição de riquezas. Os

teóricos do social-liberalismo reconhecem o mercado como importante componente, porém reconhecem suas falhas no que compete a distribuição de renda. Por isso, se torna necessário a presença do Estado na correção dessas falhas: regulação estatal nas atividades econômicas e privadas, parcerias público-privadas no investimento econômico e políticas sociais de perfil focalista, filantrópico e assistencialista para combater as expressões da “questões sociais”. Como diria Giddens, a criação de uma economia mista, através de uma combinação perfeita entre Estado e mercado. 3)

A questão da ética e da responsabilidade no capitalismo é o terceiro eixo norteador

do social-liberalismo. O discurso do “capitalismo responsável”, “capitalismo humanizado” e “globalização com face humana” são reivindicados constantemente pelos teóricos do socialliberalismo. Os famosos conceitos de “responsabilidade social e ambiental”, “desenvolvimento 45

sustentável” são os novos slogans dos capitalistas contemporâneos. Através de uma crítica moral, os teóricos do social-liberalismo buscam reformar o capitalismo convencendo ricos e pobres, capitalistas e trabalhadores, governantes e governados a assumirem projetos responsáveis e conscientes para o tratamento de expressões da “questão social” sem questionarem o essencial: a exploração do trabalho assalariado pelo capital, a acumulação capitalista e as resistências dos trabalhadores; 4)

Há o balanço negativo do papel do Estado pelos sociais-liberais nas expressões da

“questão social”. O Welfare State e os regimes estalinistas demonstraram a imponência dele no tratamento dessas questões. Nesse sentido, o papel do Estado deveria ser de acompanhar de uma forma consciente e de participação ativa o “terceiro setor” através dos novos movimentos sociais (empresas e bancos); Os teóricos do social-liberalismo buscam uma diferenciação do neoliberalismo ortodoxo a partir de três modos de questionamento:

1)Tecendo críticas contra o liberalismo extremado da globalização que, sem maiores critérios, teria desregulamentado mercados comerciais e financeiros de países frágeis do ponto de vista econômico e institucional, o que acabou por aumentar drasticamente as taxas de desemprego e, consequentemente, a tensão social; 2) discordando da tese do Estado mínimo, afirmando que a nova configuração global do capitalismo exigiria um Estado ágil e eficiente, capaz de fazer intervenções pontuais nas falhas de mercado e nas expressões agudas da “questão social”; 3) dando destaque à participação dos aparelhos privados da sociedade civil, em comunhão estreita com o Estado, na formulação e implementação de políticas públicas, em especial as de alívio à pobreza via transferência de renda e empoderamento dos indivíduos (CASTELO, 2013, p. 264).

Alguns países como a Inglaterra buscaram fazer tal transição do neoliberalismo ortodoxo ao social-liberalismo, sob uma via que sustentasse a conciliação de classes. A finitude do governo de Margaret Thatcher acompanhada da emersão do New Labour (novo trabalhismo) do primeiroministro, Tony Blair44 é didática quanto esse novo contexto britânico. A “dama de ferro” (19791990) seguia o receituário neoliberal de forma radical: privatização, cortes nos gastos sociais, repressão a movimentos trabalhistas etc. Seu programa de governo teve continuidade com o conservador Sir John Mayer (1990-1997), sendo sucedido por Tony Blair (1997-2007). Blair era líder do Partido Trabalhista desde 1994 e já impunha uma reformulação no regimento interno do

44

Blair teve como um dos principais assessores o sociólogo Anthony Giddens.

46

Labour Party, transformando-o no New Labour, onde a mudança mais gritante se deu na clausula 4 da Constituição partidária:

Em substituição à cláusula que se referia à propriedade coletiva nasceu a defesa do empreendimento do mercado e rigor da competição, selando no interior do New Labour, a vitória da economia de livre mercado frente à formula anterior. A retórica socialista e a prática trabalhista reformista anteriores, que na verdade exprimiam a defesa de uma economia fortemente estatizada e mista, encontraram seu substitutivo na defesa da economia de mercado, mesclando liberalismo com traços da “moderna” socialdemocracia. Começava então a se desenhar o que posteriormente Tony Blair, respaldado em seu suporte intelectual mais sólido, dado por Anthony Guiddens e David Miliband, chamou de “terceira via”. Em seu sentido mais profundo, a “Terceira Via” do New Labour tem como objetivo dar continuidade ao projeto de reinserção do Reino Unido iniciado na Era Thatcher, e que pretende redesenhar a alternativa inglesa dentro da nova configuração do capitalismo contemporâneo. Essa nova conduta partidária consolidou, como vimos, o distanciamento do Partido em relação aos sindicatos e ao Trade Union, passando a pressioná-los em direção à adesão de uma proposta programática em conformidade com o seu projeto. E aproximou cada vez mais o New Labour do “moderno empresariado britânico”, do qual é hoje a expressão, o que levou a revista The Economist a apresenta-lo como a versão inglesa do Partido Democrático de Clinton (ANTUNES, 2009, p. 97).

Esse percurso de Tony Blair e do New Labour é importante para fazermos um paralelo com o Partido dos Trabalhadores, com a vitória de Lula em 2002 e adesão ao social-liberalismo. De antemão é importante fazermos um resgate da história do Partido dos Trabalhadores: Oriundo do chamado “novo sindicalismo” do final da década de 1970, o partido surgira em 1980 como um ferrenho crítico da ditadura militar bem como de seus opositores “burgueses” (PMDB, PDT, PTB etc.). Crítico dos regimes stalinistas do Leste Europeu e defensor de um socialismo “democrático” (bandeira política que sempre careceu de maiores definições), o PT conglomerou em sua formação sindicalistas, intelectuais, setores da Igreja, professores, artistas e diversas organizações operárias – grande parte de origem trotskysta (Convergência Socialista, Democracia Socialista, Organização Socialista Internacionalista, Movimento de Emancipação do Proletariado etc.) – em um projeto partidário de cunho “classista” no país (DEMIER, 2003, p. 7-8).

Assim como Partido Trabalhista Inglês, o PT sofreu um processo de transformação nos anos noventa e optou pela via do rebaixamento de seu programa partidário. A história do PT tem vínculo direto com a construção da Central Única dos Trabalhadores (CUT) fundada em 1983. Esta entidade inicialmente buscava uma orientação classista e teve um papel fundamental no processo de reconquista dos sindicatos pelegos nos anos oitenta, nas grandes mobilizações da classe (direitos trabalhistas na constituinte e greves gerais) e por sua recusa ao “pacto social” com empresários. Porém, com o passar dos anos, a CUT lidou com o acirramento de suas disputas 47

internas, de um lado a Articulação Sindical e do outro as correntes de esquerda (CUT pela Base, mais tarde Alternativa Sindical Socialista e a Convergência Socialista45, que nos anos noventa comporia o Movimento por uma Tendência Socialista). Já nos Congressos de 1986 e 1988, algumas alterações foram realizadas, como a redução da participação de delegados de base nos eventos deliberativos da Central e a ampliação da autonomia da direção. Já na década de noventa, a CUT perde seu radicalismo do início dos anos oitenta, e passa a integrar os inúmeros espaços de “entendimento” do governo Collor e FHC. Com o discurso de que os trabalhadores tinham que disputar os recursos e verbas públicas com os empresários, a CUT transitou para o passo seguinte da burocratização que foi a “integração de dezenas, depois centenas, de dirigentes sindicais aos conselhos gestores de fundos de pensão, principalmente de empresas estatais (como Previ e Petros, por exemplo) que foram protagonistas do processo de privatização e continuam a ser alavancas poderosas para a acumulação capitalista nos quadros atuais” (MATTOS, 2009, p. 28). Licenças sindicais, carreirismo sindicais (do sindicato à federação, para a confederação e à central), uso do imposto sindical que em outrora eram criticados pelos radicais do início da década

de

oitenta,

agora

eram

naturalizados.

A

burocratização

se

naturalizou

e,

consequentemente, o afastamento da base. Burocracia que já se alinhava com o PT nos anos noventa. No Partido dos Trabalhadores, a “Articulação dos 113”, mais tarde Articulação, marginalizava as tendências identificadas com o grupo da esquerda socialista. A derrota de Lula em 1989, que até então promoveu uma campanha de comprometimento com o acúmulo da classe trabalhadora (reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, redução da jornada de trabalho etc.), e o colapso dos regimes do Leste Europeu concluíram numa virada programática do PT. O debate mais radicalizado de transformação da sociedade foi abandonado e as eleições passaram a nortear os debates internos do partido:

[...] toda a década de 1990 foi marcada por uma crescente ocupação de espaços institucionais pelos representantes do partido, eleitos para legislativos federal, estaduais e municipais e para os executivos municipais e estaduais. Em governos, os petistas passaram a defender slogans consonantes com suas novas práticas, como “governar para todos”. Os cargos na administração pública e nos gabinetes parlamentares passaram a ser valorizados como forma de sustentação e crescimento da estrutura das tendências partidárias e fortalecimento das posições de ocupantes nos debates internos do partido. Se na CUT dos anos 1990, 90% dos tomadores de decisão (os que participavam dos 45

Que também compunha o PT.

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congressos) eram dirigentes/burocratas sindicais, no PT, percentual bem semelhante de parlamentares, ocupantes de cargos no executivo e assessores passaram a controlar as convenções, encontros e congressos partidários, ditando uma linha de intervenção cada vez mais voltada para a institucionalidade e distante dos movimentos sociais que tinham impulsionado o partido nos seus primeiros dez anos de existência (MATTOS, 2009, p. 32).

Esse movimento de abandono de um programa de transformação social radical, a exemplo do New Labour com Tony Blair eleito primeiro-ministro, foi coroado com a vitória de Luis Inácio “Lula” da Silva nas eleições de 200246. Com uma coligação representada pelo PCB/PC do B/PMN/ e PL47, Lula tinha como vice-presidente o industrial do ramo têxtil José Alencar, o que afastava uma desconfiança do empresariado. Cabe destacar nesse período a Carta ao Povo Brasileiro, documento confeccionado no período de campanha. Nesta carta, Lula acalmava o mercado financeiro e seus aliados da ordem, se comprometendo a assumir os acordos do legado FHC. É perceptível, também, o aumento do financiamento de campanha para elegê-lo48. O balanço do governo dos governos Lula (2002-2006; 2006-2010) é diversificado. Dentre os que fazem uma leitura teórica positiva desse período, temos Emir Sader com o conceito de pós-neoliberalismo, Singer em debate com o “lulismo” e Boito Jr que traz ao debate a leitura de neodesenvolvimentismo, esta, inclusive, mais reivindicada nos documentos do governo federal. Cabe ressaltar que ambas as leituras não são restritas ao Brasil e encontram eco nos outros governos recentes da América Latina. Porém, me restringirei aos autores citados, para em seguida fazer uma leitura crítica pautada no já debatido social-liberalismo. O sociólogo Emir Sader (2013) em sua análise do neoliberalismo, busca apresentar uma crítica as leituras que pontuam uma transição desse modelo econômico de forma direta ao socialismo. O teórico alerta quanto a necessidade de mudança gradual ao pós-neoliberalismo, através de pequenos traços. Efeitos que estariam sendo praticados pelos Kirchners (Argentina), Frente Ampla (Uruguai), Chávez (Venezuela), Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e, logicamente, pelo governo federal do PT no Brasil. Para ele, esses governos são pós-neoliberais, afinal: 46

Numa disputa com José Serra (PSDB), Lula obteve quase 53 milhões de votos no segundo turno, tornando-se o segundo presidente mais votado da história mundial, perdendo apenas para Reagan nos EUA em 1984. 47 O Partido Liberal, do vice de Alencar, tem sua matriz na defesa do liberalismo. Em 2006, o partido se fundiria com o partido mais à direita “Partido de Reedificação da Ordem Nacional” (PRONA) de Enéas, nomeando-se hoje Partido da República (PR), onde suas principais figuras são Garotinho (RJ) e Tiririca (SP). 48 “Em termos reais [...] as doações de empresas quadruplicaram entre 2000 e 2004 chegando a 27% do total arrecadado, contra apenas 1% em 1999” (SINGER, 2012, p. 100).

49

a) priorizam as políticas sociais e não o ajuste fiscal; b) priorizam os processos de integressão regional e os intercâmbios Sul-Sul e não os tratados de livre comércio com os Estados Unidos; c) priorizam o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e da distribuição de renda, em vez do Estado mínimo e da centralidade do mercado (SADER, 2013, p. 138).

O autor compreende que Lula “buscou avançar pelas vias de menor resistência e fragilidade do neoliberalismo” (p. 139). Tais vias seriam: políticas sociais em resposta a ditadura do neoliberalismo (bolsa-família, “Minha casa, minha vida” etc) e os projetos de integração regional em resposta a bilateralidade Brasil-EUA e livre comércio, para exemplificar, ele cita a inviabilização da ALCA. Sader (idem) considera que ainda persistem valores do neoliberalismo presente no governo PT, que “apesar dos avanços” tiveram que atender alguns retrocessos da agenda neoliberal como “desindustrialização, o protagonismo de exportador primário, uma sociedade fragmentada, as ideologias consumistas” (p. 141). Questões que devem ser relativizadas, segundo Sader (ibidem), devido à posição desprivilegiada que se encontra o Brasil e a América Latina, com amplos períodos de ditadura militar e democracia recente. Singer (2012) elabora uma compreensão do governo PT, a partir dos resultados das eleições de 2006, onde Lula vence o candidato do PSDB, Geraldo Alckmin no segundo turno. Ao se debruçar sobre os dados daquele pleito, Singer esclarece que houve uma mudança de perfil do eleitorado do PT, a classe média urbana e escolarizada (de 5 a 10 salários mínimos) teria migrado os seus votos para o PSDB e para o PSOL, enquanto um setor, denominado subproletariado (de até dois salários mínimos) teria mudados seus votos ao presidente petista. Singer entende subproletariado como:

Subproletáriados são aqueles que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais. Estão nessas categorias: empregados domésticos, assalariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores e destituídos das condições mínimas de participação na luta de classes (SINGER, 2012, p. 77).

Para Singer (idem) a “crise do mensalão” (2005) teria expulsado os setores da classe média no apoio ao PT e trazido esse subproletariado contemplado com o tripé: “Bolsa Família, aumento do salário mínimo, somado aos referidos programas específicos [Luz para todos etc.], e com pano de fundo da diminuição de preços da cesta básica [...] e a redução da pobreza a partir 50

de 2004” (p. 68). A disputa nas eleições, portanto, se daria entre ricos (classe média) e pobres (subproletariado) com a burguesia e o proletariado tendo um papel secundário nesse processo. Porém, essa disputa se dá apenas na disputa do executivo, afinal, o legislativo não repercute essa engenharia defendida pelo autor. Daí, Singer traz a tona a sua defesa do conceito de “lulismo” justamente por se referenciar no clássico conceito de Marx em O 18 Brumário de bonapartismo49. Por isso, na avaliação de Singer, há o afastamento da luta de classes do Brasil, com a restrição a disputa entre ricos e pobres, afinal o governo do PT segue aplicando o seu “reformismo fraco” oriundo do seu programa nacional-popular, onde não abandona o neoliberalismo do horizonte, porém, não deixa de contemplar os setores mais pauperizados, o “subproletariado”. Por fim, nas análises teóricas de sustentação do governo do Lula, temos a que nos interessa no momento, sendo inclusive abordada nos documentos da Economia Criativa, que é o neodesenvolvimentismo. Alicerçada nos debates sobre “desenvolvimentismo” de outrora50, esse debate vem sendo clamado por toda América Latina recente. No Brasil, em especial, a principal “correia de transmissão” é o cientista político Armando Boito Jr. Ele traz ao debate o reconhecimento de frações dentro da burguesia, e nestas a “burguesia brasileira” estaria sendo privilegiada na arena de classes no governo do PT. O autor cita Poulantzas e sua definição de burguesia interna dos países periféricos ocupante de “uma posição intermediária entra a antiga burguesia nacional, passível de adotar práticas anti-imperialistas, e a velha burguesia compradora, mera extensão do imperialismo no interior desses países” (p.67). Nesse sentido, a “burguesia brasileira” estaria conivente com a primeira indicação e, consequentemente, sendo responsável pelo período conhecido como “neodesenvolvimentismo” no Brasil, caracterizado como “desenvolvimento possível dentro do modelo capitalista neoliberal periférico” (p.69). Sua definição se daria por:

1) [...] índices mais modestos de crescimento econômico porque está limitado pela acumulação ainda em vigor, aspecto fundamental do capitalismo neoliberal [...]; 2) [aceitação] da especialização regressiva, recuo que o modelo capitalista neoliberal impôs aos países dependentes que tinham logrado desenvolver um parque industrial mais complexo, como foi o caso do Brasil;

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Marx (2011) define o bonapartismo como um movimento traçado por Luis Bonaparte num momento de equilíbrio das principais classes do período, a figura do líder político buscava supera-las. No caso, Bonaparte estaria ligado a classe mais numerosa, o campesinato, incapaz de se organizar devido a sua condição, equacionando na dependência ao condutor político. 50 Resgatar a seção “Neoliberalismo no Brasil” onde cometo tal debate.

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3) [...] desenvolvimentismo voltado para o mercado externo, isto é, para a exportação. [...] O Estado brasileiro no período Lula adotou, em consonância com essa postura de grande burguesia interna, uma política externa focada nos países do Hemisfério Sul e uma agressiva política de financiamento, através do BNDES (Odebrecht na Venezuela etc.) (BOITO JR, 2012, p. 69-70).

Ao comparar com o governo FHC, Boito Jr declara que houve um deslocamento da burguesia interna, afinal o “tucano” priorizava a “fração da burguesia do grande capital financeiro internacional”. Setor que seria colocado em segundo plano pelo governo Lula, ao priorizar a burguesia interna, o que explicaria a transição do “neoliberalismo ortodoxo para a política neodesenvolvimentista” dos governos do PT. E a classe trabalhadora? Segundo Boito Jr, os setores do operariado urbano e da classe média baixa, por intermédio do sindicalismo e do PT, teriam ganhado ao aderir a essa frente com a burguesia interna. Para isso, ele cita a recuperação do emprego, do salário mínimo e de políticas públicas reivindicadas por movimentos organizados, como o “Minha Casa, Minha Vida”, além da “oficialização das centrais sindicais”, ganhando apoio de grande parte destas. Os setores de luta do campo (MST etc.) também seriam conivente com tal projeto, diante do aumento do crédito para a agricultura familiar, principalmente, para os assentados. Boito Jr. reconhece que os setores mais radicalizados do MST, por exemplo, estão lateralizados desse projeto. O autor ainda cita os setores da classe trabalhadora representados por desempregados, subempregados, precariados

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ou autônomos. Ele os divide em dois blocos, àqueles

“desorganizados” socialmente e politicamente, integrados ao “neodesenvolvimentismo” graças a programas de “transferência de renda” (Bolsa Família etc.) e os organizados, como Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD) e Movimentos do Sem-Teto (MTST), que são contemplados por programas como “Minha Casa, Minha Vida”. A exemplo de Singer (2012), Boito Jr. reconhece nesse grupo o diferencial para as vitórias do PT nas eleições. Por fim, Boito Jr. apresenta que essa relação da burguesia brasileira e de parte da classe trabalhadora não se configura como uma conciliação de classes, mas sim uma frente frágil e frouxa, que se evidencia em períodos de crise política do governo (Mensalão) ou em períodos eleitorais. Isso quer dizer que há conflitos no interior dessa frente, principalmente, quando o setor que compõe a fração da classe trabalhadora busca avançar em suas ambições. Porém, para o autor,

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Trabalharei com o conceito de “precariado” na próxima seção.

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cabe a esquerda brasileira em geral se agregar a esse projeto “neodesenvolvimentista”, afinal “não há um norte concreto de um programa máximo para a classe trabalhadora no Brasil”. Antes de avançarmos nos elementos apresentados por esses autores que vem a contribuir na condução deste trabalho, cabe um ressalte de alguns de seus equívocos no que compete a gestão do PT. Inicialmente, devemos pontuar que há um desprezo evidente a luta de classes no Brasil. Lembremos que desde 2003, o Brasil vinha numa crescente de greves, quando tivemos em 2012, já na gestão de Dilma Roussef (PT), a maior “onda” de greves do país nos últimos 16 anos. O termômetro dos autores se localiza em grande parte no período das eleições e muito se reduzem a figura de Lula, desprezando todas as contradições inerentes ao “transformismo” do PT e suas entidades satélites (MST, CUT e UNE 52 ), além da recondução ao novo momento vivenciado pelo neoliberalismo no mundo, denominado social-liberalismo, conforme vimos. Porém, alguns aspectos das teses defendidas por esses autores nos dão suporte para fugir de uma leitura em bloco monolítico da realidade do país. Nisso, alguns elementos que convirjam nessas análises são fundamentais para os nossos estudos. São eles: 1) a integração da América Latina nesse processo; 2) a crise política do “mensalão” como “divisor de águas” nas políticas do PT e por fim; 3) o papel que exerce uma nova categoria de trabalhadores no Brasil, conhecida como subproletariado por Singer e a ampliada por Boito Jr. Pretendo explorá-la melhor na próxima seção deste capítulo. Reconhecemos, conforme abordado anteriormente, que o neoliberalismo ortodoxo passou por uma crise nos anos 2000, o que exigiu uma reformulação por parte intelligentsia burguesa. Nesse ponto, a América Latina, continente periférico e dependente ao centro capitalista respondeu a esse novo momento diante de quatro possibilidades de projetos políticos pela direção intelectual-moral dos países localizados neste continente: o socialismo do século XXI, o socialliberalismo, a contrarrevolução e o novo desenvolvimentismo (CASTELO, 2010). Compreendemos “socialismo do século XXI” como uma terminologia limitada para definir os países como Venezuela de Chávez, Bolívia de Morales e o Equador de Rafael Correa. Figuras de Estado que julgavam a necessidade de uma “revolução bolivariana” 53, ou seja, uma maior integração da América Latina. Estes governos se destacaram por reformas de bases mais profundas que ampliaram o acesso da classe trabalhadora a educação, saúde e habitação. Apesar 52

União Nacional dos Estudantes. Referência a Simón Bolívar, que liderou os movimentos de independência da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia no século XXI. 53

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de fazerem críticas frontais aos EUA, FMI, neoliberalismo e o Consenso se Washington, não promoveram um rompimento na prática com esses setores, o capital estrangeiro tinha livre acesso, principalmente, através das parcerias público-privadas. Quanto a contrarrevoluções, podemos citar situações pontuais, como a de Chavez na Venezuela em 2002, onde houve uma possibilidade real de golpe e a população respondeu através de mobilizações. Já em relação ao social-liberalismo e o neodesenvolvimentismo, reconhecemos a qualidade da primeira em melhor definir a nova forma de gestão do Partido dos Trabalhadores, no pós-crise do neoliberalismo ortodoxo. Não excluímos, porém, o papel que as empresas transnacionais com sede no Brasil vêm usufruindo no governo do PT, porém é fundamental destacar os limites da teoria neodesenvolvimentista. Diante do incremento da burguesia brasileira alicerçada no BNDES, a teoria do “neodesevolvimentismo” se baseia na revitalização da economia nacional, conforme Lula se refere a crise de 2008, como “marolinha”. Embora, Boito Jr. procure justificar uma frente de setores da classe trabalhadora envolvidos nessa lógica, não se debate aspectos do ponto de vista ambientais, como a expansão do agronegócio e a crise da água, a ausência dos setores fundamentais para a população: como educação e saúde públicas, cada vez mais desmontados diante da ampliação do terceiro setor na gestão desses serviços, além do aumento da massa de precariados. Nessa perspectiva trazemos ao debate o que Sader (2013) reconhece como governos pósliberais, mas que os enxergamos sob uma lógica de continuísmo da “transnacionalização dependente e impulsão a uma integração regional subordinada ao grande capital” (FÉLIZ e LÓPEZ, 2012, p. 115). E nesse cenário, o Brasil tem um papel sub-imperialista54 em expansão das suas empresas nacionais, conforme aborda (TORRES, 2012):

Segundo a revista Valor Econômico (2008), as 25 empresas mais internacionalizadas [encontradas em diversos cantos do planeta] são: JBS-Friboi (alimentos); Odebrecht (construtora); Gerdau (Metalurgia e siderurgia); Coteminas (Têxtil e vestuário); Ibope (serviços); Vale (mineração); Sabó (veículos e peças); AMBev (bebidas); Metalfrio (eletroeletrônica); Artecola (petroquímica); Marfrig (alimentos); Gol (transporte e logística); Camargo Corrêa (grupo econômico); WEG (mecânica); Itautec (tecnologia da informação); Comex Trading (comércio exterior); Embraer; Marcopolo; Mahle Metal

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Compreendemos o Brasil como sub-imperialista devido ao papel que protagoniza na expansão das empresas capitalistas brasileiras nos países periféricos, além de sua intervenção bélica, sob a tutela da ONU, para coagir o conflito de classes naquele país.

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Leve; DHB; G Brasil (veículos e peças); Tupy (metalurgia); ALL America; TAM (transporte e logística); Petrobras (petróleo e gás) (p.12).

Com ampliações por toda a América Latina, na África e na Ásia, essas empresas financiadas pelo BNDES55 atuam através de fusões, compras e o estabelecimentos em diversos países desses continentes. Característica que, agrada os interesses de parte da burguesia brasileira. Movimento que se inicia com maior intensidade no pós-crise do mensalão, e que, logicamente, não pode ser destacado da crise do neoliberalismo, acentuada em 2008. A “crise do mensalão” reordenou o espectro do Partido dos Trabalhadores, afinal, como apresentam Boito Jr (2012) e Singer (2012), ela representou a virada no que compete à base de sustentação do governo, já sem a ala mais radicalizada 56 , esse novo momento registrou uma maior aproximação da burguesia brasileira e a ampliação de políticas focalizadas para o setor “precariado”, conforme abordaremos na próxima sessão. A maximização dessas políticas focalizadas, características do social-liberalismo, se daria sob a integração e coordenação dos programas sociais em todos os níveis governamentais – federal, estadual e municipal – e do setor privado. Por fim, é interessante colocar a relação do social-liberalismo e as políticas apreciativas do governo PT. A primeira teoria calcada nas novas análises de “terceira via”, “capital social”, dentre outros, buscavas refugiar num rótulo depreciativo do Estado, compreendendo apenas como um mediador com o mercado, e se conduzia para adesão de um comprometimento social via políticas focalizadas. No Brasil, porém, esse movimento vem a convergir com o clamor da burguesia brasileira financiada pelo Estado através do BNDES. Consistência que nos exige resgatar uma melhor abordagem pertinente ao conceito de “luta de classes”, daí se faz necessário compreender a categoria social presente nas políticas sociais direcionadas do PT, categoria essa que surge comungada com a reestruturação produtiva do capital. Melhor avaliaremos essa categoria na próxima seção.

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O Banco Nacional de Desenvolvimento, segundo Torres (2012, p.55), em 2010 concedeu créditos no volume de US$ 96,32 bilhões, o que corresponde a 3,3 mais que o dispendido pelo Banco Mundial. 56 Representada nos parlamentares Babá, Heloísa Helena e Luciana Genro, que mais tarde viriam construir o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), esse grupo organizado em diversas tendências de esquerda, foram expulsos do PT ao se negarem compactuar com a Reforma da Previdência.

55

2.3 A formação do “precariado” e sua localização no Brasil contemporâneo As transformações do mundo do trabalho, conforme esboçamos nos capítulos anteriores, oriundas do processo de reestruturação produtiva, desembocam na conclusão de um novo tipo de trabalhador, denominado, pelo economista britânico Guy Standing, de precariado. A localização do Brasil enquanto país periférico do capitalismo vem a acentuar essa categoria junto à classe trabalhadora no Brasil, principalmente, no presente período caracterizado como socialliberalismo. Conforme vimos, o tempo “compactado” fica evidenciado nas novas relações trabalhistas, representadas, principalmente, no trabalho temporário. Aliado a essa caracterização, podemos trazer ao debate deste novo trabalhador uma série de mudanças oriundas desse momento. Porém, para melhor definir esse período, trago a luz do debate um conceito que vem emergindo nos últimos anos, o do precariado. Dissertaremos com o autor que popularizou o conceito, Guy Standing (2013), para em seguida, incidirmos na sofisticação deste conceito através Ruy Braga (2012). Grosso modo, podemos definir o precariado como o trabalhador que sofre com a a) inexistência de contratos trabalhistas; b) empregos temporários; c) ausência de seguridade social e outros componentes remunerativos estabelecidos por lei (férias, assistência familiar etc.) ou por convênio; d) terceirização; e) trabalho a distância (geralmente, em casa); f) sem filiação sindical (MERCATANTE, 2013). Porém, antes de pontuarmos essas definições, é importante reconhecer que o “precariado” é uma categoria em formação. Suas origens se dão no continente europeu, diante, principalmente, da adoção das medidas neoliberais por esse continente já na década de 1970 e diante das transformações do mundo do trabalho. Pode-se afirmar que os primeiros precariados, resultado da reestruturação produtiva, se encontraram na Europa, se localizando principalmente entre os imigrantes e a juventude pósfordista. Standing (2013, p. 22) aponta para a particularidade desses grupos que sequer experimentaram algum grau de sindicalização em suas vidas:

O precariado não fazia parte [...] de uma sociedade composta, em sua maioria, de trabalhadores de longo prazo, em empregos estáveis de horas fixas, com rotas de promoção estabelecidas, sujeitos a acordos de sindicalização e coletivos, com cargos que

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seus pais e mães teriam entendido, defrontando-se com empregadores locais com cujos nomes e características estavam familiarizados. (idem, p. 23)

Sennet em A corrosão do caráter (2010) é feliz ao trazer essa afirmação das diferenciações de gerações quando compara um pai, faxineiro de um aeroporto antes dos anos 70, amparado pelas legislações trabalhistas, com planos a médio-prazo e com uma vida “engessada”. Na outra ponta, se encontra o seu filho, um executivo envolvido pela “flexibilização” do tempo, afetado pela dinâmica ágil do mercado no neoliberalismo, que se conduz por planos e projetos a curto prazo, sem comprometimento em se localizar num mesmo emprego sempre. Dada as devidas proporções, o autor apresenta os diferentes trabalhos que carregam essa essência da fluidez na condução do tempo, principalmente, na relação com o trabalho, agora protagonizado por imigrantes e pela juventude da classe trabalhadora, setores que se encontram, diferente do executivo, na base da pirâmide de nossa sociedade. Standing (idem) nos apresenta algumas categorias da sociedade contemporânea que nos permite compreender, em parte, o novo reajuste oriundo da reestruturação produtiva: No topo está uma “elite” que consiste em um minúsculo número de cidadãos globais absurdamente ricos governando o universo, com seus bilhões de dólares, listados na Forbes como pessoas de prestígio, capazes de influenciar os governos em todos os lugares e de se permitirem gestos filantrópicos generosos. Abaixo da elite vem os “assalariados”, que ainda ocupam o emprego estável de tempo integral, sendo que alguns esperam passar para a elite, mas a maioria apenas aprecia os sinais simbólicos de sua espécie, com pensões, férias pagas e benefícios da empresa, muitas vezes subsidiados pelo Estado. Os assalariados estão concentrados em grandes corporações, agências governamentais e na administração pública, incluindo o serviço público (p. 24).

Ao lado dos assalariados “está um grupo menor de proficians”. Termo esse que refere a combinação das ideias tradicionais de “profissional” e “técnico”, mas que abrange quem detém “um conjunto de habilidades que podem ser vendidas, recebendo altos rendimentos em contrato”. Vivem com “a expectativa de se mudar continuamente, sem um impulso para o emprego de longo prazo e período integral” (idem). Abaixo deste grupo, temos um “núcleo retraído e trabalhadores manuais”, a “essência da velha classe trabalhadora” (p. 25): Os Estados do bem-estar foram construídos tendo em mente esse grupo, assim como os sistemas e regulamentação do trabalho. Mas os batalhões de trabalhadores industriais que se integravam os movimentos trabalhistas se retraíram e perderam seu sentido de solidariedade social.

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Embaixo desses quatro grupos está o crescente “precariado”, flanqueado por um exército de desempregados e um grupo separado de pessoas hostis socialmente desajustadas, vivendo à custa da escória da sociedade. O caráter dessa estrutura de classe fragmentada é discutido alhures. (pps. 24-25).

O autor compreende o precariado como uma categoria fora da classe trabalhadora, para confirmar esse debate, ele se legitima na questão desses setores estarem desnudos de garantias e segurança de trabalho nos termos da cidadania industrial, dando ênfase a falta de garantias no a) mercado de trabalho; b) vínculo empregatício; c) segurança no emprego; d) segurança no ambiente trabalho; e) garantia de capacitação; f) segurança de renda e g) garantias de representação (p. 28). Standing (pp. 33-48) aponta que é uma categoria que “compartilha de um sentimento em que o trabalho é útil (para viver), oportunista (pegar o que vier) e precário (inseguro)”. Características que ao convergirem, culminam numa crise de identidade, principalmente diante da lacuna de uma entidade que as represente ou da incitação a postos individualizantes de trabalho, como o trabalho a distância (trabalhar em casa). Conforme demonstra o autor, essa categoria corresponde a 25% da população mundial (pps. 33-48). O autor define o precariado, como uma categoria que vai além das questões de ausência dos amparos trabalhistas.

Trata-se de estar numa posição que não oferece nenhum senso de carreira, nenhum senso de identidade profissional segura e poucos, se alguns direitos aos benefícios do Estado e da empresa que várias gerações dos que se viam como pertencentes ao proletariado industrial ou aos assalariados passaram a esperar como algo que lhes era devido. (idem, p.47)

Apesar da enorme contribuição de Standing ao buscar compreender as transformações da classe trabalhadora no que tange a reestuturação produtiva e a definição do precariado, é importante tecer alguns comentários. De antemão, conforme as categorias listadas pelo autor demonstraram, é factível a restrição do autor aos países de capitalismo avançado da Europa ocidental. Isso os leva a crer que os “precariados” são órfãos do desmonte do Estado de Bemestar social. Algo distante nos países periféricos, que como vimos na seção anterior se encontram num estágio de dependência aos países de capitalismo central, portanto, com uma classe trabalhadora mais superexplorada, que pouco usufruiu desse Estado. Uma outra questão são as categorizações utilizadas por Standing. A começar pela restrição do seu estudo aos países da Europa, onde inclusive se refere a grupos próprios de lá, 58

como os proficians. Porém, a principal problemática da análise de Standing é buscar autonomizar o conceito de precariado ao de classe trabalhadora. Ele compreende o precariado como uma nova classe social decorrente das transformações promovidas pelo neoliberalismo e da reestruturação produtiva. Apesar do autor pontuar conclusões interessantes que definem o precariado, há um equívoco em atribuí-lo como uma nova classe, conforme atesta Braga (2014):

[...]não parece razoável falar em uma relação de produção de novo tipo capaz de produzir uma “nova classe”. Antes, trata-se de um retrocesso, em termos civilizatórios, potencializado pelo longo período de acumulação desacelerada que se arrasta desde, ao menos, meados dos anos 1970, e cujos desdobramentos em termos da deterioração do padrão de vida dos trabalhadores e assalariados médios tornaram-se mais salientes após 2008. (pps. 39-40)

Marx e Engels nos deram uma constribuição aprofundada para o conceito de classe57, porém podemos nos guiar por aquela que diz que “a compreensão de que os interesses de uma classe sempre correspondem ao desenvolvimento das forças produtivas, com seu avanço em direção a novas estruturas sociais, enquanto outras classes defendem o status quo e os resíduos do passado correspondentes a seus interesses” (FISCHER, 1970, p. 49). No caso do modo de produção capitalista, temos duas classes em conflito: burguesia e proletariado. Engels, em nota a edição do Manifesto Comunista de 1888, (MARX e ENGELS, 2001, p. 23). define burguesia “como classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e empregadores do trabalho assalariado”. Por proletariado, “a classe dos operarios assalariados modernos que, não possuindo meios próprios de produção, reduzem-se a vender a força de trabalho para poderem viver”. Esta definição, porém, carece de maior aprofundamento, afinal, a formação destas classes são análogas a formação do sistema capitalista e também pelo tratamento que Marx dá ao conceito. O filósofo alemão atribui dois sentidos, de acordo com o contexto. O primeiro sentido vai ao encontro a definição do parágarafo anterior, onde “classe” poderia significar:

[...] amplos conjuntos humanos que podem ser reunidos sob uma classificação segundo um critério objetivo – por manterem relações similares com os meios de produção -, e, mais especificamente, os agrupamentos de exploradores e explorados em todas as sociedades humanas que ultrapassem a fase primitiva comunal e, como argumentaria Marx, até o triunfo da revolução proletária. “Classe” é usada nessa acepção na célebre 57

O quinquagésimo capítulo da gigantesca obra O Capital seria dedicado a essas formulações precisas. Existe apenas o início do capítulo, intitulado “As Classes”. Marx o escrevia quando morreu. (FISCHER, 1970, p. 56)

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passagem do Manifesto Comunista (“A história de todas as sociedades existentes até hoje é a história da luta de classes”) e para os propósitos gerais do que poderíamos chamar de macroteoria de Marx (HOBSBAWM, 1987, p. 36).

Marx, porém, introduz um elemento subjetivo ao conceito de classe, a consciência de classe. Hobsbawm (idem) alerta para essa definição travada com maior destaque na obra O dezoito Brumário de Luís Bonaparte, onde incita a compreender a classe em sua acepção plena, somente quando adquire consciência de si própria como tal. Essa segunda definição, porém, não é do nosso interesse neste estudo, nos limitaremos a primeira definição e sua localização no modo de produção de capitalista, que como apresentada dentre as definições da classe dos operariados assalariados modernos, encontra-se a venda da sua força de trabalho para a sobrevivência:

O que o operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor dela. [...] Se lhe fosse permitido vendê-la sem limitação de tempo, teríamos imediatamente restabelecida a escravatura. Semelhante venda, se o operário se vendesse por toda a vida, por exemplo, convertê-lo-ia sem demora em escravo do patrão até o final dos dias (MARX, 1978,

p. 80). Os compradores dessa força de trabalho são os que possuem terras, maquinaria, matériasprimas e meios de vida, ou seja, os meios de produção. Com exceção da terra, no sentido stricto, todos os outros componentes são produtos do trabalho. O propósito desta classe, denominada burguesia, é acumular capital. Porém, a principal pergunta é: como se define o valor da força de trabalho? Marx afirma que “como o de toda outra mercadoria, este valor se determina pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la” (idem, p. 81). Porém, o capitalista se utiliza de um mecanismo denominado de mais-valor. Neste mecanismo o trabalhador, além do trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, ele pratica o sobretrabalho, sendo que apenas o primeiro é remunerado (salário), enquanto o segundo irá traduzir em um mais-valor e em um sobreproduto. A taxa de [mais-valor] dependerá, se todas as outras circunstâncias permanecerem invariáveis, da proporção existente entre parte da jornada que o operário tem que trabalhar para reproduzir o valor da força de trabalho e o sobretempo ou sobretrabalho realizado para o capitalista. Dependerá, por isso, da proporção em que a jornada de trabalho se prolongue além do tempo durante o qual o operário, com o seu trabalho, se limita a reproduzir o valor da sua força de trabalho ou a repor o seu salário (idem, p. 83)

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Para melhor ilustrar, trazemos um exemplo dado por Marx (idem, p. 82) de um operário que necessite de 6 horas de trabalho para produzir artigos de primeira necessidade a sua vida. Vamos supor que estas 6 horas se materializassem em 3 xelins

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. Nestas condições,

compreendemos que este é o valor de um trabalho de 6 horas suficiente para um operário se manter e que bastaria para comprar seus artigos diários de primeira necessidade. Porém, ao se tornar um assalariado, ou seja, vender sua força de trabalho a um capitalista, este mesmo homem trabalharia além das 6 horas diárias, para reproduzir o seu salário (3 xelins), ele deverá ampliar a sua jornada para produzir o mais-valor de seu patrão, trabalhando 12 horas diárias. O capitalista ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagá-la pelo seu valor, ele adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria. Trazendo esse debate para a contemporaneidade, acionamos Braga (p. 17, 2012) ao compreender o precariado em sua relação salarial. Braga, diferente de Standing, não localiza o precariado na condição de uma nova classe em formação. Se referenciando em Marx, ele os enxerga como resultado da acumulação capitalista, que em seu caráter de produção despótica, desemboca na formação de uma população trabalhadora excedente, um exército de reserva. A força de trabalho que excede as necessidades da produção, fenômeno importante para inibir reivindicações trabalhistas e que contribua no rebaixamento de salários da classe trabalhadora. Nesse sentido, cabe um melhor destrinchamento deste conceito denominado de exército de reserva, atribuído a Marx. Ao se referir à acumulação de capital, ele destaca a relação entre capital constante e capital variável. Compreendemos “capital constante como aquele que se converte em meios de produção, isto é, em matéria prima, materiais acessórios e meios de trabalho que não mudam a magnitude do seu valor no processo” (MARX, 2008, p. 244). Enquanto capital variável é aquele a parte do capital empregada na remuneração do trabalhador, que depois vem expandida no processo de produção, através do mais-valor que, como vimos, reproduz o capital de forma ampliada. A acumulação de capital atravessa um processo contínuo e qualitativo em sua composição, onde ocorre constante acréscimo do capital constante à custa do capital variável. O aumento do capital global permite o crescimento do capital variável, porém, em quantidades cada vez menores de trabalhadores. As inovações técnicas acompanham a acumulação de capital a nível global e parte do capital variável (força de trabalho) é substituída por parte do capital constante 58

Unidade monetária utilizada na Inglaterra até o século passado.

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(máquinas). O acréscimo do capital variável se dá pela lógica de mais trabalho, mas não necessariamente de mais trabalhadores empregados, o que vai de encontro aos interesses capitalistas em diminuir o custo salarial através de um exército de reserva (MARX, 2008, p. 732739).

Assim, com o progresso da acumulação, vemos que: um capital variável maior põe em movimento maior quantidade de trabalho sem recrutar mais trabalhadores; um capital variável da mesma magnitude põe mais trabalho em ação, utilizando a mesma quantidade de forças de trabalhos inferiores, expulsando as de nível superior [...] Esse trabalho excessivo da parte empregada dessa classe trabalhadora vem a engrossar as fileiras do exército industrial de reserva (Marx, 2008, p.739-740).

O exército de reserva é o contingente de trabalhadores não absorvidos pelo modo de produção capitalista, a superpopulação relativa. Braga (p.17, 2012) aprofunda o debate do exército de reserva, reconhecendo-o em quatro formas: a) população flutuante; b) população latente; c) população estagnada e; d) população pauperizada. A primeira seria formada por aqueles trabalhadores ora atraídos, ora repelidos pelas empresas (Braga, ibidem).

Tanto nas fábricas propriamente ditas quanto em todas as grandes oficinas que já utilizam a maquinaria ou que funcionam apenas na base da moderna divisão do trabalho, são empregado em massa meninos e rapazes até atingirem a idade adulta. Chegado a esse termo, só um número muito reduzido pode continuar empregado nos mesmos ramos de atividade, sendo a maioria ordinariamente despedida. Esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação flutuante que aumenta ao crescer da indústria. [...] O capital precisa de maiores quantidades de trabalhadores jovens e menor número de adultos. [Portanto], rápida substituição das gerações de trabalhadores (MARX, 2008, p. 745-746).

A população latente se legitima por jovens e trabalhadores não industriais à espera de uma oportunidade para deixar os setores tradicionais, principalmente o rural, e estabelecerem-se na indústria. O avanço do capitalismo junto à agricultura e a instauração da acumulação do capital nas zonas rurais não promove o atrativo dos setores urbanos: “dá-se uma repulsão de trabalhadores, que não é contrabalanceada por maior atração, como ocorre na indústria não agrícola” (Marx, 2008, p. 746). Diante disso, há eminência da população rural sempre se transferir para as fileiras do proletariado urbano, o que constitui nessa imigração, uma população supérflua sempre latente localizada no campo. O “resultado é um trabalhador rural rebaixado ao nível mínimo de seu salário e sempre com um pé no pântano do pauperismo” (Marx, 2008, p. 62

746). Braga (2012), dando um corte contemporâneo, atribui essa definição a juventude que se encontra na informalidade e deseja entrar no trabalho formal. Antes de avançar para o pauperismo, consideramos a população estagnada, parte da força de trabalho, ocupante, das funções mais abjetas e mal pagas, relacionadas a níveis sub-normais de existência. Constitui parte do exército de trabalhadores em ação, mas com ocupação totalmente irregular, é a base ampla de ramos especiais de exploração do capital. Geralmente, são recrutados entre os trabalhadores supérfluos. Já o pauperismo, seria formado por uma massa de indigentes, de doentes, de acidentados e de incapacitados para o trabalho e de idosos. Segundo Marx, “constitui o asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva” (idem, p. 748). As despesas extras da produção capitalista, promovidas por esse grupo, são sempre transferidas para a classe trabalhadora e para a classe média inferior, aquela localizada na pequena-burguesia. Braga (2012) ao definir o precariado, isto é, o proletariado precarizado, exclui tanto o lumpemproletariado59 quanto a população pauperizada. Há três razões do por que se enveredar por tal procedimento:

Em primeiro lugar, ela permite-nos localizar o precariado no coração do próprio modo de produção capitalista e não como um subproduto da crise do modo de desenvolvimento fordista. Em segundo lugar, ela enfatiza a dimensão histórica e relacional desse grupo como parte integrante da classe trabalhadora, e não como uma amalgama intergeracional e policlassista que assumiria de maneira progressiva a aparência de uma nova classe. Em terceiro lugar, em vez de retirar arbitrariamente a insegurança da relação salarial, essa noção possibilita-nos tratar a precariedade como uma dimensão intrínseca ao processo de mercantilização do trabalho (p. 18).

Partindo dessa premissa, é importante diferenciar pauperismo de precariado, afinal há a compreensão que o trabalhador precariado é uma parte da classe em permanente trânsito, entre a possibilidade de exclusão socioeconômica e a intensificação da exploração econômica. Braga (idem, p. 28), resume o precariado com as seguintes características: 1) População flutuante; 2) População latente; 3) População estagnada; 59

Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte (2011) define essa categoria como aquela composta por “o lixo de todas as classes”, ou seja, “indivíduos decadentes ou egressos da burguesia”. Ex: vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-saídos da cadeia, batedores de carteira, rufiões, mendigos etc.

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4) Com capacidade de mobilização coletiva (greves, manifestações políticas etc.); 5) Renda entre 1 e 2 salários mínimos. Essa definição é importante porque nos permite dialogar com a seção anterior, onde buscamos compreender os governos do PT. Singer (2012) ao analisar o eleitorado de Lula, pontua a seu crescimento junto ao subproletariado, uma parte da classe trabalhadora brasileira contemplada com os programas assistenciais focalizados do governo federal. Braga, porém, em debate com Singer, alerta para brevidade da conclusão desta definição de subproletariado. Tal conceito se restringe a descrever a população latente e estagnada, excluindo a categoria da população flutuante, aquela que está em constante trânsito no trabalho remunerado, ou seja, aquela que entra e sai de empregos com certa constância. Esse elemento é fulcral quando trazemos debate do precariado para o Brasil, em especial, ao social-liberalismo promovido pelo governo Lula. Essa parte da classe trabalhadora é consignada numa indústria apoiada em um jovem precariado pós-fordista – acumulação flexível e localizada na confluência entre a terceirização empresarial, a privatização neoliberal, representada agora no social-liberalismo e na financeirização do trabalho60. Braga (2012) ao estudar a categoria dos operadores de telemarketing, setor precariado, demonstra o vigoroso crescimento desta função, principalmente, no governo Lula (2003-2010): [...] Entre 1998 e 2002, o número de ocupados no setor cresceu a uma taxa anual de 15% e dados do Ministério do Trabalho indicam que durante o governo Lula essa taxa aumentou para 20% ao ano, acumulando uma variação de 182,3% entre 2003 e 2009. [...] Durante os governos de Lula da Silva, essa região apresentou a maior variação positiva do número de teleoperadores da indústria brasileira de call center (277,12%) (idem, p. 188).

A face do precariado se expandiu no governo Lula, conforme demonstra Braga (p. 81, 2013) em outro momento, quando pontua que 94% dos postos de trabalhos criados no governo Lula são precariados, ou seja, pagam até 1,5 salários mínimos. O economista Marcio Pochmann (2012) procura compreender esse fenômeno em conjugação com as políticas assistencialistas focalizadas do governo Lula:

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Braga (idem) destaca que as novas formas de gestão empresarial se alicerçam pelo interesse dos acionistas, ou seja, a dinâmica das flutuações cíclicas do mercado. A terceirização, por exemplo, contribui para este clima de instabilidade.

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O fortalecimento do mercado de trabalho resultou fundamentalmente na expansão do setor de serviços, o que significou a difusão de nove em cada grupo de dez novas ocupações com remuneração de até 1,5 salário mínimo mensal. Juntamente com as políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho (p.10).

A citação acima é clara quanto a simpatia de Pochmann ao governo de Lula quando traz o “fortalecimento das classes populares”, opiniões que Singer, Boito Jr. e Sader comungam, conforme vimos. Porém, a questão fundamental nesta seção é apresentar que estas “classes populares” são criticamente compreendidas como precariados, categoria de trabalhadores formada no período que tange a reestruturação produtiva e, no caso Brasil recente, ampliada com o social liberalismo, conforme o próprio economista afirma:

O adicional de ocupados na base da pirâmide social reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual, mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das políticas públicas atuais. A intepretação de classe média (nova) resulta, em consequência, no apelo à reorientação das políticas públicas para a perspectiva fundamental mercantil. Ou seja, o fortalecimento dos planos privados de saúde, educação, assistência e previdência, entre outros. Nesse sentido, não se apresentaria isolada a simultânea ação propagandista desvalorizadora dos serviços públicos (Sistema Único de Saúde, a educação e a previdência social) (POCHMANN, p. 11).

Pochmann reconhece a intervenção do setor privado nas políticas públicas fundamentais para a população e desconstrói a afirmação, inclusive, de “classe média” para essa parte da classe trabalhadora que lidamos como precariado. O economista reitera que no final da década de 2000 ocorre uma alteração importante no padrão de trabalho da mão de obra brasileira, onde do total líquido de 21 milhões de postos de trabalho criados na primeira década do século XXI, 94,8% foram com rendimentos de até 1,5 salários mínimos. É importante destacar que as ocupações com maior expansão se encontram no setor de serviços (6,1 milhões de novos postos de trabalho, que responderam por 31% da ocupação total) (pps. 33-37). O que vem a corroborar ainda mais a tese do aumento do precariado no governo Lula (2003-2010) é quando analisamos os dados tocantes aos trabalhos temporários com a questão do salário. Pochmann compreende temporário como contratos de trabalho inferiores a três meses, apesar deste tempo ser questionável, mesmo assim as estáticas nos demonstram altos índices, pois compreendem que a cada dez empregados assalariados no Brasil, um era temporário. A 65

rotatividade era maior junto aos grupos que ganhavam até 1,5 salários mínimos. Até 0,5 SM, temos um aumento de 16,7%, nos anos 90, para 57,5%, nos anos 2000. De 0,5 SM a 1 SM, este número se altera de 60% para o 85,3! E, por fim, de 1 SM a 1,5 SM o reajuste se dá 49,4% para 58,9% (Gráfico 1), ou seja, há aumento substancioso dos trabalhadores dessa renda nesta década (pps. 85-93). Essa rotatividade se dá, principalmente, na juventude (17-29 anos), onde ocorre de 41,16% passa para 71,44% até os 17 anos, de 49,22% a 65,68% dos 18 aos 24 anos e de 39,73% para os 45,65% no período que se compreende dos 25 aos 29 anos (gráfico 2) (pps. 93-94). Isso compreende a definição do precariado, trabalhos temporários e que afeta, principalmente, a juventude. Percebemos a ampliação dessa categoria nos anos 2000. Esses dados são fundamentais para compreendermos a formação dessa parte da classe trabalhadora no Brasil. Alguns estudiosos dos anos de governo do PT apreendem essa nova parte da classe trabalhadora sob um viés quase romântico, principalmente, quando julgam enquanto eleitorado “pobre” de Lula na eleição de 2006, que teria transitado de uma situação miserável para a pobreza. Autores como Singer (2012) vão além e acreditam que o governo federal oferece os germes da inconformação destes setores num breve futuro. Nossa abordagem, porém, não trabalha com futurologia ou super-otimismo. A questão é que ocorre um crescimento destes setores, o “precariado”, diante de uma crise sistêmica, onde não há a possibilidade de absorção dessa parte dos trabalhadores, e, portanto, há uma intenção “social” de agrega-los na dinâmica do sistema, porém, em tais intenções ocorre o escamoteamento dos propósitos do novo período denominado social-liberal. Nesse sentido, análise do precariado no Brasil se torna fundamental quando trazemos ao debate as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e sua repercussão no estágio social-liberal, período que se estabelece o PT no governo, em especial, no governo Lula (2003-2010). É perceptível o aumento dessa parte da classe trabalhadora no Brasil no período mencionado, pontuando que são fatores coligados. Diante disso, cabe um aprofundamento no que tange as políticas públicas culturais no Brasil, principalmente, em referência a exploração do trabalho imaterial no capitalismo contemporâneo. No próximo capítulo pretendo compreender o papel dessas políticas no governo do PT e a criação da chamada Economia Criativa, no caso do Rio de Janeiro, o Rio Criativo e a ampliação do trabalho precariado nestes postos de trabalho.

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Capítulo 3 – Gil e Juca e a consolidação do terceiro setor na cultura As políticas públicas culturais no Brasil nunca foram encaradas como prioridade. A começar por um ministério exclusivamente da cultura criado somente no período da democratização, na metade dos anos oitenta. Porém, sua atuação sempre esteve vinculada a formação de um oligopólio da cultura e de políticas de isenção para grandes empresas. A partir da gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003-2010) o ministério assume uma nova identidade: cria embates com o oligopólio cultural para alinhá-lo a lógica da economia da cultura, ou seja, a cultura enquanto mercadoria, para consumo. O legado dos ministros é reivindicado na criação da Secretaria da Economia Criativa. O novo setor do MinC se alinha com as demandas apresentas pelos organismo multilaterais internacionais que já abordavam o tema em seus documentos. O enfoque da cultura enquanto potencial econômico abordado por esses organismos é trazida à SEC que deflagra a “novidade” da criatividade junto ao Rio de Janeiro através do Programa Rio Criativo. Com o propósito de fermentar “pequenas e micro empresas criativas” e “empreendedores criativos” o programa busca se afinar as novas demandas da cidade, principalmente na ampliação dos trabalhadores da cultura, denominados “trabalhadores criativos”. Inseridos na lógica da reestruturação produtiva, estes trabalhadores dilatam a formação do precariado no Estado.

3.1 O Ministério da Cultura no Brasil O Ministério da Cultura no Brasil foi criado somente em 1985, junto ao governo de José Sarney. Anteriormente a isso, ocorreram algumas tentativas isoladas de institucionalização da cultura no âmbito governamental, como criação de órgãos direcionados à proteção do patrimônio histórico ou ao fomento do cinema nacional nas décadas de trinta e quarenta, posteriormente incrementadas pelo período empresarial-militar. Nos governos neoliberais ortodoxos, na democracia burguesa (a partir de 1990), a construção do MinC converge com a formação de um oligopólio da cultura. Inicialmente, podemos afirmar que é no governo nacionalista de Getúlio Vargas que se iniciam as elementares ações no campo da cultura no Brasil: 67

Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) foram implementadas o que se pode chamar de primeiras políticas públicas de cultura no Brasil. Nesse período, foi tomada uma série de medidas, objetivando fornecer uma maior institucionalidade para o setor cultural. O exemplo mais clássico dessa ação está na área de preservação do patrimônio material quando em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Desde a década de 1920, os intelectuais modernistas vinham realizando uma forte campanha em favor da preservação das cidades históricas, em especial daquelas pertencentes ao ciclo do ouro em Minas Gerais. Outras iniciativas federais do período são a criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e do Instituto Nacional do Livro (INL). Em julho de 1938 foi criado o primeiro Conselho Nacional de Cultura, composto por sete membros (CALABRE, 2007, p. 2).

No período posterior, de 1945 até o início do regime empresarial-militar em 1964, é importante destacar o desenvolvimento da área cultural no setor privado, principalmente, no setor radiofônico61, e na construção do Ministério da Educação e Cultura em 1953. Nesse período o Estado não teve um protagonismo relevante na área de fomento à cultura. Algo que mudaria em 1964, diante da postura dos militares em alimentar um Estado tecnicista e uma tendência a criar uma política nacional de cultura. Em 1966 temos a criação do Conselho Federal Cultura – CFC (vinculado ao Ministério da Educação e Cultura), onde se tinha como objetivo claro de revitalização de instituições culturais (Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes etc.), além de analisar pedidos de verbas para esse setor. Havia uma proposta clara em impregnar a concepção dos militares nessas ações, a começar pela constituição do conselho, formada por 24 membros indicados pelo, então, presidente Castelo Branco. No governo Médici (1969-1974), o ministro do MEC, Jarbas Passarinho 62 elabora o Plano de Ação Cultural (PAC). O Plano teve como meta “a implementação de um ativo calendário de eventos culturais patrocinados pelo Estado, com espetáculos nas áreas de música, teatro, circo, folclore e cinema com circulação pelas diversas regiões do país, ou seja uma atuação no campo da promoção e difusão de atividades artístico-culturais” (idem, p. 4). O Estado passa a fortalecer ainda mais sua presença no campo da cultura.

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Segundo os dados publicados nos Anuários Estatísticos do IBGE, entre os anos de 1940 e 1944 foram inauguradas 39 novas emissoras de rádio e no período de 1945 a 1949 foram 79 novas emissoras. Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29092003estatisticasecxxhtml.shtm Acessado: 15/02/2015. 62 Jarbas Passarinho (1920) foi um dos idealizadores do golpe militar em 1964. Findado o regime na década de 1980, Jarbas continuou a atuar enquanto política no período da democracia burguesa.

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No governo de Geisel (1974-1978), a representação do MEC se dá pela figura de Ney 63

Braga . Sua gestão foi marcada pela construção de diversos órgãos estatais que passaram a atuar em novas áreas: o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), o Conselho Nacional de Cinema, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a Fundação Nacional de Arte (FUNARTE). Pela primeira vez, um ministro atuava de forma mais concisa no setor da cultura em diálogo com a política desenvolvimentista dos militares. Nesse mesmo período tinha início, fora do âmbito do MEC, um projeto que resultou na criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC). Os principais objetivos do projeto eram o de propiciar o desenvolvimento econômico, a preservação cultural e a criação de uma identidade para os produtos brasileiros. A década de 70 foi razoável para a institucionalização da cultura no Brasil:

No final da década de 1970 temos mais um momento destacado no processo de redirecionamento da política do Ministério. O Departamento de Assuntos Culturais foi substituído pela Secretaria de Assuntos Culturais, mais que uma simples troca de títulos ocorreu uma clara divisão da atuação em duas vertentes distintas dentro de uma mesma secretaria: uma vertente patrimonial e outra de produção, circulação e consumo da cultura. O papel da Secretaria ficava mais fortalecido dentro do MEC. O processo de institucionalização do campo da cultura dentro das áreas de atuação de governo ocorrido na década de 1970 não ficou restrito ao nível federal. Nesse mesmo período o número de secretarias de cultura e de conselhos de cultura de estados e municípios também cresceu. Em 1976, ocorreu o primeiro encontro de Secretários Estaduais de Cultura, dando origem a um fórum de discussão que se mantém ativo e que muito contribuiu para reforçar a ideia da criação de um ministério independente (idem, p. 6).

Findado o período empresarial-militar (1964-1985) e a transição para a democracia burguesa junto ao governo José Sarney (1985-1989), é formado do Ministério da Cultura já no ano da posse do novo presidente. Foi um ministério caótico diante das dificuldades financeiras e administrativas (sequer havia acomodações), isso fica evidente quando se analisa a troca de ministros três vezes em menos de um ano. Com o objetivo de atrair recursos, Sarney promulga a primeira lei (Lei no 7.505, de 2 de junho de 1986 - Lei Sarney), onde se introduz os benefícios fiscais para pessoa jurídica no apoio/patrocínio a atividades culturais. Cabe um destaque no governo Sarney, quando ocorre a nomeação de Celso Furtado (PMDB) para o Ministério da Cultura no período de 1986-1988. Furtado já era um intelectual

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Ney Braga (1917-2000) foi político e militar com histórico de atuação, principalmente, no Paraná. Era da ala considerada mais “democrática” dos militares.

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conhecido diante de suas convergências com o grupo crítico às leituras desenvolvimentistas64. Furtado considerava que as políticas governamentais deveriam direcionar-se a atender nuances do “desenvolvimento” dos países periféricos. Nesse sentido, ele elabora uma contribuição intelectual para o campo da cultura, onde é crítico ao “neocolonialismo cultural” incorporado pela burguesia local. Em resposta a isso, reitera a necessidade de valorização da cultura popular brasileira, elementos que serão constantemente reivindicados a partir da gestão do MinC por Gilberto Gil e Juca Ferreira. A gestão de Furtado no MinC seria criticada por contribuir no sucateamento dos órgãos do ministério. Situação que se agravaria com o próximo presidente. No governo Collor, de matriz neoliberal 65 , temos o esboço de construção de um Ministério da Cultura reduzido. Ocorreu a extinção de diversos órgãos: Fundação Nacional de Artes Cênicas – FUNDACEN; a Fundação do Cinema Brasileiro – EMBRAFILME; Fundação Nacional Pró-leitura e do Conselho Federal de Cultura, órgão responsável por incentivar e organizar a cultura no país. A Fundação Pró-Memória e o SPHAN foram transformados em Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e a FUNARTE em Instituto de Arte e Cultura – IBAC. O então presidente prosseguia com sua política de desmonte do Estado e a implementava com profundo rigor no campo da cultura:

A estrutura que naquele momento era insuficiente, ficou em situação insustentável. Muitos dos funcionários dos órgãos extintos foram colocados em disponibilidade. Diversos projetos e programas foram suspensos. [...] Entre março de 1990 e dezembro de 1991, o governo federal não realizou investimentos na área da cultura. A retirada do governo federal de cena faz com que uma maior parte das atividades culturais passassem a ser mantidas pelos estados e municípios. (idem, p. 7)

Collor se apropriou da Lei Sarney e a reconfigurou com o intuito de favorecer ainda mais o setor privado no que compete através das renuncias fiscais. O resultado foi a aprovação da Lei no 8.313 em 1991 que instituía o Programa Nacional de Apoio à Cultura, também conhecido como Lei Rouanet. O artigo 18 da Lei em questão era claro quando afirma “que às pessoas físicas ou jurídicas [tem a opção] pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, de caráter privado, como através de contribuições ao FNC”. Proposta que iria demarcar o Ministério da Cultura nos anos posteriores. 64 65

Resgatar o capítulo 2. Como vimos no capítulo 2.

70

No governo de Itamar Franco (1992) ocorre a revitalização do Ministério da Cultura, assim como suas instituições como a FUNARTE, por exemplo. Em 1993, seguindo a lei de incentivo, Itamar transfere tal perspectiva para o setor audiovisual, especialmente para o setor cinematográfico, onde se amplia os percentuais de renúncias a serem aplicados. Esse processo conduz cada vez mais as políticas públicas da área para as decisões do mercado, retirando a autonomia do Ministério. No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), assume a pasta deste Ministério o cientista político Francisco Weffort. O ministro aprofundou as políticas que transferiam para a iniciativa privada, através da lei de incentivo, o poder de decisão sobre o que deveria receber ou não receber recursos públicos impulsionados. A Lei Rouanet foi constantemente acionada enquanto instrumento de marketing cultural das empresas patrocinadoras. Seguindo a lógica neoliberal do governo FHC, ocorreram algumas transformações consideráveis na lei, ampliando o mecanismo de isenção, o abatimento em 100% do capital investidor pelo patrocinador, ou seja, a empresa além de receber abatimento nos impostos ainda se evidenciava através do marketing das produções culturais. O desdobramento dessa política foi a notável concentração na aplicação desses recursos e a construção de um oligopólio. Restringiu-se a um pequeno grupo de produtores e artistas renomados que sempre conseguiam patrocínio. A concentração também se dava a nível regional, o Sudeste, região com maior retorno de lucro eram favorecidas em detrimento das outras regiões. Alinhado as políticas neoliberais ortodoxas da década de noventa, o setor cultural se construiu atendendo essa lógica de comprometimento com a privatização e a oligopolização das políticas públicas de fomento a cultura.

3.2 – A ressignificação do Ministério (2003-2010) A vitória de Lula em 2002 e a escolha de Gilberto Gil para o Ministério da Cultura foi um “divisor de águas” para as políticas públicas na área no Brasil. Gil e depois Juca Ferreira buscaram encampar uma política de supervalorização da cultura popular em parceria com o chamado terceiro setor66. Promoveram a importância do ministério no que compete a canalização de recursos, assim como deslocaram as verbas da cultura que iam somente aos locais 66

Dissertamos quanto ao terceiro no segundo capítulo.

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privilegiados do Sudeste, transferindo-as à periferia desta região, assim como para outros Estados do país. Ações que terão profunda importância a chamada cadeia produtiva da cultura67 no Brasil. Gilberto Gil68 (janeiro de 2003-julho de 2008) em sua gestão ressignifica o Ministério da Cultura. Juca Ferreira 69 (agosto de 2008-dezembro de 2010; janeiro de 2015), secretário executivo do ministério na gestão de Gil, iria dar sequência ao modelo adotado pelo ex-ministro:

Os anos de 2003 a 2010 constituem um período de grande agitação na cultura brasileira, quando políticas públicas para o setor passaram por transformações radicais, tanto no plano conceitual quanto na forma de interação do governo com a sociedade civil. [...] Em linhas gerais, elas apontavam para uma nova compreensão do papel do Estado brasileiro, sobretudo como articulador da cultura em três dimensões: a simbólica, responsável pela elaboração do modo de ver e recriar o mundo; a cidadã, como fator de integração social; e a econômica, pela sua alta capacidade de produzir riquezas (ALMEIDA, ALBERNAZ e SIQUEIRA, 2013, p. 5).

Essa tríade do simbólico-cidadão-econômico permanece com frequência nas ações desse ministério. Grosso modo podemos afirmar que o simbólico é a reivindicação da cultura produzida pelos setores populares (culinária, música etc.), conforme atesta Gil ao comentar que ocorre uma “incapacidade das instituições de reconhecer e dar poder às populações detentoras de um saber real, desprovidas do saber universitário e bacharelesco” (idem apud Gil, p. 25). Para o exministro há a reinvindicação dos setores que constroem a cultura popular, portanto ocorre a necessidade da diversidade cultural e seu desembocamento na formação do cidadão consciente, com amplo acesso a bens culturais (teatro, cinema, centros culturais, bibliotecas, museus etc.)

67

Debatemos cadeia produtiva da cultura no primeiro capítulo. Gilberto Gil é conhecido como um dos maiores cantores e compositores da história da música popular brasileira. Sua aparição se deu na construção e protagonismo (ao lado de outros músicos como Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé, além de cineastas como Glauber Rocha, artistas plásticas, dentre eles Hélio Oiticia e o teatro através de José Celso Martinez) num dos maiores movimentos culturais brasileiros, denominado tropicalismo (final dos anos 60). Movimento este caracterizando pela mistura de manifestações tradicionais da cultura brasileira com a arte pop brasileira e estrangeira (pop rock e concretismo). Gil inicia sua vida política ao ser eleito vereador pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) em Salvador no período de 1989-1993. Em 1990 ele já se transfere para o Partido Verde (PV), onde assume uma postura de preocupação com o meioambiente. 69 Juca Ferreira é formado em sociologia pela Universidade Paris 1 – Sorbornne, na França. Foi líder estudantil secundarista no final da década de 60, onde chegou a ser eleito presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Nos anos 80 se engaja nos movimentos ambientalistas culminando na filiação ao Partido Verde (PV), onde seria vereador nos anos de (1993-1996) e (2000-2003). No ano de 2003 é convidado por Gil a assumir o cargo de Secretário-Executivo do Ministério da Cultura, iniciando uma metodologia de compreensão do ministério que iria levar na sua gestão ao assumir a pasta. 68

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aspecto importante para a inseri-lo na chamada economia da cultura, o que pode-se interpretar como mercantilizar a cultura, isto é, subordiná-la à lei do valor (idem). Antes de avançarmos na gestão de Gil e Juca, podemos salientar que organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas, nos seus recentes relatórios sobre cultura, pontuam a necessidade de encarar a economia da cultura como um importante setor a ser explorado. Segundo o “Relatório de Economia Criativa – 2010 - Economia Criativa: uma opção de Desenvolvimento Viável” 70 , apesar do termo carecer de uma melhor definição diante das diferentes abordagens, o fundamental é compreendê-lo dentro de uma lógica global mercantil (p. 6). Cabe ressaltar que os recentes debates na área sempre trazem consigo uma justificativa econômica, conforme aponta (SOUZA, 2010):

É interessante: por mais que se critique a mercantilização da cultura e seu tratamento como mero meio para a realização de bons negócios etc., um dos principais motivos apresentados para a recente “valorização” desta esfera no debate político é justamente sua importância econômica. Assim, o debate sobre a importância de se “dar a devida atenção” à cultura geralmente vem acompanhado da lembrança de que: o valor bruto da produção das atividades industriais culturais responde por em torno de 5% do valor bruto da produção da indústria da transformação brasileira; o da produção das atividades de serviços culturais correspondem a mais de 30% do total na área de serviços; os salários e outras remunerações do pessoal ocupado no “setor cultural” da economia brasileira responde por mais de 5% da massa salarial total etc. (p. 222)

Gil71 ressalta a necessidade de apreço pela economia da cultura quando pontua diferentes dados em relação com os PIB de cada nação e no cenário mundial:

Em 2002, o impacto da indústria cultural no PIB dos EUA passou a 6%, ou US$ 626,6 bilhões, empregando 4% da força de trabalho. [...] Segundo estudo feito [...] a economia da cultura no planeta crescerá em média 6,3% ao ano, para um crescimento geral médio de 5,7%. A cultura é, portanto, estratégica por apresentar externalidades para outras dimensões da vida das sociedades: impactos da cultura podem ser observados na economia, na política, na segurança pública, na saúde, na educação, no turismo, na pesquisa científica e tecnológica, no desempenho profissional, em, em todas as dimensões da vida (ALMEIDA, ALBERNAZ e SIQUEIRA, 2013, p. 347-348).

70

Relatório da Economia Criativa 2010 - Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável. Organização das Nações Unidas. [S.l.], p. 393. 2010. 71 Em uma palestra no Instituto Rio Branco em 2005.

73

Apropriando-se das recomendações dos organismos multilaterais, Gil-Juca introduzem um debate mais sofisticado quanto a relação cultura-mercado. Segue abaixo uma importante fala de Gil72 sobre a Economia da Cultura: Um bem simbólico é um produto cultural, político e econômico – simultaneamente. Como envolve custos de criação, planejamento e produção é, obviamente, uma fonte geradora de empregos e renda. Uma fonte de lucro para empresas e de captação de divisas para países exportadores de bens e serviços culturais. Ou seja: além de dar emprego em casa, a produção cultural pode trazer dinheiro de fora. Hoje, o mercado internacional de bens e serviços e culturais é extremamente dinâmico, envolvendo bilhões e bilhões de dólares. [...] O comércio internacional de serviço move, anualmente, cerca de 2 trilhões de dólares (idem, p. 242).

Juca Ferreira, que assumiu a pasta da Cultura em 2008 e deu prosseguimento ao trabalho de Gil, é mais enfático em sua abordagem da economia da cultura quando diz73 que deseja a “economia cultura no mesmo patamar do agronegócio, da indústria e dos serviços tradicionais” (idem, p.207). Ao pontuar a necessidade de ampliar o negócio cultural, o então ministro afirma:

[...] Isso só se amplia incorporando pessoas. Não é Marx, como eles estão pensando que é, é Adam Smith, o teórico do capitalismo [grifo meu]. Para se realizar plenamente, a mercadoria tem de chegar a um número maior de pessoas, cada vez mais. Estas pessoas se acostumaram a uma economia para poucos. [...] É preciso fortalecer o capitalismo cultural no Brasil, mas não baseado na muleta do Estado (idem, p.208).

Juca Ferreira reafirma que “trata-se de uma lógica capitalista que precisa ser incorporada” (idem, p. 215). Ou seja, ampliar o consumo de bens culturais. Para isso, o ministro traz a tona o balanço do governo Lula compreendendo-o como o responsável por “milhões [...] saindo da miséria, da pobreza, migrando para a classe média”74 (idem). Os ministros buscaram alicerçar essa relação amistosa da cultura com o mercado, pautados no debate sobre desenvolvimentismo. Inclusive recorrem a Celso Furtado, Ministro da Cultura em 1986-1988. Ferreira alerta para essa relação:

É de Celso Furtado uma reflexão, digna de nota, que antecede em alguns anos sua ida para o Ministério da Cultura, do qual foi titular entre 1986 e 1988. Num livro de 1984: Cultura e desenvolvimento em época de crise, Furtado escrevia: “O problema 72

Abertura do Seminário Cultura XXI – Fortaleza, 19 de março de 2003 Entrevista para a revista ISTOÉ DINHEIRO, 30 de agosto de 2010 74 Para melhor compreensão desta afirmação, rever o capítulo anterior quando se trava o debate sobre o trabalhador precariado, categoria de trabalhadores localizada em parte no exército de reserva, ocupante de trabalhos temporários com remuneração entre 0,5 e 1,5 salário mínimo. 73

74

institucional maior que se coloca à sociedade brasileira, no momento presente, é exatamente esse de abrir espaço para a emergência e vitalização das forças que se alimentam a capacidade criativa da sociedade em todos os planos” (1984, p. 51). E Furtado acrescentava, então: “A política de desenvolvimento deve ser posta a serviço do processo de enriquecimento cultural” (1984, p. 32). A percepção que a mola propulsora do desenvolvimento é a cultura – entendida aí como conjunto de atitudes e de mentalidades – é uma percepção que vem se cristalizando lentamente entre nós. Essa percepção precisa ser ainda mais alastrada e consolidada. (idem, p.79)

Conforme vimos, os governos do PT encamparam uma leitura neodesenvolvimentista para definirem sua política de gestão. O Ministério de Cultura assume esse ethos e traz à tona a caracterização de Celso Furtado para o setor. Segundo Cunha (2014), Furtado alertava que subdesenvolvimento se dava não só no campo econômico, mas cultural e político. Ou seja, “as classes dirigentes que se apropriam da maior parte do excedente disponível se identificam cultural e ideologicamente com as elites dos países do centro do capitalismo e orientam o sistema econômico nacional no sentido de reproduzir os padrões de consumo destas” (p. 38). Juca Ferreira considera que é papel do Estado “promover e estimular o desenvolvimento cultural da sociedade” (ibidem, p. 49). Ele alerta que “criar condições de produção, difusão, preservação e livre circulação, regular as economias da cultura, democratizar o acesso aos bens e serviços culturais, isso é papel do Estado” (idem). Gil75 o reitera quando diz:

O Ministério da Cultura tem trabalhado exaustivamente a relação entre cultura e desenvolvimento. Estamos reunindo forças, agregando parceiros e juntando recursos para viabilizar um amplo programa visando ao fortalecimento das atividades econômicas de produção e difusão de bens e serviços culturais no Brasil, capaz de contribuir para queo setor cultural realize seu potencial de estímulo à qualificação do capital humano do país e à geração de emprego, renda, inclusão social e diversidade. [...] Como Enrique Iglesias, presidente do BID, assinalou em Capital Social e Cultura – Chaves Estratégicas para o Desenvolvimento (2000), trata-se de reconhecer a cultura como um fator central para o desenvolvimento dos países e a integração econômica regional da América Latina, criando as condições necessárias à incorporação do fomento das atividades econômicas da cultura ao rol das políticas governamentais estratégicas. Entre as políticas de Estado, portanto. (idem, p.339)

Nesse sentido, trazemos as parcerias tão citadas pelos ministros e resgatamos o debate anterior do terceiro setor. Ao compreendermos o governo Lula como social-liberal e, portanto, tendo uma das características a parceria público-privada, salientamos o papel fundamental do

75

Palestra no Instituto Rio Branco em 30 de março de 2005.

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terceiro setor nessas relações. A ideologia também é reinvindicada constantemente pelos ministros. Em continuidade a fala anterior, Gil é claro quanto a essa relação:

[...] supõe-se que a realização do potencial existente demanda uma parceria efetiva entre o Estado, a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil, para que os entraves apontados acima sejam superados. Está claro que o mercado, per si, ao menos no estágio atual do desenvolvimento das forças produtivas do setor, não dá conta, isoladamente, dos desafios existentes (idem, ibidem).

A consagração dessa relação se dá com o Plano Nacional de Cultura e o Sistema Nacional de Cultura. O primeiro já vinha sendo debatido na câmara dos deputados desde novembro do ano 2000 através do parlamentar federal Gilmar Machado (PT). Porém, não se conseguiu avançar no debate do projeto, principalmente pelo pouco empenho do MinC naquele momento, sob a gestão de Welfort no governo FHC, oposição ao PT. Sua aprovação só se dá no ano de 2010 através da Lei no 12.343, onde o PT era “situação” no executivo, o MinC estava fortalecido e havia maioria “petista” no Congresso. Antes de avançarmos no destrinchamento do PNC é importante diferenciá-lo do Sistema Nacional de Cultura (SNC). O primeiro tem uma estrutura mais ampla e carrega consigo a tarefa de delimitar princípios, objetivos, diretrizes, estratégias e metas que orientariam o poder público da área até 2020. O MinC é o responsável por efetivar tais condições. Porém, quando pautamos a forma prática que se dará tais condições, é aí que entra o Sistema Nacional de Cultura. O SNC será o elo que fomentará as 53 metas abordadas pelo PNC junto aos municípios, estados e governo federal para ampliar as políticas públicas para o setor. Como principais questões estão o controle do repasse de recursos e a avaliação das ações realizadas com esse repasse. Até fevereiro de 2015, 100% dos estados aderiram ao SNC e 34,5% dos municípios76, o objetivo, segundo as metas do PNC, é atender 60% dos municípios e 100% dos estados77 até 2020. O PNC, em convergência com as propostas de Gil-Juca, reitera “uma perspectiva ampliada da cultura, na qual se articulam três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica” (BRASIL, 2013, p. 17). O documento é claro quanto diagnostica que a valorização da cultura deve vir acompanhada da injeção de espaços que a reproduzam e ampliem (teatros, museus, 76

“Quantitativo de Estados e Municípios de Acordo com o 28.1”: http://www.cultura.gov.br/documents/10907/1228541/3.+Quantitativo+de+Munic%C3%ADpios+e+Estados+com+ Acordo+28.1.pdf/61a9be75-969b-45b0-9c22-74972c002ae6 Acessado em 27/01/2015. 77 Já cumprido.

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centros culturais etc.), portanto, estimule a cultura enquanto mercadoria. Para contribuir com essa questão, tem-se como principal objetivo o aumento do orçamento da cultura para 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro até 202078. Antes de avançarmos nas principais metas que dialogam com este trabalho, é importante resgatar o debate acima quando se trata do modelo de aplicação delas. Lembremos que o MinC segue a cartilha social-liberal do governo PT, portanto se insere na lógica de parcerias públicoprivadas, conforme pondera Gil79 ao apresentar sua concepção de cultura e desenvolvimento:

[...] supõe-se que a realização do potencial existente demanda uma parceria efetiva entre Estado, a iniciativa privada e as organizações da sociedade civil, para que os entraves apontados acima sejam superados. Está claro que o mercado, per si, ao menos no estágio atual do desenvolvimento das forças produtivas do setor, não dá conta, isoladamente, dos desafios existentes (p. 339, ibidem).

Nesse sentido, o SNC tem um papel determinante no diálogo com o denominado terceiro setor80 segundo Gil:

Priorizamos também a conceituação do Sistema Nacional de Cultura, de modo a articular o poder público em suas três esferas, a iniciativa privada e o terceiro setor; a articulação internacional, participando de todas as instâncias de decisão com o objetivo de celebrar o princípio da diversidade cultural e promover uma integração de fato com a América do Sul e a África; a articulação com a sociedade e o poder público (prefeituras, governos estaduais, Congresso, outros ministérios) para repactuar as relações do setor e elaborar novas regras e políticas; a realização de projetos de inclusão e descentralização, e a intervenção na economia da cultura, buscando compreendê-la em sua complexidade (p. 283, idem).

Essa concepção de gestão está presente de forma explícita na redação do PNC (Lei n o 12.343 de 2 de dezembro de 2010), quando nos atentamos para o Capítulo II que trata “Das atribuições do poder público”. A começar pelo Inciso XII:

Art. 3° Compete ao poder público, nos termos desta Lei: XII – incentivar a adesão de organizações e instituições do setor privado e entidades da sociedade civil às diretrizes e metas do Plano Nacional de Cultura por meio de ações próprias, parcerias, participação em programas e integração ao Sistema Nacional de 78

Segundo os gráficos da “Auditoria Cidadã da dívida” o orçamento para a cultura em 2014 estava em 0,13%. Para mais informações: http://www.auditoriacidada.org.br/e-por-direitos-auditoria-da-divida-ja-confira-o-graficodo-orcamento-de-2012/ Acessado em 10/12/2014. 79 Palestra realizada no Instituto Rio Branco. 80 Debatido no capítulo 2.

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Informações e Indicadores Culturais – SNIIC. § 1° O Sistema Nacional de Cultura – SNC, criado por lei específica, será o principal articulador federativo do PNC, estabelecendo mecanismos de gestão compartilhada entre os entes federados e a sociedade civil [...] § 5° Poderão colaborar com o Plano Nacional de Cultura, em caráter voluntário, outros entes, públicos e privados, tais como empresas, organizações corporativas e sindicais, organizações da sociedade civil, fundações, pessoas físicas e jurídicas que se mobilizem para a garantia dos princípios, objetivos, diretrizes e metas do PNC, estabelecendo termos de adesão específicos (BRASIL, 2010).

Tal inciso é fundamental para reconhecermos o papel desempenhado pelo SNC na promoção das parcerias público-privadas estabelecidas pelo PNC. Quando tratamos em “entidades da sociedade civil” reconhecemos o papel protagonizado pelo terceiro setor na condução dessa relação. O SNC contribui ao efetivar na prática a articulação entre o público (ente federado) e privado (sociedade civil). Característica que visa fundamentalmente irromper a centralidade do poder público na direção dessas políticas e deslocá-la para a gestão do setor privado, onde as parcerias escamoteiam a reflexão do que é o público. Gilberto Gil e Juca Ferreira externaram em suas gestões o inconformismo com a concentração de recursos culturais para o Sudeste e sempre para os mesmos produtores e artistas. A famosa expressão criada por Gil denominada “do-in antropológico” representava isso para Juca Ferreira81: Aquela [expressão] deixava evidente que não poderíamos administrar o Ministério da Cultura sem democratizar, sem federalizar e sem interiorizar as suas ações. Precisávamos desconcentrar a nossa política cultural, trazer para o seu raio de ação as expressões culturais até então sem acesso do apoio ao Estado (ALMEIDA, ALBERNAZ e SIQUEIRA, 2013, p. 76).

A democratização e a interiorização se deram, a priori, com a conjugação das parcerias públicas-privadas e a valorização da cultura popular. Nesse âmbito, podemos reconhecer os Pontos de Cultura como um programa que introduziu essa perspectiva no campo das políticas culturais dessa gestão. Gil82 disserta quanto a este programa:

Os Pontos de Cultura são intervenções agudas nas profundezas do Brasil, para despertar, estimular e projetar o que há de singular e mais positivo nas comunidades, nas periferias, nos quilombos, nas aldeias: a cultura local. [...] Cada Ponto de Cultura é um 81

Artigo “A centralidade da cultura no desenvolvimento” In: BARROSO, Aloísio Sérgio, RENILDO (Orgs.) Desenvolvimento: ideias para um projeto nacional. São Paulo: Fundação Maurício Grabois, 2010. p.265-278. 82 Palestra sobre Políticas Culturais no Brasil na Universidade de Columbia. Nova York, 21 de fevereiro de 2005.

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amplificador das expressões culturais da sua comunidade. [...] As comunidades e seus criadores poderão escolher as atividades, os equipamentos, os treinamentos. Serão usuários e gestores ao mesmo tempo, através de conselhos, com a ajuda dos parceiros que podem ser ONGs ou o poder público local (idem, p.329).

Os Pontos de Cultura integram o denominado “Programa Cultura Viva” 83 do MinC. Podemos definir o “Ponto de Cultura” como iniciativas culturais escolhidas num processo seletivo, feita por um edital específico, através de parcerias com entidades governamentais ou não governamentais. Feita a parceria com o MinC, a entidade beneficiada recebe uma quantia para o desenvolvimento do projeto84. Souza (2010, p. 177) alerta para a forma utilitarista dos “Pontos de Cultura” imerso em um nexo de apropriação das iniciativas culturais localizadas em “comunidades que se encontram em situação de pobreza ou vulnerabilidade social” para inseri-las numa lógica de mercado. É interessante dar um destaque, segundo estatísticas levantadas pelo autor, que além da maximização das parcerias público-privadas, percebemos o aumento contingencial dos precariados que trabalham nesses pontos. Segundo uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em pesquisa realizada entre 2007 e 2008, publicada em 2010, de 526 pontos de cultura no Brasil temos dados alarmantes85:

Constata-se [...] o grande percentual (em torno de 40%) de trabalhadores voluntários nos Pontos. Indo além: mesmo aqueles que são remunerados o são sem nenhum tipo de vínculo formal. Não há carteira de trabalho e os direitos a ela relacionados neste tipo de emprego, que pode, assim, ser caracterizado como um [...] emprego precário – que, justamente por não carregar o “fardo” dos direitos trabalhistas sai tão “barato” para o

83

O Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania - Cultura Viva foi criado e regulamentado por meio das portarias nº 156, de 06 de julho de 2004 e n° 82, de 18 de maio de 2005 do Ministério da Cultura. Surgiu para estimular e fortalecer no país rede de criação e gestão cultural, tendo como base os Pontos de Cultura. Fonte: http://www.cultura.gov.br/cultura-viva1 Acessado em 23/01/2015. 84 Podem participar dos editais de seleção pública pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, que sejam de natureza cultural como associações, sindicatos, cooperativas, fundações privadas, escolas caracterizadas como comunitárias e suas associações de pais e mestres, ou organizações tituladas como organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips) e Organizações Sociais (OS), sediadas e com atuação comprovada na área cultural de, no mínimo, três anos em seu respectivo estado e/ou município. Os projetos a serem selecionados deverão partir de iniciativas culturais e funcionar como instrumento de pulsão e articulação de ações já existentes nas comunidades, contribuindo para a inclusão social e a construção da cidadania, seja por meio da geração de emprego e renda ou do fortalecimento das identidades culturais. Em geral os Pontos de Cultura selecionados recebem o valor de R$ 180 mil, distribuídos em três anos consecutivos. Fonte: http://www.cultura.gov.br/pontos-de-cultura1 Acessado em 12/01/2015. 85 BARBOSA, Frederico e ARAÚJO, Herton E (orgs.). Cultura Viva: Avaliação do Programa Arte, Educação e Cidadania. Brasília: IPEA, 2010.

79

Estado. Confronte-se isso com a total ausência de concursos públicos para a área da cultura nos últimos anos (idem, p. 213).

Uma confirmação do avanço das atuais políticas do social-liberalismo para o conjunto da classe trabalhadora, em profunda retração dos seus direitos e avanço do precariado. No caso da cultura brasileira, as gestões de Gil e Ferreira (2003-2010) ousaram em potencializar um Ministério até então inerte para a elevação da adesão a políticas públicas direcionadas a desconcentração de recursos. Porém, suas ações se nortearam pelo desenvolvimentismo cultural, de moldar a cultura a uma plataforma de valorização da economia, e do social-liberalismo, através de parcerias público-privadas, principalmente com o terceiro setor. Na próxima seção veremos o desdobramento de uma nova modalidade econômica cultura, a Economia Criativa.

3.3 Economia Criativa: empreendimentos culturais Um novo modelo de políticas públicas vem tomando eco junto ao setor cultural. Trata-se da “Economia Criativa”. Apresentada com simpatia pelos organismos multilaterais internacionais, a chamada Economia Criativa desembarcou no Brasil sob a tutela da gestão Gil-Juca no MinC. O fortalecimento da economia da cultura é a principal motivação, que agora se apresenta através dos empreendimentos de micro e pequenos empresários interessados na área. De antemão, antes de adentrarmos na engenharia da Economia Criativa e desnudarmos sua localização no contexto econômico-político, cabe uma melhor definição da noção. O surgimento da mesma se dá em meados dos anos noventa, como derivado do termo Indústria Criativa, na Austrália, em 1994, inspirado num projeto denominado Creative Nation86. Logo, essa proposta avançou para o Reino Unido em 1997 com o então recém-eleito ministro Tony Blair87.

O Novo Partido Trabalhista inglês (New Labour) defendeu em seu manifesto préeleitoral a ideia de se identificar as indústrias criativas como um setor particular da economia, assim reconhecendo a necessidade de políticas públicas específicas para este segmento. Portanto, apesar da iniciativa dos australianos, foi no Reino Unido que a economia criativa ligada ao capital intelectual despontou com o incentivo do primeiro ministro Tony Blair. A fim de recuperar a competitividade diante do aumento da 86

Neste projeto o governo australiano propunha a busca da identidade cultural australiana. Para isso, passou a aplicar verbas, por meio de um fundo de investimento, nas indústrias cinematográfica, teatral e artística, em geral. 87 Conforme vimos no capítulo 2, período que trata da instauração da “terceira via” no cenário mundial.

80

concorrência dos países asiáticos no mercado internacional, Tony Blair convocou uma força-tarefa para determinar quais os setores criativos mais promissores do Reino Unido. [...] esses seguimentos viraram prioridade e passaram a ter um crescimento de 16% ao ano (SERAFIM e PINHEIRO, 2012, p. 8).

A caracterização do conceito indústria criativa é heterogêneo. Segundo Machado (2009), o termo “indústria criativa” seria uma resignificação do termo “indústria cultural” desenvolvido por Adorno onde “a principal função [é] a reorientação das massas, não permitindo a sua evasão e impondo, ininterruptamente, os esquemas para um comportamento conformista por parte destas”. Para Adorno, a indústria cultural tem um caráter regressivo, negativo, ou seja, de rebaixamento da cultura aos desígnios do mercado. Porém, para Reis (2008, p. 17) a indústria cultural seria “indústrias que têm sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que apresentam um potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual”. Podemos dialogar com o debate realizado no capítulo 1, quando pontuamos a exploração do trabalho imaterial. A indústria criativa se enquadra nesse debate ao determinar-se por agregar valor ao produto através do trabalho intelectual. Ela contempla parte da produção cultural definida por propaganda, arquitetura, mercados de arte e antiguidades, artesanato, design, moda, filme e vídeo, software de lazer, música, artes do espetáculo, edição, serviços de computação e software, rádio e TV. O ex-secretário de políticas públicas culturais, Paulo Miguez, em entrevista ao Prima Página em 200588 definiu a indústria criativa como a indústria “sem chaminé”. Organismos multilaterais internacionais deram destaque às indústrias culturais, assim como universidades mundo afora, com maior intensidade nos anos 2000. O professor do departamento de Economia da Universidade de Harvard, Richard Caves, publica a obra Creative Industries em 2001, no mesmo ano na Queensland University of Techonology, em Brisbane, na Austrália, se dá a fundação do curso de bacharelado “Creative Industries”. No ano seguinte, acontece o Simpósio Internacional na mesma cidade onde temos pesquisadores e estudiosos das recém criadas Creative Industries Faculty (London School of Economics), do Massachusetts Institute of Technology e da New York University., dentre diversas outras iniciativas. Em junho de 2004, em São Paulo, a XI UNCTAD89, realizou no Brasil o “Workshop on Cultural Entreprenershipon Criative Industries” e o “High LevelPanelon Creative Industries and 88 89

http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3575 Acessado em 26/01/2015. Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.

81

Developmentent”. É importante destacar os encaminhamentos deste encontro, onde compreendem a Indústria Criativa como setor fundamental para os países ditos em “desenvolvimento”, ou seja, aqueles periféricos ao centro capitalista. A UNCTAD, setor da Organização das Nações Unidas (ONU) responsável por representar estes países localizados na periferia, tem explorado o debate da Indústria Criativa e da Economia Criativa90 compreendendo o setor cultural como frutífero ao “crescimento econômico” destes países. Na Conferência Ministerial da Unctad XI, realizada em São Paulo, em 2004, o tema relacionado a indústrias criativas foi introduzido na agenda econômica e de desenvolvimento internacional pela primeira vez em regime de recomendação feita pelo Comitê de Alto Nível sobre as Indústrias Criativas e Desenvolvimento. O São Paulo Consensus, negociado entre 153 países, declarava que: As indústrias criativas podem ajudar a estimular as externalidades positivas, preservando e promovendo as heranças e diversidades culturais. Aprimorar a participação e os benefícios dos países em desenvolvimento diante de oportunidades novas e dinâmicas de crescimento no comércio mundial é importante para a obtenção de aumento de ganhos com o comércio internacional e negociações comerciais, além de representar um resultado positivo para os países desenvolvidos e em desenvolvimento (parágrafo 65) (Relatório da Economia Criativa: , 2010).

O diálogo da UNCTAD com a Organização Mundial do Comércio (OMC) reforça essa percepção de compreensão do setor cultural, através da indústria criativa, como ferramenta de mercado. Tanto que há uma recomendação para a OMC que melhor caracterize o setor:

A estrutura da OMC engloba o comércio de produtos e serviços das indústrias criativas, incluindo o comércio de conteúdos criativos digitalizados associados às ferramentas de tecnologia de informação e de comunicação (TIC). Os serviços audiovisuais, culturais, entre outros serviços relacionados, são discutidos conforme os termos do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS). No entanto, existem problemas com respeito às definições. Embora o termo “produtos e serviços culturais” seja o utilizado nas negociações da OMC, não há nenhuma definição específica para “serviços culturais” (Relatório da Economia Criativa 2010 - Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável, 2010, p. 235).

A indústria criativa é então compreendida como uma parte da cadeia produtiva da economia criativa. A indústria criativa cumpre um papel, segundo a UNCTAD, na produção de valor. Antes de prosseguirmos com a definição da economia criativa, é importante salientar que a indústria criativa, por ser embrionária no debate já vinha desde o início dos anos 2000 sendo acionada pela ONU como “modelo ideal de desenvolvimento”:

90

Como veremos adiante.

82

Nos últimos anos, as Nações Unidas têm reconhecido cada vez mais a função inalienável da cultura no desenvolvimento e têm focado em programá-la de acordo. A convicção era evidente na Resolução 57/249 da Assembleia Geral de 20 de fevereiro de 2003 sobre a Cultura e o Desenvolvimento. A resolução falava diretamente sobre o potencial das indústrias culturais para a redução da pobreza, observando que a Assembleia Geral: 5. Convide todos os estados-membros, agências intergovernamentais, organizações do sistema das Nações Unidas e organizações não governamentais: (iii) para estabelecer indústrias culturais que sejam viáveis e competitivas em níveis nacionais e internacionais, frente ao atual desequilíbrio no fluxo e intercâmbio de produtos culturais em nível global; (iv) para avaliar a interligação entre cultura e desenvolvimento e à eliminação da pobreza no contexto da Primeira Década das Nações Unidas para a Erradicação da Pobreza (1997-2006) (Relatório da Economia Criativa 2010 - Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável, 2010, p. 243).

A indústria criativa no Brasil surgiu em 2004 e teve um crescimento de 90% da mão-deobra assalariada segundo o Firjan. Vejamos isso em números na tabela a seguir91:

91

Não há uma definição quanto a formalidade dessa mão-de-obra.

83

TABELA 1: Desenvolvimento da mão-de-obra criativa no Brasil SEGMENTOS

2004

2013

CRESCIMENTO

CONSUMO

211,5

422,9

100,0%

Publicidade

45,7

154,8

238,5%

Arquitetura

62,7

124,5

98,5%

Design

42,6

87,0

104,3%

Moda

60,5

56,7

-6,3%

CULTURA

43,3

62,1

43,6%

Expressões Culturais

18,3

22,5

22,7%

Patrimônio e Artes

10,2

16,4

60,9%

Música

7,5

12,0

60,4%

Artes Cênicas

7,2

11,2

54,9%

MÍDIAS

64,2

101,4

58,0%

Editorial

27,8

50,8

82,5%

Audiovisual

36,3

50,6

39,1%

TECNOLOGIA

150,9

306,1

102,8%

Biotecnologia

13,2

26,9

102,8%

Pesquisa & Desenv.

82,2

166,3

102,3%

Tecnologias de Informação e Comp. Indústria Criativa

55,5

112,9

103,6%

469,8

892,5

90,0%

Fonte: (FIRJAN, 2014, p. 12)

Pela tabela é possível notar como vem se ampliando a chamada Indústria Criativa (excetuando-se Moda). Ainda, segundo o Firjan (idem), a Indústria Criativa em 2004 correspondia a 2,1% do PIB em 2004 passando para 2,6% em 2013, o que significa algo em cerca de R$126 bilhões nesse ano92. Porém, a Indústria Criativa corresponde apenas a uma parte da produção no chamado mercado cultural. Para que se pudesse ampliar ainda mais a mercantilização do setor, fazia-se necessário criar uma terminologia que apreendesse toda a cadeia produtiva cultural, a economia criativa. 92

Equivalente ao PIB do Estado de Pernambuco.

84

Podemos usar como exemplo, a análise de Requião (2008) junto a construção do que se tornou a marca “Lapa” em torno do bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. A proliferação de casa de shows e a reivindicação do bairro, como um “espaço democrático” e de “diversidade cultural” pelos empresários da circunvizinhança (p.176) reflete na forma de encarar o potencial de mercado cultural daquele espaço. A autora analisa a casa de shows Rio Scenarium. A priori, podemos compreender a casa como um exemplar de indústria criativa de expressão cultural, apresentação de música ao vivo. Por ora, não vamos tratar das questões do mundo do trabalho diante das relações do empresário da casa com os músicos93, porém, é importante destacar nesse processo como se ampliou a relação com outros setores empresariais, também donos de casa de shows e a “Feira de Antiguidades da Rua do Lavradio” permitindo a consolidação de um espaço lucrativo em profundo diálogo entre si, que antes era restrito a antiquários para se tornar um território de casa de shows com a “profissionalização das rodas de samba e choro” (p. 194). Percebe-se que há a construção de um perfil cultural que tem como papel fundamental representar um gênero musical para consolidá-lo como mercadoria cultural. De forma ilustrativa, diante do exemplo acima, compreendemos como se dá a economia criativa. Ela amplia o espaço mercadológico cultural através da construção de uma rede cultural em um local e/ou de indústrias criativas de forma ampliada global. O papel da economia criativa é dinamizar o mercado da cultura, ao atravessar não só o trabalho material (produção de iPods enquanto parte do mercado musical) e imaterial (marketing de uma banda musical). O “dinamizar” se caracteriza como expandir o caráter do valor-de-troca dos bens culturais em todas as esferas, de forma interligada, através da cadeia produtiva. Segundo Reis (2008), a Economia Criativa possui seis características básicas. A primeira delas é o:

1) Valor agregado da intangibilidade: O intangível da criatividade gera valor adicional quando incorpora características culturais, inimitáveis por excelência. Do turismo cultural abrangendo patrimônio e festas típicas ao audiovisual, criam-se sinergias entre o estilo de vida e o ambiente no qual ele floresce. (p. 29)

Podemos compreender intangibilidade como patrimônio imaterial. Nesse sentido, a economia criativa já trabalha com a lógica de compreender expressões populares (festas típicas),

93

O que faremos na última seção deste capítulo.

85

patrimônios culturais, dentre outros, como setores propícios a atender a demanda por valor. Conforme vimos no capítulo 1, o patrimônio imaterial surge com a proposta de potencializar tais expressões, portanto apreende a busca do lucro também junto a essa categoria da imaterialidade, a geração de “valor adicional”. Uma outra característica é de unificar 2) a cadeia setorial às redes de valor. Conforme vimos, a tendência é romper com o monopólio de uma estrutura geradora de valor, no caso um produtor para vários consumidores. A economia criativa defende, através da tecnologia, que se amplie o acesso ao consumo e dá como exemplo os softwares livres. Podemos reiterar o exemplo da Lapa, onde se criou um “nicho cultural” gerador de valor que atravessa diferentes setores numa rede (artesanato, bares, músicas ao vivo, antiquários, feiras) etc. Os 3) novos modelos de consumo também são uma outra reinvindicação da economia criativa. Novamente é pautada a questão da tecnologia. Esta segunda encarada como a que permite “ao consumidor ser protagonista na escolha do seu produto” (p. 32). Porém, essa caracterização não é desenvolvida o que deixa uma lacuna em sua compreensão. O que não é o caso da quarta que salienta a importância do papel das micro e pequenas-empresas. É destacada a importância deste setor, considerado o maior empregador dos países ditos em “desenvolvimento”. Pois bem, faremos comentários sobre esse setor na próxima seção. Novamente é destacado 5) o papel das novas tecnologias. Segundo Reis (idem) ela se apresentaria sob três formas:

1) Como parte das indústrias criativas (software, games, mídias digitais, comunicações); 2) Impactando na produção (oferecendo novos veículos para conteúdos criativos e a possibilidade de novos produtos e serviços com base na mídia digital), na distribuição (abrindo canais alternativos, e.g. e-commerce, expandindo o acesso global e reduzindo custos de transação) e no consumo, como veículo de conteúdo criativo (possibilitando ao consumidor direcionar sua busca por bens e serviços criativos e acessá-los diretamente do produtor, e.g. por download); 3) Transformando os processos de negócio e a cultura de mercado, incluindo a formação de redes e os modelos colaborativos já descritos (p. 33).

É interessante notar a profunda valorização das tecnologias como característica da economia criativa. O trabalho imaterial é supervalorizado nessa dinâmica, conforme o segundo item apresenta, toda a cadeia produtiva (produção, distribuição e consumo) é realizada via redes virtuais. A alienação se amplia consideravelmente, a começar pela omissão do trabalho material 86

no processo (como o desprezo ao trabalho das indústrias de computadores e peças, por exemplo). As relações humanas se diluem e o contatos se restringem ao mundo virtual. Por fim, temos como última característica da economia criativa o chamado amplo aspecto setorial. Podemos definir esse componente como aquele que congrega elementos da economia solidária94 ligados ao artesanato, ao conhecimento tradicional, às novas mídias e tecnologias. A intenção é se apropriar de experiências da economia solidária que obtiveram êxito e encará-las como projetos êxitos através de divulgação nas mídias. Conforme descrevemos no início desta seção, é evidente a importância que os organismos multilaterais internacionais dão a economia criativa como propulsora de “desenvolvimento econômico” dos países periféricos ao capitalismo. Esse debate é claro no “Relatório da Economia Criativa – 2010” onde se resgata os “objetivos de desenvolvimento” encaminhados na Declaração do Milênio95 (DDM). Inclusive, podemos destacar seis dos pontos desta declaração onde se busca apresentar o porquê da Economia Criativa contribuir para o “desenvolvimento”. O relatório frisa, dos objetivos propostos pela declaração, por exemplo, a questão da “erradicação da pobreza e redução da desigualdade”. Segundo o relatório, a criação de indústrias culturais locais direcionadas a arte e a cultura “será capaz de fazer uma importante contribuição à erradicação da pobreza e à redução da desigualdade” (p. 34). E em seguida afirma que “as indústrias criativas não somente proporcionam a possibilidade de geração de receita, mas também oferecem oportunidade de emprego mais fáceis de serem reconciliadas com as obrigações familiares e comunitárias” (idem). O porquê desse raciocínio não é explicitado, porém a gravidade maior é no próximo. Esse relatório confeccionado pela UNCTAD coloca como outro aspecto importante que a Economia Criativa contribui para a DDM a questão da “igualdade de gêneros”. A igualdade se dá através das “oportunidades para as mulheres participarem na atividade criativa” tendo como fim “recompensas econômicas e culturais” (idem). Restringindo a “igualdade de gêneros” somente ao 94

TIRIBA e FISCHER (p. 5, 2009) definem Economia Solidária como um movimento em que “trabalhadores/as articulam redes de produção e comercialização, complexos cooperativos e cadeias produtivas”, onde grande parte se encontrava na condição de trabalhador assalariado no mercado formal e perde essa condição. 95 “NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Milênio. Cúpula do Milênio. Nova Iorque, 2000 Published by United Nations Information Centre: Lisbon, 2000”. Disponível em: http://www.pnud.org.br/Docs/declaracao_do_milenio.pdf Acesso em: 26 de fevereiro de 2015. Trata-se de um documento assinado por 147 Chefes de Estado e de Governo e de 191 países. Aprovada na Cimeira do Milénio – realizada de 6 a 8 de Setembro de 2000, em Nova Iorque –, o documento contém alguns princípios que devem ser acionados para a progressão do desenvolvimento econômico, principalmente, nos países periféricos.

87

aspecto de construção de “estratégias de desenvolvimento devem incluir projetos de aprimoramento das capacidades criativas que favoreçam as pessoas carentes (sic), especialmente no artesanato (tecelãs, oleiras, entalhadoras etc.) e na moda (artesãs do couro, joalheiras, tecelãs de juta e seda, bordadeiras etc.)” (idem). Ou seja, segundo o relatório a contribuição à equalização dos gêneros se dará quando a mulher transitar do estágio de pessoa carente (?) para o de artesã do couro. Um outro aspecto do documento são as parcerias globais para o desenvolvimento. É relativizado ali as contribuições a serem encaminhadas para os “países do Sul” para que estes “cumprissem suas metas da DDM” (p. 35). As propostas ordenadas reforçam os interesses neocolonialistas dos países do centro capitalista. Vejamos como eles enxergam estas “contribuições”:

Parcerias globais podem melhorar a produção cultural e os prospectos comerciais dos países em desenvolvimento por meio de iniciativas concretas para (a) facilitar maior acesso ao mercado global de atividades culturais e produtos e serviços criativos; (b) facilitar a mobilidade de artistas do mundo em desenvolvimento aos principais mercados, oferecendo tratamento preferencial a artistas, performistas e profissionais culturais; (c) promover programas de construção de capacidades a fim de melhorar as habilidades de negócios, o empreendedorismo cultural e a compreensão dos direitos de propriedade intelectual; (d) facilitar a transferência de novas tecnologias da informação e da comunicação e outras ferramentas para a criação e distribuição de conteúdo criativo digitalizado; (e) facilitar o acesso a financiamentos e atrair investidores, incluindo esquemas para coproduções, empreendimentos conjuntos e acordos de investimento (idem).

É transparente a forma em que se pontua a relação dos países centro-periferia do capitalismo. As intenções de expansão do mercado são explícitas quando se reivindica a facilidade de acesso ao mercado de “atividades culturais”, na contribuição para “capacitar empreendedores culturais” 96 , na transferência de novas tecnologias e investidores financeiros para os países ditos, segundo o relatório, “em desenvolvimento”. Elementos que nos permitem refletir quanto as limitações das teorias que destacam o novo momento “neodesenvolvimentista” do Brasil abordada no capítulo anterior. Outro tópico interessante é o que trata das estratégias para a inclusão social da juventude. O trecho abaixo é fundamental para compreendermos o porquê a economia criativa poderia contribuir com esse objetivo: 96

Isso será o tema da próxima seção.

88

As artes e demais atividades culturais são comprovadamente um meio eficiente de envolver em trabalho produtivo jovens que, de outra forma, poderiam estar desempregados e, talvez, correndo risco de estarem se comportando de forma antissocial. O trabalho criativo pode proporcionar um senso de propósito em vidas que, de outra forma, estariam improdutivas; o envolvimento nos vários tipos de produção pode elevar a autoestima e a consciência social. Nesse aspecto, o estímulo às indústrias criativas locais pode resultar em oportunidades de geração de renda para jovens de áreas rurais, ajudando a desencorajar a fuga para as cidades, o que frequentemente contribui para o problema da juventude marginalizada ( (Relatório da Economia Criativa 2010 Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento viável, p.25, 2010).

Conforme a citação aborda, as “artes e demais atividades culturais” cumprem agora um papel de inserir a juventude num trabalho produtivo ao invés de estarem enquanto “desviantes da ordem”. Há inclusive uma reflexão psicologizante, onde o jovem ao funcionar de forma produtiva, estaria elevando sua autoestima e consciência social97, desprezando questões como as relações de trabalho precárias se sustentam também na Economia Criativa98. O mais interessante é julgar a indústria criativa como um potencial regulador do “êxodo rural” e desprezar questões dos países periféricos como concentração de terras, além de, logicamente, culpabilizar a juventude em relação ao aumento da marginalidade, ao invés do debate sobre políticas públicas direcionadas a essa faixa. O que não é novidade quando se reitera que “as estratégias da economia criativa têm sido usadas de forma bem-sucedida pelas autoridades locais e ONGs, a fim de oferecer oportunidades [...] a adolescentes que são econômica e socialmente excluídos e, portanto, expostos à delinquência” (idem). Ou seja, conforme vimos anteriormente, o terceiro setor surgem como alternativa as relações trabalhistas formais e vem a contribuir na ampliação e consolidação do trabalhador precariado, afirmação que reiteraremos na última seção deste capítulo. Reis (2008) apresenta quais são os desafios dos países em “desenvolvimento” para a aplicação da economia criativa. Há uma preocupação latente com constituição de política direcionadas à economia criativa no aspecto que congregue todos os setores:

Um dos maiores desafios para o fomento à economia criativa nos países em desenvolvimento é a articulação de um pacto social, econômico e político entre os 97

Segundo o relatório da OMS lançado em 2014, ocorre uma epidemia de suicídios a nível mundial. Uma pessoa a cada 40 segundos se mata. Depois dos maiores de 70 anos, as principais vítimas são a juventude que corresponde dos 15-30 anos. A maioria se encontra nos países periféricos do capitalismo que, segundo o relatório, se mata por questões “socioeconômicas”. Fonte: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/131056/1/9789241564779_eng.pdf?ua=1 Acessado em 15/01/2015. 98 Veremos isso na última seção.

89

setores público, privado, a sociedade civil, a academia e as organizações multilaterais, no qual cada um tem um papel muito claro. [...]A parceria público-privada, por exemplo, não se insere em um contexto de projeto, mas de programa de desenvolvimento. (p. 35).

Reis (2008, p. 36) em sua análise separa o poder público do privado. E indica que o papel do primeiro seria do “investimento em infraestrutura, em capacitação, a implementação de mecanismos de financiamento e fomento a empreendimentos criativos com diferentes perfis, o alinhamento das políticas setoriais, a instituição de um marco regulatório e jurídico que sustente a economia criativa e a participação ativa em negociações internacionais”. O Estado funcionaria como construtor da estrutura para a realização da economia criativa em todas as esferas (física, financeira e educacional). Já ao setor privado caberia “aproveitar filões intocados, inovar, explorar novos mercados e novos mecanismos de atingir antigos mercados, encontrar formas alternativas de negócios, estabelecer parcerias com outras indústrias criativas e outros setores econômicos e rever o relacionamento que estabelece com a sociedade, os fornecedores e os canais de distribuição” (idem). Ao setor privado caberia o esforço de ampliar suas redes e seus lucros. Reis (2008, p. 37) destaca que o poder público deve identificar as “necessidades e potencialidades de cada agente privado e do terceiro setor, posicionando-se acerca de quais interesses representar”. Reis (idem, p. 46-47) acredita que a economia criativa é “o emblema de um novo ciclo econômico, que surge como resposta a problemas globais renitentes, que motiva e embasa novos modelos de negócios, processos organizacionais e institucionais e relações entre os agentes econômicos e sociais”, ou seja, “a economia criativa parece apresentar de fato potencial significativo para promover o desenvolvimento socioeconômico, aproveitando um momento de transição de paradigmas globais para reorganizar os recursos e a distribuição dos benefícios econômicos” (p. 47). Conforme vimos na seção anterior, aspectos defendidos pelos idealizadores da economia criativa como terceiro setor, desenvolvimentismo econômico e valorização da cultura popular vem a convergir com as propostas do Ministério da Cultura de Gil-Juca (2002-2010). Em seus discursos, os ministros já tangenciavam essas questões acima 99 , assim como já se debatia a Economia Criativa. Porém, a institucionalização da Economia Criativa só viria ocorrer em 1º de

99

Pra se ter uma ideia, Gilberto Gil fundou uma ONG ambientalista já em 1989 denomina “Onda Azul”, a mesma conta com parceiros como a Rede Globo, Posto Ipiranga, dentre outros.

90

junho de 2012, através do Decreto 7743100, onde se criava a Secretaria da Economia Criativa (SEC) na gestão de Ana Buarque de Holanda (2011-2012). A missão desta, por ela mesma, seria de apoiar e fomentar “profissionais e micro e pequenos empreendimentos criativos brasileiros” (BRASIL, 2011, p. 38). Em diálogo com o Plano Nacional de Cultura, o objetivo da SEC seriam quatro: 1) Capacitação e assistência ao trabalhador da cultura (trabalhador criativo); 2) Estímulo ao desenvolvimento da Economia da Cultura (economia criativa); 3) Turismo Cultural; 4) Regulação econômica (idem, p. 39). Cabe ressaltar que no primeiro item, a SEC faz um adendo quanto a “Economia Criativa”, pontuando a amplitude do conceito e reconhecendo como mais preciso do que a definição “Economia da Cultura”. Portanto, os documentos desta secretaria e outros do MinC buscam fazer uma transição terminológica de reivindicação da “criatividade”, em detrimento do conceito “cultura”, o argumento é que contempla mais a cadeia produtiva em questão. Por isso, o item 1 já aciona a noção de “trabalhador criativo” em detrimento de “trabalhador da cultura”. Em relação a sua estruturação interna, a SEC buscou organiza-se em “dois vetores de atuação em duas diretorias” (idem, p. 40) para melhor administrar estes objetivos. Um denominado “vetor macroeconômico”, responsável por lidar com as questões no âmbito do “desenvolvimentismo”101, ou seja, por ampliar a EC através da expansão de “territórios criativos”, “espaços de debates e pesquisas” sobre o tema, além da reflexão dos “marcos legais” desta economia (p. 41). O outro vetor, denominado “microeconômico”102, teria o papel de articular a formação dos “empreendedores criativos”, seja na contribuição de financiamento de empreendimentos nesta área e/ou formação direcionada a mesma. Limitaremos-nos ao aprofundamento deste segundo vetor, o responsável por articular os “empreendedores criativos”. De antemão, é importante apresentar a designação oficial do documento

103

elaborado pela SEC qual seria a incumbência da diretoria denominada

Empreendedorismo, Gestão e Inovação:

100

Embora a secretaria já havia sendo criada em 2011, só foi reconhecida legalmente em 2012. Cabe ressaltar que a criação desta é o resultado das contribuições fundamentais das gestões de Gil-Juca. 101 Diretoria de Desenvolvimento e Monitoramento. 102 Diretoria de Empreendedorismo, Gestão e Inovação. 103 Plano da Secretaria da Economia Criativa; 2011-2014.

91

Voltada aos aspectos microeconômicos, a partir da implementação de programas e projetos de fomento técnico e econômico de empreendimentos e profissionais criativos, por meio de incubadoras, birôs de serviços linhas de financiamento, apoio a tecnologias sociais de gestão de redes, coletivos e organizações associativas e formação para competências criativas, além da promoção de bens e serviços criativos nacionais no mercado internacional (idem, pps. 40-41).

Ao relacionar empreendimento-empreendedor e profissionais criativos, a diretoria se divide em três eixos. Ela compreende o empreendedorismo em setores criativos 104: conforme apresentado no trecho acima, onde seria o fomento técnico e financeiro desenvolvido nos espaços citados. Adicional a isso, teríamos formação para as competências criativas, onde se daria o “desenvolvimento nas áreas técnicas e de gestão” (Brasil, 2001, p. 42). E, por fim, o eixos de redes e coletivos, que teria o papel de “criar e promover coletivos e cooperativas de profissionais criativos” (p. 42). Ou seja, o papel desta diretoria seria de construir e fomentar “empreendimentos criativos” através do suporte financeiro e de “formação” para essa lógica. É interessante destacar que entres os desafios colocador para a Economia Criativa no Brasil, é colocada a questão da Educação para competências criativas. O principal argumento é que os “grandes artistas carecem de conhecimentos da dinâmica e dos fluxos dos mercados criativos” e que “poucos profissionais [...] integrantes das diversas cadeias produtivas, se encontram qualificados para se relacionar com os setores criativos” (idem, p. 36). Nesse sentido, a capacitação para a formação de um “empreendedor criativo” supriria essa demanda. No caso, o setor responsável por contribuir para a capacitação destes “empreendedores” seria o Sistema S, com destaque para o SEBRAE. A confecção do Plano da SEC foi feita em oito etapas (idem, pps 46-47). A Etapa I ficou conhecida como Encontro com experts, caracterizada pela participação de acadêmicos e estudiosos do tema, a II chamada de Levantamento de demandas dos setores criativos, responsável por mapear os dados da indústria cultural no Brasil, a IV: Encontro com ministérios parceiros, V: Encontro com órgãos do Sistema MinC, VI: Encontro com parceiros federativos, VII: Encontro com juristas e, por fim, a VIII: Planejamento interno da Secretaria da Economia Criativa, onde seria feito um balanço de todas as contribuições. Nos interessa a terceira, nomeada de Encontro com parceiros institucionais: agências de fomento e desenvolvimento, órgãos bilaterais e multilaterais internacionais. Esta etapa realizada 104

O documento opta por “setor criativo” ao invés de “indústria criativa” para desvincular “aos ruídos de comunicação que [associam] a indústria as atividades fabris de larga escala, massificadas e seriadas” (idem, p. 22).

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em 9 de maio de 2011 tinha como objetivo a “identificação de parcerias e fontes de recursos para a promoção e fomento” da EC (idem), cabe ressaltar o SEBRAE105. Foram definidos três desafios, o terceiro é a Educação para competências criativas. Dentre os diversos tópicos, merece atenção especial àquele que trata de “fomentar a capacitação de profissionais e gestores de empreendimentos criativos em parceria com o sistema S” (idem, p.49). O sistema S seria o responsável por parte da “formação” dos profissionais da EC 106. Essa formação teria características distintas quando direcionada a produção. Aquela que trata da difusão cultura, ou seja, que contribua na expansão do “empreendimento” ficou a cargo do SESC, SENAC, SESI e SENAI. Já a parte de formação de “empreendedores criativos” será efetuada pelo SESCOOP 107 e SEBRAE, este segundo com maior relevância, conforme se observa no Plano da SEC. Por fim, é importante ressaltar a interferência que os organismos multilaterais tem se apresentado na condução da recomendação em valorizar a Indústria Cultural (chamado pela SEC de “setor cultural”) e a Economia Criativa no Brasil. A responsabilização ao Estado em fornecer elementos para a ampliação desta, como foi feito com a institucionalização na criação da SEC, das parcerias com o terceiro setor em etapas da cadeia produtiva, assim como a reivindicação do setor privado na condução da capacitação dos profissionais da EC como, por exemplo, o sistema S, em especial o SEBRAE na formação dos “empreendedores criativos”, tema da nossa próxima seção.

3.4 O SEBRAE e a capacitação para a “criatividade” No que tange a capacitação para o “empreendedorismo criativo” no Brasil, o SEBRAE assume um papel de protagonista ditando modelos e incorporando elementos dos organismos multilaterais a realidade brasileira sob uma perspectiva da classe dominante. Na presente seção iremos abordar o papel que o SEBRAE cumpre neste momento de ampliação da EC no Brasil. Conforme vimos, o SEBRAE se torna uma peça fundamental no processo de capacitação dos “empreendedores criativos”. Antes de avançarmos em sua caracterização, seja em sua 105

Dentre os participantes havia o BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, Petrobrás, Eletrobrás, Correios, Furnas, SENAC, SESI, SESC, UNESCO, UNITAR, OEI, FINEP, CNPQ e APEX. 106 Temos a Organização dos Estados Iberos-Americanos (OEI) responsáveis pela formação para gestão e o Instituto das Nações Unidas para Formação e Pesquisa (UNITAR) – ligado a ONU – direcionada a Formação para o trabalho. 107 Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo.

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construção história ou nos seus objetivos, cabe um destaque no que compete a sua função dentro da sociedade brasileira. Lembremos que o SEBRAE é uma entidade que compõe o chamado Sistema S 108 . Este sistema é formado por instituições e organizações com “braços” no setor produtivo brasileiro109, tendo sua história alinhada com a ampliação do setor industrial e serviços na década de 40, através da tríade SENAI-SESI-IEL 110 , responsável pela formação da classe trabalhadora em ascensão no período de industrialização. Conforme, pontua Rodrigues (1998), o surgimento dessas instituições tem relação direta com as reinvindicações da burguesia industrial representada pela CNI (Confederação Nacional das Indústrias). A necessidade da “(con)formação da força de trabalho demanda pelo parque industrial brasileiro” (p. 129) avançou além das demandas de formação técnico-profissional, para os “valores éticos-morais, da saúde e do lazer” (idem). O que exigiu a emergência de “dois aparelhos ideológicos da CNI: o SENAI, criado em 1942, e o SESI, instituído em 1946” (idem)111. A participação destes industriais no campo educacional se deu por duas vertentes, segundo o autor. A primeira, conforme vimos, através da construção de aparelhos imediatos de formação humana (SENAI, SESI e IEL). Adicional a isso, temos também o protagonismo destes industriais através de “falas oficiais e coletivas, construídas ao longo da história da CNI” (p. 135). Estes elementos são fulcrais para abrangermos o continuísmo desta lógica na contemporaneidade registrada no papel do SEBRAE em seu posto de formador de “empreendedores criativos”. Porém, antes de desenvolvermos tal caracterização, nos cabe resgatar historicamente a fundação do órgão e suas metamorfoses, até porque ele não traz um vínculo direto com a CNI. Em 1972, é fundado o CEBRAE (Centro Brasileiro de Assistência Gerencial à Pequena e Média Empresa). Dias (2006, p. 73) compreende criação do órgão como uma demanda de um setor da burguesia (pequenos e médios empresários), que pontuavam a necessidade de se “educar o empresário” e “transmitir tecnologias para as PMEs [pequenas e médias empresas]”. A década de 1970 representou a estruturação e ampliação do CEBRAE para algumas federações, para já na 108

O Sistema “S” é o grupo formado por entidades de direito privado criadas ou autorizadas por lei, com finalidade específica de oferecer assistência e/ou ensinar determinada classe social ou profissional. São concebidas como entidades paraestatais, portanto recebem apoio financeiro do Estado. 109 Indústria, comércio, agricultura, transporte e cooperativa. 110 SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), SESI (Serviço Social da Indústria) e IEL (Instituto Euvaldo Lodi). 111 Rodrigues (idem) compreende o pensamento pedagógico da CNI nas últimas décadas enquanto três télos fundamentais: nação industrial (dos anos 40 a meados dos anos 60), país desenvolvido (compreendendo a segunda metade dos anos 60 até o início dos anos 80) e o télos economia competitiva (dos anos 80 em diante).

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década seguinte o órgao buscar o apoio estatal em suas políticas representativas das PMEs. Porém, diante da grave crise do final dos anos 1980, há quase o fechamento do centro. No início dos anos 90, o governo Collor busca desvincular o órgão do Estado, ação que encontra resistência no parlamento brasileiro. Nesse período ocorre uma virada do CEBRAE que passa a se chamar SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) 112, além da Lei 8.029 que transfere recursos para a nova entidade. Ocorre uma maximização da organização no Brasil que se amplia para todos os Estados do país. Conforme Dias (idem, p. 81) apresenta, o SEBRAE compreende a crise estrutural que se acentuava naquela década113 e afirmava a necessidade de se flexibilizarem as relações trabalhistas indo ao encontro das demandas da restruturação produtiva. Ao partir dessa premissa, a entidade assume a responsabilidade de contribuir com esse processo ao promover uma verdadeira “epidemia” de pequenas e médias empresas no Brasil, apêndices das grandes empresas, ou terceirização de serviços (p. 81). Esse resultado vem a corroborar a definição que Montaño (1999) coloca às Pequenas e Médias Empresas114. O autor (pps. 31-44) as compreende enquanto um propósito fomentado pela fase contemporânea do capitalismo (reestruturação produtiva) e tem dois papéis fundamentais. O primeiro deles é a redução de custos das grandes empresas, já que as desresponsabilizam da compra da força de trabalho, restringindo-as somente da compra do produto, agora elaborado pelas PEMEs. O resultado disso é menos gastos sociais e com custos da produção. Em detrimento a isso, temos a ampliação do precariado 115 localizado nestas PEMEs através das subcontratações. Um outro fator é escamoteamento da relação “assalariado” e “empresário”, afinal, às vezes, ambos se confundem, o que só contribui para omitir a polarização “capital-trabalho”, fetichizar que não ocorre mais “a exploração”. O SEBRAE assume esse ethos ao representar os interesses da fase atual do capitalismo. O discurso de construir o “empreendedor” transfere as contradições do modo de produção capitalista para o indivíduo, o empresário.

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Decreto 99.570/90. Conforme vimos no segundo capítulo, a acentuação dos conflitos de classes já evidenciavam os limites do neoliberalismo como modelo econômico. 114 O autor (pps. 21-26) distingue as PEMEs como as de a) produção final: onde o objetivo é próprio consumidor final, o que lhe dá uma situação estática, impossibilidade de competir com uma grande empresa, bloqueios para a expansão. Exemplos: padarias, pequenas carpintarias etc.; e b) empresa satélite: são àquelas que fornecem serviços para uma grande empresa. Ex: empresas de limpeza. 115 Para melhor compreensão do conceito, rever capítulo anterior. 113

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A construção de aparelhos imediatos de formação humana desenvolvida pela entidade entre 1999-2003 pode ser considerada a síntese apresentada por Dias (idem, p. 82) no governo Lula, onde tinhámos dois modelos de construção deste empreendedor. O embrionário “Programa Brasil Empreendedor” desenvolvido no governo FHC (out/1999) tinha como objetivo promover o treinamento empresarial e, em seguida, oferecer crédito ao empreendedor/empresário. O interessante deste programa é que o distingue da fase inicial do CEBRAE, que se legitimava por capacitação tecnicista. Agora o objetivo, de fato, era a formação humana. A outra proposta adotada até 2003 foi o chamado “Empreendedorismo Compartilhado” e o “Parceiros do Brasil” (pps, 83-85). Em diálogo com as novas proposições, inclusive de órgãos multilateriais internacionais, do capital social116, a formação humana se daria através de redes compartilhadas. Podemos identificar nesta propostas, os chamados Arranjos Produtivos Locais (APL), definido como aglomerações de empresas localizadas no mesmo território, assumindo uma especialização produtiva 117 . Cabe ressaltar que tais iniciativas ainda se restringiam ao trabalho material, a produção de bens tangíveis. É somente a partir de 2004-2005 que percebemos um giro do SEBRAE à denominada cadeia produtiva da cultura. Podemos destacar a influência do XI UNCTAD realizado em São Paulo (2004), onde se trouxe pela primeira vez no Brasil o debate sobre a “indústria criativa”. No ano posterior, em Salvador, temos o Forum Internacional das Indústrias Criativas, espaço onde o MinC tem um papel destacado. A partir de 2007, há abertura do SEBRAE para a temática, permitindo a condução do debate através de palestras, conferências etc. por suas unidades afora. O documento que corrobora isso é o “Termo de Referência para atuação do sistema Sebrae na cultura e entretenimento”. A institucionalização da cultura como prioridade no órgão é justificada pela seu aspecto econômico, trazendo novamente ao centro do debate as estatísticas fornecidas pelos organismos multilaterais internacionais pertinentes a economia da cultura. Porém, o primeiro material de fôlego realizado no SEBRAE sobre EC foi na entidade localizada no Estado do Espírito Santo em 2009 118 . O Cadernos da Economia Criativa:

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Sobre capital social ver o segundo capítulo. Podemos citar o exemplo de Nova Friburgo (Rio de Janeiro), conhecida como “capital da moda íntima”. 118 É importante destacar neste processo o papel de Lala Deheinzelin e Ana Carla Fonseca Reis, esta última, uma das idealizadoras da Economia Criativa no Brasil. Sua aproximação com o SEBRAE se deu a partir de 2006, com debates sobre “Desenvolvimento Sustentável e Cultura”, para em seguida ampliar em temas mais amplos como “Economia da Cultura” (2007) para, por fim, explorar o tema da Economia Criativa (2008) 117

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Economia Criativa e Desenvolvimento Sustentável

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inaugura um ambicioso debate da

instituição em relação a economia da cultura. Podemos compreender este documento como o de instauração do debate junto ao SEBRAE. O avanço do debate, além da formação humana dos “empreendedores criativos” e depoimentos de autoridades da entidade, se ampliou através de quantidade considerável de materiais. Cabe destacar aqueles que reproduzem a lógica do MinC, de aproriação da “cultura popular” direcionada a exploração do trabalho imaterial. Um destes materiais é um boletim do SEBRAE de 2014 denominado “Brasilidade da Economia Criativa” 120 . Sua preocupação fundamental é reiterar o porquê o Brasil tem “potencial” neste tipo de economia.

Os brasileiros são conhecidos por transmitirem sua essência nas pequenas atitudes. Suas características não são nem um pouco homogêneas, pelo contrário, a diversidade encontrada aqui pode ser considerada uma importante aliada. No que diz respeito ao segmento de economia criativa, imprimir nos mais diversos produtos a brasilidade pode se tornar um diferencial competitivo (p.1).

Podemos ver que a “competividade” não é descartada pela entidade, inclusive ela pode ser potencializada com a “brasilidade” 121 . A “brasilidade” teria relação direta com a expressão popular “jeitinho brasileiro”122: A expressão “jeitinho brasileiro” é amplamente citada e são as características peculiares existentes em cada pessoa do país. Muitas delas estão ligadas a expansividade, dinamismo, simpatia do povo brasileiro. Transparecer esses aspectos e imprimi-los nos produtos feitos é o grande diferencial do produto criativo que possui a brasilidade em sua composição (idem, p.2).

Estas “características” são encontradas na cultura popular, expressões “profícua aos negócios”. Cabe ao “empreendedor criativo” perceber essas nuances do país para transforma-las em mercado: As diferentes manifestações artísticas e culturais do país potencializam ainda mais produtos com esses valores agregados. Partindo da premissa de que os produtos criativos se configuram como o consumo de lazer do brasileiro, adequá-los de acordo com 119

SEBRAE. Cadernos da Economia Criativa: Economia Criativa e Desenvolvimento Local. Vitória-ES, 2009. SEBRAE, “Brasilidade da Economia Criativa”, Brasil, 2014. 121 Visando os megaeventos (Copa do Mundo em 2014 e Olímpiadas em 2016), o SEBRAE desenvolveu o projeto “Pesquisa Cara Brasileira: a brasilidade nos negócios – um caminho para o ‘Made in Brasil’”. A proposta era emergir estereótipos (brasileiro “alegre”, “passivo” etc.) para promoção de negócios em cima desta caracterizações. 122 “Jeitinho brasileiro” é uma expressão popular que define a forma sempre “improvisada” dos brasileiros lidarem com as adversidades. 120

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elementos de brasilidade colabora para atrair o público nacional e internacional e reforçar a imagem do Brasil (idem, p. 3).

Este é um dos materiais do SEBRAE que direcionam ao debate da Economia Criativa, oferecendo orientações para os futuros “empreendedores criativos”. Porém, devido a heteregeneidade da entidade junto as suas federações, não há como ter uma formação humana unificada na condução de formação dos “empreendedores”. Até porque há Estados como no Rio de Janeiro123, onde o debate sobre Economia Criativa está mais avançado. Por fim, cabe ressaltar as relações próximas e amistosas que o SEBRAE tomou com o MinC nos últimos 10 anos, principalmente em virtude da EC. É interessante destacar que essa relação vem sendo revitalizada com a assinatura de mais acordos de cooperação, como em 2010, 2011 e 2013. A condução de capacitações conjugadas, materiais, confecção de editais etc, os colocaram como compartilhadores da mesma proposição, de ampliar os “empreendimentos culturais” no Brasil explorando nuances locais e populares, conforme foi pontuado. Na próxima seção traremos uma visualização destes “empreendimentos” na realidade concreta vide o Programa Rio Criativo, a concepção de formação humana e os seus desdobramentos para o mundo do trabalho.

3.5 O Programa Rio Criativo: empreendendendo precariados Nos últimos anos, a região metropolitana 124 do Rio de Janeiro tem sido alçada como território privilegiado das políticas da Economia Criativa. Além dos chamados megaeventos125, foi o Estado que se mais avançou na institucionalização da Economia Criativa, através do Programa Rio Criativo126. Pretendo nesta seção pontuar as formas que se deram tais políticas e seus desdobramentos no mundo do trabalho, dando destaque ao trabalho formal127.

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Veremos na próxima seção. A região metropolitana do Rio de Janeiro compreende, além da capital, os municípios de Belford Roxo, Cachoeiras de Macacu, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Itaguaí, Japeri, Magé, Maricá, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, Rio Bonito, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica e Tanguá. 125 O Rio de Janeiro sediou os Jogos Pan-Americanos de 2007, os Jogos Mundiais de Militares em 2011, vários jogos da Copa do Mundo de 2014, incluindo a final, além das Olímpiadas que acontecerão em 2016, conjuntamente com os Jogos Paraolímpicos. 126 Segundo o decreto no 44.159/2013 se chama “Rio Criativo – Programa de Desenvolvimento da Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro”, optaremos por chama-lo “Programa Rio Criativo”. 127 Optei por essa categoria diante da falta de estatísticas quanto ao setor informal. 124

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Em matéria do jornal “O Globo” há a seguinte chamada: “Economia Criativa, a cara do carioca”128. A matéria se nortea pelos dados que a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN)129 apresentou em 2012, onde 2,7% do PIB brasileiro (cerca de R$110 bilhões) são gerados pela Indústria Criativa, sendo que o Rio de Janeiro corresponderia a mais de 50% dessa renda. No Brasil havia 148 mil empresas criativas em 2004, transitando para 251 mil em 2013, aumento de 69,1%. O Rio de Janeiro se destaca por ser um dos Estados que mais tem trabalhadores nesta área (107 mil, corresponde a 2,3% do total)

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localizados em

aproximadamente 26 mil empresas. Podemos atribuir a isso duas questões fundamentais: os megaeventos e o Programa Rio Criativo. Os megaeventos131 transformaram o Rio de Janeiro num lugar profícuo a ampliação do lucro, em especial, no campo da cultura132. Iniciativas direcionadas ao turismo sob a égide da cultura ainda possuíam um caráter “provisório”, porém pareado a isso houve uma reconfiguração da cidade do chamado “Porto Maravilha”, antiga área da cidade em processo de revitalização para atender a nova demanda de eventos culturais e da especulação imobiliária. Ocorre a emergência de projetos como o Museu de Arte do Rio (MAR) na Praça Mauá e o Museu do Amanhã no Pier Mauá. Além disso, temos a reconstrução do novo Museu da Imagem e do Som (MIS) em Copacabana, a Casa Daros em Botafogo, as reformas da Biblioteca Parque Estadual na Av. Presidente Vargas, assim como a Sala Cecília Meirelles na Lapa. As novas construções vem acompanhadas de parcerias com diversas empresas, como a Fundação Roberto Marinho, por exemplo. A concepção furtadiana de desenvolvimentismo cultural orienta a repensar a cultura popular nestes espaços, conforme percebemos numa iniciativa do MAR, denominada de “De carteirinha”, onde o objetivo é trazer os moradores das cercanias (bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa) em uma visita guiada para o Museu em um 128

Matéria de 29/11/2012. http://oglobo.globo.com/economia/economia-criativa-cara-do-carioca-6875939 Acessado em 13/11/2014. 129 Cabe ressaltar que os dados da Firjan sobre Economia Criativa e Indústria Criativa são os únicos no Brasil. 130 FIRJAN, Mapeamento das Indústrias Criativas no Brasil, Rio de Janeiro, p. 44. 2014. 131 É importante destacar que estes megaeventos, não só no Rio do Janeiro, mas em todo Brasil, não conduziram ao legado satisfatório a classe trabalhadora. Denúncias de superfaturamento, corrupção, construção de estádios verdadeiros “elefantes brancos”, desalojamento de famílias para “reconfigurar a cidade”, ataque as instituições de resistência, como o Museu do Índio no Maracanã, prisões arbitrárias e perseguição de manifestantes evidenciaram para quem estes eventos serviam. 132 Ocorreram, inclusive, produções cinematográficas internacionais filmadas na cidade como “O incrível Hulk” (2008), “Os mercenários” (2010), “Velozes e Furioso 5: Operação Rio” (2011), “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 1” (2011), “Rio, eu te amo” (2014), além da animação “Rio” (2011). Grande parte destas produções foram feitas em parceria com a estatal RIOFILME.

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dia determinado 133 . O repensar a cultura do Rio de Janeiro no âmbito patrimonial material necessitava vir da concepção imaterial. A emergência do discurso da “criatividade do carioca” viria desembocar na fundação do Programa Rio Criativo. Oficializado através do decreto no 44.159/2013 no governo Sérgio Cabral (2007-2014), o Programa viria institucionalizar a construção da Economia Criativa no Estado134, suposta vanguarda no Brasil. As onze diretrizes do decreto presentes no artigo 2º reiteravam o acúmulo já desenvolvido pela SEC a nível federal, de valorização da Economia Criativa e da cadeia produtiva como elementos estratégicos para o desenvolvimento a nível estadual e no fomento desta nova “empreitada” de negócios . Cabe um destaque a diretriz VII, onde pontua a necessidade de “Fortalecer a marca do Estado do Rio de Janeiro como polo criativo”, ou seja, a busca institucionalizada de representar este discurso. No Rio de Janeiro a “Coordenadoria da Economia Criativa do Rio de Janeiro” foi fundada em 2009, em vínculo com a Secretaria da Cultura. Seu propósito era contribuir na construção do Programa Rio Criativo. Já o artigo 3º, que trata das ações do Programa, são listados 37 tópicos. Eles convergem com três considerações pontuadas no decorrer do trabalho ao reivindicar a i) participação do setor junto ao “desenvolvimentismo”, no caso no Estado do Rio de Janeiro, ii) a transformação da cultura numa lógica mercadológica e, por fim, iii) a busca em reiterar as parcerias contíguas ao terceiro setor. A primeira questão se torna latente já no primeiro tópico quando se alerta para que o programa “articule as políticas públicas da cultura com o desenvolvimento do Estado”, no caso, como o tópico seguinte generaliza, seria “o desenvolvimento econômico, turismo, trabalho e renda, ciência e tecnologia, educação e de meio ambiente”. Para isso, pontua a criação de “mecanismos para a consolidação dessa nova economia tendo como parâmetros o empreendedorismo, o cooperativismo e a inovação”. O decreto não tem pudor em considerar a cultura como uma ferramenta mercadológica, de negócios, conforme o tópico cinco direciona é fundamental “estimular a utilização e o desenvolvimento de [...] novos modelos de negócios”. Em seguida, o tópico treze desenvolve esta questão ao considerar “propor, articular, estimular e divulgar linhas de financiamento, fundos de investimento e outros mecanismos de fomento, com vistas a ampliar o acesso de 133

Esse novo momento culmina com a derrubada de antigos museus do Estado do Rio de Janeiro como Museu Carmen Miranda, transferido para o novo MIS. 134 O Rio de Janeiro, através do governador e bancada majoritária do PMDB, era o Estado que mais desenvolveu parcerias com o governo federal (PT) no Sudeste.

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empreendimentos a essas fontes, viabilizando o fortalecimento de suas cadeias produtivas”, ou seja, segundo o tópico quinze, deve-se “articular junto às instituições financeiras estudos de risco sobre os mercados criativos com a finalidade de subsidiar políticas de financiamento e investimento específicas para esses setores criativos”. No tópico que trata da relação com o terceiro setor, é interessante apresentar a proposta dada pelo tópico dezessete, onde diz a importância de “promover o empreendedorismo cultural nas comunidades pacificadas e com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital e demais regiões do Estado”135. O empreendedorismo nas comunidades do Rio de Janeiro já é algo que vinha se desenhando no conjugado com a proliferação do terceiro setor136. Porém, em 2014, o Estado do Rio de Janeiro criou uma subcategoria da EC nas favelas, o chamado “Favela Criativa”. Em parceria com a Light e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a proposta é formar “empreendedores culturais” nestas comunidades. Com efeito, em 2015, inclusive, foi realizado a 1ª Feira Favela Criativa, espaço com moldes de workshop empresarial para os empreendedores exporem suas atividades. As parcerias com o setor privado são reiteradas no tópico vinte quando alerta para a busca de integração com “ações governamentais e privadas na promoção das regiões fluminenses como destinos turísticos”. O terceiro setor também é apresentado quando se faz referência a construção de um comitê gestor para apoiar o Programa o Rio Criativo. O artigo 4º fundamenta a necessidade desse comitê ser intersetorial: “constitui atribuição do Comitê Gestor prestar assessoramento às atividades do Programa, para que se configure um espaço democrático, intersetorial e propositivo”. Esta comissão será composta por:

I - Titular da pasta da Secretaria de Estado de Cultura - Presidente II - Quatro representantes da sociedade civil, com notória especialização nos setores da Economia Criativa; III - Um representante da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Energia, Indústria e Serviços; 135

“Comunidades pacificadas” leia-se a instalação da Unidade de Política Pacificadora (2008) – PMERJ - nas favelas do Rio de Janeiro, a maioria localizada na Zona Sul (zona nobre da cidade). Umas principais ações do governo Sérgio Cabral, o objetivo dessas UPPs, segundo o discurso oficial, é acabar com o tráfico nas comunidades. Porém, há diversas denúncias de abuso de autoridade, o mais famoso deles é o caso do pedreiro e líder comunitário Amarildo, torturado e assassinado em 2013. Coincidentemente, após a UPP, inúmeras empresas como Casas Bahia, Net etc., tiveram trânsito livre nas comunidades. 136 Ver Costa (2010) sobre o caso do Centro de Ações Solidárias na Maré (CEASM), uma ONG localizada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, reivindicativas de um discurso progressista, mas alinhada com terceira via e o ethos empresarial.

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IV - Um representante da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia; V - Um representante da Secretaria de Estado de Educação; VI - Um representante da Secretaria de Estado de Turismo; VII - Um representante do Ministério da Cultura; VIII - Um representante da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro; IX - Um representante da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro FIRJAN; X - Um representante do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Estado do Rio de Janeiro - SEBRAE-RJ (idem, p. 6).

Podemos identificar no inciso II que há pouca clarificação de quem serão estes “representantes da sociedade civil”. A reafirmação em compreender a EC como potencial econômico se dá no representante da Secretaria do Estado de Desenvolvimento Econômico, assim como sua relação direta com o turismo, como no item VI. A ligação com a tecnologia também é contemplada no item IV, assim como representações oficiais nos itens I, VII e VIII. Por fim, o destaque ao FIRJAN e ao SEBRAE. Antes de falarmos da forma de atuação deste último no Rio de Janeiro junto a EC, cabe uma uma caracterização mais ampla do funcionamento do Programa Rio Criativo. Tem sua sede na Praça XI 137 , onde a denominam de incubadora 138 , conhecida como a primeira incubadora pública de Economia Criativa da América Latina139. O Programa se divide em quatro núcleos: 1) Incubadora; 2) Núcleo de conhecimento; 3) LAB Rio Criativo; e 4) Núcleo de negócios. A Incubadora é o espaço onde se localizam os “empreendimentos” contemplados por edital. Ali ocorre a “capacitação” destes “empreendedores” dando-os “suporte” para suas micro empresas, seja no “âmbito jurídico, de imprensa, programação visual, recursos humanos, consultoria em plano de negócios, marketing etc.”. É formada uma rede, onde as micro empresas se ajudam mutuamente. Ao serem escolhidas no processo de seleção, as empresas são avaliadas constantemente. O primeiro ciclo da incubação ocorreu de 2012-2014, onde tivemos 17 “empreendimentos” com empresas de diferentes segmentos: “tecnologias audiovisuais, plataformas de financiamento coletivo, turismo cultural, moda, artes visuais, restauro, artes cênicas, música, entre outros. A evolução da soma do faturamento de todas as empresas passou 137

A transferência se deu em 2014 para o Liceu de Artes e o Ofícios, onde ocupa quatro pavimentos. O espaço conta com salas de coworking, salas de incubados, salas de reuniões e consultorias, salas de treinamento, auditório, área de convivência com midiateca e terraço. 138 As primeiras incubadoras no Brasil apareceram na década de 1980, primeiramente com o objetivo de alavancar o parque tecnológico nas universidades. Na década de 1990, as incubadoras passam a incorporar as micro e pequenas empresas. 139 Há uma incubadora do programa localizada em São João de Meriti em parceria com a cidade.

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de R$ 1.000.000,00 em Agosto de 2012 para R$ 9.000.000,00 em Fevereiro de 2014, aproximadamente”140. A capacitação destas empresas incubadas 141 se dá através do SEBRAE e do Instituto Gênesis, um projeto de extensão do curso de Administração da PUC-Rio. O Instituto se define como formador de “empreendedores” e iniciativas desta ordem. É uma das incubadoras mais antigas do Brasil, existe desde 1997. Seu acúmulo e a quantidade de profissionais contribuem nesta tarefa. Ambos, SEBRAE e Instituto Gênesis, contribuem com a capacitação destes “empreendedores culturais” oferecendo “equipe de assessoria” para micro empresas. Cabe ressaltar que as empresas que são escolhidas nestes editais, já tem algum histórico de atuação, ou seja, tem alguma experiência de “manejo de negócios”. O próximo núcleo, denominado “Núcleo de conhecimento” tem uma abordagem mais individualizada ou para pequenos grupos. Tem apenas o papel de ampliar pelo Estado o conceito de “Economia Criativa”, oferecer assessorias rápidas para possíveis “empreendedores criativos” seja através de cursos 142 com até quatro horas de duração, oficinas 143 , consultorias ou “caravanas”144 pelo Estado. Esta parte é organizada pelo SEBRAE conjuntamente com o coletivo denominado “Raízes da Tradição”, composto por artistas populares e pesquisadores da cultura popular. O coletivo possui uma abordagem prática e pragmática da cultura muito mais atrativa do que um discurso tecnicista. Seus profissionais estão ligados a área do chamado “empreendedorismo social”, leia-se ONGs, e tem uma vivência profissional no mundo da 140

http://www.riocriativo.rj.gov.br/site/sobre-o-nucleo-2/ Acessado em 15/01/2015. Arissas Multimídia (produção de mídias visuais), Benfeitoria (mobilizadora de recursos financeiros para iniciativas sociais e culturais), Bolacha Discos (promoção de artistas para o mercado da música), Brazilidade (empresa de turismo que promove o morro Santa Marta), E-Trilhas (direcionada a praticantes de trilhas com informações etc.), EmCartaz Empreendimentos (produção cultural direcionada a Artes Cênicas), EcontrArte (produção cultural de eventos), IU Design (customização de móveis), Jequitibá Conservação e Restauro (preservação de imóveis), Julia Vidal Etnias Culturais (moda), Martinica Digital (marketing), MobContent (audiovisual), Ponte Plural (produção de eventos), Projeto Subsolo (produção cultural), Rios de História (tours pelo Rio de Janeiro), Rumori Desenho Sonoro (produção musical) e Tipiti Soluções Culturais e Educativas (produtos educativos). 142 Os cursos tem se transitado entre Niterói, Manguinhos ou na própria sede do Rio Criativo. A maioria é algo mais especificado de gestão de empresas como “Diagnóstico e Demanda de Consumo”, “Inovação em Projetos Culturais”, “Pitching – técnicas de apresentação”, “Financiamento coletivo para projetos culturais”, “Técnicas de negociação com patrocinadores”, “Planejamento de Projetos”, “Produção executiva de shows e eventos”, “Marketing Digital” etc. 143 “Ação Rio Criativo na Biblioteca Parque de Niterói”, “Oficinas na Biblioteca de Manguinhos”, “Oficina de apoio ao artesanato indígena”, “Ação Rio Criativo na Biblioteca da Rocinha” etc. 144 Organizaram-se diversas “caravanas” pelo interior do Estado com o intuito de apresentar de forma introdutória a EC. As cidades que receberam foram Angra dos Reis, Mesquita, Porciúncula, Três Rios, Quissamã, Rio das Ostras, Laje do Muriaé e São Gonçalo. 141

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economia da cultura, em especial a cultura popular. Essa questão é fundamental para se permitir apresentar o debate de forma introdutória, seja nos cursos ou caravanas, afinal se permite apresentar da forma mais didática num público leigo. As atividades do “Núcleo de Conhecimento” são abertas para qualquer um que queira participar e não há restrição. O papel deste núcleo, de fato, é a construção de aparelhos imediatos de formação humana. Buscar internalizar a concepção do “empreendimento criativo” ou “empreendimento cultural” junto a sociedade. Transferir, através de capacitações introdutórias para gestão de empresas, a possibilidade de migração da condição de “autônomo” para “empreendedor”. Os cursos destacam as terminologias empresariais e recomendam “estratégias” para o êxito da empresa. Seja estratégia de “vendas”, “marketing”, propaganda”, “apresentação”, “negociação” etc. O objetivo fundamental é encorajar ao encaminhamento para a construção de um “empreendimento criativo”. O penúltimo núcleo é o “Lab Rio Criativo” Convergindo com o fetiche da tecnologia não só do MinC, mas como dos próprios princípios da EC, este núcleo é estruturado para a fomentar a produção do mercado de tecnologias de produção e pós-produção de conteúdos digitais criativos. É acionado pela área de marketing e propaganda para contribuir na visibilidade dos “empreendimentos criativos” na internet, tv e rádio. O chamado “Núcleo de Negócios” tem o papel de atrair investimentos paras as empresas unidas ao Rio Criativo. Seu papel é ampliar comercialmente as empresas ali incubadas, assim como atrair patrocinadores e investidores para os negócios culturais ali presentes. O objetivo é oferecer “serviços culturais” para grandes empresas, reiterando a concepção de empresa satélite dada por Montaño (1999). O “empreendedor cultural” vende sua capacidade de trabalho no âmbito da lógica do trabalho imaterial presente na sua micro empresa. A captação de parceiros e recursos financeiros é justamente para prover a manutenção do serviço, sem possibilidades de acumulação para a expansão dessas micro empresas, “terceirizadas” culturais. Lembremos que a expansão do micro negócio no Brasil é uma realidade. Segundo Pochmann (2012, pp. 91-93), de 1989 a 2009 tivemos um crescimento de 1,7% no Brasil, no Sudeste este avanço foi de 1,6%. Os setores que mais avançaram foi Construção Civil (1,9%) e Serviços (2,3%). Por outro lado, essa expansão tem repercussões junto ao mundo trabalho. É

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perceptível o aumento do trabalhador precariado145 junto a estas micro empresas. A remuneração e o período de estabelecimento nestas é visivelmente menor, em 2009, por exemplo, o rendimento médio dos trabalhadores das grandes empresas era 2,3 vezes superior ao recebido dos micro e pequenos negócios. Do total de 4,3 milhões de empregos formais146 de curta duração registrados em 2009, 47,2% estavam localizados nas micro e pequena empresas147. Quando analisamos os dados da Economia Criativa no Rio de Janeiro148, percebemos que há uma contribuição na adição da propagação da expansão do precariado junto a este setor. No Estado, como era de se esperar, grande parte dos estabelecimentos da cadeia criativa são de micro e pequenas empresas com proporção acima de 99%. São 33.204 micro e pequenas empresas criativas ou 99,6% do total das firmas criativas do Estado149. A taxa de crescimento dos micro e pequenos empreendimentos criativos do Estado foi superior à do setor industrial (de 14%) e a das indústrias de transformação (de 8%). O número de estabelecimentos no Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2010, aumentou de 28.879 para 33.204, uma expansão de 15% no número de micro e pequenas empresas criativas, em média, no Estado. Esta expansão de MPEs criativas, logicamente, ampliou o número de trabalhadores no setor. O Rio de Janeiro empregou no ano de 2010 a quantidade de 101.124 trabalhadores, cerca de 2% nacionalmente150. A remuneração média de um trabalhador criativo no Rio de Janeiro é de R$1000 151 , o que vem a contemplar a caracterização do precariado que compreende uma remuneração em média 1,5SM. Porém, nas MPEs há um pequeno acréscimo com a média de R$1900. Acreditamos que é possível relativizar esta condição ao reconhecermos que a cidade do Rio de Janeiro é a mais cara para se viver no Brasil152, o que acaba afetando, minimamente, a remuneração para um valor um pouco maior da média, mas sem afetar a condição localizada 145

Debatemos o conceito no capítulo anterior. Cabe um destaque neste ponto para pontuar que o Ministério do Trabalho compreende o trabalho temporário o (3 meses) como formal segundo Lei n 6.019/74. 147 Pochmann não trabalha com o conceito de precariado, mas expõe uma caracterização que o corresponde: “Entre 1999 e 2009, a taxa de rotatividade cresceu significativamente para os empregos com rendimento de até 1,5 salário mínimo mensal. Para os empregos que pagam entre 0,5 e 1 SM mensal, a taxa de rotatividade foi de 85,3% em 2009, com aumento de 42,2% em relação à rotatividade do ano de 1999” (p.93). 148 “Economia Criativa do Rio de Janeiro: boletim quadrimestral/novembro de 2012”. 149 O número de estabelecimentos no Estado do Rio de Janeiro, entre 2006 e 2010, aumentou de 28.879 para 33.204, uma expansão de 15% no número de micro e pequenas empresas criativas. 150 O total de trabalhadores criativos no Brasil em 2010 era de 44 milhões. 151 É a média de todo o Brasil. 152 Segundo o site colaborativo Expatistan o Rio de Janeiro cidade é a mais cara da América Latina e ocupa a posição 93ª no ranking mundial. Fonte: http://www.expatistan.com/cost-of-living/index Acessado em 15/01/2015. 146

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destes trabalhadores precariados. Além da maior remuneração, estar localizada nos setores que menos cresceram e que exigem uma maior qualificação, no caso os setores “Pesquisa e Desenvolvimento” e “Patrimônio”153. Os “setores criativos” que mais empregam 154 (2010) são Informática (40%), Artes performáticas (16%), Audiovisual (11%), Publicidade e Propaganda (9%), Edição e impressão (8%), Arquitetura e Design (6%), Ensino e Cultura (5%) e Artes Visuais (3%). Apesar disso, os setores que mais tiveram crescimento de 2006-2010 são os de Ensino e Cultura (41%), Arquitetura e Design (31%), Artes Visuais (28%), Artes Performáticas (28%) e Publicidade (28%). Quando analisamos os “empregos formais” das MPEs, ainda há a liderança da Informática em (28%)155, Ensino e Cultura (21%) e Audiovisual (15%)156. Apesar da média de remuneração da cidade do Rio de Janeiro ser a maior (R$2000)157, do que nas outras regiões do Estado, os trabalhadores ganham abaixo do 1,5 SM. Os piores lugares são o Noroeste Fluminense, Baixada Fluminense, Centro Sul, Médio Paraíba e Serrana I, onde a remuneração é abaixo dos R$1000. O relatório apesar de falar em “emprego formal” não explicita quais são as condições destes empregos. Lembremos que as MEPs criativas realizam serviços temporários para as grandes empresas, ou seja, trabalham com demanda, portanto há a influência junto a contratação destes trabalhadores, em sua maioria precariados. A informalidade é bastante presente, porém, não há um aprofundamento de sua caracterização, conforme o próprio relatório assume. Porém, é interessante que ele reconhece a concepção de “empreendedorismo” mesmo diante da precariedade destes trabalhadores: 153

O setor de “Pesquisa e Desenvolvimento” corresponde a 1% dos setores criativo e obteve um crescimento de apenas 5% entre 2006-2010. A situação do setor de “Patrimônio” é pior, corresponde a menos de 1% e ainda obteve um retrocesso de 8% no período abordado. Segundo o relatório “a redução neste setor se deve ao menor número de estabelecimento das atividades de jardins botânicos, zoológicos, parques nacionais, reservas ecológicas e áreas de proteção ambiental entre 2006 e 2010, de um total de 72 para 63 estabelecimentos” (p. 46). 154 O relatório não utiliza o termo “trabalho informal”, mas sim, “ocupação”. Estes dados se referem genericamente ao trabalho formal e informal. 155 12% a menos. 156 Por região: “A Informática é o subsetor que mais emprega na Economia Criativa, especialmente, na cidade do Rio de Janeiro (30%) e nas regiões Serrana II (26%), Serrana I (34%), Leste Fluminense (31%), Baixada Litorânea (31%) e Noroeste (25%). Já os micro e pequenos estabelecimentos do Ensino e Cultura ocupam a maior parte dos trabalhadores formais nas regiões da Baixada Fluminense (36%), Médio Paraíba (25%), Norte (40%) e uma boa parcela também na região do Leste Fluminense (30%). Por fim, as micro e pequenas empresas do subsetor do Audiovisual ocupam a maior parcela nas regiões Centro Sul (39%) e é bastante representativa em termos de ocupação nas regiões do Médio Paraíba (24%) e Noroeste (23%)” (p. 48). 157 O que provoca distorções na média total como vimos.

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“verifica-se que o empreendedorismo – formal e informal – na Economia Criativa tem uma participação maior do que na média dos setores.” (p. 58). Isso fica evidente, pois afinal “os trabalhadores por conta própria e os empregadores representam 27% dos ocupados na Economia Criativa, percentual acima da média do ERJ para o total de ocupados (22%)” (p. 57). Isso nos sugere que é perceptível a ampliação do chamado setor criativo no Estado do Rio de Janeiro, principalmente após a fundação do Programa Rio Criativo. Este programa tem um importante papel ao divulgar o conceito de Economia Criativa e atrair possíveis “empreendedores culturais”, seja conduzindo a uma formação sob essa lógica ou “incubando” MPEs em potencial. MPEs que se constroem como satélites das grandes empresas e contribuem para “terceirizar” as flexibilizações do trabalho. Como as estáticas pontuam, a EC não reconduziu a uma melhora na vida da classe trabalhadora fluminense. Apenas reproduziu a lógica contemporânea de ampliação do precariado, que vem a se engendrar como um acessório dos novos tempos da cultura enquanto mercadoria, onde o lucro e as leis do mercado sobrepujam as leis dos trabalhadores. Considerações finais Procurei expor neste trabalho as mutações ocorridas no capitalismo recente e seus desdobramentos no setor cultural. A transição do modelo de organização da produção fordista/taylorista para o toyotista se manifestou em novas considerações do mundo do trabalho, com destaque para a ampliação do trabalho imaterial nesta nova lógica. O papel desempenhado pelo trabalho imaterial é absorvido com eficácia junto a cadeia produtiva da cultura. A cultura, a propósito, que é um conceito abstruso em sua definição. Suas transformações, principalmente, a partir do século XIX, o colocam em diferentes concepções e formas de enxergar o mundo. Num movimento pendular, a cultura ora se posiciona enquanto ferramenta da classe dominante, ora da classe dominada. Um conceito disputado que recentemente vem sendo orientado à lógica de ampliação do capital, ou seja, a cultura ancorada numa abordagem mercadológica. A cultura residual, ou seja, aquela que não foi absorvida pela cultura dominante, se localiza num espectro diferenciado pelo capitalismo contemporâneo. Ao não apropriá-la sob a égide da aculturação, resta transforma-la em mercadoria cristalina, pura, pronta para o consumo. Percepção reconhecida pelos organismos multilaterais internacionais como a UNESCO, que em 2013 define em sua convenção pelo reconhecimento do “patrimônio imaterial” ou “intangível”. A 107

cultura popular precisava ser institucionalizada para atender a demanda do mercado, de produtos culturais para o consumo. O fim das teorias keynesianas e a adesão do capitalismo pelas teorias neoliberais, caracterizadas por, principalmente, defenderem o desmonte do Estado e a ampliação do setor privado, deram a tônica a partir da década de setenta. Sua fermentação na Europa e no continente americano, introduziram uma nova cartilha na relação com o setor público, sempre acompanhado da palavra “cortes”. No Brasil, devido as suas contradições internas, as teorias neoliberais só foram ser aplicadas na década de noventa. Iniciadas com o governo Collor de Melo (1990-1992) as primeiras iniciativas de desmonte do Estado se prosseguiram com os governos posteriores, com grande destaque ao “príncipe da privataria” Fernando Henrique Cardoso (1994-2003). Responsável por vender grande parte das estatais brasileiras, este governo, a exemplo, do neoliberalismo ortodoxo, entrou numa forte crise no final dos anos noventa. Manifestações contrárias a esse modelo econômico “pipocavam” em todo mundo, o que viria assustar a burguesia mundial, temerosa da agudeza da luta de classes. A saída encontrada pela classe dominante foi a condução de um modelo neoliberal que buscasse conciliar as demandas sociais, ou seja, um capitalismo humanizado. O resultado se deu com o social-liberalismo, proposta que buscava conciliar elementos do setor público e do setor privado. O teórico Anthony Giddens desenvolve a teoria da terceira via, que aprofunda essas questões e traz ao diálogo, principalmente, as iniciativas já praticadas pelo terceiro setor. A presença dos organismos multilaterais nas formulações desta nova etapa do neoliberalismo é fulcral para sua abrangência a nível mundial. Sua intervenção inicial se dá na Inglaterra de Tony Blair (1997-2007), que abarca os novos ideários e alimenta a transformação do Partido Trabalhista Inglês pondo o fim à sua radicalidade. Fenômeno que se repete do outro lado do continente com a eleição do ex-sindicalista Luis Inácio Lula da Silva em 2002 do Partido dos Trabalhadores. As alianças com setores da burguesia ainda nas eleições já indicavam a quem serviria o governo e que caminho o PT tinha se aproximado. O governo Lula em sua contradição buscou atender os amplos setores da burguesia brasileira, assim como permitir a ascensão modesta de parte da classe trabalhadora que se encontrava na situação de miserabilidade. Condição que provocou análises equivocadas deste governo, principalmente entre intelectuais das ciências humanas. Tendo como referência, principalmente, o eleitorado de Lula, permitiu que se gerassem sínteses limitadas da concepção 108

de classe trabalhadora, assim como o abandono daquilo denominado por Marx e Engels de “motor da história”: a luta de classes. Para nós, a compreensão do governo Lula sob a égide do social-liberalismo é evidente e, nesse sentido, algumas análises são fundamentais, afinal, elas reconhecem a existência de uma nova categoria de trabalhadores no Brasil, ampliada, principalmente, neste governo. Apesar de não abordarem com clareza esta categoria, nós optamos por localizá-la na condição de precariado. Compreendida no bojo das novas relações de produção oriundas da reestruturação produtiva, o conceito de precariado tem sua formulação trazida a partir das análises do economista britânico Guy Standing. Ao analisar os trabalhadores europeus, ele procura fazer uma categorização da sociedade contemporânea, transversalizando desde a elite até os trabalhadores nas condições mais precárias. Porém, Standing atribui equivocadamente a condição do precariado, enquanto uma nova classe social. A partir daí, o abandonamos e trabalhamos com a sofisticação do conceito atribuída ao sociólogo Ruy Braga. Ele define o precariado como uma categoria de trabalhadores encontrada no exército de reserva, ou seja, o contingente de trabalhadores não absorvido pelo modo de produção capitalista, a superpopulação relativa. Por fim, é importante frisar que esse precariado, conforme as estatísticas afirmam, se expande no governo Lula. Esses elementos são fundamentais para compreender a localização desse precariado na cadeia produtiva da cultura, principalmente, com a adesão do recente conceito denominado “Economia Criativa”. Antes da abordagem do conceito é importante destacar a trajetória que o levou a ser reivindicado no Brasil. Lembremos que, até 1985, o país sequer tinha um ministério exclusivamente voltado para a cultura. Apesar da criação do mesmo neste ano, seu funcionamento se restringirá a atender às demandas dos grandes empresários interessados nas leis de isenção de impostos, assim como a consolidação de um oligopólio cultural no país. Deformações criticadas pela gestão da cultura do governo Lula representadas pelos ministros Gilberto Gil (2003-2008) e Juca Ferreira (2008-2010). Gil e Ferreira assumem um discurso de desconcentrar recursos da cultura sempre canalizados para o Sudeste, além de procurar diluir esse oligopólio cultural. Para isso, afinam suas intenções junto a retórica de valorização da cultura popular e da periferia, sob a lógica do desenvolvimentismo cultural. Incorporando elementos do social-liberalismo, os ministros implementam a lógica do terceiro setor na exploração desses espaços, conforme ficou 109

evidenciado nos Pontos de Cultura. As parcerias com ONGs dão o suporte para a apropriação de iniciativas já construídas anteriormente. O apelo da naturalização da cultura enquanto mercado, em diálogo, inclusive, com a concepção de organismos multilaterais, o levam a confecção do Plano Nacional de Cultura, documento que consagra essa relação e amplia o foco de ação do MinC. O legado dos ministros se avança com a constituição da Secretaria da Economia Criativa em 2010. Conceito popularizado na Europa, a Economia Criativa (EC) contempla todas as iniciativas culturais interligadas que se direcionam a lógica de expansão da “economia da cultura”. Tendo como seu embrião a indústria criativa, a EC tem em sua ambição o aumento dessas indústrias para melhor explorar o viés mercadológico da cultura. É a partir dos anos 2000, que o conceito de EC passa a transitar nos documentos dos organismos multilaterais internacionais. Ao compreenderem o “potencial econômico” da cultura, ou seja, a possibilidade de amplia-la mercadologicamente, esses organismos abordam a “contribuição” que a EC pode fornecer para o “desenvolvimentismo” dos países periféricos do capitalismo. Os ideólogos da “Economia Criativa” no Brasil compreendem que é papel do Estado oferecer subsídios para sua expansão, porém cabe ao setor privado melhor gerir sua administração. Elementos que são incorporados pela SEC, que traz em seu discurso similitudes com aqueles abordados pelos documentos dos organismos internacionais, a começar aspecto “desenvolvimentista” reiterado pela EC, assim como uma ferramenta interessante para intervir nos espaços da cultura popular. A abordagem da cultura sob um viés direcionado ao mercado é constantemente pontuada pela EC, algo que se traduz na SEC, quando esta assume a missão de apoiar e fomentar “profissionais e micros pequenos empreendimentos criativos brasileiros” (BRASIL, 2011, p. 38). Esse fomento é transversalizado pela construção de aparelho imediatos da formação humana. A necessidade de uma instituição que moldasse a lógica do “empreendedor” é incorporada pelo SEBRAE. Diante de uma demanda dos micro e pequenos empresários, o instituto se fortalece, principalmente, a partir da segunda metade da década de noventa. A concepção de micro e pequena empresa tem ligação com as mudanças ocorridas no capitalismo contemporâneo, onde as grandes empresas “contratam” serviços terceirizados. O SEBRAE é a instituição que assume o compromisso com essa fração da burguesia, ou seja, de “capacitar e fomentar” os “potenciais” micro e pequenos empreendedores no Brasil. A partir de 2004, esta 110

instituição modifica sua prioridade de atuação e se direciona para atender os “empreendimentos culturais”. A partir de 2007, a Economia Criativa é reivindicada de forma oficial pela entidade que a molda de acordo com as demandas da alcunhada “economia da cultura” brasileira. Nesse contexto, o estado do Rio de Janeiro surge como laboratório das experimentações da Economia Criativa. O foco tomado pela cidade diante dos megaeventos conjugado com um clamor de “cidade da criatividade” desembocam na institucionalização da EC, através do Programa Rio Criativo através do decreto no 44.159/2013 no governo Sérgio Cabral (2007-2014). Iniciativa que buscaria contribuir na formação de “empreendedores criativos”, principalmente, na metrópole. Sua divisão principal em incubadora, direcionada a “empreendimentos” já consolidados, e “formação” itinerante refletiu na proposição de fortalecer a Economia Criativa no Estado. Porém, as recentes experiências junto as indústrias criativas no Estado, só vierem corroborar a verdadeira concepção do Programa que, conjugado com as transformações recentes do capitalismo, se desdobrava numa ampliação considerável do precariado, agora no campo do setor cultura. Diante dessas questões torna-se fundamental incidir com maior intensidade junto as questões de transformação da cadeia produtiva cultural no social-liberalismo. A Economia Criativa é a institucionalização da cultura enquanto mercado. Sintoma que se amplia na gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira, onde os programas federais para a área da cultura deixam de ser restritos a uma lógica oligopolista e elitista e transitam para uma ordem de incorporação da cultura popular e das iniciativas culturais periféricas. O norte é a transformação destas em áreas para a exploração do trabalho imaterial e modificação das mesmas em potenciais mercadológicos seguindo a lógica do capital social. Essa estruturação é perceptível na fundação do “Favela Criativa”, programa criado recentemente em algumas comunidades pacificadas do Rio de Janeiro. Diante da criação recente do programa, não podemos abordá-lo com maior intensidade neste trabalho, algo que pode ser trabalho em outro projeto. Assim como a reinvindicação constante da classe dominante em atribuir a caracterização do Rio de Janeiro enquanto espaço privilegiado de criatividade, acompanhado de proposições claras em transforma-lo numa “cidade criativa”, conforme a revitalização

do

porto

denuncia,

fenômeno

localizado

no

bojo

do

denominado

“neodesenvolvimentismo”.

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O papel desempenhado pelo SEBRAE na “capacitação” destes “empreendedores criativos” é outro tópico que merece destaque. A importância que esta instituição vem ganhando desde os anos 1990 é evidente. Aspecto relacionado, logicamente, com a ampliação das MPEs. Desde então, o órgão vem se metamormoseando sob diferentes esferas, em diferentes períodos. Recentemente, o SEBRAE tem tratado, principalmente, das questões sob a égide da cultura, com destaque a Economia Criativa. Período, também, que delineia uma maior aproximação com o Ministério da Cultura. Aspectos interessantes que devem ser melhor explorados num próximo trabalho. Uma outra questão em aberto é o papel os organismos multilaterais adotaram em relação a “economia da cultura”. Apresentei brevemente algumas destas contribuições, porém por não determinar o foco do trabalho não as enraizei. Algo que pretendo em um outro momento devido a quantidade riquíssima de material não só sobre a referência a cultura como “potencial econômico desenvolvimentista”, mas, principalmente, a Economia Criativa como importante elemento nessa nova perspectiva. Discurso esse que está sendo adotado por toda a América Latina, com alguns países, onde se inclui o Brasil, que já tem um avanço considerável na adoção de plataformas públicas para a EC. Acredito também ser fundamental dar um maior enfoque no Programa Rio Criativo. Embora tenha dissertado quanto a sua construção, engenharia interna e formas de atuação, é perceptível o quanto o programa se encontra de forma embrionária, com diferentes forças em conflito. Apesar de não ter aprofundado, percebi que há setores distintos no que compete a capacitação dos “empreendedores criativos”. Há uma parte de ordem mais tecnicista, representada pelo SEBRAE, e outra mais dialogável com a proposta do terceiro setor e do ethos da cultura popular representado pelo “Raízes da Tradição”. Ainda que atuem conjuntamente, é visível as constradições desta relação. Para finalizar, faço um balanço da necessidade de compreensão das recentes políticas públicas no âmbito da cultura e seus principais autores. A transformação da cultura em mercadoria tem adulterado as relações produtivas nesta área, em especial, e provocado a interferência de novos conceitos como a Economia Criativa. A busca em legitimar a expansão da cultura nesta nova condição, provocou a institucionalização da mesma, no caso do Brasil, coincidiu com a “virada” do MinC no período que o governo Lula assume e adota o social-

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liberalismo como política. Procuro apresentar no trabalho tal perspectiva sem descuidar, logicamente, de reconhecer os reflexos deste novo momento no mundo trabalho.

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Anexos Gráfico 1 Brasil: evolução da taxa de rotatividade dos trabalhadores nas empresas formais por faixa de salário mínimo real (em %) 85,3

90 80 70

57,5

60

60

58,9 49,4

50 40 30 20

16,7

10 0 Até 0,5 SM

0,51 a 1,0 SM Anos 90

1,01 a 1,5 SM Anos 2000

Fonte: Pochmann, p. 94, 2012

Gráfico 2 Brasil: evolução da taxa de rotatividade dos trabalhadores nas empresas formais por faixa etária (em %) 80

71,44 65,68

70

58,9

60 50

49,16

49,22 39,73

40 30 20 10 0 Até 17 anos

18 a 24 anos

25 a 29 anos

Anos 90

Anos 2000

Fonte: idem

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