Para uma “nova pactuação”: notas sobre a participação cidadã e o desenho da política nacional de cultura

Share Embed


Descrição do Produto

Para uma “nova pactuação”: notas sobre a participação cidadã e o desenho da política nacional de cultura 1.

Nesse ensaio, a perspectiva para uma “nova pactuação” será debatida através do processo participativo inaugurado pelas Conferências Nacionais de Cultura realizadas nos anos de 2005, 2010 e 2013 no campo da política cultural federal. Para tanto, o artigo percorrerá conceitos das ciências políticas, observando as distintas teorias para a área e à própria evolução do Estado-Nação e dos sujeitos que lhes pertence. De fato, incursionaremos no enfrentamento entre subjetividade e cidadania, entre pacto social e Estado; elementos esses que tonificarão o problema central presente neste estudo: são as Conferências capazes de gerar um novo equilíbrio entre as instâncias de regulamentação e emancipação? É possível, através das Conferências, inaugurar um novo paradigma democrático? Há, de fato, uma “nova pactuação”? Para Santos2 (2005) a modernidade se apoiou em um projeto que buscou o equilíbrio entre os pilares da regulação e da emancipação nas sociedades. Para o pilar regulação destacou três princípios: o do Estado (Hobbes), o princípio do Mercado (Locke) e o da Comunidade (Rousseau). Já no outro pilar, o da emancipação, citou os princípios da racionalização e da secularização da vida coletiva como elementos fundamentais.

Porém, esse equilíbrio ao qual se referiu o autor, com a trajetória

capitalista, cada vez se fez mais utópico no seno das sociedades, gerando, na realidade, processos históricos não lineares e contraditórios.

Á luz da teoria da política liberal, e considerando esse processo como tardio no Brasil e ainda hoje incipiente no pensamento político local, Santos (2005) relata a expressão mais sofisticada desse desequilíbrio:

1

Esse artigo é fruto de uma pesquisa produzida para UNESCO e MINC. (Como consultor em Minas Gerais para o programa “Intersetorialidade, Descentralização e Acesso a Cultura no Brasil”, ano de vigência 2013 e 2014) 2 Cabe mencionar que temos este autor como referência central do artigo, embora seja outra a nossa leitura: ela se dará em paralelo com o processo que concerne ao estado brasileiro. A obra de Santos (2005) relaciona-se com o nascimento do Estado Moderno e a evolução do capitalismo (organizado e desorganizado) lido cronologicamente através das experiências dos países centrais.

“Ela [a política liberal] representa no plano político, a emergência da constelação da subjetividade, e como bem nota Hegel, confronta-se desde o início com a necessidade de compatibilizar duas subjetividades aparentemente antagônicas: a subjetividade coletiva do Estado centralizado (Ich-Kollektivität) e a subjetividade atomizada dos cidadãos autónomos livres (Ich- Individualität). A compatibilização é obtida por via da distinção entre Estado e sociedade civil e do conceito ficção do contrato social.”3

Tal afirmação e conflito são sustentados pela consagração do liberalismo econômico no seno dos Estados e é vigorante, em muitos casos, em caráter privilegiado, até os dias atuais. O confronto ao qual nos referimos tem os seguintes pressupostos na escola liberal:

i)

O conceito de subjetividade foi mais amplo que o de cidadania 4;

ii)

O princípio da cidadania esteve contido na esfera civil e política e seu exercício residiram prioritariamente no voto, durante décadas5;

iii)

Há antinomia entre liberdade e autonomia dos cidadãos e o poder de comando do Estado;

O Estado construído em bases liberais, portanto apresentou a tensão entre a subjetividade individual dos agentes da sociedade civil e a subjetividade monumental do Estado (Santos, 2005, p.240). O que regulou essa tensão foi o papel da cidadania que por um lado limitou o poder do Estado; e, por outro, universalizou as particularidades dos sujeitos, cuja finalidade foi o controle social. Para o autor, essa relação apresenta a seguinte consequência: “Ao consistir em direitos e deveres, a cidadania enriquece a subjetividade e abre-lhe novos horizontes de auto-realização, mas, por outro lado, ao fazê-lo por via de direitos e deveres gerais e abstratos que reduzem a individualidade ao que nela há de universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e intercambiáveis no interior de administrações 3

Em Santos, 2005, p.237. “A teoria liberal começa por teorizar uma sociedade onde muitos – no início, a maioria – dos indivíduos livres e autônomos que prosseguem os seus interesses na sociedade civil não são cidadãos, pela simples razão de que não podem participar politicamente na atividade do Estado. As sociedades liberais não podem ser consideradas democráticas senão depois de terem adotado o sufrágio universal (...)” (Santos, 2005, p.238) 5 Outras formas de participação política que não a do voto é excluída ou desencorajada no liberalismo (Ver Schumpeter). 4

burocráticas públicas e privadas, receptáculos passivos de estratégias de produção, enquanto força de trabalho, de estratégias de consumo, enquanto consumidores, e de estratégias de dominação, enquanto cidadãos de democracia de massas.” 6 Até o momento evidenciamos o problema na relação entre cidadania e subjetividade mediadas/controladas pelo marco regulador inerente ao Estado. A superação dessa lógica de subordinação, que gera a sensação fraudulenta do pacto social e da individualidade, no entanto, deverá partir do pilar emancipatório, como se tratará a seguir.

Como antítese à teoria liberal, temos, em outro extremo, a teoria marxista que considera que é através da organização social da produção que se determinará a organização política e cultural. Nesse contexto haverá a contraposição entre o sujeito monumental que é o Estado e o sujeito monumental que é a Classe Operária 7. Porém, a eficácia da subjetividade da classe operária ao nível da emancipação reproduz, à semelhança da cidadania liberal, os efeitos de um “poder” regulador. Ou seja, a classe operária como entidade não opera nas particularidades únicas e subjetividade individual de maneira plena, conduzindo à lógica de representatividade via a abstração e a universalidade das categorias políticas.

Ainda, sobre a subjetividade e a cidadania no Estado moderno, num segundo momento do capitalismo (no pós-guerra) e do liberalismo (frente ao socialismo), é possível avaliar a condução para outro estágio do sentido de emancipação. Por meio de uma aliança e articulação entre o Estado e o Mercado houve a passagem da cidadania civil e política para o que ficaria designado como “cidadania social”, com a conquista de direitos sociais no domínio do trabalho, da habitação, da saúde, da educação, da cultura, etc. Tal premissa foi evidenciada, principalmente, com o surgimento do Estado Provedor (Wellfare State).

6

Em Santos, 2005, p.240. Para refletir sobre cidadãos de democracia de massas, ver Kant (Projeto de Paz Pérpetua, 1795: “a representatividade dos representantes é tanto maior quanto menor for o seu número e quanto maior for o número dos representados”). 7 “A classe operária é uma subjetividade coletiva, capaz de autoconsciência ( a classe-para-si), que subsume em si as subjetividades dos produtores diretos. Tal como em Hegel a burocracia é a classe universal da autoconsciência do Estado moderno, a classe operária é em Marx a classe universal e a autoconsciência da emancipação socialista” (Santos, 2005, p.242)

Marshall (1950) descreveu esse tipo de cidadania como a pertença igualitária a dada comunidade política, e por isso ela não é monolítica, já que é constituída por diferentes tipos de direitos e instituições, sendo produto da história diferenciada e protagonizada por grupos sociais distintos. Aqui o princípio de cidadania se aproxima ao de pertencimento a determinada classes social (ou de grupos de países). Assim, cabe destacar que os direitos sociais foram conquistados a partir da pressão do princípio da Comunidade8 orientada aos outros dois princípios, o Estado e o Mercado, aos quais coube o papel de viabilizá-los.

A classe operária ou a sociedade civil, portanto, deve ser considerado não como o sujeito monumental da emancipação, e sim, como o agente das transformações progressistas (emancipatórias, nesse sentido) no interior do capitalismo. A obrigação política horizontal do sentido de Comunidade se submete, assim, à obrigação política vertical entre o cidadão e o Estado. Portanto, nota-se, que na realidade, com a cidadania social, houve um aprofundamento, da regulação em relação à emancipação 9.

O impasse entre cidadania e subjetividade, que determina a dimensão cultural ou político-cultural, ademais dos impasses económicos e/ou sociais, é o que fomentará a redefinição de estratégias e novas alternativas emancipatórias na contemporaneidade frente à crise inerente ao Estado. É nesse contexto, que ativamos o papel das Conferências e avaliamos o grau da participação popular na definição das políticas públicas brasileiras. Para Santos (2005) a crise é, em parte, a revolta da subjetividade contra a cidadania, da subjetividade pessoal e solidária contra a cidadania atomizante e estatizante. (cf., 2005, p.249).

Assim, a força revigorante para uma democracia na qual exista um equilíbrio entre os princípios regulador e emancipador, somente seria possível ao nos aproximarmos da teoria rousseauniana que eleva o princípio da Comunidade como o único capaz de estabelecer essa situação. Para Rousseau, a vontade geral tem que ser construída por meio da participação cidadã, com autonomia e solidariedade. Para ele o 8

A Comunidade assenta na obrigação política horizontal entre indivíduos ou grupos e na solidariedade participativa e concreta decorrente dessa relação. 9 Cabe mencionar que a expansão da cidadania ampliou o leque de subjetividades. Por outro lado, os direitos sociais vinculados ás instituições estatais aumentaram o peso burocrático, o controle, a vigilância (Ver Foucault); sujeitou o individuo à rotina de produção, ao espaço urbano desagregador e atomizante, além de haver desarticulado às atividades de solidariedade. (Santos, 2005, 244-247).

contrato social não se assenta numa obrigação política vertical cidadão-Estado, como no modelo liberal ou no próprio Estado Provedor, mas sim numa obrigação política horizontal cidadão-cidadão na qual se faz necessário uma associação política participativa10. Para Santos (2005): “A ideia da obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a ideia da participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade geral são as únicas susceptíveis de fundar uma nova cultura política e, em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo e na produção socialmente útil.” 11 No Brasil o preceito liberal é tardio (somente a partir dos anos 30 se conquistou no país, direitos trabalhistas, sufrágio universal, ente outros.) e é somente a partir dos anos 60 e 70 que a sociedade civil, de fato, se organizou para a ampliação do sentido de cidadania 12.

Através da redemocratização (1985) os novos movimentos sociais,

partidos políticos e a sociedade civil se reorganizaram e estenderam suas demandas rumo à conquista de uma cidadania plena e igualitária. Coube, a partir de 2003, com a ascensão de Lula13, cumprir o desafio para a garantia e ampliação do Estado de direito, validado através de uma democracia mais participativa e descentralizada. Na abertura da III Conferência Nacional de Cultura 14 o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto de Carvalho, destacou, por exemplo, que se até o ano de 2002 haviam sido realizadas 27 Conferências no país foi entre 2003 e 2013 (Era Lula-Rousseff) que esse número multiplicou-se à quantidade de 87 Conferências nos mais diversos setores. Este indicador pressupõe uma tendência e estratégia tanto para a gestão pública pactuada como para própria governabilidade petista na esfera nacional.

O jurista Paulo Bonavides (2003) é um dos defensores da democracia participativa em contraposição ao sistema político representativo. Para ele esse novo sistema “não possui a malignidade autocrática do presidencialismo e a instabilidade

10

Para tanto não basta igualdade formal entre cidadãos, é necessária uma igualdade substantiva. (Ver Rousseau em Discurso sobre a Origem das Desigualdades) 11 Em Santos, 2005, p.263. 12 Com o Estado ditatorial até a cidadania política esteve sobre ameaçada. 13 Para Santos (2005) o fenômeno Lula é fruto de “um poderoso movimento operário, democrático e popular” (cf. 2005, p.257). 14 Em novembro de 2013.

anárquica do parlamentarismo” 15. Nomeia como “Estado Neo-Social da Periferia” e/ou “Estado Democrático-Participativo” àquele no qual há maior intervenção, presença e participação popular direta, conferindo, assim, às políticas governamentais maior legitimidade, coesão e controle. Santos (2005), por sua vez, enuncia sobre uma nova teoria democrática, doravante denominada de “pós-moderna”, na qual deve haver o diálogo entre governo e sociedade por meio da criação de instâncias de representação política, além da criação de arenas públicas para a participação cidadã.

As Conferências de Cultura visaram englobar esse arcabouço teórico respondendo às novas estratégias para a gestão democrática: instâncias de representação foram criadas (os Conselhos), a arena de participação se consolidou de maneira descentralizada (Conferências nas três instâncias de poder), e as deliberações e decisões são pactuadas, tanto pela participação da sociedade civil como de membros do governo ao longo do processo.

Num estágio inicial, quando da I Conferência Nacional de Cultura, se reconheceu o público especializado e sua diversidade e representatividade – “(...) de todas as regiões do país, de quase todos os estados brasileiros, e que este conjunto, aqui reunido, simboliza uma parcela importante da cultura nacional”

16

- reconheceu-

se também o momento histórico e o significado para a Conferência: “Vocês que participam desta Conferência são o Brasil (...) E o Brasil está em Brasília para afirmar, à sociedade brasileira, á mídia e aos governos com todas as letras: cultura é prioridade.”17

Tal prioridade estaria demonstrada através das mudanças de paradigmas para a gestão do setor e se comprovariam quando, por exemplo, o investimento público atingisse a margem de pelo menos 1% do ROT, excetuado os mecanismos de renuncia fiscais; quando os governos atuassem de forma articulada no setor; ou quando as

15

Em Bonavides, p. 230, 2003. Para o autor as formas representativas atuais são “oligarquizadas, desagregadas, corrompidas e degradadas” (cf. p.2, 2003). 16 Em Gil & Ferreira, 2013, p.384. É interessante notar o fato de que um discurso dirigido para um “público reverenciado” pelo enunciador, à priori, é confortante e acolhedor (para o expectador) antes mesmo da exposição do seu conteúdo. 17 Cf., 2013, p.384. Em relação à prioridade, Gil criou o decálogo “básico” da cultura, repetido em coro e como um mantra (outra vez envolvendo dialogicamente “para dentro” o expectador): “CULTURA É (1) política social, (2) política econômica, (3) política urbana, (4) direito, (5) cidadania, (6) necessidade, (7) prazer, (8) o que nos situa no tempo e espaço, (9) bem-estar e prazer; cultura é (10) desenvolvimento”.

políticas fossem formuladas de forma democrática para a ampliação do acesso e da garantia de sua diversidade. O Ministério nesse momento tinha por objetivo “acelerar o curso do rio, para induzir o processo”

18

, correspondendo ao papel da então primeira

Conferência responder ás três questões essenciais pautadas: “1) O que é, para que serve, como deve se organizar, como deve funcionar e como deve se financiar o Sistema Nacional de Cultura?; 2) Qual deve ser a estratégia para a viabilização do SNC e que experiências práticas de SNC podem se empreender já?; e por fim, 3) Que diretrizes devem orientar a realização do Plano Nacional de Cultura e o funcionamento do Conselho de Políticas Culturais do MinC?” 19. Nas palavras do Ministro, Gilberto Gil correspondia à I CNC: “elaborar de modo participativo um plano de voo, capaz de articular e amplificar a atuação do poder público na cultura, que consagre a conexão entre cultura e desenvolvimento, cultura e inclusão social, cultura e cidadania e cultura e identidade” 20.

Assim, a I CNC, representou simbolicamente, o marco inicial para a consolidação do Sistema Nacional de Cultura - SNC e a elaboração do Plano Nacional de Cultura - PNC. A criação desses novos instrumentos legais seria fruto da maior mobilização, reflexão e debate entre sociedade e governos já realizado no país. Ainda, confirmou-se, por meio dela, a estratégia rumo a uma democracia participativa, com ampla representatividade e, portanto, legitimação das políticas públicas postas em prática a partir desse marco.

A II CNC, realizada em 2010, cinco após a primeira, confirmou, primeiramente, o mérito do presidente Lula 21 para a consolidação de “uma nova compreensão de cultura: como dimensão simbólica da vida social, como um direito básico de cidadania para todos os brasileiros e como uma poderosa economia, geradora de trabalho e renda”22.

18

Cf., 2013, p. 385. Cf., 2013, p. 386. 20 Cf., 2013, p.387. 21 Como recurso discursivo para credibilidade se processou o mecanismo da figuração icónica através da citação do presidente Lula. 22 Cf., 2013, p.523. 19

A cultura como prioridade (referencia ímpar da I CNC) na pauta das políticas públicas se somou aos projetos e programas de inclusão sociocultural desenvolvido pelo governo federal e que tiveram seu reconhecimento internacional, “servindo de inspiração até para outros países” 23. Sobre a transformação da política cultural federal se constatava: “Em vez de fazer uma política de balcão, estabelecemos uma política de muitas mãos e agentes sociais, institucionais, culturais e políticos. Abandonamos a política feita dentro dos gabinetes e ganhamos as ruas de todo o país. Passamos a ocupar os espaços públicos. Avançamos rumo a uma sociedade de leitores e com acesso pleno à cultura”. 24 O Plano Nacional de Cultura - PNC foi reconhecido como o maior mérito para as políticas culturais do país para os próximos 10 anos: “Elaborado a milhares de mãos, o plano passou por um intenso processo de consultas públicas (...) e audiências no Congresso Nacional” (o PNC ainda estava em fase de votação no Congresso Nacional naquele momento)25.

Em 2013, já na III Conferência de Cultura, as 53 metas do PNC (como lei desde 2010, Lei nº 12343/2010) foram o norte orientador do encontro. De fato a aprovação do Sistema Nacional de Cultura (Emenda Constitucional nº 71/2012, art. 216 A), representava um avanço institucional, embora, se constituí também como um desafio legal. A III CNC foi a etapa conclusiva de um longo processo celebrado em 2013. Seu inicio deu-se através das etapas das Conferências Municipais e Intermunicipais de Cultura – que envolveu cerca de 3.500 municípios, seguido por Conferências Estaduais – em todas as unidades da federação e por Conferências Livres que debateram os diversos aspectos do universo cultural. Houve também, em caráter inaugural, a realização da primeira Conferência Virtual de Cultura. É notório o incremento dos mecanismos de participação e da consolidação de cultura participativa no âmbito cultural nacional.

O perfil dos participantes dessa etapa foi destacado pela inegável diversidade presente: povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas, afrodescendentes,

23

Cf., 2013, p.523. Cf., 2013, p. 524. Nota-se um tom de enfrentamento, um antes e um agora. 25 Cf., 2013, p. 524. Nesse momento cita explicitamente o Congresso Nacional como artifício para pressionar essa entidade para o fim enunciado: uma política para os próximos 10 anos [via aprovação do PNC]. 24

povos ciganos, mestres da cultura popular, movimento LGBT, entre outros. A heterogeneidade foi marcada também pela ampla cobertura geográfica, já que todos os estados apresentaram delegações próprias, com atores tanto da sociedade civil como de gestores locais. Ainda notou-se a presença organizada dos diversos segmentos e linguagens artísticas, seguindo a própria distribuição dos colegiados temáticos. Um fato revelador foi o aumento substancial da participação da sociedade civil, que segundo a Revista do MINC III CNC, correspondeu a 70% do total de delgados com direito a voto.

Fato revelador relacionou-se às categorias representadas e que de certo modo nos permite prosseguir com a reflexão sobre a “tensão” continua entre as subjetividades e a cidadania. Por um lado, confirma-se a presença heterogênea que imprimiu a característica da diversidade cultural nacional, sinalizando para o êxito perseguido pelo SNC e as políticas em voga no que tange o direito cultural estendido a todos os cidadãos. Por outro lado evidenciou certa disputa para a centralidade de ações dirigidas especificamente a determinados grupos ou causas em detrimento de uma política mais abrangente e totalizante. Sobre a prerrogativa e o entendimento subjetivo de termos como “justiça, reparação histórica, direitos sociais e cidadania plena” há uma tentativa para a aprovação de propostas cada vez mais segmentadas e orientadas de maneira bastante específica26.

O conceito de diversidade em si pressupõe a afirmação de diferenças. O papel da democracia participativa nesse contexto se faz complexo e deve zelar para que o conflito imperativo de nichos específicos seja evitado em prol da equidade. Para aprofundar ainda mais essa problemática somam-se os regionalismos e as desigualdades em relação á distribuição dos ativos culturais no território nacional. Para citar um exemplo, foi comum ao longo da III CNC a articulação em blocos estaduais das delegações para definir interesses, prioridades e estratégias comuns. O presente autor participou da reunião mineira que incluiu tanto os delegados da sociedade civil como os representantes governamentais de municípios e da Secretaria Estadual de Cultura. Se na etapa estadual, os delgados municipais e a sociedade civil pressionavam o ente estadual, na etapa nacional, se uniram em único bloco para pressionar o ente federal. Há, portanto, uma lógica implícita de enfretamento entre os distintos poderes e instâncias, 26

Vale mencionar que várias propostas foram polemizadas e debatidas não só em relação ao seu conteúdo e forma de execução, e sim a quem se dirigiam. É o que defino como a necessidade de uma “substantivação estratificada” do sujeito em micro categorias.

enquanto na verdade, deveria haver práticas efetivas de cooperação. Não é nosso intuito esgotar as motivações e os processos de solidariedade para a ação consensual entre os atores da III CNC. A reflexão apresentada até o momento se refere á necessidade para atentar aos perigos de exclusões ou privilégios em função do “empoderamento” setorial ou segmentário das diversas categorias em jogo, um risco para a própria concepção de democracia (que como já indicamos, num processo participativo, não deve maquiar-se através da representação da maioria em contraposição aos grupos minoritários ou viceversa).

Entretanto, essa configuração diversificada demonstra e destaca as mudanças de paradigmas em jogo. Por contradições históricas, até 2003 se privilegiou no país, e na execução de sua política cultural no âmbito federal, uma cultura apoiada nos preceitos da economia liberal. Uma concepção que encontrou na relação Estado e Mercado suas égides regulatórias, e que de forma explicita garantiu uma cultura de mercado cujos “valores” foram: a indústria cultural, a cultura de massa, o entretenimento, a concentração e as vantagens competitivas. Na atualidade se está revelado a importância da participação cidadã para o desenho das políticas públicas, gerando um esforço estatal para o atendimento, “compensatório”, de uma demanda reprimida e inelástica no campo cultural do país. Dessa forma, o recurso estatal aplicado para atender essa nova demanda (cidadã) demonstra-se insuficiente e mal distribuído, principalmente quando comparados aos investimentos tradicionais e de cunho mercadológico para o campo cultural. Clarifica-se, assim, uma cisão iminente no cerne da própria política cultural federal no que tange a distribuição de recursos: se mantém o status quo para a cultura de mercado, confirmando a economia como a esfera chave para esse universo, e, ao mesmo tempo, se inova na proposição de uma política que abarca a cultura como direito, ainda que sem os instrumentos ideais e os recursos necessários, confirmando sua posição deficitária ou marginal. Ao afirmar o campo econômico, o Estado se transveste, por meio da sua burocracia, numa instância estanque no que tange sua capacidade e velocidade para a execução de ações transformadoras. O que pretendemos demonstrar é que tais mudanças de paradigmas, ainda que destacadas e descritas (planejadas pelo MINC), não encontram ecos e motivações similares nas demais esferas de poder (demais ministérios, no congresso ou senado, em comissões, etc.) para concretizar e inaugurar, de forma prática e objetiva, ações rumo a uma nova política cultural. Um dos maiores desafios para o MINC (e que o isola) refere-se à necessidade da ampliação das

fontes de recursos e investimentos diretos para a realização das políticas sugeridas (em forma de lei).

Tal perspectiva analítica é confirmada através do próprio temário da III CNC que expõe os desafios para a consolidação do SNC. Na verdade, a palavra desafio poderia facilmente ser substituída pela palavra obstáculo, se considerarmos que desde a II CNC em 2010 (e porque não da I CNC em 2005), clama-se pela transformação das regras e normas, que seguem o ritmo da inércia, dado a assimetria na confluência das relações entre Estado, Mercado e Sociedade no Brasil.

Como já elucidado pela teoria, a democracia participativa, enquanto espaço de consulta e deliberação, se completa pela transformação regulatória e emancipatória. Do ponto de vista regulatório, no caso das Conferências de Cultura, o que se percebe são impasses e instabilidade para a concretização das normas, com avanço bastante modesto. Do ponto de vista emancipatório, se nota atendimentos pontuais e incompletos para a garantia da totalidade dos direitos culturais segundo a marca presencial dos participantes.

Com relação ás propostas aprovadas na III CNC é de fácil percepção que a maioria delas já é reivindicação antiga, muitas delas contempladas no próprio PNC, cujo peso é de lei27. Por outro lado, a dinâmica da III CNC revela que o modelo esgota-se e é incapaz de se reinventar para dinamizar os mecanismos de pressão para a transformação almejada. Uma possibilidade de mudança se relaciona com a capacidade do próprio Estado diagnosticar o setor, as evoluções e práxis. Tal proposição seria importante e extremamente útil, por exemplo, para o escalonamento, re-definição de prazos e custos, compartilhamento de deveres e cooperação mútua entre os agentes para otimizar o cumprimento de determinada proposta-meta.

Assim, o processo de democracia participativa no Brasil é novo e ainda se “teatraliza” num ambiente político com viés e paixões populistas28, com aval da 27

O PNC, com projeto de lei para ser executado em até 10 anos, cuja validade no caso é 2020, opera como um “álibi” do governo enquanto não executor de todas suas metas até o momento. Tal fato garante a sensação da existência de uma dita “pactuação”. 28 Não querendo referir-me de forma depreciativa com relação ao termo, e sim indicar uma re – politização da sociedade com a ascensão de um governo de base popular ( e operária) no país a partir de 2003.

sociedade civil no processo. A democracia participativa, conforme apresentado impõe mudanças mais radicais, com compromisso da ordem do regulatório para com o princípio emancipatório, fato ainda utópico num país cujas instituições de representação são conservadoras. Soma-se a ambiguidade do regime, que por um lado é provedor e assistencialista e por outro liberal.

Considerações Finais Conforme argumenta Lia Calabre (2009) para se falar em políticas culturais hoje no país é necessário avaliar sua ausência. Uma ausência histórica evidenciada em todos os entes da federação. Foi somente a partir de 2003, por iniciativa do governo federal, que a cultura passou a ser compreendida como um direito do cidadão. Tal transição do local da cultura impunha ao campo das políticas públicas para a área os princípios da universalização (com cobertura do território nacional) e da democratização (tanto na fruição e acesso, como no fazer cultural).

É a partir desse cenário que o governo federal, por meio do MINC, se propõe a desenvolver uma política cultural para o país. Era necessário um novo modelo de gestão que considerasse a diversidade cultural do país como fator de identidade nacional, por mais paradoxo e complexo que possa parecer. A estratégia possível para o êxito de uma política orientada ao cidadão e à diversidade cultural estava na capacidade de descentralização da própria política nacional. Era necessária uma repactuação entre os entes federativos e o envolvimento da sociedade nesse processo. É nesse contexto que entrou em cena o Sistema Nacional de Cultura como norte orientador para a política cultural nacional e cujos arcabouços correspondiam ao próprio desafio para a institucionalização da área cultural. Os avanços dessa política em relação à participação, em pouco mais de uma década, já se fazem notar: o SNC tem peso constitucional (art. 216 A da CF), todos os Estados já estão aderidos, o número de municípios em processo de adesão é crescente e a sociedade civil se faz presente nos Conselhos de Cultura, Câmaras Setoriais, Colegiados, e outros.

As Conferências de Cultura são parte integrante desse contexto de inovação das políticas culturais. Inserem-se como uma instância fundamental para a consolidação do

princípio emancipatório, garantindo a pluralidade de vozes da sociedade brasileira. Como demonstramos a realização das três Conferências Nacionais de Cultura, em 2005, 2010 e 2013, resultou na consolidação de uma ampla agenda e de demandas concretas para o poder público. Na III CNC verificou-se que essas demandas ressoaram, se repetiram e se reafirmaram. Ou seja, a política cultural já está pautada e legitimada pela sociedade e atores do governo. Em tese, se consolidou uma importante instância de participação e representação, elementos esses comuns à democracia participativa. Porém, a velocidade de resposta e retorno dos entes públicos das três instâncias de poderes é bastante mais lenta que a capacidade de deliberação da sociedade civil, colocado em risco todo o processo construído até o momento.

No caso do campo cultural os desafios e interesses em jogo são muitos. Como exemplo, se lida com o secular obstáculo da carência de recursos para a área da cultura ou com a má aplicação desses recursos – em ações que tomam a cultura como eventual ou ocasional; ou dada associação do financiamento com atores do capital concentrado – indústria cultural, mass media, etc. Contudo, o legado das demandas (propostas e metas) gerado a partir das Conferências institucionaliza, inclusive, os meios, as fontes, regras e mecanismos para o redirecionamento dos investimentos na área da cultura.

Para a consolidação da Democracia Participativa, impasses como o descrito acima, devem ser equacionados com certa velocidade pelo que denominamos como princípio regulador. Se a instância de Conferência (via sua Plenária) realmente tem o peso para garantir as transformações que estão em marcha, deveria haver a apreciação de resultados e avaliações constantes que poderiam resultar na própria alteração ou adaptação de uma meta/proposta. Tal fator permitiria maior transparência, confiança e co-reponsabilização entre os entes acordados e os representantes da sociedade civil envolvidos diretamente no processo. Por outro lado geraria novos instrumentos de visibilidade, promoção, sensibilização e pressão (de outros atores e setores cujas decisões implicam diretamente no resultado de uma proposta) rumo á consolidação de uma política pública para a área da cultura que responde e parte da própria sociedade.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AMARAL, Alysson Felipe (2010), “Marcas da reforma do Estado no Brasil: uma genealogia das Políticas Públicas de Cultura Pós redemocratização”, Fundação Casa de Rui Barbosa. Em: http://culturadigital.br/politicaculturalcasaderuibarbosa/files/2010/09/03-ALYSSONFELIPE-AMARAL.1.pdf. BATISTA, Vanessa Oliveira (2010), “A cultura na legislação brasileira: a constituição federal de 1988 e as políticas públicas para sua efetivação”, Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro2009, Rio de Janeiro: UERJ/Decult. BONAVIDES, Paulo (2003), Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional de luta e resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade, São Paulo: Malheiros. CALABRE, Lia (2009), “Políticas Culturais: questões do tempo presente”, Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro 2007-2008, Rio de Janeiro: UERJ/Decult. GIL, Gilberto & JUCA, Ferreira, Cultura pela Palavra. Coletânea de artigos, entrevistas e discursos dos ministros de cultura – 2003-2010, Rio de Janeiro: Versal Editores. MARSHALL, T. H (1950), Citizenship and Social Class and other Essays, Cambridge: Cambridge University Press. RUBIM, Antonio Albino Canelas (2010), “Políticas Culturais no Brasil: Passado e Presente”, Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro 2009, Rio de Janeiro: UERJ/Decult. Revista do MINC III CNC, 2013. Em: http://www.cultura.gov.br/documents/10883/0/revistaatualizada/db4b3aad-ebe3-4ac58410-ea9db367aa03 SANTOS, Boaventura de Souza (2005), Pela mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade, São Paulo: Cortez Editora.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.