Para uma definição de ciberformance. Actas, Avanca/Cinema 2012: Conferência Internacional de Cinema - Arte, Tecnologia, Comunicação. Julho 2012. pp.309-314.

Share Embed


Descrição do Produto

Para uma definição de ciberformance Clara Gomes Universidade Nova de Lisboa Abstract Defining cyberformance as a rising kind of performance and as the future of digital performance is the object of this paper. Cyberformance is developed through the internet using digital technologies, like the computer, a more narrow category than digital performance, that is defined for taking place through digital means. Cyberformance happens live, in cyberspace – be it in a chat room or a MUVE (Multi User Virtual Environment) – its performers and audience are distributed physically, sometimes around the globe, creating telepresence or virtual presence. It is risky, deals with post-modern subjects and is liminal in its experimentation. It uses different sources and is mainly digital and dependent on the computer and tends to never be finished and, so, to be an Open Work in Humberto Eco’s sense. Some examples of cyberformance will be evoked, notably the ones by the author of the term cyberformance, Helen Varley Jamieson as well as Isabel Valverde’s Senses Places, a project using Second Live, with which the presenter of this paper has been collaborating. We will give examples from textual cyberformance to performance using wearables and game consoles (like Nintendo Wii, PS3 Move or Microsoft Kinect) and show some examples of video-art using real image and performance captured in a virtual world as well establish a connection between cyberformance and machinima (machine cinema) and its implications.

Keywords: Cyberformance, Digital performance, Virtual Universes, Second Life, Multi User Virtual Environment Introdução O objectivo desta comunicação é definir a ciberformance como um tipo de performance emergente e como o futuro da performance digital. Ciberformance é a performance que se desenvolve através de tecnologias digitais utilizando a internet, muitas vezes em mundos virtuais. Será uma categoria mais estreita que a performance digital que é toda a performance que utiliza meios digitais, como o computador ou sistemas computadorizados, para acontecer. A ciberformance acontece ao vivo, no ciberespaço – seja num chat ou num MUVE (Multi User Virtual Environment), os seus performers e audiência estão distríbuidos fisicamente, por vezes em vários países, criando telepresença ou presença virtual. É arriscada, lida com temas pós-modernos e é liminar na sua experimentação. Usa diferentes fontes, é sobretudo digital e dependente do computador. Tende a nunca estar acabada e, portanto, a ser uma obra aberta como a definiu Humberto Eco. Alguns exemplos de performance serão evocados, nomeadamente as de Helen Varley Jamieson – a autora do termo ciberformance – e as de Isabel Valverde, utilizando o mundo virtual Second Life, em que a investigadora tem colaborado. Daremos exemplos de ciberformance textual a performance utilizando consolas de jogos (like Nintendo Wii, PS3 Move or Microsoft Kinect) e wearables – sensores vestíveis – e de video arte que utiliza ciberfromance capturada no metaverso e imagem real para estabelecer uma ligação entre a ciberformance e o machinima, o machine cinema ou cinema realizado em mundos virtuais.

Um híbrido de teatro e performance O termo ciberfromance foi cunhado por Helen Varley Jamieson. Esta performer, com experiência em teatro, net art, desenvolvimento de software e performance digital sentiu a necessidade de destrinçar teatro e performance, dois termos que, sobretudo em inglês, podem gerar confusão. Esta questão é secundária para a nossa investigação uma vez que em português teatro e performance não se confundem ao contrário do inglês em que as performing arts envolvem a dança, o teatro e todas as formas de palco. Se bem que não seja o objecto deste estudo, será no entanto produtivo destinguir teatro e performance – na medida do possível e no sentido de tentar definir esta última. A resistência da performance a uma camisa de forças linguística não nos causa, no fundo, muitos problemas visto que essa hibridez coincide com as próprias características da ciberformance. Na realidade, e apesar destes esforços de delimitação de sentido, usaremos, como já usámos, exemplos que vêm do teatro e da dança uma vez que o que nos interessa nesta análise da performance que se desenrola em mundos virtuais é, não o seu conteúdo, mas as condições da sua produção e desenvolvimento. Reaves argumenta que o teatro é uma arte inclusiva que engloba a dança, a música e a pintura pelo que sugere reclamar toda a arte interactiva como teatro. «Porque não ser agressivo no túmulto da Revolução Digital? Porque não reclamar toda a arte interativa em nome do teatro?» (Reaves, 1995, citado por Jamieson, 2008:17). Esta ideia mostra como o teatro sempre teve uma natureza fluída. Daí que nos campos do teatro, performance e estudos culturais, diferentes académicos tenham optado por termos díspares e por vezes contraditórios. Peter Brook disse que a verdade no teatro está sempre em movimento (1972:157) Mas se o teatro resiste a uma definição, que dizer da performance? «Pela sua própria natureza a performance desafia uma definição precisa ou fácil», nota RoseLee Goldberg (2001:9). Esta resistência à definição é encontrada também em conceitos opostos como o ao vivo e o mediatizado (Auslander, 1999); a presença e a ausência; o real e o virtual (Lévy, 1998; Deleuze e Guatari, 2008; Idhe, 2002). Até a presença AVANCA | CINEMA 2012

294

do corpo de carne e osso na performance ao vivo está aberta a debate (Hayles, 1999; Smith e Stelarc, 2005; Catts e Zurr, 2011). Conceitos estes essenciais para a definição de ciberformance. Até aos anos 70, no mundo anglo-saxónico, todo o teatro envolvia performance e quando esta surgiu como um género distinto, o teatro era provavelmente o denominador comum contra o qual a nova arte poderia ser definida. Durante a segunda metade do século XX o termo performance ganhou peso, tanto a nível da semiótica do teatro como da cultura contemporânea. Nas artes apareceu como performing art, performance art, performance studies e apenas como performance. Para Steve Dixon é um termo que foi esticado e reconfigurado (Dixon, 2007:x) que pode ser aplicado a jogos e desportos, concertos de rock, sucesso em qualquer área - da académica, à profissional à tecnologia - e à simples performance de rituais diários. Teatro por outro lado implica uma separação da vida quotidiana (Schechner, 2003:13-14) e uma relação performer/ espectador. Carlson afirma que «a própria presença de um público vendo uma acção, por muito neutra ou não matrizada, e apresentada em qualquer espaço não convencional, inevitavelmente evoca associações com o teatro» (1996:114). Na diferenciação entre performance e teatro foram identificados elementos chave como comportamento restaurado (Schechner, 2002), a rejeição de um texto pré-existente (George, 1996) e a rejeição do personagem (Goldberg, 2001). Aliás esta autora, na tradição americana, reclama a performance como um ramo das artes visuais por oposição à tradição inglesa que deriva a live art do teatro (Kaye, 1994:88). Para RoseLee Goldberg, performance é «live art by artists» e surge como um meio pelo qual os artistas visuais se libertaram das estruturas e dos meios tradicionais (2001:9). Esta autora cita a ausência de personagem, de enredo narrativo e a presença do artista enquanto performer como elementos chave para distinguir a performance do teatro. Contudo, embora todas estas características se possam aplicar a algumas performances – mas não a todas – também se podem aplicar ao teatro. Basta ver algumas peças de Beckett, como, por exemplo, Breath (1969) peça sem personagens, ou o muito conhecido exemplo de Peter Brook, de um homem a atravessar um palco como um acto dramático (1972:11). Narrativas não verbais podem sempre ser construídas, se assim o quisermos, e um artista visual quando performa está inevitavelmente a sair do seu papel quotidiano, mesmo que não esteja a criar um personagem específico. Alguns autores advogam que a diferença entre teatro e performance é uma questão de estética, de conteúdo ou de atitude, tendo a performance um desejo de transgressão como sua força motivacional (Herbert 1994:11). O que na realidade, não nos adianta, uma vez que esse desejo se pode também encontrar no teatro. Na teoria da recepção encontramos algumas tentativas de definição que consideramos produtivas. Robin Nelson propõe como acontecimento teatral «o testemunho colectivo num determinado espaço, a um determinado tempo, de uma sequência mais ou menos intencionalmente construída por coisas que acontecem através do tempo» (2004:304). Esta ideia do aqui e agora - ou pelo menos da simultaneidade em relação ao tempo não estando literalmente no mesmo espaço físico - ou seja, a ideia de uma experiência que é partilhada pelo performer e pelo espectador em tempo real, é ontológica - tanto ao teatro como à performance. Podemos observar derivações dessa relação na definição de teatro virtual, se bem que com interpretações diversas. Dan Zellner imaginou um teatro virtual que consiste num único membro da audiência pondo um capacete e experimentando uma apresentação virtual (1999:27), removendo uma relação em tempo real entre performer e audiência e, portanto, todo o sentido de testemunho colectivo. Por outro lado, Gabriella Giannachi em Virtual Theatres: an Introduction afirma que o teatro virtual se constroi através da interacção entre o espectador e a peça de arte, o que permite ao espectador estar presente tanto no ambiente real como no virtual (2004, p.19). A autora sublinha assim a relação espectador/obra de arte obliterando o artista. Ambos os autores, Zellner e Giannachi, diminuem a importância da relação performer/espectador em tempo real. A ideia do outro – essencial, segundo nos parece, para a definição de ciberformance e para a nossa investigação – desapareceria da equação. Obliterada a relação artista/audiência falaríamos então do teatro ou performance virtual enquanto potêncial? Talvez, mas mais uma vez não é essa a acessão – muito debatida na filosofia1 que nos interessa neste trabalho. Aqui, tomamos o virtual como o real que se actualiza através do outro, da audiência (Jamieson, 2008:21-22).

Híbrida, liminar, intermédia Uma outra característica da performance está bem patente no termo live art de origem britânica e teatral. Esta é tanto uma atitude como uma prática performativa, recusa-se a ser classificada através da descrição ou prescrição e é híbrida funcionando entre formas e esquemas reconhecíveis (Kaye, 1994:87). Susan Broadhurst prefere usar o liminar (termo que adoptou de Turner, 1982) para falar da performance que se encontra na fronteira do que é possível (1999:12). «As características estéticas quintenessenciais do liminar parecem ser a hibridização, a indeterminância, uma falta de aura e o colapso da distinção hierárquica entre cultura erúdita e popular» (Broadhurst, 1999:1). Janet Murray usou o mesmo termo em relação aos computadores enquanto objectos liminares localizados na fronteira entre a realidade externa e as nossas mentes (1997:99). Numa migração semelhante o termo intermédia (intermedial) aplicado primeiramente ao computador surge no teatro como um «ponto de encontro entre os performers, os observadores e a confluência de meios envolvidos AVANCA | CINEMA 2012

295

na performance num particular momento no tempo… um espaço onde as fronteiras se dissolvem» (Chapple e Kattenbelt, 2006:16). É nestes espaços liminares e intermédia que surgem novos géneros híbridos como a ciberformance. É, pois, partindo deste paradigma híbrido que se desenvolve a nossa abordagem ao tema da performance em mundos virtuais. Esta performance híbrida inclui, assim, todo o trabalho ao vivo em que uma acção é performada com uma intenção, para além da vida quotidiana e testemunhada por um espectador. Ou seja, a performance que nos interessa aqui abordar é aquela em que a experiência é activada e partilhada em tempo real por uma audiência que pode estar presente física e/ou virtualmente (Jamieson, 2008:23).

Performance versus tecnologia Mathew Causey em Theatre and Performance in Digital Culture reclama uma teoria expandida sobre a performance que consiga reflectir sobre as questões dos media digitais, da realidade virtual, e da ciber-performance e teatro (2006:51). Uma consequência do impacto da revolução digital operada a partir dos anos 80 no teatro, na dança e na performance e que levou ao surgimento de uma produção intelectual sobre o assunto (McLuhan, 2001; Lévy, 1998; Turkle, 1995; Birringer, 1998; Bruns, 2008, entre muitos outros). Steve Dixon relembra que o teatro sempre se apropriou das novas tecnologias e defende que o teatro digital pode ser visto como o teatro que incorporou as tecnologias digitais (2007:40). Para além do surgimento da performance digital e da sua expansão para a internet e mundos virtuais cumpre-nos salientar duas características desta relação: o facto de ser em rede e de acontecer no que podemos chamar de hipersuperfície.

Em rede Todo e qualquer evento que existe em rede através de computadores pode ser considerado como networked performance, uma performance em rede – o que inclui os espectáculos telemáticos que tanto na moda estiveram no final do século passado (o New Spectacle dos anos 90, por exemplo). Em 2004, Joanne Green, Helen Thorington e Michele Reil definiam assim networked performance: «todo o evento ao vivo que é em rede» incluindo «qualquer forma de ligação à rede em que dispositivos informáticos falam uns com os outros» e criam «uma sequência de retornos» qualificando performance em rede como sendo ao vivo ou «experimentada no momento da criação ou recepção» (citadas por Jamieson, 2008:27). A performance em rede pode também ser vista como uma subsidiária da net.art2 ou como existindo para além dela, por exemplo em trabalhos conectados por LAN (Local Area Network) ou telemóvel, sucessores da fax, mail e phone art. No Networked Performance Blog3 podemos ver como o termo se tornou generalista perdendo o sentido. Daí que ciberformance não possa ser definida apenas como performance em rede. É interessante ver a oposição entre o conceito de que a performance em rede é «experimentada no momento da criação ou recepção» e o já referido «teatro virtual» de Giannachi onde o artista não tem de estar necessariamente presente. No entanto, mesmo para esta autora, a performance é criada na altura da sua experimentação pelo espectador – não existindo a obra independentemente deste. Como Helen Varley Jamieson salienta, Giannachi - à semelhança de outros como Hayles, Turkle, Stone, Boellstorff ou Bruns – centra-se nas questões relativas a aspectos sociais, ao jogo e aos papeís de ambientes como os MUD, MOOs ou mundos virtuais. Jamieson criticalhes o esquecimento de experiências de performance textuais como os Hamnet Players e os Plaintext Players (2008:28). A esta autora e performer não lhe interessam as experiências em redes sociais ou em ambientes de jogo uma vez que não foram criadas com a intenção de serem apresentadas a uma audiência. Jamieson concentra-se na performance textual e gráfica low tech e de fácil acesso. Para nós, porém, e uma vez que visamos ampliar o conceito original de ciberformance de Jamieson, interessamnos experiências performativas em qualquer mundo virtual incluindo o Second Life ou o World of Warcraft. Não nos esqueçamos, porém, de que, para além da interacção social ou do jogo, o que é relevante para uma definição que aqui ensaiamos é a networked performance, a performance em mundos virtuais criada para ser apresentada a um público.

Hipersuperfície, produtilizador e democratização do digital Giannachi introduz um outro conceito que nos pode ser útil, o de hipersurface, hipersuperfície, que será «onde o real e o virtual se encontram… um espaço liminar onde o espectador pode dobrar a sua presença e estar em ambos os ambientes, real e virtual, simultâneamente» (2004:94). Para a autora «As hipersuperfícies são lugares de troca, fugazes estratos intertextuais nos quais opostos dialéticos interagem e se contaminam continuamente» (2004:99). A autora dá exemplos de arquitectura líquida, arte telemática, agentes inteligentes, e ambientes de realidade virtual. O próprio ecrã do computador pode ser considerado uma hipersuperfície se nos desviarmos da tendência para considerar que a arte digital tem que ser dispendiosa e acessível só a alguns, como a encara Causey através do seu conceito de ciberteatro que, segundo diz, devido aos seus elevados custos de produção conseguirá atrair apenas os produtores de entretenimento de massas ligados ao desporto, aos parques temáticos ao cinema e à televisão (2006:49). Por oposição às grandes produções, as tecnologias orientadas para o utilizador como o telefone móvel, o vídeo AVANCA | CINEMA 2012

296

digital, as câmaras fotográficas, Ipods, PCs e Internet permitem a criação de conteúdos pelos próprios utilizadores no conceito do produser4, o produtilizador definido por Axel Bruns (2008) que leva a uma inevitável democratização da arte. A ciberformance está intrinsecamente ligada a esse conceito enquanto arte low tech se bem que com variantes no seu custo, dependendo no tipo de interfaces utilizados.

Cibernética Do computador – mas também da literatura – vem o prefixo do termo ciberformance. A cibernética onde vamos buscar o início de ciberformance é um termo cunhado há 150 anos por André-Marie Ampére para significar a ciência do governo e foi reapropriado em 1948 por Norbert Wiener como «o estudo do controle e comunicação no animal e na máquina». A noção de colaboração entre homem e máquina é integrada na arte mediada pela tecnologia (Jamieson, 2008: 33). A cibernética integrou também o termo cyberspace utilizado pela primeira vez por William Gibson em Neuromance (1984), hoje em dia utilizado para descrever a rede de informação digitalizada. O tipo de performance que abordamos nesta pesquisa acontece no ciberespaço, dai que Jamieson tenha optado por combinar cibernética e ciberespaço com performance gerando ciberformance termo que vem usando desde o ano de 2000 a propósito das suas criações e que consideramos de grande operatividade para definir a performance desenvolvida ao vivo através da internet e sobretudo em mundos virtuais.

Da performance textual para interfaces mais evoluidos As primeiras ciberformances, como já referimos, era sobretudo textuais e aconteciam em chats, passando depois para mundos virtuais gráficos, utilizando avatares a duas dimensões – fotos ou desenhos – e webcams, como os trabalhos de Avatar Body Collison que se vieram a desenvolver em festivais como o conhecido UpStage criado por Helen Varley Jamieson. Em mundos virtuais como o Second Life a ciberformance tem lugar em festivais como Odyssey ou InterAct.

Figura 1: Me Myself and I, 2010, ciberformance de Clara Games.

As potencialidades de plataformas como o Second Life começam entretanto a ser exploradas em projectos mais ambiciosos. É o que acontece em Weathering in/Con tempo e Senses Places – dois projectos concebidos por Isabel Valverde, coreógrafa, e por Todd Cockrane, engenheiro informático. Trata-se de um projecto de dance-tech – dança-tecnologia – que questiona a redução da nossa inteligência corporal, criando um ambiente híbrido e corporalizado onde os participantes interagem física e virtualmente uns com os outros e com o ambiente em si que está ligado a sensores metereológicos em Portugal e na Nova Zelândia. Sensores wearables – «vestidos» pelos participantes permitem ainda a utilização de dados biométricos na interacção entre avatares e ambiente virtual5. Nas sociedades de consumo actuais perdemos corporalidade (embodiment) em favor de um aumento da comunicação e do conhecimento. A tecnologia muda rapidamente mas continuamos ainda agarrados ao audiovisual, ao computador como uma boxed interface, uma «interface encaixotada», ao movimento minimal mão-olho (Valverde, 2010). É o que acontece quando interagimos no Second Life, por exemplo. É, pois, necessário criar experiências mais hápticas, mais out of the box (fora da caixa), onde exista uma virtualidade aumentada, como prenunciam projectos como Senses Places. No seu próprio projecto Me Myself and I a investigadora tenta explorar as possibilidades destes mundos virtuais e da ligação entre ciberformance e machinima, ou seja, entre a performance exectuada e captada no Second Life segundo as regras do machine cinema (o cinema feito em mundos virtuais com avatares) e a imagem real, resultando numa obra de video arte ou ciber-video arte. A performance foi desenvolvida nas coordenadas em «La Dama» no Second Life, no dia 22 de Julho de 2010, às 21 horas GMT. Durante a apresentação foi capturado um plano geral e mais tarde foram capturadas algumas imagens de outros ângulos para enriquecer a vídeo-performance. As imagens do corpo da investigadora, real, foram gravados à posteriori e reproduzem os gestos/movimentos do avatar suscitando uma dúvidas: AVANCA | CINEMA 2012

297

«Sou eu que o imito o avatar ou ele que me imita a mim?» Somos talvez parte integrante de um mesmo Eu, permitindo-me este aparente desdobramento de identidade uma ampliação do meu corpo e a afirmação da minha qualidade pós-humana, ou melhor, virtualmente humana. «Avatars have no organs», diz Stelarc num dos vídeos da sua Cabeça Prostética, frase que ecoa em Me Myself and I. Lux Nix não envelhece, não lhe doem as articulações quando se move, é uma projecção do meu Eu ideal, uma forma de me desenvolver num outro universo, comunicando. Lux Nix está para além de mim. Porém Lux Nix não existe sem mim» (memória descritiva da peça de ciber-video-arte Me Myself and I, 2010).

Me Myself and I é um exemplo de ciberformance tanto a nivel formal como de conteúdo.

Conclusão Podemos concluir então que: a) A ciberformance acontece ao vivo – há uma interacção entre os performers e o público e qualquer documentação produzida como resultado (fotos, vídeo) não deve ser tomada como o trabalho em si. b) Este tipo de obra tem necessariamente de estar situada no ciberespaço – utilizando para o efeito chat rooms (IRC, Internet Relay Chat), ambientes como MUVE (Multi User Virtual Environment) jogos de computador como MUDs (Multi User Dungeon ou Domain), MMOG (Massively Multiplayer Online Game) ou MMORPG (Massively Multiplayer Online Role Playing Game), chats gráficos, como Athemoo ou Lambdamoo, mundos virtuais usados em tempo real por vários utilizadores, como The Palace ou Second Life ou ainda plataformas criadas para o efeito, como, por exemplo, UpStage ou Odyssey dedicados à performance virtual. c) Uma outra característica da ciberformance é que é distribuída e partilhada – os seus performers e o público estão distribuídos fisicamente e a experiência da performance é partilhada e activada em tempo real. d) Uma vez que está dependente da ligação à internet, é também telemática, ou seja há convergência de redes de telecomunicações com computadores (Ascot, 2005) mas não se trata de vídeo conferência ou de distribuição de vídeos ou gravações. Na sua construção, os performers geram telepresença no sentido usado pelo artista e investigador Eduardo Kác (2005) ou pela International Society for Presence Research ou, mais concretamente, presença virtual, mais, ou menos, imersiva. e) A ciberformance é também um tipo de atitude: como o seu medium é instável, é arriscada, ultrapassa fronteiras e é experimental, tanto na forma como no conteúdo. Lida com assuntos contemporâneos, incorporando a tecnologia no conteúdo e representando as contradições e idiossincrasias do mundo pós-moderno. f) A justaposição, contraste e a frustração de expectativas transforma a ciberformance numa performance liminar (Broadhurst, 1999), reminiscente do avant-garde, ou seja, as suas regras formais são descartadas, desconstruídas, numa abertura à experimentação e inovação. e) A ciberformance utiliza diversas fontes, tanto a nível da tecnologia, como da forma ou do conteúdo, o que lhe confere também uma característica intermedial (Chapple e Kattlenbelt, 2006) e híbrida (Kaye, 1996). f) O que também caracteriza a ciberformance é o facto de ser inacabada, incompleta, a verdadeira Obra Aberta de Umberto Eco (1989). A obra não existe até ser apresentada a uma audiência, ou seja só existe na interactividade. g) A ciberformance é performance digital, está dependente da tecnologia digital e não pode acontecer sem a utilização do computador (Dixon, 2007). E, notemos, uma rápida utilização das teclas do computador, porque o trabalho de manipulação dos avatares e dos ambientes exige perícia manual. A ciberformance e tão digital que poderíamos dizer «break a digit», parte o dedo, em vez do tradicional «break a leg» (parte uma perna), expressão anglo-saxónica usada para desejar boa sorte aos actores no teatro (Jamieson, 2008: 40). h) O facto da ciberformance estar dependente da tecnologia digital não implica uma utilização reduzida ao binómio mão-olho, uma vez que, com certos interfaces, se podem usar outras partes do corpo ou todo o corpo, por exemplo através de motion capture, usando uma simples webcam, a consola de alguns jogos ou wearables, roupas vestíveis. É esse o caso de Senses Places de Isabel Valverde e Todd Cochrane. Steve Dixon, no seu livro Digital Performance (2007), afirma que o final dos anos 90 foi a idade de ouro deste tipo de arte precisamente devido ao avanço das tecnologias digitais e da internet nessa altura. No entanto, não podemos dizer que seja uma arte em decadência, uma vez que o desenvolvimento das interfaces e das possibilidades técnicas do virtual nos abrem novas perspectivas de uma ciberformance cada vez mais interactiva, participada e imersiva.

Bibliografia ASCOTT, Roy (2005). Distance makes the art grow further: distributed authorship and telematic textuality in La Plissure du Text. In A. C. a. N. Neumark (Ed.), At A Distance (pp.282-): MIT Press. ISBN-13: 978-0262532853 AUSLANDER, Philip (1999). Liveness : performance in a mediatized culture. London; New York:Routledge. ISBN-13: 9780415773539 BIRRINGER, Johannes (1998) Media and Performance: along the border Baltimore: Johns Hopkins UP, ISBN-13: 9780801858529 BROADHURST, Susan (1999). Liminal acts : a critical overview of contemporary performance and theory. London; New York: Cassell. ISBN-13: 978-0304705863 BROOK, Peter (1972). The empty space. Harmondsworth: Penguin. Bruns, A. (2008). Blogs, Wikipedia, Second Life, and beyond : from production to produsage. New York: Peter Lang. ISBN-13: 978-0684829579 AVANCA | CINEMA 2012

298

CARLSON, Marvin A. (1996). Performance : a critical introduction. London ; New York: Routledge. ISBN: 0415137039 CATTS, Oron e ZURR, Ionat (2011). «The Tissue Culture and Art Project: The Semi-Living as Agents of Irony» in Perfromance and Technology: Practices of Virtual Embodiment and Interactivity, Broadhurst e Machon ed. Palgrave Macmillan, New York, 153-168 pp. ISBN-13: 978-0230293656 CHAPPLE, Freda, & KATTENBELT, Chiel. (2006). Intermediality in theatre and performance (2nd ed.). Amsterdam: Rodopi. ISBN:90-420-1629-9 CAUSEY, Matthew. (2006). Theatre and performance in digital culture : from simulation to embeddedness. London: Routledge. ISBN-13: 978-0415368407 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix (2008), Mil Planaltos, Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio & Alvim, Lisboa. ISBN: 978972-37-1272-8 DIXON, Steve, (2007) Digital performance: a history of new media in theatre, dance, performance art, and instalation, MIT Press, Cambridge, ISBN-13: 978-0262042352 ECO, Umberto (1989). The open work. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. ISBN-13: 978-0674639768 GEORGE, David E. R. (1996). Performance epistemology. Performance Research, 1996, Volume I, Nº.I April, ISSN:1469-9990, 16-25 pp. GIANNACHI, G. (2004). Virtual theatres. London; New York: Routledge. ISBN: 0415283795 GIBSON, William, (1984) Neuromancer, London: Victor Gollancz Ldt. ISBN-13: 978-0-00-648041-9 GOLDBERG, RoseLee, (2001) Performance Art – From Futurism to the Present, Thames and Hudson, London, ISBN-13: 9780500203392 HAYLES, N. Katherine (1999). How we became posthuman : virtual bodies in cybernetics, literature and informatics. Chicago, Ill.: University of Chicago Press. ISBN-13: 978-0226321462 HERBERT, S. (1994). «Bread and circuses». Art & Design Profile, 38, ISBN9781854902221, 6-35pp. IDHE, Don (2002), Bodies in Technology, Minneapolis, University of Minesotta Press, ISBN-13: 9780816638468 JAMIESON, Helen Varley (2008) Adventures in Cyberformance - Experiments at the interface of theatre and the internet, master thesis, Drama, Creative Industries Faculty, Queensland Universty of Technology, Deciembre 2008. KÁC, Eduardo (2005). Telepresence and bio art : networking humans, rabbits and robots. Ann Arbor, MI.: University of Michigan Press. ISBN-13: 978-0472068104 KAYE, N. (1994). «British live art». Art & design profile, 38, ISBN978185490222187-91pp. LÉVY, Pierre (1998), Becoming Virtual – Reality in the digital age, Plenum trade, New York and London. ISBN-13: 978-0306457883 MCLUHAN, Marshal (2001). Understanding media : the extensions of man. London: Routledge. ISBN-13: 978-0262631594 MURRAY, Janet (1997). Hamlet on the Holodeck. New York: Free Press. ISBN-13: 978-0262631877 NELSON, Robin (2004). «Live or wired? : technologizing the event» in International Federation for Theatre Research/Theatrical Event Working Group(Eds.), Theatrical event : borders, dynamics, frames, , Amsterdam; New York: Rodopi. ISBN-13: 9789042010680, 303-316pp. SCHECHNER, Richard (2003). Performance theory (Rev and expanded [ie. 2nd] ed.). London; New York: Routledge. ISBN-13: 978-0415314558 SMITH, Marquard e STELARC (2005) «Animating Bodies, Mobilizing Technologies - Stelarc in Conversation», in Stelarc: the Monograph, MIT Press, Cambridge Mass. ISBN-13: 978-0262195188, 215-241pp. TURKLE, Sherry (1997). Life on the screen : identity in the age of the Internet. London: Phoenix. ISBN-13: 978-0684833484 TURNER, Victor (1982). From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: Performing Arts Journal Publications. ISBN-13: 978-0933826175 VALVERDE, Isabel (2010), Interfaces-Dança-Tecnologia: um quadro teórico para a performance no domínio digital, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lisboa. ISBN: 978-972-31-1304-4 ZELLNER, Dan (1999). Definitions and directions of the theatre. In S. A. Schrum (Ed.), Theatre in cyberspace: issues of teaching, acting and directing. New York: P. Lang. ISBN-13: 978-0820441405, 19-29 pp.

Webgrafia GREEN, J.-A., THORINGTON, H., & RIEL, M. Networked performance blog. http://www.turbulence.org/blog/index.html consultado em 08/07/2008 Produsage: http://produsage.org/node/9 consultado em 22/03/12 Reaves, John (1995). «Theory and practice: the Gertrude Stein Repertory Theatre». CyberStage,1(3) in http://www.cyberstage. org/archive/cstage13/gsrt13.html consultado em 07/08/2010

Notas finais 1

Tanto Gilles Deleuze em Différence et Répétition (1968) como Piérre Lévy em Becoming Virtual (1998) são exemplos de autores que abordam essa acessão do virtual enquanto potêncial. 2 «O termo net.art foi cunhado em 1995 por um grupo específico de artistas para descrever os seus próprios projectos; contudo, net.art (ou net art ou net-art ou netart…) acabou por ser aceite como incluindo qualquer prática artística que tem lugar na ou através da internet. Existe um imenso corpo de trabalho interdisciplinar sob o manto da net art e a performance ao vivo online é parte desta família. Ínclui trabalho que se enquadra em algumas ou em todas as seguintes categorias: online, interactivo, visual, sónico, software art, code poetry, hipertexto, instalação e performance (Jamieson, 2008:27). 3 http://transition.turbulence.org/blog/ 4 «Nas comunidades colaborativas a criação de conteúdo partilhado tem lugar num ambiente participatório em rede que quebra as fronteiras entre produtores e consumidores e, em vez disso, permite a todos os participantes serem utilizadores bem como produtores de informação e conhecimento – frequentemente com um papel híbrido de produser (produtilizador) em que a utilização é necessariamente também produtiva. Os produtilizadores não desenvolvem uma forma tradicional de produção de conteúdo, estão, em vez disso, envolvidos na produsagem – a colaborativa e contínua construção e extensão do conteúdo existente em busca de melhoramento» http://produsage.org/node/9 acedido em 22/03/12. 5 O avatar da investigadora, Lux Nix entrevistou o avatar de Isabel Valverde, Butler2 Evelyn, no Second Life, sobre o projecto Weathering In/ Com Tempo: http://youtu.be/w1Z_Pnvp8MU. AVANCA | CINEMA 2012

299

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.