Parecer no Caso da Morte do Médico Jaime Gold (2015)

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Reviravolta no caso do médico carioca morto. Parecer de Gustavo Noronha. A Prova dependente da Memória e sua E cácia no Processo Penal Atualidades

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Por Redação* – 29/07/2015 A memória não é uma máquina fotográfica ou filmadora, que registra os eventos vividos pela pessoa de tal forma que ela possa recuperá-los exatamente como ocorreram. LOFTUS, Elizabeth. Eyewitness Testimony. Cambridge: Harvard University Press, 1979, p. 272 . Em brilhante parecer, Gustavo Noronha de Ávila expõe o Estado da Arte da Psicologia do Testemunho aplicada ao Processo Penal. Consultado sobre a eficácia do reconhecimento pessoal e das entrevistas forenses ao longo do processo de criminalização, Gustavo aborda as Falsas Memórias, os fatores internos e externos de distorção da memória, critérios que a Psicologia do Testemunho considera essenciais para a

realização de um eficaz reconhecimento, tais como as características das pessoas colocadas lado-a-lado do suspeito para reconhecimento, a necessidade de quem administra o reconhecimento não saber sobre quem é suspeito, o número de pessoas alinhadas, entre outros aspectos. Vale a leitura!

Processo nº 0229689-78.2015.8.19.000 Juíza de Direito Michelle de Gouvea Pestana Sampaio 1. A Consulta A banca de advogados, constituída por Djefferson Amadeus e Alberto Sampaio Júnior, formula consulta sobre a eficácia do reconhecimento pessoal e das entrevistas forenses ao longo do processo de criminalização. Argumentam que as referidas provas foram determinantes para a condenação de seu cliente, XXXXXX[1], em caso amplamente divulgado pelos veículos midiáticos: a violenta morte do médico carioca Jaime Gold, ocorrida na capital carioca. De acordo com a representação: “No dia 19 de Maio de 2015, por volta das 19h, na Avenida Epitácio Pessoa, esquina com a Rua Tabantiguera, na altura do número 3624, na Lagoa, nesta cidade, o representado, consciente e voluntariamente, em comunhão de ações e desígnios com outro indivíduo ainda não identificado, subtraiu, para si ou para outrem, mediante emprego de violência consistente em desferir golpes de faca contra a vítima Jaime Gold, 01 (um) telefone celular e 01 (uma) bicicleta preta com detalhes brancos, tudo de propriedade da referida vítima.” (fl. 02) Durante toda a investigação e o processo, XXXXXX negou a prática do ato infracional. A única testemunha presencial do evento, o frentista WWWWWW, apresentou mais de uma versão do fato  tendo, porém, reconhecido o adolescente tanto na Delegacia de Polícia (por foto), quanto no Fórum Judicial (pessoalmente). De resto, foram utilizados pela respeitável magistrada, em suas razões de decidir, os depoimentos de pessoas que não acompanharam o momento específico da execução do ato infracional, como o de policiais que atenderam à ocorrência e dos responsáveis pela posterior investigação. Necessário acrescentar, ainda, que outros dois adolescentes YYYYYY e ZZZZZZ, posteriormente à apreensão de XXXXXX, confessaram a realização da conduta. Justamente os apontados por XXXXXX em seu depoimento como os responsáveis. XXXXXX permaneceu internado provisoriamente até a sobrevinda de sentença, na qual houve sua condenação, estando ainda hoje privado de sua liberdade. É neste contexto que avaliaremos a dependência da memória humana como fonte inequívoca de construção de verdades. Este é breve o resumo da controvérsia.

2. Quesitos Indaga a Consulente, à luz dos elementos apresentados: (a) Existem elementos de sugestionabilidade no reconhecimento fotográfico feito pela única testemunha ocular (o frentista) na delegacia? Especifique. (b) Caso tenha havido sugestionabilidade no reconhecimento fotográfico, fica o reconhecimento em juízo “contaminado” pelas eventuais sugestionabilidades ocorridas na delegacia? (c) Diante disso, o Sr. considera nulo  o reconhecimento feito em juízo nestas circunstâncias? (d) O fato do frentista ter afirmado, em juízo, que não passavam carros na via, na hora do “Rush” – mesmo com as câmeras demonstrando o intenso tráfego naquele momento – é fator que comprova a ocorrência de falsas memórias? (e) O fato de XXXXXX e YYYYYY serem negros é fator que propicia a ocorrência de falsas memórias? (f) A semelhança física de XXXXXX com YYYYYY poderia ensejar falsas memórias a ponto de ter havido um erro no reconhecimento em face de XXXXXX? (g) Diante da afirmação do frentista, em juízo, que o local era pouco iluminado, é possível que tenha havido falsas memórias? (h) O fato de os suspeitos serem negros – e o fato ter ocorrido num local onde as árvores deixam o local pouco iluminado – é fator que aumenta a possibilidade da ocorrência de falsas memórias? (i) O fato do frentista ter admitido que ficou nervoso é fator que pode proporcionar falsas memórias? (j) O fato de (todas) as testemunhas terem apontados cores diversas para a bicicleta da vítima é fator que comprova a ocorrência de falsas memórias, neste caso? (k) Pessoas com um nível de escolaridade mais baixo – como é o caso da testemunha ocular, o frentista – é um fator que aumenta a possibilidade da ocorrência de falsas memórias? (l) Diante dos inúmeros carros que passavam pela via, conforme provam as imagens, incorreu em erro a douta sentença, ao afirmar que o frentista tinha uma “visão panorâmica da cena”? (m) A grande quantidade de carros, na via, no momento dos fatos e no momentos em que os suspeitos passaram é fator que prejudica um eventual reconhecimento por parte do frentista? (n) A grande quantidade de carros, passando no momento em que os suspeitos passavam do outro lado da via, é fator que põe em xeque o reconhecimento do frentista?

(o) É possível sustentar uma condenação com um reconhecimento ocorrido nestas circunstâncias? (p) O fato do frentista não estar com toda a sua atenção voltada para a pista, no momento em que os suspeitos passaram, como pode ser visto na câmera do posto, é fator apto a propiciar a ocorrência de falsas memórias? Com a consulta, a Consulente apresenta farta documentação em meio digital, incluindo vídeos, áudios, peças processuais e da investigação. O tema se reveste de inegável atualidade, aproximando questões criminais da necessária interface com a Psicologia do Testemunho, colocando a confiabilidade da memória em discussão, como forma de preservar liberdades e a higidez do sistema democrático. Traremos aqui o estado da arte acerca da discussão, de forma a responder aos questionamentos formulados. É disso, portanto, que tratará o presente estudo. 3. Discussão: estado da arte da Psicologia do Testemunho aplicada ao Processo Penal O cérebro não funciona como uma câmera de vídeo[2]. Tendo isto como princípio, é necessário investigar  distorções da memória autobiográfica[3]  através da psicologia do testemunho. Em diversas situações, a única prova de que a justiça dispõe é o depoimento de testemunhas ou o reconhecimento. Por isso, o estudo da psicologia do testemunho é essencial, especialmente da memória e suas distorções[4]. A principal delas, sem dúvidas, são as Falsas Memórias. Estas consistem em lembranças de fatos que nunca ocorreram ou que, se aconteceram, foram desenvolvidos de forma diferente da experiência da testemunha. O tema, recentemente, tem sido objeto de controvérsias em nossos Tribunais[5].  Critérios desencadeadores de Falsas Memórias tem sido reconhecidos como motivos determinantes para preservar liberdades, sendo corolários do essencial princípio do in dubio pro reo. 3.1 Qualidade do Testemunho No início do século XX, os erros de memória foram estudados por Freud, ao revisar a sua teoria da repressão[6]. Segundo essa teoria, as memórias de eventos traumáticos da infância seriam esquecidas (isto é, reprimidas), podendo emergir em algum momento da vida adulta, através de sonhos ou sintomas psíquicos. Porém, Freud abandona a ideia de que memórias para eventos traumáticos seriam necessariamente verdadeiras. Em uma carta a Fliess, em 21 de setembro de 1897, Freud descreve a sua descoberta de que as lembranças de seus pacientes poderiam ser recordações não de um evento, mas de um desejo primitivo ou de uma fantasia da infância e, portanto, seriam falsas recordações (falsas memórias) [7].

Alfred Binet conduziu os primeiros estudos específicos sobre falsas memórias. Eles versavam sobre as características de sugestionabilidade da memória, ou seja, a incorporação e a recordação de informações falsas, sejam elas de origem interna ou externa, que o indivíduo lembra como sendo verdadeiras[8]. Este é um dos fatores fundamentais de distorção da memória. Pode levar o entrevistador a obter a informação que confirme sua hipótese sobre o fato e não, necessariamente, a recuperar a versão construída pela testemunha. As falsas memórias podem ser formadas de maneira natural, através da falha na interpretação de uma informação ou ainda por uma falsa sugestão externa, acidental ou deliberada, apresentada ao indivíduo (sugestionabilidade)[9]. O procedimento de sugestão de falsa informação, que consiste na apresentação de uma informação falsa compatível com a experiência, passa a ser incorporado à memória sobre esta vivência. Já as falsas memórias, que serão geradas espontaneamente, resultam do processo normal de compreensão, ou seja, fruto de processos de distorções mnemônicas endógenas[10]. Nossas memórias, inclusive a dos entrevistadores[11], são passíveis de serem influenciadas pelas outras pessoas. As informações que recebemos, depois do evento que vivenciamos, podem interferir em nossa memória. O efeito da sugestionabilidade da memória pode ser definido como uma aceitação e subsequente incorporação na memória de falsa informação posterior à ocorrência do evento original[12]. A sugestionabilidade, em entrevistas forenses, geralmente ocorre através de perguntas fechadas, ou seja, aquelas que admitem poucas respostas (normalmente em formato “sim” ou “não”). Além disso, outro fator que impossibilita uma boa entrevista são as frequentes interrupções por parte do entrevistador. Como resultado, a dificuldade em recuperar o fato passado acaba ficando latente: sempre que o cérebro da testemunha tenta retomar os rastros de memória, existe alguém, literalmente, a aniquilando com distratores (outras perguntas opostas à narrativa livre do entrevistado). Isto ocorre por diversos momentos ao longo das oitivas e também nas audiências em juízo, especialmente nestas últimas. A magistrada, notoriamente (basta ver os vídeos) interrompe a testemunha WWWWWW por diversas vezes, realizando pergunta em cima de pergunta. É reconhecido que a entrevista de pessoas com dificuldade intelectual pode ser desafiadora. De acordo com Murphy e Clare[13], como um grupo, eles tendem a ter um alto grau de aquiescência, ou seja, responder afirmativamente às questões sim/não e uma tendência de confabular (distorcer ou fabricar informações). Isto ocorre ao longo da investigação e do procedimento, com a testemunha WWWWWW, que geralmente concorda com as perguntas realizadas pelo investigador ou pela juíza. É necessário destacar que tanto crianças como adultos com dificuldades intelectuais são mais sugestionáveis do que pessoas sem essas dificuldades[14]. Quanto ao tempo, sua influência nos processos de memória (atenção, codificação, consolidação e evocação) é evidente.

Pesquisas científicas comprovam que as chances de identificação do suspeito diminui depois de um intervalo de retenção do momento do crime ao momento da identificação[15]. Em sua metanálise, Shapiro e Penrod[16] examinaram o efeito da demora nas entrevistas forenses. Descobriram um efeito negativo da demora tanto da identificação correta quanto da falsa, com uma média na demora sendo pouco mais de 4 dias. Ou seja, ao ser ouvido em juízo, provavelmente, a memória de WWWWWW já havia sofrido alteração pelo decurso de tempo. Outro importante distrator certamente funcionou nesse período: a excessiva exposição midiática do caso. Por último, quanto à emoção enquanto fator de distorção da memória, são necessárias algumas considerações. Normalmente, ela costuma ser associada a possíveis falhas interpretativas. No entanto, a literatura científica vem identificando a necessidade dessa avaliação ser individualmente considerada[17]. Cada um pode ter experiência diferente quanto à valência emocional de um evento. Não apenas a memória ruim (normalmente associada a um delito) pode ser reprimida, como também, em alguns casos, reforçada. Exemplo disso são os frequentes casos de transtornos de estresse pós-traumático que ocorrem com vítimas de delitos. São causados, justamente, por não conseguirem esquecer. Desta forma, o nervosismo das testemunhas/acusados do ato pode ou não significar algo. Conclusivamente, nesta parte, devemos levar em consideração os fatores de sugestionabilidade aos quais WWWWWW foi exposto. Não apenas as (excessivas) perguntas fechadas, como também a provável dificuldade em resistir às hipóteses lançadas pelos atores jurídicos, são fatores a desestabilizar a confiança na (única) testemunha. Isto fica patente a quando comparamos o primeiro depoimento do frentista com o segundo. Logo após o ocorrido, afirmou que tudo ocorreu muito rapidamente e por este motivo não conseguira visualizar muito do evento. Pouco tempo depois, no entanto, mudou a versão e disse estar apto a reconhecer os responsáveis pelo ato. É este ponto que analisaremos a seguir. 3.2 Qualidade do Reconhecimento Existem diversos critérios que a Psicologia do Testemunho tem identificado como fundamentais para a realização de reconhecimentos eficazes. Isto dependerá de variáveis como: as características das pessoas colocadas lado-a-lado do suspeito para reconhecimento, a necessidade de quem administra o reconhecimento não saber sobre quem é suspeito, o número de pessoas alinhadas, entre outras. Poucas dessas recomendações são utilizadas no Brasil. Pior: em regra, as formalidades do desatualizado artigo 226 do Código de Processo Penal, herança da redação original, pouco são observadas, especialmente na esfera investigativa. Necessário pontuar que os dispositivos legais contemplam apenas o reconhecimento pessoal (ao vivo) e o de coisas. Não existem regras expressas quanto à modalidade por foto, ou seja, as cautelas aqui devem ser redobradas.

Será de nosso essencial interesse, in casu, os efeitos da distância do local do ato infracional e o tempo de observação do fato para fins de reconhecimento. Valentine et al.[18] concluíram que as testemunhas que tiveram mais tempo para visualizar o autor do delito tem maior possibilidade de realizar uma identificação mais correta. Não foi o caso da testemunha WWWWWW, já que as filmagens do circuito interno de segurança do Posto de Gasolina, não são conclusivas sobre se ele realmente visualizou o ato. Se, efetivamente, presenciou algo da cena, é possível depreender que não passou mais de 1 minuto a observando, o que é muito pouco. Os referidos autores também encontraram padrão de resultados consistentes, dando conta sobre como a visão obstruída e condições de iluminação precária foram associadas com menor identificação de suspeitos. Em seu depoimento em juízo, o frentista é taxativo ao dizer que a visão não era a melhor. Porém, ainda assim, se disse capaz de reconhecer um dos responsabilizados. Nos estudos estatísticos mencionados, a distância considerada razoável para reconhecimento foi de dois metros, bastante inferior a que WWWWWW se encontrava do local do ato[19]. Estava distante a aproximadamente cem metros de onde ocorreu a ação. Quatro pistas e uma iluminação “precária” possivelmente influenciaram na (equivocada) identificação. A coerência também é considerada como determinante para um reconhecimento eficaz.  Behrman e Richards[20] encontraram associação positiva entre confiança e identificação de suspeitos, os quais são compatíveis com os resultados que demonstram que testemunhas confiantes são em média mais precisas do que as menos confiantes. Assim, há uma associação entre confiança e precisão. O estudo sugere que testemunha absolutamente confiante pode estar correta em torno de 80% do tempo. Na prática, os estudos refletem que a associação entre confiança e identificação dos suspeitos apresenta uma retroalimentação (feedback) no processo de identificação, aumentando, desta forma, a confiança das testemunhas participantes. O frentista, lido todos os autos, não demonstrou segurança em suas afirmações. WWWWWW alterou, por diversas vezes, detalhes importantes para identificar os responsáveis pelo ato. Primeiramente, afirmou que os autores eram de cor “branca e negra” (fls. 07-08) e, após, afirmou serem de cor “parda e negra” (fls. 55). Isto revela falta de confiança, o que prejudica a almejada precisão. Como sugerido por Wells[21] e Ross e Malpass[22], a qualidade de um alinhamento de pessoas é uma questão importante com relação à precisão de identificação (Lindsay e Wells[23]; McQuiston e Malpass[24]; Tredoux,[25]). Linhas de identificação preconceituosas são aquelas em que o suspeito se destaca com base na descrição da testemunha. Da mesma forma, não devem ser escolhidos para a linha de composição pessoas tão parecidas entre si que possam gerar dúvida na testemunha. Parece ter sido o caso em tela, onde são inegáveis as semelhanças físicas entre YYYYYY e XXXXXX. Este fato, aliado à baixa condição de visibilidade, distância e a presença de diversas variáveis distratoras de atenção no momento do atoe (clientes, carros abastecendo, colegas conversando, além do trânsito em horário de pico), levam a questionar a qualidade das provas derivadas da memória de WWWWWW.

Outro fator importante a ser avaliado é a relação entre a raça de quem está a reconhecer e do suspeito. Se são a mesma, a testemunha tem maior probabilidade de lembrar e reconhecer com exatidão o acusado do que se fossem de raças diferentes[26]. Como é notório, XXXXXX é negro e WWWWWW, branco. Ou seja, temos aqui mais um fator a colocar em dúvida a qualidade do reconhecimento. Ainda é necessário termos em conta que as razões de decidir da respeitável magistrada levaram em consideração o reconhecimento fotográfico, realizado em sede policial. Como inexistem maiores informações acerca de como foi conduzido este procedimento, a leitura dos autos sugere que a única  foto mostrada à testemunha (também única) foi a de XXXXXX. Este procedimento é chamado na literatura científica de showup. Ocorre quando a autoridade policial/judiciária apresenta apenas uma foto e pergunta  para a testemunha/vítima se reconhece. O grau de sugestionabilidade envolvido nessa prática é máximo, pois temos o universo de possibilidades respostas reduzido a apenas duas: sim/não. Os especialistas[27] são unânimes em condenar a técnica de show-up em função de ser a maior fonte de erros em sede de reconhecimento[28]. Ainda que se leve em consideração a afirmação dita em juízo sobre a utilização de “mais de cem fotos”, mesmo assim tal prova deve ser avaliada com cautela. Isto porque existe uma grande probabilidade de escolher, aleatoriamente, entre aqueles indivíduos que costumeiramente cometem atos infracionais na área coberta pela Delegacia. São eles que compõe os álbuns mostrados às testemunhas/vítimas, sendo natural que escolham algum deles. Em qualquer dos casos, portanto, é preciso cautela. Desta forma, considerando a utilização de prova única para responsabilizar o acusado XXXXXX, pois os depoimentos de policiais não podem ser considerados em função de não estarem presentes no momento da realização da conduta, entendemos por temerária a sentença. Precisamos levar em consideração que um ato infracional não ocorre em câmera lenta e o conjunto probatório (de uma prova só) não aponta claramente XXXXXX como responsável. Ademais, existe a confissão de YYYYYY, um adolescente com características físicas bastante semelhantes. É imperativo, neste caso, a aplicação do princípio supraconstitucional do in dubio pro reo. A frágil prova não se mostra como suficiente para justificar a privação de liberdade de XXXXXX levada a cabo até a presente data. 4. Resposta aos Quesitos (a) Existem elementos de sugestionabilidade no reconhecimento fotográfico feito pela única testemunha ocular (o frentista) na delegacia? Especifique. Sim. O auto de reconhecimento não pormenorizou os procedimentos, especificando sobre a quantidade de fotos apresentadas à testemunha, tampouco quanto às características físicas das pessoas retratadas nas fotos. Assim, é possível depreender da leitura dos documentos que foi apresentada apenas a foto de

XXXXXX na Delegacia. Isto faz com que tenhamos o procedimento mais sugestionável de todos: o chamado show-up. Ainda que esteja correta a informação trazida pela testemunha WWWWWW, no processo penal, quanto à utilização de mais de “cem fotos” por parte da autoridade policial, seguiríamos incorrendo em sugestionabilidade. Isto porque a tendência, de acordo com os estudos analisados, é que necessariamente a testemunha reconheça alguém, diminuindo a possibilidade de dúvida e aumentando o risco de falsas memórias. (b) Caso tenha havido sugestionabilidade no reconhecimento fotográfico, fica o reconhecimento em juízo “contaminado” pelas eventuais sugestionabilidades ocorridas na delegacia? Não necessariamente. Como se sabe, a prova precária da fase investigativa precisa, obrigatoriamente, ser repetida em fase judicial. O que foi feito, de acordo com os documentos fornecidos. Até porque foram realizadas duas espécies diferentes de reconhecimento: fotográfico (investigação) e pessoal (processo). (c) O reconhecimento feito em juízo nestas circunstâncias pode ser considerado nulo? Sim. Mesmo que tenham sido cumpridas as formalidades referentes ao artigo 226 do Código de Processo Penal, é fundamental que consideremos o fato de o rol de nulidades, previsto no artigo 564 do mesmo diploma legal, ser meramente exemplificativo. Desta forma, é possível a construção jurisprudencial acerca da inobservância dos melhores critérios descritos na literatura científica. Especialmente quando o que está em jogo são liberdades. (d) O fato do frentista ter afirmado, em juízo, que não passavam carros na via, na hora do “Rush” – mesmo com as câmeras demonstrando o intenso tráfego naquele momento – é fator que comprova a ocorrência de falsas memórias? Sim. Como vimos da discussão, o tempo pode ser fator determinante na formação de falsas memórias. Ainda que o procedimento tenha sido realizado com incomum celeridade, é sabido sobre a influência do tempo, diminuindo substancialmente em qualidade após 4 dias da ocorrência do evento. Prazo bastante inferior na comparação entre a data do fato e a realização da inquirição da testemunha em juízo. (e) O fato de XXXXXX e YYYYYY serem negros é fator que propicia a ocorrência de falsas memórias? Sim. Como vimos, existe uma maior dificuldade, em sede de reconhecimento pessoal, quando a pessoa que deve reconhecer é de raça diferente daquela que precisa ser reconhecida. Logo, a chance de distorções na memória são maiores neste caso. Especialmente, quando levamos em conta o fato de existirem contradições importantes nos depoimentos de WWWWWW. Em um primeiro momento, apontou a existência de dois responsáveis: um negro e outro pardo. Posteriormente, sustentou serem dois negros. A hesitação pode ser produto dessa maior dificuldade descrita na literatura científica. (f) A semelhança física de XXXXXX com YYYYYY poderia ensejar falsas memórias a ponto de ter havido um erro no reconhecimento em face de XXXXXX?

Sim. De acordo com o critério, trabalhado anteriormente, do Fairness (justeza), será preciso encontrar pessoas para alinhamento que sejam parecidas entre si. Isto se justifica em função da sugestionabilidade, pois pessoas diferentes demais poderiam sugestionar (estereótipos) a escolha de uma determinada. Por outro lado, as pessoas não podem ser tão parecidas que impeçam a identificação, confundindo a testemunha. (g) Diante da afirmação do frentista, em juízo, que o local era pouco iluminado, é possível que tenha havido falsas memórias? Sim. Como descrito em nossa discussão, existem fatores externos importantes que podem prejudicar a identificação/reconhecimento. Não apenas a pouca iluminação (inequívoca no vídeo acostado aos autos), como também a distância e o fato da existência de vários elementos distratores à atenção do frentista (carros chegando para abastecer, colegas conversando e automóveis passando na rua em duas direções). (h) O fato de os suspeitos serem negros – e o fato ter ocorrido num local onde as árvores deixam o local pouco iluminado – é fator que aumenta a possibilidade da ocorrência de falsas memórias? Sim, conforme respondido nos quesitos “e”, “f” e “g”. (i) O fato do frentista ter admitido que ficou nervoso é fator que pode proporcionar falsas memórias? Não. Como trabalhamos acima, a valência emocional do evento pode, de acordo com as características individuais, reforçar ou prejudicar a acurácia do depoimento/reconhecimento. Logo, não é possível afirmar esta possibilidade de forma inequívoca. (j) O fato de (todas) as testemunhas terem apontado cores diversas para a bicicleta da vítima é fator que comprova a ocorrência de falsas memórias, neste caso? Sim, para o caso de objetos. Os estudos científicos demonstram que existe maior possibilidade de reconhecimento de pessoas do que de coisas. Em relação às primeiras, cor e altura são os traços mais observados. Portanto, é possível afirmar que existe uma natural distração em relação aos objetos. (k) Pessoas com um nível de escolaridade mais baixo – como é o caso da testemunha ocular, o frentista – é um fator que aumenta a possibilidade da ocorrência de falsas memórias? Sim. De acordo com as pesquisas citadas, é possível que pessoas com menor acesso à escolaridade possuam maiores dificuldades em resistir tentativas de sugestão externa. Por conseguinte, o risco de falsas memórias pode aumentar. (m) Diante dos inúmeros carros que passavam pela via, conforme provam as imagens, incorreu em erro a douta sentença, ao afirmar que o frentista tinha uma “visão panorâmica da cena”?

Sim. O termo visão panorâmica implica em ausência de elementos distratores, em iluminação excepcional e inexistência de obstáculos. Não parece ser o caso. O frentista tinha visão privilegiada da cena em relação a outros espectadores, porém longe de ser perfeita. De acordo com as imagens, inclusive, não sabemos exatamente o que foi visto pela testemunha: a abordagem, o momento da agressão, a fuga dos agressores ou a queda de Jaime Gold. (n) A grande quantidade de carros, na via, no momento dos fatos e no momentos em que os suspeitos passaram é fator que prejudica um eventual reconhecimento por parte do frentista? Sim, conforme respondido no quesito “g”. (o) A grande quantidade de carros, passando no momento em que os suspeitos passavam do outro lado da via, é fator que põe em xeque o reconhecimento do frentista? Sim, conforme respondido no quesito “g”. (p) É possível sustentar uma condenação com um reconhecimento ocorrido nestas circunstâncias? Não é possível sustentar condenação com base em prova única. Parece ser este o caso. Apenas existe a versão do frentista (através do reconhecimento e do depoimento, tanto em juízo, quanto em fase policial). Esta versão pode ser contestada pelo afastamento, na realização de entrevistas e dos reconhecimentos, das melhores práticas recomendadas pela literatura científica. Ademais, os demais agentes policiais ouvidos em juízo não são testemunhas diretas do fato. Logo, não podem servir para sustentar o decreto condenatório. Apesar de XXXXXX possuir diversas passagens pelo sistema de justiça infracionalinal, nenhuma delas revelou fato tão grave quanto o em tela. Assim, parece haver séria dúvida quanto à participação de XXXXXX, não apenas pelo fato de existir apenas uma fonte de provas no processo penal (Hélder), como também pelos procedimentos serem discutíveis. Tudo isto acaba corroborando a forte possibilidade (confessada pelo próprio), da participação de YYYYYY na morte de Jaime Gold. O in dubio pro reo precisa ser considerado in casu. A dúvida, portanto, é inafastável face ao conjunto probatório. O processo penal não pode ser colocado no patamar de uma máquina retrospectiva, próxima à alegoria kafkiana de O Processo. Existem vidas e liberdades em jogo. (q) O fato do frentista não estar com toda a sua atenção voltada para a pista, no momento em que os suspeitos passaram, como pode ser visto na câmera do posto, é fator apto a propiciar a ocorrência de falsas memórias?

Sim. A memória funciona, como vimos, a partir de quatro estágios: atenção, codificação, consolidação e evocação. Caso existam interferência em qualquer um deles, a posterior evocação (passível de ser transformada em prova) fica prejudicada. São estas, pois, as considerações que me cabiam. Ressalvado melhor entendimento, é o parecer. Maringá, 26 de Julho de 2015.                                                            Gustavo Noronha de Ávila

Notas e Referências: *  Parecer pro bono, em face da relevância do tema e a necessidade de aproximarmos a Psicologia do Testemunho da avaliação da prova penal. [1] Os nomes dos adolescentes foram omitidos para a publicação no portal Empório do Direito. [2] LOFTUS, Elizabeth. Eyewitness Testimony. Cambridge: Harvard University Press, 1979. 272 p. [3]  Refere-se ao sistema neuropsicológico, composto pelos processos cognitivos e seus correlatos anatomofisiológicos, que permitem que nos lembremos do nosso próprio passado. Já memórias autobiográficas serão entendidas como as representações de eventos e/ou fatos de nossa história, que podem ser codificadas, retidas, recuperadas, relatadas e assim por diante (GAUER, Gustavo. Memória autobiográfica. In: OLIVEIRA, Alcyr Alves (Org.). Memória: cognição e comportamento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 140-141). [4] PERGHER, Giovanni Kuckartz. Falsas memórias autobiográficas. In: STEIN, Lilian Milnitsky (Org.). Falsas memórias. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010, p. 112. [5]  RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação criminal 70020430146/RS. Julgamento em: 29/11/2008. Diário de Justiça do Rio Grande do Sul, em 08/11/2007. Acesso em: 15 nov. 2008. Disponível em:
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