Para uma narrativa histórica da Arte Africana - O caso da Guiné-Bissau e os grupos de Mandjuandadi

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Escola de Sociologia e Políticas Públicas Mestrado de Gestão e Estudos da Cultura, especialização Gestão Cultural

Disciplina de História da Arte Para uma narrativa histórica da Arte Africana O caso da Guiné-Bissau e os grupos de Mandjuandadi

Discente: Sara Gomes Santana – nº 58663

Docente: Profª Dr.ª Paula André

2012 / 2013

Para uma narrativa histórica da Arte Africana O caso da Guiné-Bissau e os grupos de Mandjuandadi

Índice 1. Introdução: Objectivos, Metodologia e Normas ............................................................... 3 2. Para uma narrativa histórica da Arte Africana ................................................................. 4 2.1. As fontes de conhecimento em África – problemáticas e desafios ..................... 4 2.2. Oralidade e memória na Guiné-Bissau ............................................................... 7 3. O caso específico dos grupos de Mandjuandadi ............................................................. 9 3.1. Origens e diálogos (inter)culturais....................................................................... 9 3.2. Corpo, palavra e performance .......................................................................... 11 4. Considerações finais...................................................................................................... 15 5. Bibliografia ..................................................................................................................... 17

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Para uma narrativa histórica da Arte Africana O caso da Guiné-Bissau e os grupos de Mandjuandadi

1. Introdução: Objectivos, Metodologia e Normas O presente trabalho intitulado “Para uma narrativa histórica da Arte Africana – O caso da Guiné-Bissau e os grupos de Mandjuandi”, tem como objectivo debruçar sobre a actividade artística e cultural destes grupos de mulheres, reflectindo sobre a sua importância para a construção histórica da Arte da Guiné-Bissau, em particular, e das artes africanas, no geral. É dado especial destaque à tradição oral enquanto arquivo histórico importante para a narração da história da Arte Africana tendo em conta que faz parte da herança cultural, de uma forma geral, deste continente. A tradição oral foi, também, escolhida como fonte de conhecimento privilegiada não só pelas problemáticas que traz consigo mas, também, pela subvalorização, ainda generalizada, da mesma pelas culturas ocidentais enquanto fonte histórica genuína e credível. Todo o trabalho baseou-se em pesquisas e leituras bibliográficas mas partiu, igualmente, de experiências empíricas aquando da minha visita à Guiné-Bissau há dois anos atrás. Para além disto, foram, também, valorizadas conversas que tive, em Portugal, com pessoas familiarizadas com o tema que me forneceram informações relevantes sobre as actividades das mandjuandadi. O trabalho está dividido em 4 partes principais, correspondendo a primeira parte à presente introdução do trabalho e explicação da metodologia e normas utilizadas. A segunda parte consiste numa reflexão sobre a narrativa histórica da Arte Africana através de uma visão pluralista e abrangente tendo como contraponto a História da Arte Europeia. Esta segunda parte está subdivida em dois pontos - As fontes de conhecimento em África – problemáticas e desafios e Oralidade e memória na Guiné-Bissau – que tratam, precisamente, sobre as fontes de conhecimentos existentes em África antes da chegada dos portugueses, no séc.V, e a presença da oralidade e o seu papel na construção da memória colectiva na Guiné-Bissau, respectivamente.O terceiro grande ponto O caso específico dos grupos de Mandjuandadi é um afunilamento do trabalho e dedica-se ao contexto artístico guineense, dando enfoque às artes performativas, e que serve de ponte para o caso a estudar: os grupos de Mandjuandadi. Para tratar o temacerne é feita uma contextualização histórica e social para explicar o como e o porquê do aparecimento destes grupos, abordada na primeira sub-divisão - Origens e diálogos (inter)culturais - , seguido de uma caracterização das suas atividades, evocando a sua pertinência para a história da arte da Guiné-Bissau e problematizando a questão da tradição oral. É feita, posteriormente, uma reflexão sobre o papel dos grupos de Mandjuandadi para a preservação da identidade artística e cultural guineense já na segunda sub-divisão no ponto 3 - Corpo, palavra e performance. A quarta e última parte – Considerações finais – consiste numa reflexão final (quase) conclusiva sobre os tema tratados ao longo do trabalho. As normas de formatação e apresentação gráfica utilizadas na elaboração do trabalho correspondem às mesmas normas aprovadas, em 2011, pela Comissão Científica Permanente da Escola de Sociologia e Políticas Públicas (ESPP) para as dissertações e trabalhos de projecto de Mestrado e teses de Doutoramento.

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2. Para uma narrativa histórica da Arte Africana 2.1.

As fontes de conhecimento em África – problemáticas e desafios Quando um homem morre é como se uma biblioteca inteira se incendiasse. Provérbio africano

Apesar de os achados arqueológicos da chamada Arte Pré-Histórica ou Arte Primitiva manifestarem, de alguma forma, percepções estéticas, não existem factos comprovados de que os autores dessas esculturas, estatuetas ou pinturas, tenham reflectido sob o ponto de vista artístico aquando da sua realização, pelo que, pelo menos para a maioria dos teóricos europeus, não são considerados obras de arte. Tudo o que se pensa saber sobre esses objectos, as motivações que levaram os homens ou mulheres a construir estatuetas de figuras femininas ou a pintar nas paredes das grutas, o simbolismo dessas mesmas figuras ou os contextos em que foram produzidas, baseia-se, não só em estudos e em investigações, mas também em especulações desenvolvidas sob determinados pontos de vista que vão reinterpretando e acrescentando significados aos próprios objectos. Neste sentido, a História da Arte na Europa tem sido tradicionalmente narrada cronologicamente a partir da Antiguidade Clássica, mais propriamente, com o surgimento das primeiras teorias gregas sobre a Arte. Sem a existência anterior de registos escritos sobre estudos desenvolvidos em torno do conceito de Arte, assume-se a Antiguidade Clássica como o ponto de partida para a narração de uma história que se desenrolará ao longo de centenas de séculos até aos dias de hoje. A escrita parece desempenhar um papel fundamental para a ordem dos acontecimentos históricos mas também para a sua legitimação por permitir o acesso privilegiado a uma parte do conhecimento nos casos em que, de outra forma, dificilmente conseguiríamos obter mais informação sobre o mesmo. Mas é exactamente por esta razão, por a sociedade europeia ter sobrevalorizado a escrita, de uma forma geral, durante muito tempo, que os povos sem escrita eram considerados povos sem cultura. Não são poucos os olhares (des)atentos que, ao longo do tempo, foram construindo as várias histórias de África, nomeadamente da história das suas Artes. O problema que surge aqui é precisamente a visão eurocêntrica e evolucionista com que nos fomos habituando a olhar para factos históricos africanos. Quando, no início do século XV, se intensificaram as viagens exploratórias ao continente africano, nenhuma delas tinha como propósito fazer qualquer tipo de narração histórica sobre África; os objectivos eram bem claros e passavam pelo conhecimento geográfico, a importação de novas mercadorias, o posicionamento estratégico-político e a evangelização (Zurara, 1841). A forma como se olhava para as culturas africanas desconhecidas, estava assim condicionada pelas motivações que levaram os exploradores europeus a iniciar as suas viagens. Isto significa que a sua forma de olhar para as “novas” culturas levou à criação de testemunhos escritos, sobre uma novidade desconhecida, completamente influenciados pelo contexto histórico, político e social em que se vivia. O facto de termos um olhar exterior, ou seja, um olhar que vem de fora a descrever uma cultura completamente diferente e desconhecida, foi agravado, por um lado, pelo facto de não ter sido feito, até aos dias de hoje, um estudo sobre as fontes escritas sobre 4

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a História da África (Ki-Zerbo, 2010: 78) e, por outro, por existir uma imensa área geográfica do continente – a sul do Saara, principalmente - onde, antes do século XV, a fonte escrita é inexistente. Quando não raras, tais fontes também podem trazer ambiguidades tendo em conta que estão escritas em outras línguas (como o árabe) e que foram e são descodificadas de formas diferentes pelos historiadores. À semelhança da História da Europa, considerou-se que as sociedades “descobertas” correspondiam a sociedades pré-históricas ou seja, sem escrita, e, portanto, sociedades primitivas. H. W. Janson, ao referir-se à arte africana, afirma que a arte primitiva é produzida no contexto de um modo de vida que passou pela Revolução Neolítica e que não dá sinais de evoluir na direção das civilizações históricas (Price, 1996). O erro cometido foi o de se ter considerado a escassez de documentos escritos como sinónimo de estagnação, ideia que se foi intensificando, no século XIX, através de teorias semelhantes à do filósofo Hegel que afirmava a inexistência de uma história em África: “What we properly understand by Africa, is the Unhistorical, Undeveloped Spirit, still involved in the conditions of mere nature, and which had to be presented here only as on the threshold of the World‟s History” (Hegel, 2001: 117). Outros teóricos afirmavam, por sua vez, que as manifestações artísticas, como as construções arquitectónicas dos grandes reinos africanos tinham sido feitas por outros povos não africanos. Muitas dessas teorias criadas ao longo do século XIX, ainda permeiam o pensamento ocidental. Muitos historiadores da arte ainda se deixam influenciar por essas concepções de “inferioridade da arte africana” e este foi o primeiro passo para a negligência de uma riqueza cultural africana que acabou por sofrer consequências que perduram até hoje. Hoje, sabe-se, porém, que ainda existe uma quantidade considerável de materiais escritos de caráter arquivístico e narrativo que permanecem ainda por explorar (Ki-Zerbo, 2010). Tem sido desenvolvido, por sua vez, um trabalho extenso de pesquisa e investigação em África por vários institutos de estudos africanos e centros de pesquisas históricas ao mesmo tempo que têm surgido novas iniciativas desenvolvidas pelo Conselho Internacional dos Arquivos, sob a orientação da UNESCO, que pretendem orientar os pesquisadores na procura e análise de documentos dispersos pela Europa. A arqueologia africana começou por obter especial atenção dos europeus a partir do século XVII, cujo principal motivo das suas viagens consistia em adquirir objectos para as colecções particulares dos gabinetes de curiosidades (Corbey, 2000). Simultaneamente à descoberta dos novos materiais “descobertos”, entre os quais máscaras, estatuetas e outras mais peças feitas de diversos materiais (vidro, cerâmica, ferro, osso, etc.), era desenvolvida, pelos colectores, uma catalogação, novamente eurocêntrica, em que os objetos eram colocados dentro de um esquema de evolução e difusão, esquecendo de indagarem as funções e significados no contexto específico de cada sociedade ou cultura onde foram produzidos e usados. Os objetos eram retirados de contextos diversos e reclassificados conforme os interesses de seus coletores, temos como exemplo uma máscara ritual africana que hipoteticamente podia ser colocada ao lado de uma máscara ritual da Melanésia e depois de identificada e descrita a composição material e forma estética de ambas as peças, eram classificadas conforme a sua complexidade e tecnologia. Eram estabelecidos estágios hierarquicamente diferenciados de evolução entre as sociedades das quais os objetos vieram (Chaves, 2011).

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Esta recolha, categorização e posterior introdução museológica conferiu aos objectos arqueológicos um novo sentido histórico europeu que influenciou decididamente a forma de olhar para a Arte Africana. Ernest Gombrich vai, também, ao encontro desta linha de pensamento. No primeiro capítulo de “The Story of Art” as classifica [artes africanas] de 'estranhos começos' e as compara com a infância de complexos artísticos mais 'maduros'. Os adjetivos que utiliza para descrevê-las são 'estranho', 'raro', 'contra-natural', 'absurdo', 'curioso', 'irracional'; os povos que as produzem são 'crianças', suas atividades são 'teatro' e seu estado mental é de um 'conto de fadas' ou de um 'mundo de sonho'. Aqui, portanto, a colocação cronológica está clara: se cremos em Gombrich, se trata da expressão criadora no nível mais infantil da humanidade (Price, 1996: 207).

Mas estes objectos-testemunho oriundos de África deram e continuam a dar um forte contributo à história do continente africano, sobretudo aqueles que datam de um período em que não existem testemunhos escritos. Alguns destes objectos são particularmente significativos na medida em que manifestam eles próprios uma partilha que decorreu entre diferentes culturas que veio a influenciar as formas estéticas dos objectos: o estudo da tipologia das cerâmicas e dos objetos de osso e metal encontrados na região nígero-chadiana do Saara demonstra a ligação entre os povos pré-islâmicos (Sao) da bacia chadiana e as áreas culturais que se estendem até o Nilo e o deserto líbio. Estatuetas de argila cozida com talabartes cruzados, ornatos corporais das estatuetas, formas de vasos e braceletes, arpões e ossos, cabeças ou pontas de flechas e facas de arremesso ressuscitam assim, graças a seus parentescos, as solidariedades vivas de épocas antigas, para além desta paisagem contemporânea massacrada pela solidão e pela inércia (KiZerbo, 2010: 10).

A tradição oral, enquanto fonte de conhecimento, é um terreno bem mais escorregadio… Ao contrário da objectividade descritiva de certos documentos escritos e do carácter intemporal dos objectos materiais, a tradição oral traz consigo uma enorme carga de ambiguidade, “sendo ela envolvida por provérbios, adágios, alusões e apologias. É necessário saber desvendar seus mistérios, afinal a palavra é mágica, invoca o passado e reconstrói o presente” (Santos, 2009: 27). Paralelamente às duas primeiras fontes da história africana referidas (documentos escritos e arqueologia), a tradição oral aparece como um verdadeiro museu vivo, rico em sabedoria e conhecimento. Ela permite a perpetuação de valores e princípios, comuns a uma determinada comunidade, ao longo de gerações e gerações, representando, assim, um dos marcos mais significativos na formação de crianças e jovens, em detrimento à supervalorização da escrita, que para os europeus é um elemento essencial para a transmissão de conhecimento. O homem e a mulher africanos mais velhos são os grandes propulsores da continuidade da tradição oral e os responsáveis por grande parte da educação da comunidade. Reconhecidos como detentores de capacidades intelectuais únicas, com sabedoria e experiência de vida, os mestres são referências vivas: possuem histórias de vidas de tradição oral fascinantes e a habilidade de ensinar ofícios e formar seres humanos, com referências ancestrais, fazendo, desta forma, a ligação entre o presente e

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o passado, o material e o imaterial, o físico e o espiritual com o recurso à palavra, cantada ou falada. Dá-se o exemplo dos griots da África Ocidental, enquanto fontes de conhecimento; para além de contadores de histórias, músicos, poetas, políticos e mediadores de conflitos e problemas, os griots são líderes de grupos culturais que possuem um envolvimento profundo com as raízes da sua cultura. Os griots são, igualmente, genealogistas, muitas vezes contratados por famílias nobres para pesquisar e contar a história dessas famílias, mas também narradores da própria história de uma dada região ou país. São caracterizados por caminharem bastante e viajarem de terra em terra para conhecerem outras culturas e darem a conhecer, por sua vez, a sua. Apesar de realçarmos a importância de se assumir um olhar abrangente, crítico e flexível sobre a História de África, no geral, e, em particular, sobre a História da Arte Africana, é necessário reconhecermos as dificuldades que possam advir de um estudo sobre as fontes de conhecimento histórico africanas. A variedade das fontes da história africana é imensa e, por essa razão, deve-se procurar estabelecer novas relações entre si de forma a obter informações o mais aproximadas possível da realidade. A utilização cruzada de fontes parece ser a forma mais adequada de trabalhar as fontes históricas pois só uma profundidade temporal e uma consciência abrangente da história poderão ser asseguradas pelo estudo simultâneo de diversos tipos de fontes. Por outro lado, as três fontes referidas (documentos escritos, arqueologia e tradição oral) necessitam de um apoio empírico e teórico dado pela linguística e pela antropologia, que permitem fundamentar e aprofundar a interpretação dos dados. Para além desta consciência histórica, é, também, crucial reflectir sobre a posição dos investigadores que analisam as várias fontes, colocando algumas questões: Quem narra a história de África? São europeus? São africanos? Que bases utilizaram e em que contextos? Considera-se, pois, que o olhar de quem vê pode mudar a própria narrativa histórica pelo que deverá ser necessário re-olhar para fontes anteriormente analisadas mas, também, assumir, para o futuro, um olhar mais atento e mais cuidado. 2.2.

Oralidade e memória na Guiné-Bissau

A história da Guiné-Bissau começou muito antes da chegada dos portugueses, em 1446. A Guiné-Bissau, enquanto território, foi invadida pela etnia Mandinga (os malinkés) no século XIII a.C. que fundou o reino de Gabú (conhecido por império de Kansalá), tributário do império do Mali. Os malinkés contribuíram em muito para a construção da cultura e língua guineenses. Marcelino Marques de Barros afirma, inclusive, que “os mandingas de Dandu, colincas de Geba e de Farim, e mesmo do Cassamansa e alguns Biafadas, seriam os primeiros – naquela edade em que ninguém aprende língoas, mas vocabulários – a saber criolar a língua do „branco‟” (Semedo, 2010: 66). Vários são os testemunhos da língua mandinga deixados na herança oral. Cantigas de entretenimento, contos, histórias com fins educativos, cantigas de história e provérbios são ainda a prova viva de uma partilha cultural que se iniciou há mais de 2.000 anos. Um desses beços exemplos, entre vários, é a história de uma menina desobediente chamada Kady Kebé, cantada pelos djidius (trovadores tradicionais) e pelos griots da África Ocidental, incluindo a GuinéBissau, Senegal e Mali.

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Na Guiné-Bissau não são apenas os djidius mandingas que cantam esta história ao som do korá [corá], como também existem diversas versões da mesma história em crioulo guineense que é contada aos mais novos. Porém, nessas variantes a menina desobediente não tem nome, sofre o devido castigo por desacato às palavras dos mais velhos, mas não morre, enquanto na versão mandinga Kady Kebé yela, Kady Kebé morreu (Semedo, 2010: 66).

O contacto com as culturas europeias (portugueses, ingleses, franceses e holandeses, essencialmente) e com outros grupos oriundos de vários pontos do continente africano permitiram o enriquecimento da língua e da cultura guineense traduzindo-se numa multiplicidade étnica. Calcula-se que, actualmente, o país seja composto por cerca de 27 etnias espalhadas um por todo o país, diferentes na língua, nas profissões ocupadas e na expressão artística. De uma forma geral, a Guiné-Bissau é fortemente marcada pela tradição musical e pela dança, sendo dois elementos essenciais para o quotidiano dos diversos grupos étnicos que a compõem, oriundos de zonas rurais como também das cidades. Quer seja para a transmissão de saberes ou para a celebração de datas e momentos especiais, a música e a dança, recorrendo à palavra falada e cantada transmitida do mais velho para o mais novo, revelam muito da história do país. Na Guiné-Bissau, a cantiga entra nos mais variados rituais e cerimónias mas também em momentos da vida da comunidade: canta-se em momentos de festa, nas tarefas domésticas, no casamento, no toca tchoro1 ou na narração de histórias para as crianças, uma herança da etnia Mandinga. Tendo em conta que o acesso à escola e, portanto, ao ensino formal da escrita, aconteceu tardiamente, a Guiné-Bissau apresenta-se como um país essencialmente oral, onde a tradição oral é ainda hoje um meio de preservar e de transmitir a memória coletiva, sobretudo nas regiões rurais. Esta realidade ganha um maior peso quando se pensa que cerca de 67% da população guineense vive em zonas rurais, o que significa que mais de metade dos guineenses vive de forma mais intensa a oralidade. Para além dos contos e das cantigas mandingas, a tradição oral guineense conta ainda com inúmeras peças cantadas e tocadas pelas restantes etnias. Os papéis e os balantas que, ao som do simbi (instrumento de seis cordas feito de cabaça forrada com couro de caprino), cantam em ritos de passagem, casamentos e outras festas comunitárias; os manjacos, conhecidos pelas criações das djamudur (carpideiras), cantam os feitos do morto, enaltecendo a sua linhagem e os filhos presentes durante cerimónia fúnebre; os fulas, conhecidos pelas acrobacias com que animam os cantos ao som de flautas feitas de cana de bambu, de nhanheru (instrumento musical monocorde) e balafon (espécie de xilofone de madeira e cabaças) nas festas populares, nos casamentos e nos torneios de luta livre entre rapazes de diferentes aldeias; e ainda os bijagós que contam com inúmeras narrativas moralistas. Mas se a voz e a palavra parecem aproximar povos e pessoas e preservar a memória e as tradições da Guiné-Bissau, também é verdade que, quando mal usada, pode ter um efeito negativo. O poder da palavra, na tradição africana e, em particular, na tradição guineense, tem um peso muito grande pelo que o que pode parecer uma simples 1

Toca tchoro é o nome que se dá à cerimónia fúnebre em que familiares e amigos se juntam para relembrar o falecido. Normalmente, o toca tchoro envolve cantigas e músicas tocadas com vários instrumentos de percussão: balafon, bombolon e tambur. 8

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narrativa envolve mensagens que precisam de ser descodificadas e contextualizadas para percebermos o seu valor. Muito daquilo que é dito e cantado, transformado pelas falas das personagens e do narrador, constitui, muitas vezes, críticas sociais que surgem aparentemente omissas. As lições de moral que estão presentes na maioria das histórias tradicionais são, desta forma, verdadeiros meios de aprendizagem de regras de conduta que regem determinadas comunidades, assim como as cantigas de dito ou cantigas de mandjuandadi2. As histórias contadas e escutadas são uma forma de lazer mas também um processo de aprendizagem social adequado ao tipo de público interage com o animador do djumbai3, o que significa que as histórias contadas dependem necessariamente do contexto onde se contam e se escutam essas mesmas histórias. A arte de contar e cantar surge, assim, agregada a um lado moral e ético que é contextualizado e adaptado a um público em específico, pelo que confere ao texto literário oral uma enorme carga de temporalidade: se avaliarmos o texto isoladamente ele morre e se decompõe; isolada, a tradição oral perde sua carga de sentido pelo que é extremamente necessário ter em conta todo um contexto de produção. 3. O caso específico dos grupos de Mandjuandadi 3.1.

Origens e diálogos (inter)culturais Un son mon ka ta toka palmu (Uma mão sozinha não bate palmas) Provérbio guineense

Um dos aspectos mais interessantes na tradição oral é o facto de esta ser um encontro de culturas. As próprias cantigas revelam um hibridismo linguístico traduzido no cruzamento das várias línguas étnicas e do crioulo que, por sua vez, deriva da fusão entre o português e outras línguas locais. Os grupos de mandjuandadi são um dos resultados deste encontro cultural, em que se verificam, muitas vezes, histórias cantadas em crioulo, intermediadas por cantigas cantadas em outra língua local. O próprio termo mandjuandadi abrange por si só várias significações dependendo da cultura ao qual se refere. Na procura da relação entre os termos que significam mandjuandadi nas outras línguas locais da Guiné-Bissau, investigadores chegaram a diferentes significados mas quase sinónimos entre si; colectividade, grupo, convívio, organização, tradição são alguns

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As cantigas de mandjuandadi são distinguidas pelo seu conteúdo. A história de uma cantiga pode ser pessoal, de quem viveu uma experiência e que, com base nisso, cria a sua cantiga, ou pode ser sobre um caso alheio em que a cantadeira encarna o sujeito da enunciação, assumindo as suas mágoas ou alegrias. Existem dois géneros de cantigas de mandjuandadi: as cantigas de dito por dito e as de harmonia. Nas cantigas de dito por dito, encontram-se as de kumbosadia (rivalidade), crítica social, as de inimigos(as) e de lamento (morte, amor não correspondido, etc); as de harmonia falam, essencialmente, sobre amizade e amor. 3

O djumbai é um momento de convívio próprio das comunidades da África Ocidental. É uma forma de se estar na vida e de conviver com o outro. 9

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dos termos que remetem para o conceito e que expressam claramente o espírito destes grupos4. As mandjuandadi, ou mandjuandades, são, assim, colectivos de mulheres da mesma faixa etária ou da mesma geração que se organizam para confraternizar e dar apoio mútuo em circunstâncias específicas. No que diz respeito às idades, as mandjuandades são muito rigorosas e, por isso, não existe um grande desfasamento entre as idades dos elementos; isto porque entendem que as crianças “não devem escutar coisas inapropriadas para a sua idade” (Semedo, 2010: 143-144). Apesar de as mandjuandadi, enquanto colectividades organizadas com regras de funcionamento próprias, serem relativamente recentes (com base em vários testemunhos orais calcula-se que tenham surgido há mais de 200 anos), elas sempre existiram como grupo de pessoas da mesma idade que se organizam para realizar diversos trabalhos colectivos na aldeia. Na verdade, é consensual para diversos informantes, independentemente da região do país, de que o badju de tina5, característico das mandjuandadi, está associado às práticas domésticas e de comércio, como ir buscar água à fonte, cortar lenha, lavar roupa, vender guloseimas ou ir à costura, práticas essas femininas e colectivas. Estes momentos de entreajuda e de convívio proporcionavam, por sua vez, conversas e cantigas inventadas pelas mulheres que falavam sobre as suas próprias vidas e das vidas alheias levando à criação de grupos informais de mulheres. Muitos destes grupos acabaram por migrar, posteriormente, para as zonas urbanas, nomeadamente para a capital, dando origem a grupos organizados de mandjuandadi com uma hierarquia e regras de funcionamento muito próprias. Mas o encontro de culturas não trouxe apenas o cruzamento de linguagens artísticas; ele trouxe consigo contradições da luta pelo poder resultado das forças da resistência dos vários grupos. A origem dos grupos de mandjuandadi nos centros urbanos remota, precisamente, à estratificação social imposta pelo sistema colonial português, paralelamente à migração dos povos manjacos para os arredores das cidades, que construíram grandes comunidades nas periferias urbanas. Ao que tudo indica, a etnia manjaca prestou grandes contribuições para o desenvolvimento das mandjuandadi, não só a nível linguístico mas também a nível social. A prática de organização levada a cabo pelas mandjuandades baseia-se essencialmente nos princípios do associativismo que já existiam nas sociedades précoloniais da África Ocidental, incluindo a Guiné-Bissau. Regra geral, o associativismo entre as mulheres está associado às relações de poder entre os géneros que, nas sociedades pré-coloniais, caracterizavam-se pela dominação masculina nas sociedades estruturas com base no sistema de linhagens. A exclusão do género feminino destas estruturas de poder de linhagem levou a que as mulheres se organizassem de forma voluntária e igualitária em grupos que partilhassem os mesmos interesses e onde pudessem ter uma voz activa na sociedade. Como esta realidade estava presente nas diversas etnias guineenses, as mandjuandadi existem em todos os grupos étnicos da Guiné-Bissau. 4

Maria Odete Semedo, na sua tese de doutoramento “As Mandjuandadi - Cantigas de Mulher na Guiné-Bissau: da Tradição Oral à Literatura”, faz uma série de referências bibliográficas, ao longo de várias páginas, em torno do conceito de mandjuandadi evocando os significados da palavra em diferentes contextos culturais. 5

O badju de tina, ou baile de tina, é um género musical da Guiné-Bissau que recorre à utilização de uma tina de água com uma cabaça que serve de instrumento de percussão. A tina com água era a mesma utilizada pelas mulheres para lavar roupa. 10

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Apesar de os primeiros grupos de mulheres que viriam a dar origem às mandjuandadi terem sido o resultado de uma reacção à diferença entre os papéis das mulheres e dos homens, a constituição e o desenvolvimento destes grupos não se prendem, apenas, por questões de género… Ao que tudo indica, foi nos meados de 1944/1945 que se deu o desenvolvimento e, talvez, o apogeu, das mandjuandadi, altura em que o aparelho da administração colonial portuguesa já estava instalado e os chefes locais já tinham sido dominados. Paralelamente, o Estatuto do Indigenato estava a ser aplicado em força e obrigava a população guineense a seguir uma série de leis para ser considerada uma população “civilizada”. Neste ambiente de colonização, os guineenses eram, assim, confrontados com duas opções: pertencer ao mundo dos civilizados ou dos indígenas, ou seja, dos não civilizados; ao escolher a primeira opção, os guineenses iriam estar a rejeitar a sua própria cultura bem como as práticas subjacentes. Esta duplicidade levou a que grupos autóctones desenvolvessem uma necessidade de marcar um modo de estar diferente e uma reivindicação de uma identidade numa sociedade que vai emergindo do choque entre várias culturas. Os grupos de mandjuandadi aparecem, desta forma, como um movimento de resistência às imposições culturais dos colonizadores manifestada nos textos cantados como, também, nas próprias figuras presentes nos grupos como, por exemplo, a figura do rei e da rainha, das meirinhas, “macho” e “fémea”, dos soldados que devem obedecer à risca as ordens do rei e da rainha; a contrafação punida com multa aos infratores, cuja prevaricação por vezes é propositada, para que se possam promover novos encontros; a boa disposição com que as multas são aceites, contrariamente à revolta suscitada nos habitantes guineenses pelo pagamento do “imposto de palhota” e o “imposto por cabeça” que as autoridades coloniais faziam cumprir à força. Veja-se, por exemplo, o sentido construído pela performance dos “soldados” da mandjuandadi, ao cumprimentarem o rei e a rainha com gestos de continência, quando dançam frente a esses responsáveis da coletividade, uma performance que lembra, de forma irreverente, o cumprimento entre os militares coloniais. A dança singa, bailada pelas mandjuandadi da etnia mancanha, aos pares, traz um pouco à memória a dança de salão de origem europeia, porém é dançada descalço e ao ar livre (Semedo, 2010: 139).

Tal como nos conteúdos das cantigas e nas personagens, também a língua revelava esta tensão social. Conforme foi referido atrás, as cantigas das mandjuandadi cruzam o crioulo, língua de convívio falada pela maioria das etnias, e outras línguas étnicas. Foi no crioulo e nas outras línguas locais que as mandjuandadi sempre cantaram, como forma de protesto e de preservação da sua cultura, contrariando aquilo que o Estatuto do Indigenato previa: aniquilar qualquer tradição guineense e submeter as culturas locais à portuguesa, nomeadamente à sua língua. 3.2.

Corpo, palavra e performance

A dança, a literatura e a música são os elementos artísticos que, obrigatoriamente, fazem parte das actuações das mandjuandadi e que funcionam seguindo determinadas regras estabelecidas pelas próprias colectividades. A ordem que se verifica nas mandjuandadi deve-se, em grande parte, à disciplina reconhecida nas atitudes dos dirigentes do grupo, escolhidos em consenso pelos restantes elementos. Quando uma mandjuandadi é criada e a escolha dos seus dirigentes 11

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é feita, são definidas uma série de regras que devem ser respeitadas e seguidas. Quando tal não acontece, os membros são multados, cujo pagamento é definido por cada grupo. Existem vários motivos para um membro ser multado, entre os quais “o atraso nos encontros, o proferir más palavras, brigas, fazer gestos obscenos e/ou cantar cantigas que tenham conteúdo erótico” (Semedo, 2010: 144). Verifica-se, assim, toda uma estrutura organizada nas mandjuandadi que se traduz nas quatro categorias, presentes em cada grupo, e que se reflectem na atribuição de personagens que participam nas performances: a direcção (constituída pelo rei, rainha, meirinha macho e meirinha fêmea), o cordeiro (que pode ter o seu auxiliar), o soldado e as cantadeiras. Por ordem hierárquica, as figuras do rei e da rainha vêm em primeiro lugar seguidos das meirinhas que substituem diretamente o rei e a rainha nas ausências destes, e que podem ser indigitadas, pelo rei e pela rainha, para alguma atividade. O rei pode, ainda, escolher alguém para ser o seu porta-voz e, sempre que se quiser transmitir algo ao grupo, será essa pessoa a falar. Cabe ainda à direcção orientar o grupo, decidir e definir o momento da entrega da abota6, os prazos, as datas de determinados eventos e dos kontradas (encontros). Definem, também, os tipos de multas, o local onde estas devem ser pagas, a data e o lugar da laba mon (o lavar das mãos)7. Quanto ao cordeiro, o mensageiro do grupo, cabe-lhe anunciar à comunidade os encontros que irão acontecer, informar o montante necessário para as abotas, etc., ou seja, transmitir mensagens sempre que lhe solicitado. Para além das várias regras estabelecidas pelo e para o grupo, que visam o bom funcionamento do mesmo e a harmonia entre os vários elementos, as mandjuandadi também têm definidos os eventos nos quais participam. Inicialmente, antes de as mandjuandadi serem colectividades mais formalizadas, as mulheres juntavam-se para contar os seus desgostos e criavam músicas sobre isso. Depois, quando a aldeia se reunia, as amigas cantavam músicas, dando, ao mesmo tempo, recados para os maridos. Hoje já não é sobre a relação entre casais e já não se usam metades de barris mas sim tambores e tabuinhas para acompanhar os cânticos. Hoje são grupos de bairro que se juntam, que organizam festas, que animam cerimónias alegres (casamentos) ou tristes (funerais), ou mesmo cerimónias tradicionais como a do fanado (circuncisão e excisão) (Moreira, 2012).

As mandjuandades desempenham várias funções que passam pela partilha de alimentação, interajuda em diversos trabalhos, tais como a preparação do campo agrícola, a colheita e a cobertura de casas, mas actuam também em outros contextos como propaganda política,

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Cotização que se realiza a nível comunitário para mobilização de fundos destinados a suportar as despesas da comunidade. 7

O laba mon é um encontro promovido pelo rei e pela rainha no oitavo dia do pagamento da multa, servindo o evento para a “purificação” da pessoa multada e para o apaziguamento do grupo. 12

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poupança e compra coletiva de bens de consumo (por exemplo, a compra de um tecido para fazer, no mesmo padrão, o vestuário usado nas festas e cerimônias), crédito individual aos membros, celebração de cerimónias familiares e religiosas e ainda organização de acontecimentos lúdicos (Borges, 2006: 93).

Nas palavras do músico guineense Aliu Barri, as mandjuandades juntam-se nas tabancas (aldeias) e nas cidades para organizarem festas e convívios: Se houver um casamento vão animar o casamento, se houver alguma cerimónia tradicional elas vão lá e cantam, se houver choro alguém morreu, cotizam, tiram o dinheiro, arranjam tudo que é necessário. Vão ficar lá por uma semana a animar a família do defunto. (…) Há roupas que elas devem vestir, qualquer tipo de manifestação elas vão. Mas entre elas há pessoas que cantam e tocam. É como rancho folclórico. Sei que em qualquer vila, agrupamse homens e mulheres, fazem festas nos tempos livres. (…) São manifestações culturais que existem em cada etnia. (…) são transferências de manifestações culturais que existem tradicionalmente, que estão a passar agora para o ambiente de hoje (Kohl, 2007: 17).

Os kontrada, um dos exemplos de cerimónias onde as madjuandadi costumam estar presentes, são proporcionados por festas de casamentos e incluem sara noiba (rito de passagem de menina virgem para mulher no casamento tradicional), a dispidida di solteru (despedida de solteiro), a realização da cerimónia propriamente dita, a ornamentação da bandeira ou do estandarte da noiva, fadja bandera, e a comemoração do oitu di kasamenti (oitavo dia do casamento). Durante o sara noiba a rapariga que se vai casar fica dentro do quarto, tendo por companhia uma mindjer garandi (mulher experiente) que lhe vai dando conselhos para desempenhar as tarefas de “mulher”. Durante estes dias oito de reclusão, as mandjuadadi vão cantando e dançando temas sobre a vida a dois, a maternidade, os ancestrais protectores das famílias, etc., sendo que o verdadeiro badju di tina só acontece no dia em que a noiva sai da reclusão e come a comida sagrada com o noivo. É nessa festa que a mandjuandadi especialmente se revela, cantando em louvor da noiva, da mãe, do pai e dançando até o amanhecer. A cantiga Kilin... kilin é obrigatoriamente cantada nessa ocasião onde o poilão (árvore sagrada da Guiné-Bissau) funciona como uma metáfora para a figura da noiva, o maior bem da família que foi arrancado “com a sua raiz”, e que vai constituir a sua própria família. É uma cantiga que simboliza a união de duas famílias de etnias diferentes, os fulas e os mandingas, pelo casamento que se realiza. A cantiga realça, por isso, o facto de que as diferenças podem existir entre as famílias a que pertencem os noivos utilizando o exemplo dos fulas e mandingas que, no passado, vivenciaram conflitos e guerras na busca pelo poder. Hoje em dia, os dois grupos étnicos convivem e os seus membros casam-se entre si, servindo esta história como exemplo para mostrar que o casamento une pessoas com culturas diferentes. Para além das festas de casamento, as mandjuandadi participam em vários outros momentos de celebração de família que abrangem a darma kasa (estreia da casa nova), seti di mininu (a festa do sétimo dia do nascimento de um filho) e o botsadu (baptizado). As cantigas são, também, o lugar de expressão de certas tensões e tentativas para a sua resolução. O pui sabi (reconciliação) de casais ou de amigas e amigos em conflito é um desses casos. É no convívio que as mandjuandadi tematizam questões domésticas nas suas canções, desnudando aspectos da vivência familiar e os seus conflitos.

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A morte também é outro momento crucial para a intervenção das mandjuandades; a solidariedade e a contribuição monetária à família que perdeu o ente querido são funções desempenhadas pelas mandjuandadi como consideração e apoio à família que está de luto. Para além destes acontecimentos, o rei ou a rainha podem ainda propor encontros apenas para se divertirem, que podem ocorrer a um sábado ou a um domingo. No que toca à sua estrutura, as cantigas de dito, sobretudo as mais antigas, são de texto curto, com versos até duas sílabas, com refrões ou versos para serem cantados em coro. As estrofes são irregulares, podendo ser de quatro e cinco versos ou compostas por várias estrofes com versos de quatro a dez. Geralmente, as cantigas são compostas por repetições e intercalações de versos de estrofes anteriores com os das estrofes que lhes seguem (Semedo, 2010). A forma como as cantigas são apresentadas, com as suas estrofes e respectivos refrões, está organizada de acordo com as regras do canto durante a sua apresentação, ou seja, a cantadeira que quer dar a conhecer uma cantiga, entra na roda e canta a canção inteira enquanto que as restantes escutam. Só então ela voltar a cantar do início, cantando apenas a primeira parte e pede ao coro que repita. Quando se trata de refrão a cantadeira performatiza, indicando quando as colegas devem cantar esse fragmento. Mas a constituição de uma cantiga não se mantém inalterada; muito pelo contrário, dá-se o caso de o próprio autor acrescentar um ou mais versos a uma composição já cantada em vários encontros. Pode, ainda, acontecer que, durante a performance, alguma intérprete acrescente um ou mais versos à cantiga, sendo que estas alterações revelam o modo como as gerações mais novas se apropriam e reinterpretam a tradição oral dando origem a novos textos. Este facto traz consigo uma questão que se prende com a dificuldade de se documentar um texto fixo, ou seja, o carácter temporal das cantigas, tendo em conta que aquilo que é cantado é passível de ser alterado por qualquer pessoa. Na verdade, nem todos os autores são conhecidos porque as cantadeiras nunca tiveram a preocupação de preservar ou registar quaisquer direitos autorais, valorizando e garantindo, apenas, a passagem da cantiga directamente para o povo que a assume como algo seu, comum à comunidade. Os textos cantados são, por sua vez, enriquecidos pela música tocada pelos tocadores de tina, tambores e palmas de madeira e pelos animadores da festa. Todos estes momentos são acompanhados por música, dança e canto, sendo que, as mandjuandadi são um cruzamento entre várias artes; dança, literatura oral e música ganham expressividade nos corpos e nas palavras destes grupos de mulheres. Todos estes elementos contribuem para a criação de um ambiente propício para o desenrolar de uma performance teatral em que as mulheres interpretam várias personagens ao longo do discurso das cantadeiras com o público. O discurso estabelecido é, por assim dizer, um processo poético e artístico de comunicação que vive de metáforas e metonímias de situações. E se, ao mesmo tempo os cantos desvendam mensagens, por outro lado, a linguagem codificada e simbólica esconde factos que necessitam de ser interpretados pelo público. Existem, inclusivamente, termos que ganham significados diferentes para pessoas diferentes num mesmo contexto ou, então, em contextos diferentes onde são aplicados. A palavra “cordão”, que surge em várias cantigas, pode ser um desses exemplos, podendo corresponder a um amuleto ou figurar uma pessoa amada, dependendo do tema e contexto em causa. A multiplicidade de significados e simbolismos tão característicos das cantigas de dito têm um efeito curioso: parecem, primeiramente, comunicar directamente com alguém 14

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em específico e, só depois, com o público, porque a sua descodificação é dificilmente feita por alguém que não esteja familiarizado com o assunto tratado. Acontece, muitas vezes, a pessoa-alvo da cantiga dançar e participar no festejo sem saber que é sobre si que a música fala. Nesse sentido, é necessário conhecer as motivações que levaram à criação do texto em causa para perceber o seu significado. Este jogo de desvendar/esconder é típico das mandjuandadi pois o objectivo das cantadeiras não é de todo serem óbvias mas sim “lançar ditos e incitar dúvidas sobre seu objeto de referência” (Semedo, 2010: 198). As cantigas de mandjuandadi são, portanto, criadas para um contexto específico, sobre alguém em específico e cantadas pelo grupos como se ele próprio fosses a(s) pessoa(s) à qual ou às quais se refere. O contexto em que são cantadas é bastante importante pois deve assemelhar-se às situações em que determinado acontecimento decorreu, o que significa que a performance decorre como se de uma simulação de um determinado episódio se tratasse ao mesmo tempo que visa impedir a sua repetição. Dá-se o exemplo da cantiga N medi (Tenho medo) que fala sobre as pessoas que não têm muito o que fazer e que falam sobre assuntos que podem trazer discórdia nas mandjuandadi. O papel da cantadeira é o de expressar aqui os seus medos mas, também, aquilo que deve ser temido e evitado na sociedade para o seu bom funcionamento. O corpo, tal como nas outras cantigas de dito, é fundamental para a transmissão da mensagem, sendo a dança e a gesticulação o veículo para representar algo, neste caso, a sensação de se estar, de facto, com medo. No momento da cantiga, não é apenas um texto que está a ser cantado mas toda uma performance que recria momentos passados, preservando uma memória partilhada pela comunidade. A performance da cantiga Lai i lai, de entre muitos outros exemplos, junta, não só, a arte como constitui ela própria um arquivo oral bastante importante para a construção histórica da Guiné-Bissau. Nesta cantiga, fala-se sobre o processo de islamização que chegou a África Ocidental e que originou muitos conflitos pela busca do poder e expansão territorial, tanto no domínio religioso quanto no econômico, no comércio naquela zona africana; igualmente, a cristianização e a catequização dos nativos durante a colonização portuguesa, ocupação que envolveu incontáveis guerras de resistência (Semedo, 2010: 205);

já a cantiga Nhani di tongoma8 testemunha o relacionamento sexual entre uma mulher nativa e o homem português em cuja casa servia, durante a época colonial: Nhani di tongoma (…) é tanto a expressão de alegria da mãe por ver a filha casar-se, e se sentir orgulhosa por isso, como também, voz de resignação de quem pouco ou nada pôde fazer para mudar sua própria situação de escrava ou criada da casa dos grandes senhores, onde é sujeita a inúmeras violações, contentando-se, porém, com o fato de ver a filha ascender a um estatuto social diferente do seu (Semedo, 2010: 208).

4. Considerações finais

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O termo tongoma era atribuído a mulheres negras casadas com homens brancos, distinguindoas das outras africanas. 15

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Os exemplos atrás dados revelam o carácter artístico dos grupos de mandjuandadi, que recorrem não só a literatura oral mas também às artes do espetáculo (dança e música) como veículo de transmissão de mensagens. Eles vivem do momento presente, numa relação de proximidade com o público, mas funcionam como ponte entre acontecimentos passados e aquilo que se espera do futuro. À semelhança de todos os movimentos e manifestações artísticas do mundo, também estas organizações comunitárias de mulheres surgiram de um contexto social e histórico específico que permitiu o nascimento de uma arte que acompanha, desde sempre, o desenvolvimento social do país, em toda a sua amplitude. Desse desenvolvimento advêm mudanças e tensões sociais traduzidas na forma como, artisticamente, as mandjuandadi comunicam, seja nos conteúdos abordados, que ganham forma nos corpos dançantes e nas palavras cantadas, seja na música que é tocada. As mandjuandadi vivem, assim, das interacções entre as pessoas e da reinterpretação dessas mesmas interacções, onde as suas performances funcionam como uma espécie de espelho que reflecte a realidade guineense mas filtrado, simultaneamente, por um olhar que questiona moralmente os acontecimentos que ocorrem ao seu redor, na comunidade. As mandjuandadi são, por esta razão, um arquivo oral histórico de preservação de uma memória coletiva que vai sendo enriquecido pelo passar do tempo; pode-se dizer que as mandjuandadi são mesmo uma recriação constante da identidade artística guineense que conserva, paradoxalmente, “algo” da sua essência. Devido à multiplicidade de significados das suas performances, ao complexo modo de funcionamento dos grupos e ao seu carácter temporal e momentâneo (as apresentações públicas acontecem no aqui e no agora) torna-se difícil relatar através da escrita aquilo que as mandjuandadi fazem e são. Neste sentido, as mandjuandadi, enquanto arte efémera e codificada, como quase todas as artes do espetáculo, constituem um verdadeiro desafio para os historiadores de arte, principalmente para aqueles que não se sentem familiarizados com as temáticas abordadas e com a linguagem utilizada. Devemos reconhecer, não só, o valor que as mandjuandadi representam enquanto grupos importantes para a construção da história da arte mas precisamos de ter, também, em conta as possíveis vulnerabilidades subjacentes a uma narração histórica da arte na Guiné-Bissau, nomeadamente no que diz respeito ao olhar e ao papel de quem narra essa história. É necessário, pois, formar, sensibilizar e contextualizar os investigadores e historiadores que pretendam contar não só a história da arte guineense como a arte africana, no geral, e afastarmo-nos cada vez mais da recorrente influência externa que submete e manipula tanto os dados já existentes, como as experiências empíricas, em função da nossa cultura. Como contar uma história sobre a arte africana? A pergunta ecoa, ainda sem resposta definida, mas acredito seriamente que esteja mais consciente em nós nos dias de hoje.

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