Paradigmas artísticos, uma abordagem cinematográfica

September 2, 2017 | Autor: Leonor Reis | Categoria: Contemporary Art, Cinema
Share Embed


Descrição do Produto

LEONOR NEVES DA COSTA LUIS DOS REIS

“VIDA E ARTE: OS PARADIGMAS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX Uma abordagem Cinematográfica”

PORTO 2013

UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA Centro Regional do Porto Escola das Artes Licenciatura em Som e Imagem

“VIDA E ARTE: OS PARADIGMAS ARTÍSTICOS DO SÉCULO XX Uma abordagem Cinematográfica” POR Leonor Neves da Costa Luís dos Reis

Trabalho para a unidade curricular: “Correntes da Arte Contemporânea” Orientador: Prof. Doutora Lara Castro

PORTO 2013

Sumário. Introdução ........................................................................................................................ 3 1. Sobre a essência do Cinema ................................................................................... 4 2. Arte da realidade: Irmãos Lumière / Neo-realismo italiano..................................... 5 3. Realidade da arte: A Montagem Soviética ............................................................. 6 4. Reaproximação da arte à realidade da vida: Andrei Tarkovsky ............................... 7 Conclusão ........................................................................................................................ 8 Bibliografia ...................................................................................................................... 9

Introdução. A abordagem mais “óbvia” a este tema partirá das chamadas belas artes, uma vez que segundo elas se criaram os paradigmas artísticos do século XX, nomeadamente a relação entre arte e realidade, precisamente o tema deste trabalho. Optei, contudo, por abordá-lo numa perspectiva cinematográfica, pois, não só é essa a minha área de estudo e de interesse maior, como me pareceu ser uma abordagem não inédita mas certamente menos habitual. Isto porque estes paradigmas, e a mudança entre eles, que na pintura, por exemplo, são fáceis de identificar e datar, no Cinema, simplesmente não os encontramos nos mesmos termos. Daí que a minha intenção de criar um paralelismo entre aqueles paradigmas nas artes plásticas e os mesmos, no Cinema, se tenha revelado quase impossível; não só o Cinema é muitíssimo mais recente, como assenta sobre princípios distintos do que os que fundamentam as belas artes – não esqueçamos que o Cinema além de um produto da modernidade, é-o também da era da reprodutibilidade técnica, o que por si implica uma série de pressupostos como a inexistência da aura, com a qual as outras artes se debateram durante séculos. Ciente de tudo isto, tentei focar a minha atenção no fundamental dos pressupostos de cada um dos paradigmas artísticos em questão: a arte da realidade – a reprodução mimética da realidade; a realidade da arte – a valorização do objecto pelas suas qualidades intrínsecas, o objecto como fim; reaproximação da arte à realidade da vida – a ausência de especificidade intrínseca do objecto, e desvalorização do conceito de autor, diluindo-se a produção artística na cultura de massas. A partir daí, procurei encontrar estes mesmos pressupostos (talvez não pela ordem que os encontramos na pintura e sem algumas das características que nesta lhes identificamos), alguns mais dissimulados e outros mais assumidos, mas de uma forma ou de outra, presentes na História do Cinema. A uma leitura individual de cada um dos paradigmas, farei uma proposta de adequação de determinado “discurso” cinematográfico àquele, assumindo eventuais diferenças, mas afirmando, justificadamente, a sua correspondência fundamental.

Página | 3

1. Sobre a essência do Cinema. O Cinema distingue-se das belas artes, em primeiro lugar, por ser uma arte de outra natureza, não espacial como a pintura mas temporal – diz Bazin, “ (…) a imagem das coisas é igualmente a imagem da sua duração (…)”1. Por isso, apesar da sua existência física (por mais “digital” que seja, tem sempre um suporte material, e por natureza, reproduzível), o Cinema é, essencialmente, tempo. Como diz Tarkovsky, o cineasta, à imagem do escultor, esculpe no tempo; a sua base é um bloco de imagens, tal como a o escultor é um bloco de pedra, que molda como entende retirando-lhe tudo o que julgar excessivo ou irrelevante. Isto, a meu ver, prova que o Cinema, ao contrário da pintura, é, ou deve ser, uma arte de síntese, que prima o verdadeiramente essencial num mundo cada vez mais saturado visualmente. Mais do que isso, independentemente do género, o Cinema (se exceptuarmos a animação) é sempre mais “real” do que a pintura, e por isso sempre mais próximo da vida e da natureza do que aquela, pelas simples razão de que trabalha com, e a partir da realidade; a imagem, por muito encenada que seja, não deixa de ser uma imagem, e como tal há sempre algo nela que é palpável; a pintura, por muito que pretenda alcançar a realidade, é sempre inevitavelmente mediada pelo olhar do pintor. Naturalmente que esta questão é discutível, tal como tudo na arte, é sempre relativa a quem o diz, à sua experiência estética e personalidade artística; parece-me contudo uma leitura interessante na medida em que se trata de uma visão estética que, independentemente de concordarmos ou não ser essa a que melhor caracteriza o Cinema, está sem dúvida presente na sua história. Essa presença é revelante para o nosso tema porque aquela síntese é talvez um primeiro passo no sentido da reaproximação entre a vida e a realidade da arte, de que falaremos mais à frente. Todas estas palavras revelam-se inúteis quando percebemos que o Cinema é muito mais do qualquer uma delas, independentemente do seu autor, consegue “traduzir”; o Cinema não se explica, vive-se, e consoante isso, tenta-se arranjar palavras que o traduzam; estas, só deixarão, contudo, de ser falaciosas no momento em que quem as lê, partilhe daquela vivência. 1

Retirado e traduzido de “What is Cinema?”, André Bazin, p. 15

Página | 4

2. Arte da realidade: irmãos Lumière e Neo-realismo italiano O medo das pessoas perante as primeiras imagens de cinema, que hoje nos parece uma reacção ridícula, é mais do que compreensível se pensarmos que até então o movimento visual nas artes resumia-se à dança, e que só com o Cinema se tornou possível ver a realidade tal como ela era, sem qualquer interpretação - não retratada, mas reproduzida. Esta fidelidade à realidade marcou naturalmente o nascimento e primeiros passos do Cinema – a técnica antecede sempre a estética e a poética –, que teve nos irmãos Lumière os seus primeiros representantes. Foram precisamente os irmãos Lumière, que escolhi para caracterizar o primeiro paradigma artístico: a arte da realidade. Arte da realidade que, na pintura, marcou toda a produção até à primeira metade do século XX, altura em que precisamente, vemos nascer o Cinema, caracteriza uma acepção artística que nesta arte se baseia, numa primeira instância com os irmãos Lumière, na pura reprodução de situações e personagens reais, e mais tarde com o neo-realismo italiano, na encenação dramática dessas mesmas situações e personagens. Parece-me mais interessante falar não em cada um individualmente, mas como extremos de uma “escalada” de realismo que nasce com os Lumière e se realiza plenamente no final da II Guerra Mundial, com figuras como Rossellini, DeSica, Visconti no neo-realismo italiano. Esta consideração, de que uma realidade ficcionada é “mais realista” do que a pura captação de situações efectivamente reais, pode parecer paradoxal, mas explica-se, parece-me, porque se preocupa em retratar o ser humano e o seu mundo, não só exteriormente, mas principalmente interiormente; a força do neo-realismo está nas suas narrativas cruas e personagens sinceras, com as quais nos identificamos ao passo que os trabalhadores a sair da fábrica, apenas os reconhecemos. O sofrimento e a miséria da população no pós-guerra apresentam-se-nos nos filmes neo-realistas, segundo Bazin, não como discurso mas como histórias, pois são os factos que ditam a forma e não o contrário. Isto aplica-se não só na narrativa, como na produção do filme, cuja falta de recursos técnicos e a não-utilização de actores profissionais caracteriza o próprio estilo neo-realista, diferenciando-o do drama social americano onde a segurança dos estúdios e das estrelas se impõe à sinceridade das ruas e das ruínas, imperando a forma sobre os factos.

Página | 5

3. Realidade da arte: a montagem Soviética Àquele realismo inicial dos Lumière, surgiu nos anos 20, motivada principalmente pela Revolução Russa de 1917, a escola soviética de Eisentein, Vertov e Pudovkin. A minha escolha da escola soviética como exemplo, na história do Cinema, do paradigma da realidade da arte, prende-se com o facto de este se caracterizar pela valorização do objecto enquanto tal. Se até então o foco estava no tema, naquilo que era retratado, passou a está-lo no meio, na forma como era retratado; pegando novamente nas palavras de Bazin, não no facto, como no neo-realismo, mas na forma. No caso da escola soviética, “o ênfase é na técnica, na construção, na experiência”2, sendo a montagem – conceito criado pelo próprio Eisenstein – a base não só da construção formal, como da construção narrativa. A ideia de interpretação está também presente neste estilo cinematográfico, pois a montagem consiste numa dissonância quer entre o som e a imagem, quer entre imagens sucessivas, cuja tensão aí criada, suscita pensamentos e interrogações ideológicas. Eisenstein apelidou de colisão, esta discrepância entre planos, para sublinhar a sua ideia de que as transições entre imagens deviam consistir não em passagens ligadas e subtis (tentando assim esconder a edição e criar um todo coerente e verosímil), mas em passagens violentas, conflituosas; quanto mais violentas (incongruentes) forem as passagens, maior é o impacto no espectador e maior é a tensão criada – é esta tensão que vai determinar o ritmo da edição. A questão da autoria, que caracteriza o paradigma artístico da realidade da arte, não se verifica na montagem soviética; há, pelo contrário, um certo hermetismo, pois o filme está como que fechado em si mesmo, na sua forma (montagem). Compreender o filme implica aceitar a sua construção e deixar que as colisões às quais somos expostos nos suscitem as ideias pretendidas. Existe ainda uma esteticização pois este cinema é assumidamente “antinaturalista, baseado nos poderes da composição pictórica e na representação estilizada.”3. Com a montagem soviética, o Cinema ganhou uma nova dimensão, um novo sentido que Barthes cunhou de “terceiro sentido” ou “sentido obtuso”, que transcende o intelecto e que abre por completo, o campo de significação. Encontramo-lo, não na linguagem ou nos símbolos, mas na própria essência do filme – o puramente fílmico. 2 3

Retirado e traduzido de Film Theory: an introduction, Robert Stam, p. 38 Idem, p. 40

Página | 6

4. Reaproximação da arte à realidade da vida: Andrei Tarkovsky Disse no início deste trabalho que o Cinema é, ou deve ser, uma arte de síntese; disse também que o Cinema era mais real do que a pintura, e assim, mais próximo do Homem e da vida. Creio que depois de tudo o que já disse, essa ideia se vem tornando cada vez mais clara; falta-me contudo falar daquela que é para mim a derradeira forma do Cinema, a sua forma ideal que coincide com o paradigma da reaproximação da arte à realidade da vida. Os pressupostos artísticos que acompanham este paradigma na pintura, não se verificam em nenhum movimento ou estilo na História do Cinema, mas subjectividade do nome deste paradigma permite-nos fazer dele outras leituras que transcendem tais pressupostos, ou que pelo menos não se limitam neles. Daí a minha opção pelo cineasta russo Andrei Tarkovsky cuja obra é o espelho das infinitas intersecções da vida na arte e da arte na vida. Aquilo que distingue Tarkovsky da maioria dos realizadores é a honestidade das suas imagens. Elas têm um ritmo próprio, que não é o do autor, mas os dos objectos e das vidas nelas contidas. Tarkovsky não determina a duração dos planos, pois não é uma decisão que lhe caiba; ele sujeita-se aos ritmos da vida e da natureza às suas energias, sujeita o seu Cinema ao Tempo, não a um tempo que deseja e constrói, mas um Tempo que pode apenas “esculpir” e que a partir, e em redor do qual, constrói as suas narrativas e tudo o que as compõem. Apesar de reconhecido, Tarkovsky é mal-entendido: os seus filmes não são simbólicos, nem a sua compreensão requer uma interpretação filosófica ou teológica. Os seus filmes, que nascem das energias e dos ritmos da vida, são sinergias entre a vida e a arte que requerem apenas que nos despojemos das nossas promiscuidades e que os contemplemos. A riqueza dos seus planos, das suas sequências e transições transcende as codificações e significações que gostamos de atribuir e que muitas vezes impomos erradamente. Tarkosvky rejeita os códigos, assim como rejeita a ideia de interpretação: os seus filmes devem ser objecto de sensação e não de descodificação. Os filmes de Tarkovsky sugerem uma reaproximação da arte à realidade da vida, pois é a partir da vida que brota a arte, é ela que a medeia face ao homem, e é nela que a arte resulta, como um ciclo contínuo e infinito – arte, vida, vida, arte.

Página | 7

Conclusão. A minha intenção com este trabalho não é, e nunca foi, a de afirmar qualquer tipo de verdade artística, nem ainda a de estabelecer comparações entre diferentes artes ou forçar relações entre artes e paradigmas; mas somente a de sugerir uma leitura e um olhar diversos, sobre paradigmas e ideias artísticas que tendemos a enclausurar em contextos e pressupostos estéticos demasiado redutores, que inibem um olhar mais profundo e sincero sobre os mesmos. A arte não se esgota no formalismo da sua construção, nem essa construção se esgota nos seus recursos, técnicas ou tendências. A arte, como a vida, não é um caminho certo, pensado e estruturado, consciente e intencional, construído somente sobre os seus pressupostos, sob as suas regras e ideais; a arte não é hermética, nem pode sê-lo; a arte e a vida não são duas realidades distintas nem duas línguas estranhas, mas duas dimensões do mundo e do ser humano cuja existência depende das intersecções de uma na outra. Arte é vida e vida é arte, e o Cinema é tão capaz de o demonstrar como qualquer pintura ou peça escultórica; e é esta, outra ideia que quis sublinhar neste trabalho, de que o Cinema não é todo igual, nem todo construído com o mesmo propósito, de contar histórias ou de entreter o público, ou de pelo contrário ser objecto de um snobismo que nada tem a ver com o Cinema mas o pedantismo humano; o Cinema é tão rico e diverso como qualquer “bela-arte”, e é ao mesmo tempo tão humano e tão etéreo, e capaz de uma espiritualidade que atinge a humanidade de cada um, e que apesar de nos transcender, nos abraça na beleza das suas imagens, fazendo-nos sair de nós próprios e ser melhores.

Página | 8

Bibliografia. 

AZEVEDO, Manuel – O Cinema Italiano: do após-guerra e o neo-realismo, Contraponto



BAZIN, André – What is Cinema?, volume I, University of California Press, 1967



STAM, Roberti – Film Theory: an introduction, Backwell Publishers Inc., 2000



TARKOVSKY, Andrei – Sculpting in Time, University of Texas Press, 1987

Página | 9

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.