PARECER sobre a sentença do Juiz federal José Airton de Aguiar Portela, da Justiça federal de Primeiro

Share Embed


Descrição do Produto

PARECER sobre a sentença do Juiz federal José Airton de Aguiar Portela, da Justiça federal de Primeiro Grau no Pará (Segunda Vara da Subseção de Santarém) de 26 de novembro de 2014, relativa aos Processos 2010.39.02.000249-0 e 2091-80.2010.4.01.3902 (ações civis públicas tendo como réus a Fundação Nacional do Índio e a União)

Eduardo Viveiros de Castro Professor-titular de Antropologia Social Museu Nacional, UFRJ

I Por uma decisão em primeira instância da Justiça Federal do Pará, o juiz Airton Portela determinou, em novembro p.p., que o relatório produzido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2011,1 pelo qual este órgão do poder público identifica e delimita a área de 42 mil hectares onde vivem comunidades indígenas Borari e Arapium, não tem validade jurídica. A sentença declara assim inexistente a Terra Indígena Maró, situada dentro da Gleba Nova Olinda I, no município de Santarém, oeste do Pará. Ela responde positivamente ao pleito contido em ação movida por sete associações comunitárias que, declarando-se contrárias ao reconhecimento da T.I. Maró, solicitam por isso a nulidade do processo administrativo para sua demarcação, em vista de uma alegada inexistência de vínculo histórico legítimo das comunidades indígenas atuais com os coletivos indígenas conhecidos, na literatura antropológica e em documentos oficiais, pelos etnônimos Borari e Arapium.2 Em outras palavras, não há terra indígena porque não há índios na região. Observo que a questão propriamente antropológica (ou, se preferirem, a questão ao mesmo tempo ontológica e ética) relativa à existência ou inexistência de comunidades indígenas não é o verdadeiro móvel e motivo da ação das associações comunitárias, como tampouco é ela o sentido profundo da sentença do Exmo. Sr. Juiz (cuja competência para decidir quem é — ergo, o que significa ser — indígena não me parece “líquida e certa”). O objetivo perseguido pela ação e disposto pela sentença é a invalidação jurídica da condição de terra indígena das áreas em litígio, para cujo fim é necessária a negação da condição indígena das comunidades 1

Processo nº 06820.000294/10-DV (ver Despacho 107/PRES publicado no DOU de 10.10.2011, e o resumo do Relatorio Circunstanciado de Identificação e Delimitação e Mapa, publicado no DOEP nº 32036 de 16.11.2 011). 2 A outra ação julgada na mesma sentença é uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, que visa, como tutela de urgência, o imediato andamento do processo de demarcação da Terra Indígena Maró. Ela persegue, assim, objetivo perfeitamente antipodal ao da ação movida pelas associações comunitárias.

ali localizadas, de forma a fazer aquelas terras retornarem ao regime geral da apropriação privada, individual e alienável, excluindo a T.I. Maró, portanto, do estoque de terras de domínio da União destinadas ao usufruto exclusivo e à posse permanente dos índios em virtude de seus direitos originários, reconhecidos no artigo 231 da Constituição Federal. Observo ainda que o interesse maior dos poderes da República, nestas matérias, parece sempre concentrar-se na terra (indígena) e não no homem (idem), o que é um testemunho eloquente de que a verdadeira questão, quando os índios entram “em cena” — no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, nas instâncias do Executivo voltadas para a gestão territorial — é quase invariavelmente a de saber quais e quantas das terras que eles ocupam podem ou não ser conveniente e legalmente “desocupadas” por eles (podem-lhes ser negadas, para dizê-lo cruamente), de modo a que elas entrem no mercado fundiário e sejam objeto de valorização por agentes econômicos não-índios públicos e particulares. Atendendo a uma solicitação da Procuradoria da República no Pará (MPF/PA), escrevo então o presente parecer sobre a sentença relativa aos índios Borari-Arapium — perdão, à Terra Indígena Maró —, no qual contesto a declaração de inexistência de comunidades indígenas na região e manifesto minha concordância com a medida administrativa da FUNAI que procede à identificação e delimitação da referida terra indígena, procedimento que deve, em meu entender, prosseguir urgentemente, como pede o MPF/PA, até as etapas de demarcação e homologação. Enumero a seguir as razões para atender de bom grado à solicitação do MPF, bem como minhas credenciais para tanto. 1. Sou doutor em antropologia desde 1984, especializado em etnologia (antropologia indígena), com quatro décadas de experiência de ensino, trabalho e reflexão sobre as sociedades e culturas indígenas do continente americano, em especial aquelas situadas na Amazônia. Esta experiência inclui períodos de pesquisa de campo, no Mato Grosso (Yawalapíti, 1975-1977), Acre (Kulina, 1978), Roraima (Yanomami, 1979) e Pará (Araweté, 1981 ao presente), bem como a orientação de quinze teses de doutorado e outras tantas dissertações de mestrado sobre povos indígenas da região amazônica.3 Tenho também, como tantos colegas de profissão e especialidade, acompanhado, pesquisado e me posicionado publicamente a respeito dos processos em curso de afirmação e/ou reafirmação étnica que vêm ocorrendo em todas as regiões do país, processos estes que vejo como consequência positiva — mais, como desenvolvimento histórica e politicamente necessário — da mudança radical no ordenamento jurídico relativo aos direitos indígenas (e quilombolas) ocorrida com a promulgação da Constituição Federal de 1988, diploma que, no meu entender, finalmente 3

Meu curriculum vitae pode ser consultado na Plataforma Lattes do CNPq, pelo link http:// lattes.cnpq.br/7248541150222692

assenta enfim em bases inconcussas o venerável, mas até a Constituição de 1988 doutrinariamente elusivo, instituto do indigenato, doravante claramente conceituado no artigo 231 de nossa Lei Maior. 2. Como integrante da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia / ABA (1980-82 e 1986-88) e membro de seu Conselho Científico (1986-90), acompanhei com assiduidade os trabalhos da Assembleia Constituinte, interessado maiormente na reconceituação do estatuto constitucional da indianidade (ou condição indígena) naquele momento excepcional de grandeza cívica em que se consagrou a ruptura com o regime autoritário. Deixando para trás a ideologia evolucionista, paternalista e assimilacionista que presidiu a todas as Constituições e demais disposições legais anteriores — em particular à lei 6.001/73, o “Estatuto do Índio” elaborado no período autoritário —, o capítulo “Dos Índios” da Constituição Federal de 1988 estabeleceu o caráter permanente (por outras palavras, persistente no futuro) da condição indígena e dos direitos especiais dela decorrentes, retirando dos povos nativos o estigma de minoridade sociocultural e de transitoriedade histórica, ou seja, a pressuposição racista de que a indianidade seria uma subexistência precária e residual, votada à inexorável dissolução na “comunhão nacional”. É importante observar que, ao não determinar quem são ou podem ser os sujeitos dos direitos indígenas — qual a natureza e condição das comunidades situadas no território nacional que são, atual ou virtualmente, indígenas — a Constituição Federal acolhe antecipadamente, por assim dizer,4 o princípio da auto-declaração coletiva, estabelecido no artigo 1º da Convenção 169 da OIT como critério fundamental para o reconhecimento oficial de uma condição indígena, isto é, para o acesso à indianidade de jure. Ao fazê-lo, a Constituição revoga implicitamente diversos artigos da lei ordinária subsistente, o “Estatuto do Índio”, e torna ilegítimo, ou no mínimo duvidosamente aplicável de um ponto de vista doutrinário, o artigo 3º deste Estatuto, onde se define o “índio ou silvícola” segundo critérios filosoficamente ultrapassados pelo artigo 231 da CF e pela Convenção 169 da OIT, bem como pela ciência antropológica atual. Uma vez que a sentença em exame recorre sistematicamente, como era de se esperar, ao artigo 231 da CF, louvando-se em especial maneira de interpretações recentes deste artigo que, embora emanadas das instâncias mais altas do Poder Judiciário, não parecem possuir inconteste caráter vinculante universal, nem estarem isentas de ambiguidades, e uma vez que, em meu entender, elas constrangem, limitam, distorcem e mesmo violentam o espírito do texto constitucional, sinto-me compelido a alinhavar algumas observações a esse respeito — 4

Ver Rosane Freire Lacerda, “A Convenção 169 da OIT sobre povos índigenas e tribais: origem, conteúdo e mecanismos de supervisão e aplicação”. In: http://pt.slideshare.net/zazab023/aconveno-169-da-oit-sobre-povos-indgenas-e-tribais-origem-contedo-e-mecanismos-de-superviso-eaplicaoão

considerando, em particular, o sentido da chamada “teoria do fato indígena” que pretenderia suplantar a “teoria do indigenato”, e que embasaria a sentença do juiz Airton Portela que recusa a indianidade às comunidades Borari-Arapium da T.I. Maró. O presente parecer, escusado dizer, tem caráter exclusivamente antropológico, sem qualquer pretensão de (mais ainda, sem qualquer interesse em) determinar qual a melhor ordem normativa para o governo da nação. Este parecerista é muito mais versado no fato indígena que no direito indígena, se me permitem o jogo de palavras, e reivindica para sua especialidade científica a palavra autorizada sobre quais são os fatos. Uma vez, porém, que o autor da sentença em exame não se sentiu constrangido em pontificar sobre questões da alçada da ciência antropológica, cuido que não seja vedado ao presente parecerista — afinal, é seu direito — dar o seu modesto palpite, sua opinião cidadã sobre elevadas matérias constitucionais. 3. Encontro-me escrevendo este parecer, outrossim, por ter sido personagem, ou antes, vítima, de uma reportagem fraudulenta da revista Veja, em 2010, vazada na usual tinta marrom usada na impressão daquele semanário, em que se denunciava uma suposta “invenção” oportunista de falsas indianidades por obra e graça das manobras de maus antropólogos e piores (não-)índios, movidos todos por interesses escusos os mais diversos: venalidade, malandragem, ideologia comunista, maquinações de grandes potências que nos querem afanar a Amazônia — enfim, um verdadeiro embarras de richesse em termos de más intenções. Ora, essa matéria,5 que distorceu e falsificou declarações minhas, a partir de uma entrevista que publiquei no site do Instituto Socioambiental em 2006,6 parece ter servido de fonte de referência e sobretudo de inspiração ideológica (o adjetivo, muito usado pelo Exmo. Juiz, é sempre tomado por ele como pejorativo e desqualificante) para a elaboração da sentença em tela. Foi por ocasião dos desdobramentos dessa mesma matéria, da indignação e do repúdio generalizados que ela suscitou dentro como fora da comunidade antropológica, que vim a tomar conhecimento de uma das raríssimas “autoridades etnográficas” que a aplaudiram — e mais tarde colaboraram para sua difusão nos meios politicamente de direita do país, em especial entre os politicos “ruralistas” e os militares “nacionalistas”—, a saber, um dos principais atores semi-ocultos, talvez não por coincidência, justamente deste processo de contestação da T.I. Maró, o Sr. Edward Mantoanelli Luz.7 O Sr. Luz é assessor de entidades 5

“A farra da antropologia oportunista” Veja 154, de 05/05/2010. E. Viveiros de Castro, “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. http:// pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_é_%C3%ADndio.pdf 7 “Embasado na autoridade etnográfica concedida pelos fatos históricos e sociais relatados por seus interlocutores, o antropólogo Edward Luz continua sustentando que a melhor interpretação do fenômeno da ‘etnogênese’ no baixo Tapajós e Arapiuns é de que se trata de uma manipulação identitária 6

ligadas ao agronegócio pelo Brasil afora, entre elas da Associação das Comunidades Unidas dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Maró (ACUTARM), entidade que funciona como testade-ferro dos grandes empresários madeireiros que atuam na região, e que serviu de apoiadora das associações comunitárias que moveram a ação contra os Borari-Arapium. Edward Luz redigiu, a pedido da ACUTARM, um contralaudo ou parecer contestando o relatório da FUNAI, contralaudo que está “submerso” ou embutido na sentença do Juiz Airton Portela, na medida em que (1) ele instrui verbatim a quase totalidade do arrazoado do causídico que representa as associações comunitárias, o Dr. Talisman Secundino de Moares,8 e que (2) a sentença do Juiz Airton Portela acolhe e transcreve abundantemente trechos desse arrazoado. Falaremos mais adiante dos posicionamentos politicos do Sr. Edward Luz, amplamente dados a público pelo próprio no blog “Questão Indígena”, em manifestações nas redes sociais (Twitter, principalmente), e em numerosas cartas em jornais e revistas. Falaremos também de sua atuação confessional (pró-catequética), cujos objetivos só podemos qualificar de etnocidas, por atacarem frontalmente o direito das comunidades indígenas a manterem “suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições” (CF, art. 231). Registre-se, por ora, que este auto-proclamado antropólogo, na verdade portador de um simples diploma de mestrado em antropologia, “foi desfiliado da ABA e desqualificado como antropólogo em 2013, por sua postura antiética e por proferir declarações equivocadas e reducionistas, inteiramente desprovidas de rigor e embasamento científico”, como informa nota da sua exassociação profissional.9 Acrescento, neste item, que tive aquelas “minhas” declarações forjadas pela revista Veja republicadas em um jornal de Santarém, no contexto exatamente da presente polêmica

promovida por uma pequena parcela de uma mesma sociedade cabocla ribeirinha tapajônica. A imensa maioria deste movimento quer benefícios estatais, mas a liderança quer a demarcação de terras indígenas como estratégia para barrar empreendimentos econômicos” (Gazeta de Santarém, 25/03/2013; eu sublinho). À parte observar os harmônicos claramente reacionários que ressoam neste lead, que resume frases do autor da matéria (o próprio E. Luz), muito semelhantes, aliás, a juízos encontráveis na sentenca do juiz Airton Portela, observo que nossa autoridade etnográfica parece não suspeitar que tal expressão, “autoridade etnográfica”, é na verdade um termo crítico cunhado por James Clifford, uma figura de acusação e de ironia suscitada pelo processo de relativização reflexiva da antropologia iniciado nos anos 1980, no qual se questionou o tradicional empirismo ingênuo da disciplina, baseado na metafísica da Presença e na epistemologia do testemunho não-contextualizado. Voltaremos a falar sobre essa metafísica objetivista ao comentar o conceito de ”fato indígena”. 8 “Ação de anulação de processo administrativo, c/c declaratória de inexistência de etnia e posse indígena, com pedido de antecipação de tutela»,, transcrito nas pp. 11-69 do 2º volume do Processo/ FUNAI/BSB n° 08620.000294/2010-64. 9 “A (in)justiça e os povos indígenas no Oeste do Pará. Nota sobre a sentença judicial que nega a condição de indígenas ao povo Borari e Arapium. Nota da Comissão de Assuntos Indígenas da ABA”, in h t t p : / / w w w. p o r t a l . a b a n t . o r g . b r / i m a g e s / N o t i c i a s / N o t a _ s o b r e _ s e n t e n ç a _ %C3%ADndios_borari_arapium_dez_2014.pdf. O grifo na citação é meu (EVC).

sobre o processo de reivindicação étnica dos Borari-Arapium.10 4. Por fim, e aqui já vamos entrando na substância deste parecer, alguns outros trabalhos de minha autoria, de considerável repercussão na comunidade antropológica mundial, versando sobre os fundamentos sociocosmológicos das formas de relação das chamadas “comunidades tradicionais” amazônicas com os grandes ritmos ecológicos da região, com a miríade de viventes não-humanos e de forças materiais de seu entorno, bem como com as numerosas potências invisíveis atuantes em seu mundo,11 vêm sendo crescentemente tomados por especialistas nas sociedades ribeirinhas da Amazônia como demonstrativos da existência de vínculos culturais profundos entre as populações “caboclas” e os coletivos humanos classificados pelo senso comum como “índios”. Tais vínculos, em larga medida inconscientes ou pré-reflexivos, são capazes porém de emergir no seio das populações “caboclas” sob a forma de uma reflexividade político-cultural (uma “tomada de consciência”) que desemboca, dadas certas condições favoráveis — a leitura da Constituição Federal, por exemplo,12 louvabilíssimo exercício facultado a todo cidadão brasileiro—, nas reivindicações de indianidade que hoje desafiam, em boa hora, a tradicional ideologia autoritária, homogeneizante, evolucionista e monoculturalista da nacionalidade. Esses vínculos, na medida mesmo de sua inscrição existencial pré-reflexiva, levam-me a questionar a pertinência de qualquer traço diacrítico ostensivo, de qualquer critério “objetivo” (simples ou composto) que permitisse negar a indianidade reivindicada por algumas das populações ditas “tradicionais” — em especiosa oposição às populações ditas “indígenas” — da várzea amazônica. Muito ao contrário, tal “tradicionalidade” é precisamente o signo de um vínculo histórico com a paisagem cultural pré-colombiana, tanto quanto é testemunho da transformabilidade e adaptabilidade intrínsecas a toda cultura humana. Continuidade histórica não é identidade imóvel, tradição não é clonagem, indianidade não é genética, e mistura cultural não invalida o direito à escolha de referências culturais privilegiadas. Em poucas palavras, e para repetir o mote que certa feita lancei, cuja natureza enganosamente outrancière pretendo justificar nas páginas que seguem, “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é”. Tomando a liberdade de interpretar a mim mesmo, esclareço que esta frase é uma simples tradução aforismática da essência antropológica do conceito de “direitos originários”, tal como 10

Ver Gazeta de Santarém, 23/02/2013, em resposta a matéria publicada no mesmo jornal em 12/02/2013, a qual não fui capaz de recuperar na internet. Minha resposta/desmentido veio colada a uma longa carta de conteudo anti-indígena da lavra do já citado Edward Luz. Ver: http:// en.calameo.com/read/00086029658e528ffd3a2. 11 Refiro-me aos estudos sobre o “perspectivismo ameríndio” produzidos por mim e por meus colaboradores no Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Museu Nacional, os quais se encontram hoje traduzidos em diversas línguas. Voltaremos a isso na conclusão deste parecer. 12 Que o Exmo.Sr. Juiz entende ter-lhes sido facultada por agitadores ideológicos, tais o antropólogo Florêncio Vaz e certas organizações não-governamentais contrárias, horresco referens, à devastação ambiental da Amazônia.

presente no artigo 231 da CF.

II

II.1. Considerações sobre o contexto histórico e político da sentença A sentença em exame, como a “causa” que a originou, é apenas mais um lamentável capítulo de uma situação conflituosa de extensão e intensidade crescentes na Amazônia contemporânea, conflito que não se manifesta principalmente no seio da população ribeirinha ou “cabocla”, como quer fazer crer a ação ajuizada, mas acima de tudo entre as populações tradicionais da região, de um lado, e as forças “progressistas” que lhes vêm movendo um formidável assalto, do outro lado. Enumero, sem qualquer ordem especial, a natureza de tais forças: (1) as sucessivas levas de colonos fortemente capitalizados vindos do Sul, que vão realizando o velho projeto das elites dominantes, o de “branquear” e “modernizar” um país que se imagina marcado pelo estigma do índio, do negro e do caboclo (o elogio discreto, se é que é disso mesmo que se trata, do caboclo e da “mestiçagem” presente na sentença do Exmo. Juiz Airton Portela mal esconde uma profunda hipocrisia tática); (2) os grandes grileiros ou “acumuladores primitivos” (sensu Marx) que se intitulam “fazendeiros”, que expulsam os moradores tradicionais e lhes tomam as terras com as armas de seus assassinos a soldo, e de seus advogados e juízes de aluguel; (3) os agroempresários da soja e da cana-de-açúcar, que arrasam a floresta e o cerrado, envenenando “a terra e o homem” com agrotóxicos e transgênicos, e que hoje, aliás, vão se apossando da região que nos concerne, pois vão trazendo suas desoladoras monoculturas até as margens do Amazonas, em Santarém, para os armazéns gigantescos da multinacional Cargill, de onde viajam em navios graneleiros até a China; (4) os grandes criadores de gado que, desde seus escritórios refrigerados em São Paulo ou no Paraná, vão transformando progressivamente a região amazônica em uma imensa pastagem empobrecida, a antecâmara de um inferno desértico; (5) as onipresentes empresas madeireiras, operando em condições que vão da mais escancarada criminalidade a uma duvidosíssima legalidade, baixo a total (c)omissão das autoridades, e que vão minando fatalmente a capacidade de regeneração natural da região mais biodiversa do planeta; (6) as mineradoras nacionais e estrangeiras que nos escavam o solo debaixo dos pés, e que consomem o principal da energia elétrica produzida pelo barramento dos grandes rios da bacia (com a consequente eutrofização, metanização e desregulação hidrológica dos reservatórios e dos cursos d’água que os abastecem); (7) os megaprojetos econômicos direta e indiretamente financiados pelo governo (i.e. pelos contribuintes), voltados para a exportação

de produtos primários que irão abastecer os centros da economia capitalista mundial, projetos estes com pouquíssimo, se algum, retorno material para as populações diretamente impactadas; (8) as obras gigantescas de infraestrutura, construídas por (e para) poderosas empreiteiras afundadas até o pescoço em gargantuescos esquemas de corrupção que vão sendo progressivamente dados à luz pela imprensa (nem sempre com a melhor das intenções, bem entendido)... Paremos por aqui. É consabido que todas estas forças “progressistas” que levam o “crescimento econômico” aos confins do país contam com aliados poderosos no Congresso Nacional, nas câmaras estaduais e municipais, bem como nas diversas instâncias do Poder Judiciário, recebendo ademais o estímulo entusiasmado do Executivo na presente, passada, e verossimilmente todas as gestões presidenciais ou ditatoriais da história republicana. Em suma, estas forças mandam no país. A sorte é que ainda há, felizmente, quem lhes negue obediência. Enfim, o real conflito, o geral conflito, o drama histórico maior que lateja no fundo (que digo? na superfície) desta causa “menor” em torno da T.I Maró é aquele que assola a Amazônia hoje, e que confronta os povos e gentes da terra, a gente do rio e da floresta, do peixe e da mandioca, que luta para manter seu modo de vida tradicional, — sem prejuízo de serem atendidos pelos serviços públicos a que têm direito como cidadãos brasileiros, os quais sempre lhes foram, não obstante, negados —, ao sedutor cantarolar de uma legião de sereias políticas, empresariais e midiáticas que lhes acenam com a miragem da “possibilidade do desenvolvimento socio-econômico” (citando o cínico eufemismo usado na sentença [p.25]) como constituindo a única forma pela qual estas comunidades ribeirinhas-caboclas-indígenas poderão se libertar do que as ditas sereias lhes apontam como sendo a miséria, ignorância e abjeção em que estariam mergulhadas. Ora, o que a história recente nos ensina, muito pelo contrário, é que a “possibilidade do desenvolvimento econômico” produz, quando ela passa ao ato — aceitando-se, por antífrase, que tudo o que enumeramos no parágrafo anterior possa ser chamado de “desenvolvimento econômico” —, a dissolução progressiva dessas comunidades tradicionais, sua extinção, o acaparamento de seus territórios por grandes empresas agroexportadoras e por especuladores profissionais, com o consequente engrossamento da população pobre das periferias das cada vez maiores, mais caóticas e mais inviáveis cidades da Amazônia. Antes de abordar o conteúdo propriamente substantivo da sentenca, faço as considerações a seguir sobre sua forma, não menos reveladora do espírito geral que a inspira.

II.2. Sobre a argumentação da sentença A sentença em exame contém longos trechos repetidos de citações de terceiros, redundando e

abundando em fórmulas e clichês, não referindo várias das fontes que utiliza, e incidindo repetidamente no procedimento que consiste em extrair passagens de lavra alheia de seu contexto mais amplo, de modo a distorcer, e muitas vezes a inverter, seu sentido. Além da já citada entrevista de minha autoria, destaco, por exemplo, o uso maliciosamente truncado que é feito do artigo de Peixoto, Arenz & Figueiredo, “O Movimento indígena no Baixo Tapajós”,13 bem como a desqualificação algo embaraçosa — para o desqualificador — do relatório principal da FUNAI que embasa o processo de identificação e delimitação da T.I. Maró. O Exmo. Juiz não achou necessário, além disso, citar trabalhos como, por exemplo, os de Leandro Mahalem Lima, antropólogo que faz pesquisa de campo exatamente na região em litígio.14 É possível que os desconheça, por recentes ou inéditos; mas não poderia alegar desconhecimento do autor e de seu envolvimento na questão, uma vez que L.M. Lima publicou longa carta na Gazeta de Santarém de 19/03/2013,15 na qual dá sua versão da situação no Arapiuns. A sentença não cita, em particular, a fonte de onde hauriu os argumentos que contestam as informações contidas nos relatórios da FUNAI. A maioria de seus parágrafos “antropológicos” deriva diretamente do texto da ação de anulação patrocinada pelo Dr. Talisman de Moraes, o qual, por sua vez, mostra-se grávido de uma volumosa e sofismática argumentação histórico-etnográfica que tudo indica — a começar por certas curiosas lucubrações vétero-testamentárias — originar-se da pena evangélica do Sr. Edward Luz, o qual jamais é citado nominalmente, nem na ação patrocinada pelo Dr. Moraes, nem na sentença do Exmo. Juiz Portela. A contestação “substantiva” do Relatório da Funai desenvolvida na sentença pareceunos impertinente e irrelevante. Como observa o redator da Informação Técnica da Funai nº 12/ DPT/2015 (“TI Maró - Subsídios para defesa da FUNAI nos autos referentes às Ações Civis Públicas n° 2010.39.02.000249-0 e n° 2091-80.2010.4.01.3902”), Da leitura da legislação vigente que fundamenta o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, percebe-se que não caberia ao juízo produzir interpretação sobre o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Maró, uma vez que se trata de peça técnica, produzida por equipe técnica multidisciplinar de qualificação reconhecida. Não existe, pois, laudo ou perícia elaborados por outro profissional da antropologia refutando a peça técnica elaborada pela equipe coordenada pela antropóloga competente, analisada tecnicamente pelo setor responsável da Fundação Nacional do índio e acolhida pela presidência do órgão para a delimitação da Terra Indígena Maró. [eu grifo — EVC]

13

Excepcionalmente, referenciado na sentença. Ver Novos Cadernos NAEA, vol.15 nº 2, dez. 2012. Veja-se sua tese de doutorado, No Arapiuns, entre verdadeiros e -ranas. Sobre as lógicas, organizações e os movimentos dos espaços do político (FFLCH-USP, 2014). Ou «Onomástica e identidade no Arapiuns: debate sobre etnicidade e totemismo», in Atas do XXXIV Convegno Internazionale di Americanistica – Perugia 3–10 maggio 2012. 15 http://www.gazetadesantarem.com.br/cidade/leandro-mahalem-de-lima-sobre-boraris/ 14

A menos, bem entendido, que exista, sim, um outro laudo submerso, justamente aquele de autoria do Sr. Edward Luz, feito a instâncias da ACUTARM, ao qual não tivemos acesso, exceto, como dissemos, enquanto parte incluída anonimamente na ação patrocinada pelo Dr. Talisman de Moraes. Laudo que, acrescentamos, não foi obviamente solicitado nem acolhido pela FUNAI, entre outras razões por esta não considerar o autor presumível de tal documento, como se verá, dotado de capacidade técnica substantiva ou de mínima equanimidade política. Surpreenderam-me sobremaneira o vocabulário e o tom preconceituosos da sentença, bem como as incoerências e imprecisões nela contidas. A sentença abusa de uma linguagem acusatória e da imputação de más intenções às comunidades que reivindicam a identidade Borari-Arapium. O uso pejorativo do adjetivo “ideológico”, por exemplo, tem um grande potencial de ricochete sobre a própria sentença: Extrai-se dos autos que o processo de identificação, delimitação e reconhecimento dos supostos indígenas da região do Rio Arapiuns e Maró surgiu por ação ideológico-antropológica exterior, engenho e indústria voltada para a inserção de cultura indígena postiça e induzimento de convicções de autorreconhecimentos.

Caberia perguntar, no mesmo espirito, se a sentença não se constitui em ação ideológicojurídica exterior, voltada, “por hipótese”, para a facilitação de uma atuação paralegal da indústria madeireira na região. Ao preconceito se soma a imprecisão, tal na passagem que “define” o que é o indigenato, a saber, como consistindo em algo que, “em linhas gerais”, foi “apregoado” nos longes idos de 1912 como um tipo de direito de “propriedade”: A teoria do indigenato, concebida por João Mendes em 1912, em linhas gerais apregoava serem de propriedade dos índios mesmo as terras ocupadas em tempos imemoriais… [eu grifo-EVC]

Na medida de minhas escassas luzes jurídicas, respondo que o indigenato, instituição (e não apenas teoria) que se radica no Alvará Régio de 1º de abril de 1680, não é um direito de “propriedade” ou qualquer outra forma de “posse civil”, mas posse aborígene, direito congênito, isto é, originário, e como tal consagrado na Constituição Federal de 1988. Ora, o indigenato é referido como válido, isto é, como confirmado pela CF, pelo eminente constitucionalista José Afonso da Silva,16 autor citado mais de uma vez na sentença do Exmo. Juiz Portela, mas sempre truncadamente, a citação detendo-se logo antes de considerações que não agradam ao juiz.

16

Ver J.A. da Silva, «Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios» in J. Santilli, org., Os Direitos Indígenas e a Constituição, especialmente pp. 48-49. Ver ainda, sobre o indigenato, no mesmo volume, o útil e minucioso artigo de Fernando da Costa Tourinho Neto, «Os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam e suas consequências jurídicas».

Veja-se por exemplo a nota de rodapé nº 1 do texto da sentença, que retoma um trecho da p. 47 do mesmo artigo de J.A. da Silva supracitado por mim. O trecho é, como tantos outras passagens na sentença, repetido na pp. 72-73 da mesma. O Exmo. Juiz se detém, em ambas as ocorrências, antes de parágrafos situados na mesma página do artigo, onde o autor esclarece que a noção de “tradicionalidade” não se refere a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras, bem como (p. 50) ao fato de que a noção de posse permanente não significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se se destinam (destinar significa apontar para o futuro) à posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário já mencionado. [grifos no original]

Como veremos, essas considerações decisivas do Dr. José Afonso da Silva — que, emulando o Exmo. Juiz, me permitirei repetir adiante — colidem frontalmente com o dispositivo da sentença no que tange aos requisitos de tradicionalidade, permanência e originariedade, no caso da T.I. Maró. Veja-se ainda este outro trecho da sentença, tomado um pouco ao acaso: Aliás, abra-se parênteses, até mesmo antropólogos entusiastas da “etnogênese”, como o multirreferido Miguel Alberto Bartolomé, têm admitido que as causas do “ressurgimento”, frequentemente, são atribuídas às “novas legislações que conferem direitos antes negados, como o acesso à terra ou a programas de apoio social ou econômico.” [eu grifo-EVC]

Permito-me estranhar que o advento de novas legislações “que conferem direitos antes negados” possa ser utilizado como evidência desmistificadora do que quer que seja. É óbvio que entre as condições sociopolíticas essenciais dos processos de reafirmação étnica estão as tais “novas legislações que conferem direitos antes negados” — por exemplo, a Constituição Federal de 1988! Pois o que quereria o Exmo. Juiz? Que o impropriamente chamado processo de “etnogênese” (N.B. o autor do presente parecer não reza pela cartilha teórica do Dr. M.A. Bartolomé, que entende tosca e atabalhoada) tivesse sua origem em novas legislações que retirassem mais direitos dos povos indígenas? O animus reacionário do juiz é confesso. Certamente tal disposição política e existencial não é ilegal, nem, a rigor, imoral, mas ela sugere que as simpatias e lealdades da autoridade judiciária estão firmemente alinhadas com os atores que patrocinam, advocatícia, ideológica e talvez monetariamente a causa contra as comunidades Borari-Arapium de Novo Lugar, Cachoeira do Maró e São José III. O presente parecer indica as distorções e deficiências que tais simpatias e lealdades introduzem na sentença.

O texto da sentença, por exemplo, insinua que o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia (PPTAL), importante marco institucional em que se inserem a maioria dos projetos de identificação e demarcação territorial de áreas indígenas no país, é coisa que remete à eterna “cobiça internacional” pela Amazônia. Afinal, o PPTAL “é parte de um programa maior [o PPG7] financiado pelos sete mais ricos países do mundo voltado para a conservação da Amazônia”.17 O Exmo. Juiz não se proíbe entretanto, apesar de todo o seu anti-imperialismo de fachada, de citar (p. 25) como autoridade sobre o conceito de intelligentsia — tradução “no jargão sociológico” [sic] de “atuação militante” [sic] — a figura dúbia do historiador Richard Pipes, “guerreiro frio” anti-comunista que trabalhou para a CIA e foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante governo ultra-conservador de Ronald Reagan.18 O Exmo. Juiz tampouco reclama da presença — sequer a registra —, entre os partidários e patrocinadores da causa anti-Borari, de um elemento cuja origem e ascendência remontam em linha retíssima a uma missão evangélica fundamentalista norteamericana, a New Tribes Mission (agora ‘Missão Novas Tribos do Brasil”), dedicada precipuamente a converter, isto é, a desindianizar os índios brasileiros, e agora também, solertemente, a bloquear qualquer processo de reafirmação étnica que entrave “empreendimentos econômicos”. Estou-me referindo, aqui, ao já “multirreferido” Edward Luz. O Exmo. Juiz vitupera a célebre “Declaração de Barbados”19 documento-manifesto produzido pela comunidade antropológica latino-americana em 1971, com o apoio das igrejas progressistas de diversas confissões. O documento se opunha a todo proselitismo religioso sobre os índios, bem como a todas as formas de colonialismo político, econômico ou ideológico exercidas sobre os povos indígenas. O documento foi escrito no momento em que a política norte-americana de intervenção na América Latina estava em seu auge; ele se posicionava firmemente a favor das lutas de libertação indígenas, vistas em continuidade com 17

“Conforme já se registrou acima, os relatórios antropológicos que embasam todas as pretensões de criação de reservas indígenas na região do Tapajós foram financiados com recursos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD (projeto PNUD BRA 96/018, edital 2008/003, fl. 372 do Relatório Antropológico) e PPTAL - Programa Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia, financiado principalmente pela Alemanha. A própria demarcação da área pretendida foi realizada pelos líderes da ONG CITA, com financiamento da Ford Foundation, ICCO Cooperación (que recebe recursos da Holanda e outros países da União Européia (Vide site http://www.iccointernational.com/int/about-us/regions/south- america/), e ainda AVINA, Fórum Amazônia Sustentável, por intermédio da Comissão Pastoral da Terra, Projeto Saúde e Alegria e principalmente pelo Grupo de Trabalho da Amazônia – GTA, entidade não governamental confederativa que reúne quase todas as ONGs ambientais do País (mais de seiscentas).” Trocando em miúdos, tratar-se-ia de uma gigantesca conspiração internacional contra os honestos madeireiros de Santarém.… Naturalmente, nem uma palavra sobre a mega-multinacional Cargill, dona de instalações portuárias gigantescas em Santarém, como é dona-controladora de parte considerável da indústria alimenticia do planeta. 18 Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Pipes) 19 “Grupo de Barbados – linha radical da antropologia que defende a idéia de que sua atuação pode ser comprometida e enganjada [sic] mesmo quando trabalham em pesquisas para a criação de terras indígenas” (p. 14, grifos meus - EVC).

os movimentos nacionalistas de resistência dos países latino-americanos contra a ingerência dos EUA. A Declaração de Barbados é hoje completamente consensual dentro da comunidade antropológica; ela foi, ademais, uma influência importante na elaboração da Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos do Povos Indígenas. O juízo (no sentido de opinião) do Exmo. Juiz equivaleria assim a colocar toda a profissão antropológica na clandestinidade, pois composta por um bando (uma “intelligentsia”) de radicais subversivos “enganjados”, a soldo do ouro de Moscou (ou a esta altura, do G7). Observe-se, de passagem, que a posição do juiz em relação ao princípio da autodeclaração (p.50-ss), posição frontalmente contrária à do MPF e, por suposto, à Convenção 169 da OIT, invalidaria juridicamente, por exemplo, as políticas de ação afirmativa, as chamadas “cotas”, implementadas pelo Governo Federal nas áreas educacionais e outras. (Mas como as cotas não envolvem reivindicações territoriais, o assunto não chega realmente a empolgar os inimigos da auto-declaração.) A autoridade judicial argumenta, preparando sua tese de que a auto-declaração de indianidade é na verdade uma “hetero-auto-declaração”, uma declaração-zumbi, fruto das maquinações maquiavélicas de certas “instituições” interessadas (cheguemos, como se diz, aos finalmente) em destruir o capitalismo, nos seguintes termos: Admitindo-se, por hipótese, a eficácia jurídica do mencionado dispositivo da Convenção 169 da OIT, sem maior desforço interpretativo há que ter-se que a “consciência de sua identidade” deve surgir de forma orgânica, ou seja, no seio da própria comunidade, em forma de uma autoconsciência de pertencimento e de distinção de outros grupos e nunca a partir de fatores externos consubstanciados em catequeses ideológicas formuladas por instituições que têm no indígena um elemento de resistência mais forte e mais eficaz que o ribeirinho ou caboclo contra o avanço do capital em detrimento do meio ambiente.

Tudo, nesta passagem, é contestável. Primo, a eficácia juridica da Convenção 169 está muito longe de ser “hipotética”. Tal afirmação coloca o Exmo.Sr. Juiz no campo dos que vêem o Brasil como terra nullius no que concerne à normatividade internacional relativa aos direitos humanos. O Supremo Tribunal Federal já indicou reiteradas vezes que Tratados Internacionais de Direitos Humanos gozam de status supralegal, e são materialmente (por vezes formalmente) constitucionais. Recordo que a Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil mediante decreto legislativo, e promulgada por decreto executivo.20 Secundo, a ideia da necessidade de uma “emergência orgânica” da consciência étnica, de uma espontaneidade imanente da afirmação de uma identidade distintiva, soa-nos algo paradoxal. Na medida em que é uma declaração, uma afirmação, a auto-declaração não poderá jamais ser uma manifestação “orgânica”, “natural”, espontânea. Os índios não saem por aí dizendo que são índios, não passam suas noites na floresta, em torno da fogueira, 20

Ratificada pelo decreto legislativo nº 143, de 20/6/2002, ela entrou em vigor em 2003. O decreto executivo nº5051 de 19/04/2004 promulgou a Convenção 169.

repetindo para si mesmos que são comunidades indígenas com direitos originários conforme estatuído pelo artigo 231 da Constituição Federal. Na verdade, os índios “isolados”, aqueles que evitam o contato com as sociedades nacionais que os envolvem e acuam, não sabem que são “isso”, a saber, “índios”, até serem devidamente contactados e enquadrados administrativamente pelas entidades soberanas que os subordinam militar e politicamente. A auto-declaração pressupõe uma familiarização com “fatores externos”, isto é, com informações e representações culturais provenientes do universo político e jurídico das sociedades nacionais. Nada há de espantoso nem de a priori condenável no fato de que tais informações possam lhes ser transmitidas e interpretadas por não-membros de suas comunidades. Aquilo que os antropólogos chamam de “teoria primordialista” da etnicidade (a “consciência orgânica” de uma identidade étnica diferenciada) é tão inverossímil, se tomada como fator exclusivo nos processos de afirmação étnica, quanto seu antônimo, as chamadas “teorias instrumentalistas”, que vêem nos processos de reivindicação de indianidade a mera manifestação de um cálculo político de custos-benefício, supondo assim um Homo etnicus feito à imagem e semelhança do igualmente imaginário Homo economicus. Tertio, surpreende-me que o Exmo. Juiz seja tão avesso a “catequeses ideológicas” mas não ache motivo nem ocasião para condenar as catequeses religiosas, desde o “ativismo” multissecular que forçou o cristianismo pela goela abaixo desses que hoje se redescobrem índios (a “prédica da espada e da vara de ferro“ de que já falava Anchieta) até o ativismo ideológico solerte de organizações confessionais estrangeiras como a New Tribes Mission, de intensa atuação no oeste do Pará (entre muitos outros locais da Amazônia), cujo missionáriopresidente vem a ser pai do “antropólogo” Edward Luz, o multirreferido assessor da ACUTARM. Estas formas de catequese ideológica configuram uma modalidade de esbulho cultural, que até tempos recentissimos, inclusive tempos atuais (sobretudo nas áreas de atuação dos missionários evangélicos), forçou os povos indígenas, ameaçados de estigmatização social, a adotarem uma estratégia de defesa que implicava negar sua indianidade — uma autonegação defensiva (abandono da língua nativa, recalque da cosmologia fundacional do modus vivendi) que se vê hoje progressivamente corrigida por uma auto-declaração afirmativa. O “fato indígena” tem condicionantes e antecedentes que vão bem além do renitente esbulho territorial, da expulsão forçada das terras que os índios ocupavam tradicionalmente.21 O esbulho identitário, desde que não se tenha completado (por “lavagem cerebral” total e consequente oclusão étnica absoluta), isto é, desde que ela possa ser revertido pela memória ativa do grupo, deve ser considerado como fator relevante para a aplicação das condicionantes 21

Refiro-me aqui, evidentemente, aos debates na STF a respeito da «teoria do fato indígena» e dos fatores que devem moderar e modular a aplicação das chamadas «condicionantes» (Menezes Direito), notadamente o esbulho territorial, a «espremedura topográfica» sofrida pelos povos indígenas antes do marco temporal da promulgação da CF (Ayres Britto). Ver MPF, nº 1189/2014 - ASJTC/SAJ/PGR, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29087.

estabelecidas pelo STF (mas cujo valor vinculante universal permanece, como já observamos, controverso) dentro da nova “teoria do fato indígena” Quarto, não posso deixar de registrar a curiosa incompetência retórica de um texto condenatório que termina falando em “instituições que têm no indígena um elemento de resistência mais forte e mais eficaz que o ribeirinho ou caboclo contra o avanço do capital em detrimento do meio ambiente.” Ora, então o senhor juiz é a favor do avanço do capital em detrimento do meio ambiente? Assim, sem mais? O abuso do discurso indireto livre leva, aqui, à incoerência retórica. A menos que, como suspeitamos, o autor da sentença seja realmente a favor do avanço do capital em detrimento do meio ambiente. Neste caso, como no poema de Manuel Bandeira, só nos resta tocar um tango argentino. Não faltam elementos na sentença que revelam uma profunda incomodidade perante o fato da existência de índios no Brasil. A negação judicial da indianidade dos Borari-Arapium não pode ser desvinculada, portanto, de um ânimo anti-indígena mais geral por parte do Exmo. Juiz Airton Portela. Assim, a sentença, que vota uma hostilidade que diríamos quádrupla ao cidadão Florêncio Vaz de Almeida Filho — pois que padre, antropólogo, indígena e ativista ambiental —, observa: A ação do padre-antropólogo foi o fato mais importante para a conversão de comunidades ribeirinhas em aldeias indígenas ressurgidas nas margens do Rio Tapajós e seus rios tributários, pois a presença de indígenas, como é de sabença geral, atualmente emerge como principal obstáculo à implementação dos projetos hidrelétricos do Governo Federal.

Ora, tudo aquilo que se chama de “obstáculo” deve ser, por definição, removido. E um obstáculo “principal” exige ser removido de princípio. O mínimo que posso dizer é que a citação acima é preocupante. A expressão “a presença de indígenas” passa muito perto de uma significação racista, ou pior — diz-se “a presença de indígenas” como quem diria a presença de animais ferozes, ou organismos patogênicos — e merece o repúdio veemente por parte deste parecerista, que se permite ainda entrever aqui, nesta passagem, uma relação ominosa entre a causa em torno da T.I. Maró e o desastre anunciado (e iniciado) da construção do complexo de barragens e usinas na bacia do Tapajós. Madeireiras, projetos hidrelétricos, “empreendimentos econômicos” — as sete associações comunitárias que se posicionaram contra a T.I. Maró estão, temo, dando um espetacular tiro no pé, senão em algum outro ponto mais vital de seu organismo antropológico.

II.3. Sobre interesses Uma linha argumentativa importante na sentenca do juiz Airton Portela consiste em denunciar “interesses” por trás da reivindicação de indianidade das três comunidades Borari-Arapium,

bem como insistir na “manipulação ideológica” de que os crédulos caboclos estariam sendo vitimas. É-se levado assim a pressupor que as associações comunitárias que moveram a ação, elas também formadas por gente ribeirinha, não possui qualquer interesse no caso a não ser um louvável compromisso com a verdade objetiva dos fatos (do “fato não indígena”); que o causídico que as patrocina é um defensor contumaz de nobres causas; e que não há qualquer envolvimento de empresas, de políticos e dos grandes interessados costumeiros nas terras indígenas do país. Se os Borari-Arapium “querem ser índios” para se beneficiarem de uma legislação favorável, por que os demais ribeirinhos da Gleba Nova Olinda I se mostram tão desprendidos, preferindo permanecer em uma condição que o Exmo.Sr. Juiz é o primeiro a dizer que é a uma de privação de direitos? As motivações subjetivas e coletivas que dão impulso à identificação étnica não podem ser reduzidas a um mero instrumentalismo voltado à obtenção de direitos negados ao caboclo.

Não, com efeito, a chamada “teoria instrumentalista” da etnicidade, defendida por alguns antropólogos (mas não pelo presente parecerista), não esgota, nem de longe, as motivações subjetivas (“e coletivas”) envolvidas nos processos de reafirmação étnica. O Exmo.Sr. Juiz parece esquecer, aliás, que muitas comunidades indígenas brasileiras deixaram de se identificar como indígenas por motivos de uma “instrumentalidade” perfeitamente razoável — elas tinham interesse em não serem perseguidas, discriminadas, excluídas, escravizadas, e foram assim obrigadas a abandonar “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, além, é claro, das terras que tradicionalmente ocupavam. Este é um processo de esbulho sociocultural, que deveria ser somado ao “renitente esbulho” territorial, a “espremedura topográfica” que, como argumenta eloquentemente o Ministro Ayres Britto, deveria modular e moderar as condicionantes propostas pelo sutil Ministro Menezes Direito, de modo a flexibilizar o “marco temporal” definidor do “fato indígena” a fim de incluir a eventualidade de um processo de reativação da memória coletiva capaz de remontar ao processo de esbulho espiritual sofrido por tantas comunidades “tradicionais” do Brasil, e de reconstituí-lo por meio da documentação historica, da tradição oral e da tomada reflexiva de consciência de automatismos corporais e comportamentais diagnósticos de uma origem indígena talvez há muito esquecida, mas nem por isso extinta. As motivações subjetivas são inseparáveis de disposições prático-existenciais que constituem o alfa e o ômega da “verdade objetiva” nestas matérias. Apresento aqui minha posição teórica da forma a mais clara possível.22 A condição indígena não é um atributo determinável por inspeção simples nem muito menos por consenso plebiscitário da parte de terceiros (e quais terceiros?). “Índio” não é uma substância dotadas de proprieadades 22

Este parágrafo retoma partes de meu artigo-entrevista já citado, «No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é».

características ostensivas Não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente ou evidente neste sentido estereotipificante, mas sim uma questão que eu chamarei de “estado de espírito” — estamos falando de gente humana, de pessoas morais coletivas, não de espécies naturais (natural kinds); falando de entidades, portanto, onde as dimensões subjetivas e objetivas são estritamente indissociáveis. É esse “estado de espírito” que condiciona a gênese de um certo “estado de corpo”, um conjunto de disposições ou habitus corporais que frequentemente “traem” a condição crucialmente não-branca das populações ditas tradicionais: dos caboclos da baixa Amazônia, dos seringueiros do Acre, dos caipiras e caiçaras do Sudeste, dos camponeses e vaqueiros nordestinos, enfim, de uma vasta porção da população brasileira que jamais conseguirá ser reconhecida como “branca”, no duplo sentido sociocultural e cromático que o conceito tem neste país. Índio, enfim, é um modo de ser antes de ser um modo de aparecer. Na verdade, mais que um modo de ser, é um modo de vir-a-ser, um modo de devir, de projetar-se no tempo (no passado como no futuro), de diferenciar-se de si mesmo como de outras tantas e indeterminadas alteridades — brancos, animais, inimigos, mortos, encantados — , em um trabalho infinitesimal incessante de “tornar-se índio”, trabalho ao qual todos os índios, inclusive aqueles que consideramos como índios “naturais”, “espontâneos”, “selvagens” ou “puros” devem realizar, sob pena, justamente, de serem forçados, por razões de “interesse”, a deixar de ser, ou melhor, a deixar de parecer índio. Em suma, os enunciados de indianidade — a auto-declaração admitida como critério fundamental pela Convenção 169 da OIT e pelo entendimento antropológico corrente — são enunciados performativos e não enunciados constativos; eles dependem de condições de felicidade e não de condições de verdade (no sentido de correspondência com um estado de coisas ontologicamente independente).23 Tais condições de felicidade são dadas pela capacidade demonstrada pelo enunciador de suscitar sua própria diferença, e não pela concordância autorizada de terceiros (a opinião pública, o Estado). A indianidade, em suma, é tautegórica, para usarmos um célebre conceito de Schelling. Ela cria sua própria referência. Os índios — o índio como posição sociopolítica divergente do alinhamento metafísico ocidental — são aqueles que “representam a si mesmos”, no sentido em que o antropólogo Roy Wagner dá a esta expressão. Cabe ao Estado reconhecer esta faculdade intrínseca de autorepresentação (auto-declaração), acolhendo-a dentro de sua ordem constitucional como caso especial, como direito originário de povos que precedem, em todos os sentidos, o nomos da Terra (Carl Schmitt) instituído pela invasão e conquista da América. Voltemos aos interesses. O juiz observa, a horas tantas de sua sentença: Especificamente no que se refere à reivindicação de reconhecimento da suposta T.I. Maró, ora em 23

Remeto o leitor ao trabalho clássico de John Austin (How to do things with words), onde se elaboram estas noções cruciais (performativo/constativo, condições de felicidade/condições de verdade) para a teoria do discurso e a metafisica modernas

debate, tem-se que, conforme já pincelamos, por uma demão, tais populações tradicionais ribeirinhas premidas pela condição quase miserável que experimentam e uma absurda desorganização fundiária na Gleba Nova Olinda (porção territorial de dominialidade do Estado do Pará sobre a qual se pode afirmar, é de todos e de ninguém), e ainda a ausência de políticas públicas e mesmo da simples perspectiva de desenvolvimento humano, à esperança de receberem melhor atenção por parte do Poder Público, tais comunidades assimilaram a idéia de se tornarem indígenas.

Caberia então perguntar se as associações comunitárias que movem a ação contra os BorariArapium estão em situação menos miserável, menos atingida pela desorganização fundiária, e mais bem assistidas pelas politicas públicas — ou se não “assimilaram a ideia de se tornarem indígenas” porque (visto que se consideram sociologicamente homogêneas às comunidades Borari-Arapium) tinham seus próprios interesses em não fazê-lo, ou antes, porque estariam associadas a interesses que não tinham nenhum interesse na existência de terras indígenas na região. Comecemos aqui por transcrever uma observação contida nas primeiras páginas do relatório da Funai assinado por Geórgia da Silva, antropóloga coordenadora do GT Maró e consultora do PPTAL/PNUD: Reunir-se com essas instituições [ITERPA, IDEFLOR] seria de grande importância para compreender a situação local, afamada por conflitos fundiários, principalmente relacionados à grilagem e à extração madeireira justificada por Planos de Manejo Florestais Sustentáveis (PMFS) apontados como irregulares, segundo "Relatório Técnico de Vistoria na Gleba Nova Olinda", realizado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em setembro de 2007.

No site da organização de direitos humanos Terra de Direitos, encontra-se matéria publicada em 17/12/2014, intitulada “Quem ganha com a ‘inexistência’ da Terra Indígena Maró?”,24 na qual se podem ler as seguintes informações: A partir de dados fornecidos pelo IBAMA à Terra de Direitos, é possível identificar quais grupos econômicos podem se beneficiar diretamente com o posicionamento do juiz e de outros setores da sociedade. Há quatro empresas madeireiras operando no entorno e nas próprias terras indígenas, com Projetos de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) aprovados ou autorizados pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA) do Pará. No total, o SEMA autorizou mais de 10 explorações florestais desde 2007 na área indígena. Os Planos são aprovados a partir de Autorizações para Exploração Florestal (AUTEF), Cadastro Ambiental Rural (CAR) e Cadastro de Exploradores e Consumidores de Produtos Florestais do Estado do Pará (CEPROF). Apesar das liberações, todos os Projetos foram notificados pelo IBAMA, em 2013 e 2014, por terem CAR dentro de Terra Indígena. Portanto, as empresas estão com as atividades embargadas até o momento. A Rondobel Indústria e Comércio de madeiras LTDA é a maior beneficiada com o corte de madeira da região. O volume autorizado é de 64.014,24 metros cúbicos, número equivalente a 3.200 caminhões carregados. Comparada às outras empresas que operam em áreas da TI Maró, a Rondobel tem o dobro de corte autorizado.

24

http://terradedireitos.org.br/2014/12/17/quem-ganha-com-a-inexistencia-da-terra-indigena-maro/

O PMFS Augusto Braun tem autorização para corte de 24.207,72 metros cúbicos, ou mil caminhões. As empresas Fazenda Curitiba e Lemos e Neto e Cia Ltda atuam parcialmente na TI Maró, com volume autorizado de corte fixado 37.417,4 e 22.200,51 metros cúbicos, respectivamente. A liberação de Projetos de Manejo no território é juridicamente ilegal, por violar os direitos garantidos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Pedro Martins, assessor jurídico da Terra de Direitos que acompanha o caso, aponta que durante os processos administrativos de autorização de exploração florestal não são garantidos os direitos de consulta: “Nem mesmo a FUNAI foi notificada sobre os pedidos das madeireiras em Terra Indígena – o que não exime a Fundação, que deixou de agir como deveria em oposição às madeireiras da TI Maró após as denúncias dos indígenas”, afirma o advogado. “Os órgãos ambientais, em especial a SEMA, invisibilizam povos indígenas da região, favorecendo grandes madeireiras”, opina Martins. O processo de demarcação da Terra Indígena ainda está em andamento e o mapa do território foi publicado em 2011 no Diário Oficial, sendo, portanto, disponível a todos os órgãos ambientais.

No mesmo sentido, a já citada Informação Técnica da FGunai nº12/DST/2015, informa: Assim, o que se observa é que o acirramento dos conflitos na região da Gleba Nova Olinda atingiu com violência as lideranças de movimentos sociais, que passaram a ser perseguidas e difamadas por grileiros, madeireiros e comunitários cooptados pela ação de empresários ligados à Madeireira Rondobel Indústria e Comércio de Madeiras Ltda e à outras madeireiras que atuam na área da Gleba Nova Olinda, com autorização da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Sema) do Pará. (PROCESSO/FIJNAI/BSB n° 08620.000294/2010-64, fis. 482, 485, 497 e 498).

A sentenca do Juiz Airton Portela não menciona qualquer conflito com madeireiras, grilagens ou invasões, exceto sob a forma de rápidas alusões dentro de relatos alheios, e no contexto de uma apreensão de madeira feita por uma liderança Borari (apreensão qualificada pelo Dr. Talisman Secundino de Moraes, em sua ação contra a Funai, de “atrocidade” [!]). Em suma, o juiz não se pronuncia sobre o que somos tentados a chamar o “fato grileiro”, nem sobre a altamente provável cooptação das sete associações comunitárias que movem a ação antiindígena pelas madeireiras. Gostaria aqui de lembrar um trecho do voto do Ministro Ayres Britto no julgamento da PET 3388/RR: Também é de se afirmar, com todo vigor, que a atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. É que subjaz à normação dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal o fato histórico de que Estados e Municípios costumam ver as áreas indígenas como desvantajosa mutilação de seus territórios, subtração do seu patrimônio e sério obstáculo à expansão do setor primário, extrativista vegetal e minerário de sua economia. Donde a expedição, por eles (Estados e Municí- pios), dos títulos de legitimiação fundiária a que se referiu o ministro Maurício Correia no bojo da ADIN 1.512, favorecedores de não-índios. Tanto quanto a práxis das alianças políticas de tais unidades federadas com agropecuaristas deporte, isolada ou conjugadamente com madeireiras e empresas de mineração, sempre que se põe em debate a causa do indigenato. Pelo que, entregues a si mesmos, Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus estratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do País,

num processo de espremedura topográfica somente rediscutido com a devida seriedade jurídica a partir, justamente, da Assembleia Constituinte de 1987/1988. [eu grifo-EVC]

Neste contexto, caberia talvez lembrar outro trecho da IT da Funai: Essa oposição pode ser sintetizada no pronunciamento do Deputado Joaquim de Lira Maia, em Sessão da Câmara dos Deputados ocorrida em 11.11.2009, encontrado no PROCESSO/FUNAI/ BSB n° 08620.000294/2010-64, fl. 156 a 165, vol. 1, no qual o deputado denuncia uma suposta tentativa de criação de “índios artificiais” por certas ONGs, com o intuito de obstar o processo de desenvolvimento no Pará, o que estaria gerando conflitos na Amazônia. Segundo o Deputado, a criação de comunidades indígenas na região da gleba estaria impedindo que a mesma fosse arrecadada por terceiros e explorada economicamente.25

Não seria talvez impertinente lembrar, neste mesmo contexto, que o Dr. Talisman Secundino de Moraes, patrocinador da causa das sete associações comunitárias que contestam a condição indígena dos Borari-Arapium, é advogado das mesmas madeireiras que invadem a região reivindicada pelas comunidades de Novo Lugar, Cachoeira do Maro e São José III. Por fim, lembremos mais uma vez o papel de “eminência parda” desempenhado pelo Sr. Edward Luz em todo este estranho processo. A nota da ABA já citada observa que o contra laudo feito pelo Sr. Luz sob contrato com a ACUTARM, embora não seja citado no documento da sentença do juiz, tem sua existência evidenciada pela informação de que “Edward Luz gabou-se em sua conta no Twitter de que ‘todas, todas as teses que defendi foram sustentadas e defendidas pelo Juiz Portela!!!’ A atuação política e confessional do Sr. Luz foi objeto de duas matérias fartamente documentadas do jornalista Felipe Milanez, publicadas na revista Rolling Stone: “Medo e tensão no oeste” (ed. 49 de outubro de 2010) e ”O mercado de almas selvagens” (ed. 63 de dezembro de 2011). As matérias valem a pena ser lidas com atenção,26 por detalharem a implicação ao mesmo tempo econômica, politica e catequética da organização comandada pelo pai do Sr. Luz, a Missão Novas Tribos do Brasil — um verdadeiro projeto geopolítico de controle dos índios do Oeste do Pará, no duplo sentido de conversão dos “selvagens” e de travamento de qualquer movimento de reafirmação étnica de “caboclos”. Os dados trazidos pela IT da FUNAI, por mais sucintos, podem ser citados aqui verbatim: … O conflito, que atingiu o seu ápice durante as manifestações que levaram à queima da madeira apreendida, acabou atraindo a opinião pública de Santarém, em razão da atuação da imprensa local e de jornalistas, políticos e até de antropólogos comprometidos com os interesses econômicos madeireiros. Sobre o envolvimento de diversos atores com o conflito na Gleba Nova Olinda, a reportagem Medo em Tensão no Oeste do Pará, cita, em especial, a atuação do missionário e antropólogo Edward Luz. 25

O Deputado Joaquim de Lira Maia (DEM-PA) foi ex-Prefeito de Santarém. Ele “responde atualmente responde atualmente a diversos processos e inquéritos na Justiça brasileira e virou réu pela terceira vez no STF em agosto de 2009, entre outros pelo envolvimento em possíveis irregularidades em 24 processos licitatórios promovidos para aquisição de merenda escolar da rede pública do município de Santarém, no ano de 2000.” (wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_de_Lira_Maia) 26 http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-63/o-mercado-de-almas-selvagens#imagem0 e http:// rollingstone.uol.com.br/edicao/49/medo-e-tensao-no-oeste#imagem0 http://rollingstone.uol.com.br/ edicao/edicao-63/o-mercado-de-almas-selvagens#imagem0

… O missionário é filho do Pastor e Presidente da Missão Novas Tribos do Brasil, também chamado Edward Luz, afastado por ordem judicial (RE/6 11037), em 2010, a pedido do órgão indigenista, das terras dos índios Zo'é, devido a acusações de proselitismo e até mesmo genocídio, por terem levado doenças aos índios para as quais eles não tinham imunidade. O resultado desse contato prolongado, em um grupo sem defesas imunológicas contra os elementos patogênicos trazidos pelos missionários, teria sido a ocorrência de 39 mortes, segundo relatos colhidos entre os Zo'é, povo considerado de recente contato. … Consta da Informação n°. 07/2011, de 06.09.2011, elaborada pelo analista pericial em antropologia, Raphael Frederico Acioli Moreira da Silva (no âmbito dos Procedimentos Administrativos n° 1.23.002.000008/2005-19, 1.23.002.000165/2005-24, Peça de Informação n° 1.23.000.002689/2007-31, Protocolo único PRMISTM n° 316/2009 e Protocolo único PR/PA n° 16820/2009) que, segundo a Administradora da Unidade Administrativa responsável da FUNAI à época, "as práticas dos missionários destruíram redes de alianças e relações internas entre as aldeias, seja pelo isolamento das aldeias refratárias a suas ações, seja pela oferta de privilégios aos indígenas que aceitassem o discurso missionário e pela criação de lideranças artificiais, inexistentes na cultura Zoté, reforçadas com a distribuição de bens materiais exóticos a seus modos de vida; o estímulo ao uso de vestimentas usadas e alterações na alimentação tradicional tornaram o grupo suscetível à contaminação de doenças; a atuação missionária desacreditou sua cosmologia mítica e os valores que fundamentavam sua identidade étnica". … Desfiliado da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e desqualificado como antropólogo em 2013, segundo informa a Comissão de Assuntos Indígenas da própria ABA em Nota sobre a sentença judicial que nega a condição de indígenas ao povo Borari e Arapiuns(em anexo), devido a "sua postura antiética e por proferir declarações equivocadas e reducionistas, inteiramente desprovidas de rigor e embasamento científico" (ABA, 2014), o missionário Edward Luz (o filho) tem envidado esforços, na região de Santarém, para "provar que nesta área não existem índios ", conforme a referida reportagem encontrada nos autos. (PROCESSO/FIINAI/BSB n'08620.000294/2010-64, fl. 203). • É público e notório que o sr. Edward Luz escreveu laudos e de outras formas atuou contra o reconhecimento da condição indígena das comunidades Borari. Contra o reconhecimento da condição indígena das comunidades Borari. Ele comenta e celebra a decisão do juiz em seu blog Questão Indígena. Tipo do blog onde se lê: “Desejamos boa sorte a todos e a morte longa, lenta e dolorosa aos antropólogos e indigenistas radicais cuja ação plantou o cisma e a violência entre índios e produtores rurais. [http://www.questaoindigena.org/2013/11/analise-da-minuta-deportaria-do.html#more]

Não deixa assim de ser compreensível que o juiz Airton Portela, diante de um simpatizante deste calibre da posição tomada por ele na sentença, omita o embaraçoso nome de Edward Luz. Em troca, parece-nos curioso que o Exmo. Juiz ataque com tanta sanha o outro antropólogo, Florêncio Vaz, por promover a conscientização politica e étnica das comunidades Borari-Arapium: “Chama a atenção o fato de Florêncio Vaz haver chegado ao extremo de transportar lideranças comunitárias para doutrinamento (que chamou de conscientização étnica) em outro Estado da Federação.” Imagino o que não diria ele de missões evangélicas que retiram criancas indígenas de suas famílias para doutrinação em cidades distantes, ou que são formalmente acusadas de proselitismo e de genocídio (certamente por imperícia), como a Missão Novas Tribos. Imagino ainda o que ele não diria de toda a história de conversões forçadas, aldeamentos, descimentos, disciplinamentos, castigos e sofrimentos impostos aos povos indígenas do Tapajós pela Igreja Católica desde o século XVII

até não muitos anos atrás. Ou imagino: ele entende que tal história foi fundamental para formar a população cabocla, para desindianizar os povos e terras do baixo Tapajós, e assim abrir espaço para as ‘possibilidades de desenvolvimento econômico”, isto é, para as madeireiras e os projetos hidrelétricos do Governo. Um indício curioso da presença espectral do Sr. Edward Luz na sentença está no item 3.4.2. da mesma, “A celebração da lua nova”, onde o juiz, sem citar qualquer fonte, contesta as raízes aborígenes do ritual praticado pelas comunidades ribeirinhas do Arapiuns. Ele argumenta que se trata, como tudo o mais que é aduzido pelo relatorio da Funai a título de elementos culturais indígenas que reforcam o pelito dos Borari-Arapium, de um mero empréstimo do cristianismo, uma cerimônia “provavelmente implantada pelos sacerdotes jesuítas que fundaram e dirigiram as missões às margens do rio Tapajós”. E prossegue: A razão está em que a Bíblia, no chamado Velho Testamento está repleto de passagens em que os ritos religiosos hebreus, incluíam a “Festa da Lua Nova” e ocorria no início de “cada mês”, sendo celebrada “todos os meses do ano” (Nm 28:11 e 14). Assim, a Bíblia está repleta de menções tais como “ocasião especial de adoração (Ez 46:1-8), nesse dia tocavam-se as trombetas sagradas e ofereciam-se “holocaustos” e “ofertas de manjares” ao Senhor (Nm 10:10; 28:11-15; Sl 81:3); o povo abstinha-se de atividades comerciais e seculares (Am 8:5); realizavam-se também banquetes especiais (1Sm 20:5, 18, 24, 27 e 34) e 45 até mesmo no novo Testamento (Colossenses 15:16). […] A razão está em que a Bíblia, no chamado Velho Testamento está repleto de passagens em que os ritos religiosos hebreus, incluíam a “Festa da Lua Nova” e ocorria no início de “cada mês”, sendo celebrada “todos os meses do ano” (Nm 28:11 e 14). Assim, a Bíblia está repleta de menções tais como “ocasião especial de adoração (Ez 46:1-8), nesse dia tocavam-se as trombetas sagradas e ofereciam-se “holocaustos” e “ofertas de manjares” ao Senhor (Nm 10:10; 28:11-15; Sl 81:3); o povo abstinha-se de atividades comerciais e seculares (Am 8:5); realizavam-se também banquetes especiais (1Sm 20:5, 18, 24, 27 e 34) e45 até mesmo no novo Testamento (Colossenses 15:16). […] A lua nova era marcada por uma particular ritualística dentre os povos antigos. Na Mesopotâmia, por exemplo, segundo registra o Prof. Dr. Paulo Henrique Azevedo Sobreira, do Instituto de Estudos Socioambientais da Planetário da UFG,47 “há uma lenda associada ao nascimento de crianças de linhagem sagrada babilônias. Essas crianças eram quase sempre concebidas em rituais de casamentos na primeira Lua Nova do ano, após o Equinócio de Primavera. Dessa forma as crianças que nasciam no Solstício de Inverno, ou Nata, e se tornavam altos sacerdotes, poetas e reis e rainhas.” O mesmo pesquisador registra ainda que “até mesmo Jesus – o Menino Divino do Natal cristão – nesta concepção foi supostamente uma criança concebida na primeira Lua Nova da Primavera, sendo metade divina e metade humana, tal quais as crianças sagradas da Babilônia e os heróis Gilgamesh da Suméria e Hércules da Grécia. Este é outro exemplo de como as religiões apropriaram-se de eventos astronômicos para seus símbolos, dentre eles as estações do ano.

A erudição bíblica verdadeiramente espantosa do Sr. Juiz, interessantemente, não se acompanha de uma familiaridade igual com a metodologia catequética dos jesuítas. A ideia de que estes introduzissem rituais hebreus, lançando mão de um fundo ritual véterotestamentário, e mais ainda, mesopotâmico, para converter o gentio, só pode provir da cabeça de um missionário protestante evangélico com fumaças de erudito em história e antropologia universal das religiões; alguém assim como, por exemplo, o Sr. Edward Luz. Suméria, Gilgamesh, no Tapajos, pelas mãos dos jesuítas... é para rir.

II.4. Sobre a substância da sentença

As proposições substantivas que nos interessam mais diretamente da sentenca estão no “Dispositivo” final: b.1) Declarar não preenchidos os requisitos tradicionalidade, a permanência e a originariedade, implementados até 5 de outubro de 1988, conforme exigidos pelo art. 231 da Constituição Federal; b.2) Declarar não atendidos dois dos três requisitos indispensáveis (relacionados pela lei n. 6.001/1973, em seu art. 3o) 65 para que a condição jurídica de índio seja reconhecida, a saber: 1) origem e ascendência pré-colombiana; 2) ser identificado [a sentença omite o “ou se identifica” do Estatuto do Índio, pois este se verifica...] como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;”27

Assim, o nó da questão consiste em decidir se as comunidades de Novo Lugar, Cachoeira do Maró e São José III, formadas por pessoas que se identificam como Borari-Arapium, isto é, como titulares dos direitos previstos no capítulo pertinente da Constituição, são ou não indígenas. A questão de saber se a parte da Gleba Nova Olinda I que a FUNAI identificou e delimitou como T.I. Maró é terra indígena é meramente consequente a esta primeira questão, ainda que seja, como observamos, seu verdeiro “interesse”. Trata-se então de elucidar o significado antropológico e o bom fundamento jurídico da chamada “auto-declaração”, e de seu acolhimento, devidamente informado por estudos e relatórios, pela FUNAI — acolhimento que torna, justamente, a “acusação” de que estamos diante de uma auto-declaração abusiva, por exclusiva e unilateral, um argumento algo contraditório. Pois se o Poder Executivo, por via de seu órgão competetente, identifica como indígenas aquelas comunidades que se identificam como indígenas… O que reduz os supostos requisitos não atendidos pelos BorariArapium (no item b.2 do Dispositivo) a um, não a dois. Veremos que a nenhum, na verdade. Tanto mais que a tese exposta no item b.1 do Dispositivo é materialmente incorreta e antropologicamente defeituosa. Já me pronunciei a respeito do significado da auto-declaração na seção anterior (“II.3. Sobre interesses”). Chamo apenas novamente a atenção para o consabido fato de que o artigo 231 da CF, como de resto nenhum dos demais artigos que contém a palavra “indígena” (populações indígenas, terras indígenas etc.) estabelece os critérios para a identificação de um indivíduo ou uma comunidade como indígena. Em outras palavras, o 27

O juiz, que se apóia sem maiores pudores em uma lei posta em condição periclitante pela Constituição Federal, o Estatuto do Índio, diz «dois dos três» requisitos porque o requisito «se identificar como tal» é precisamente cumprido pelos Borari. Ele entende que os Borari «não são identificados como tal [como índios]» por terceiros, mas não fundamenta a autoridade destes terceiros.

capítulo “Dos Índios” não diz quem são os índios — quem é e quem pode ser índio, ou não. A chamada “teoria do fato indígena”, surgida no contexto do julgamento da PET 3388/RR pelo STF, tampouco esclarece perfeitamente quem é o determinativo do fato, quem ou o quê se qualifica como exemplar de um “fato indígena”. Ela é, a rigor, uma teoria que estabelece uma situação de numerus clausus para as populações indígenas brasileiras, definindo como indígenas aquelas comunidades que, até a data da promulgação da CF (05/10/1988), eram consideradas indígenas nos termos da lei 6001/73. Já vimos como a situação de esbulho prévio, aventada pelo Min. Ayres Britto, introduz uma atenuante nesta “condicionante”. Não me parece estar fechada a questão da natureza vinculante universal da condicionante proposta pelo Min. Meneses Direito (teoria do fato indígena = marco temporal 1988) — ver o item 41 da IT 12/2015 da Funai, aqui várias vezes citada,28 bem como o argumentado no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 29087/MPF (nº 1189/2014 ASJTC/SAJ/PGR) “Embora fosse possível questionar a incidência automática de suas condicionantes a contexto distinto, com base no julgado que apreciou os embargos de declaração...” ao que o texto do recurso apõe a citação que vai em nota abaixo.29 Sucede que a validade antropologica da definição de “índio ou silvicola” presente no art. 3º do Estatuto do Índio — ainda vigente, no entender de muitos, mas implicitamente revogado eplo artigo 231 da CF, segundo outros — é discutível do ponto de vista antropológico e filosófico, como já foi abundantemente observado e analisado por antropólogos de renome. Limito-me a remeter aqui às considerações de Manuela Carneiro da Cunha nas pp. 22 a 25 do livro Os Direitos do Índio: ensaios e documentos (Brasilisense, 1987). Ali minha insigne colega argumenta, em primeiro lugar, que o referido art. 3º utiliza um duvidoso critério racial ou pseudo-genético (origem e ascendência pré-colombiana) que deixa, ademais, no limbo a questão da “pureza” de tal origem e ascendência. A este respeito, cabe 28

“Esclarecemos ainda que o conceito de tradicionalidade trazido pela Constituição Federal (artigo 231), e ratificado pelo STF por ocasião do julgamento da Pet. 3.388/RR - cujas condicionantes estabelecidas não são vinculantes, ressalte-se -, refere-se à tradicionalidade da ocupação, que não pode ser reduzida a uma meia dúzia de elementos culturais, cuja "pureza" ainda deve ser atestada com o objetivo caracterizá-los como indígenas, conforme o entendimento exarado pelo juízo.” [grifo meu-EVC] 29 “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. (...) 3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões”. [grifo meu-EVC]

recordar a curiosa informação contida na ação patrocinada pelo Dr. Talisman de Moraes, onde se cita o testemunho de um tio paterno do lider Borari Dadá, segundo o qual dois dos bisavós deste indivíduo (Dadá) seriam oriundos do Rio Grande Norte. O que nos deixa com seis bisavós no escuro — ou deveria dizer no vermelho?... e permitiria no máximo argumentar que Dadá Borari é 25% nordestino. Como, segundo os estudos genéticos mais recentes, 33% do genoma do brasileiro médio são de origem pré-colombiana, e como eu me arriscaria a dizer que os migrantes nordestinos que chegaram ao baixo Amazonas teriam um componente genético indígena bem mais alto que esses 33%, temos que Dadá Borari tem sangue índio para dar e vender. Mas sabemos também que essas considerações não têm qualquer validade na comprovação da existência de vínculos históricos com comunidades pré-colombianas. Estes são assunto de tradição cultural, não de reprodução biológica. Manuela Carneiro da Cunha argumenta também (apud p. 33 do já citado artigo de Fernando Costa Tourinho Neto, no livro Os Direitos Indígenas e a Constituição) que: A identidade étnica de um grupo indígena é, portanto, exclusivamente função da autoidentificação e da identificação pela sociedade envolvente.30 Setores desta poderão, assim, ter interesse em dadas circunstâncias, em negar esta identidade aos grupos indígenas... e é importante levar-se em conta este fator. [...] Poderá ter havido, dados os preconceitos regionais, contra os ‘caboclos’ ou os ‘bugres’, tendência à ocultação desta identidade”.

Em outras palavras, tanto pode haver interesse em negar a identidade indígena de certos coletivos, como pode haver interesse desses próprios coletivos em negar sua identidade indígena. O que está contecendo no caso Borari-Arapium é aparentemente que há, de um lado, vários setores interessados em negar a condição indígena das comunidades de Novo Lugar, Cachoeira do Maro e São José III, e, do outro lado, essas mesmas comunidades que tiveram, no passado, presumivelmente interesse em negar sua própria condição indígena, e que agora se põem, para surpresa e indignação da “sociedade envolvente”, a afirmar esta condição, invertendo o preconceito em direito. Curiosamente, a sentenca do Juiz Airton Portela joga constantemente com a oposição entre “caboclo” ou “tradicional” versus “indígena”. Ora, em meu entender as “comunidades tradicionais ribeirinhas” são tradicionais, como as chama o juiz, exatamente porque mantêm continuidade histórica com a ocupação tradicional da região por povos indígenas, no duplo sentido de ocupação temporalmente tradicional (posse aborígene) e sociotecnicamente tradicional (modo de vida de fundo pré-colombiano). Esta continuidade não é imobilidade histórica, congelamento essencialista, mas continuidade na mudança e mudança na continuidade. Se elas são “de fato” comunidades tradicionais, então elas têm necessariamente uma relação com as culturas tradicionais da região que ocupam de longa data. O “fato 30

Note-se que a autora está interpretando os termos da lei 6001/73, onde se acha o critério do reconhecimento pela sociedade envolvente (ou mais precisamente, o índio é aquele que “se identifica e é identificado por etc.Æ

tradicional” se torna indiscernível do “fato indígena”, se o juiz me permite o trocadilho. O próprio termo “caboclo”, empregado acriticamente na sentença (que na verdade se apóia anonimamente em Edward Luz para distinguir ao máximo caboclo de índio), é revelador à revelia do sr. juiz. Todos sabem que o termo “índio” era um termo maldito na região amazônica, até recentemente, e continua sendo maldito para muitos índios. Veja-se, por exemplo, esta entrevista com o conhecido escritor Daniel Munduruku31 – Você é índio? – Não. – Mas você tem cara de índio, cabelo de índio. – Eu não sou índio, eu sou Munduruku. “A palavra índio está ligada a todos os estereótipos possíveis”, responde o escritor Daniel Munduruku quando lhe perguntam por que ele prefere não se auto-intitular “índio” mesmo tendo em seu sobrenome a marca inconfundível da etnia. Para ele, a etnia ultrapassa em importância e em todos os sentidos a simples denominação “índio”. Por isso é que o diálogo reproduzido acima, que ele fez questão de dividir com a plateia da mesa “O rio que corre na minha aldeia”, no VII Festival da Mantiqueira, é constante em sua vida e tem sempre o mesmo desfecho: “Sou Munduruku”. “A ideia de que índio é preguiçoso, por exemplo, é uma das mais difundidas, mas na verdade o conceito de preguiça é capitalista porque vai na contramão da produção e do acúmulo. Índio não acumula, vive o agora. Para o índio guardar agora é ter depois”, explica Daniel com a tranquilidade que lhe é característica. Daniel é autor de inúmeros livros adultos e infantis sobre a temática indígena, e ganhou o Jabuti em 2004 com “Coisas de Índio”. É diretor-presidente do Instituto UK’A – Casa dos Saberes Ancestrais e conselheiro do Museu do Índio do Rio de Janeiro. Entre uma mesa e outra, ele bateu um papo com o Colherada sobre as questões que levantou durante a Mesa.

Grifei todos os usos contraditórios e complexos do termo e do conceito de índio nesta fala. Daniel Munduruku diz que não é “índio”, mas o juiz Portela teria muita dificuldade em classificá-lo de “caboclo”. “Caboclo”, aliás, é como aqueles que a elite branca chama de “caboclos” chamam... os índios! Este é o caso, exemplar mas não único, do Acre, onde “caboclo”, até pouquíssimo tempo atrás, queria dizer “índio”. Como se vê, o conceito de índio é complexo, transdisciplinar e transcategorial, politicamente ambivalente e variamente complexo. Há quem diga, “não sou índio, sou Munduruku”; há quem diga “não sou índio, sou caboclo” (possivelmente o caso das comunidades da Gleba Nova Olinda que não têm interesse em ser identificadas como indígenas); e há quem diga, como os Borari, “não sou caboclo, sou índio”. O que Daniel 31

http://colheradacultural.com.br/literatura/festival-da-mantiqueira-escritor-infantil-daniel-mundurukucritica-a-tipificacao-do-indio/:

Munduruku está afirmando é que não existe, fora do direito, uma substância, um “fato” que se possa chamar de “indígena” em geral. O que existe são Mundurukus, Pataxós, Bororos, Apinajés — e Borari-Arapiuns. A indianidade é intrinsecamente diversa; por isso, a variedade antropológica, biológica e cultural das comunidades que se afirmam ou reafirmam “indígenas”, ao ser reunida juridicamente sob uma categoria, em função mesma dessa diversidade imanente, só pode admitir inclusão na categoria por auto-declaração. Só o índio pode dizer que é (e quem é) índio. Entendo, por fim, que a chamada “teoria do fato indígena” posta em circulação pelo julgamento da PET 3188/RR não substitui, como vem se alegando, a “teoria” (o instituto) do indigenato. Ao contrário, entendo que o artigo 231 da CF consolida, pela primeira vez, o indigenato, ao firmar o conceito de direitos originários. A teoria do fato indígena apenas a modula, introduzindo uma interpretação, no meu entender discutível, dos conceitos de originariedade e de tradicionalidade, e está sujeita a numerosas modulações ela própria, a começar pelo problema do ‘esbulho” levantado pelo Min. Ayres Britto, e, interessantemente, por conter uma (ou mais de uma) ambiguidade temporal: o marco temporal se refere ao passado, mas nada prevê quanto ao futuro. Ele fecha a “lista” de índios ocupando tradicionalmente terras indígenas na data de 5/10/88. Mas ignora a contingência de índios que venham a ocupar tradicionalmente terras indígenas depois desta data. É conhecida a boutade do Ministro Gilmar Mendes, segundo a qual a teoria do indigenato, se levada ao extremo, implicaria na legitimidade da retomada de Copacabana pelos Tupinambá. Eu replicaria argumentando que a teoria do “fato indígena” (o marco temporal de 1988), se levada ao extremo, tornaria inexistentes juridicamente os povos indígenas isolados que vão sendo contactados com o avanço de madeireiras, petroleiras e outras “forças do progresso” sobre a Amazônia. Os índios contactados após 05/10/1988 não são índios, pois estão fora do marco temporal? Qualquer princípio jurídico, levado ao extremo, produz extremidades, isto é, absurdidades. Não me parece que declarar Copacabana território Tupinambá — que afinal não reivindicaram aquela bela praia, ainda, até porque as comunidades que se identificam por este etnônimo vivem no Sul da Bahia e estão muito bem (ou antes, mal) por lá — seja mais absurdo que declarar que os Korubo ou os Hi-Merimã, por terem “passado a existir” apenas anos depois de 1988, tenham, por isso, começado a “pré-desexistir” juridicamente a partir da prmulgação da Constituição. Em conclusão, parece-me que a sentença exprime uma incompreensão essencial sobre o espirito da Constituição Federal, o novo formato de país ali traçado A identidade indígena não é um “fato” residual e temporário, mas uma alternativa perene de cidadania. Os índios saíram do limbo político com o artigo 231, que consagra o instituto do indigenato como reconhecimento da caducidade histórica absoluta do nomos da terra inaugurado com a

invasão da América pelas potências europeias. A reivindicação de indianidade apresenta-se em continuidade estrita com a reivindicação de tradicionalidade camponesa, isto é, com a deliberação de viver segundo um regime de apropriação comunitária da terra, de economia fundamentalmente extrativa e hortícola (o que não significa exclusivamente extrativa e/ou hortícola, dadas as condições tecno-ecnoômicas modernas que vão-se infiltrando pela Amazônia adentro), a partir da implantação histórica da comunidade naquelas regiões do país onde a continuidade com as populações pré-colombianas não foi (como na Copacabana de Gilmar Mendes) inteiramente rompida pelo genocídio ou a amnésia forçada — o que é o caso especialmente da Amazônia. O reconhecimento do componente indígena na formação da cultura e da sociedade (no sentido de formas de sociabilidade) nacionais não remete a uma ancestralidade, ao passado, mas a um componente sincrônico, atuante e presente. A relação com o passado está no presente, e não no passado; não é um “fato” (o fato indígena), mas um “feito” (um fato que não deixa de se fazer). O fato indígena é o ato indígena.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.