Parentesco e poder no feminino nos Rios de Guiné: a revolta de Bibiana Vaz de França (sec. XVII)

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I Simposio Internacional O Desafio da Diferença: articulando género, raça e classe Universidade Federal da Bahia, Salvador da Bahia, 9-12 Abril 2000 Grupo de Trabalho 3: Mulheres Africanas: experiencias e percursos

Parentesco e poder no feminino nos Rios de Guiné: a revolta de Bibiana Vaz de França (sec. XVII) Philip J. Havik1[1]

Introdução O discurso antropocêntrico e masculinizado, cuja crítica hoje faz parte dos manuais das ciências sociais, ainda é algo característico de estudos históricos. Os vários silêncios que continuam a caracterizar estes últimos em termos das relações sociais em geral e de parentesco e género em particular, são muito marcantes quando vistos numa perspectiva atlântica. Para preencher um dos muitos vazios existentes, recorremos a época pré-colonial para esclarecer alguns aspectos menos conhecidos da interacção Afro-Atlântica. A nossa leitura é obviamente muito restrita e selectiva, dado os limites que se impõem a uma comunicação. O facto de feministas estarem ao mesmo tempo com um pé dentro e outro fora das ciências sociais aumentou muito a massa crítica e autocrítica do mundo académico. Constituindo uma fonte alternativa de conhecimento e percepção, debateram questões de fundo como conteúdos e métodos de investigação e da análise científica. Por conseguinte, desminaram um campo que estava já ha muito tempo de pousio, inculto. A partir daí a ideia da universalidade do homem, isto é a ideia do sexo feminino ser definida exclusivamente através da sua relação com o seu par masculino, ficou sem pés e cabeça. Neste modo, o género feminino começou a ter identidade e personalidade própria1[2]. Trabalhando numa perspectiva histórica, autoras como Joan Scott e Nathalie Zemon Davis inventariaram e desvendaram silêncios, sobretudo em relação a análise das mudanças sociais e políticas na Europa novecentista. Mais viradas para o estudo da acção colectiva de mulheres (por ex. em movimentos políticos femininos) num estado patriarcal ocidental, as suas críticas do ‘male-bias’ ou preconceito masculino provém de uma corrente que aproveitou estudos sócio-históricos para construir uma história no feminino. Para que esta se tornasse viável, era preciso regressar ás fontes em procura de dados sobre o mundo do trabalho, da família, e do estado. Uma análise de género deveria segundo elas considerar como parte constitutiva deste as relações sociais baseados numa diferença entre os sexos e como um instrumento privilegiado para analisar relações de poder1[3]. Num quadro sociológico, muitas feministas se debruçaram sobre a questão do poder, criticando tanto autores masculinos como femininos pela vitimização da mulher. Geralmente focando em distorções estruturais e relações assimétricas de poder, estas olharam para teorias sociais - todos porventura patrocinadas por homens - como por exemplo de Marx (o poder económico), Lacan (o poder simbólico), Giddens (as estruturas do poder), Foucault (mecanismos do poder) e Bourdieu (redes e espaços do poder) - como bases para ancorar uma análise de género. Aceitando os preceitos destes autores sobre estruturas, princípios e discurso de poder, elas pretenderam construir uma abordagem que tomava estratégias e a negociação de posições em conta para perceber qual o controlo (ou falta dele) exercido por mulheres sobre recursos humanos e materiais existentes. A desigualdade do poder e a reprodução de relações sociais assimétricas entre os sexos nas sociedades ocidentais foram vistos tanto como obstáculos para a visibilidade da agência feminina em comparação com a masculina. A primeira vista os processos históricos de transformação das relações sociais no

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mundo ocidental até o século XIX pareciam indicar uma perda de poder e influência por parte de mulheres cujo acesso a recursos chaves como a terra, a força de trabalho e o comércio ficou comprometido pela hegemonia patriarcal. Descurava-se em grande parte os diferentes papeis de mulheres num passado longínquo e recente (não obstante algumas contribuições pontuais) porque …. supostamente não tinham história, nem personalidade, isto é não houve quem que registasse as suas vidas aparentemente tão banais. África sub-Saariana entrou no imaginário Atlântico através do comércio de escravos, até então traficado no espaço mediterrâneo por Berberes e Árabes. Com o declínio do comércio de escravos, até o século XVIII a presença de Africanos no espaço europeu influenciou mercados e hábitos; a sua quase ausência durante o século seguinte deixou um vazio que só foi preenchido com a entrada de migrantes africanos nos anos sessenta. A situação na América do Norte era então caracterizada pela segregação racial que a seguir da guerra civil e as migrações internas, criou campos culturais bem diferentes, ao passo que para um deles as percepções da África estavam directamente ligadas a vida quotidiana. Foram sobretudo autoras sulistas, organizadas ao nível comunitário, que iniciaram o estudo de comunidades afro-americanas nos Estados Unidos, como contrapeso contra aquilo que designaram como o feminismo branco. Assim abriram-se novos palcos de discussão e investigação que seguiram os passos da evolução de um outro ideário, enfatizando as relações históricas com as Caraíbas, América Latina e, claro, o Atlântico. Até aí pouco se tinha publicado sobre a história social ao nível intercontinental. Progressivamente o estudo da diáspora de escravos alargou-se para incluir outras comunidades resultante da miscegenação como os ‘marrons’ e ‘criollos’. Embora, sempre num movimento este-oeste, numa dinâmica proveniente do comércio de plantação. Isto é, até um outro feminismo desta vez com raízes africanas nasceu noutro lado do Atlântico a seguir a emergência de novos estados africanos nos anos sessenta e setenta do século XX. A chegada do Norte ao Sul no século XV ocorreu quase em simultáneo com a invenção da imprensa. Quando as lendas antigas se transformavam em escravos, ouro e marfim, as publicações que misturavam testemunhos oculares, recordações e boatos começaram a circular em portos e praças a beira atlântico. Foi aí que a presença de um crescente contingente de Africanos de origem vária introduziu novos costumes (por ex. os batuques) e artefactos (como as chamadas ‘mandingas’ ou mezinhos). Negociações foram encetadas com reis e rainhas, cujos governos despóticos mostraram não somente o poder que exerceram sobre os seus súbditos, mas também sobre os hospedes atlânticos. A condenação dos ‘bárbaros’ costumes africanos não podia deixar de realçar a existência do facto que ao contrário das tradições europeias, a herança geralmente passava pela linha feminina. Os primeiros a estranhar este ‘desvio’ das normas ‘civilizadas’ foram os viajantes árabes nos seus encontros com os povos do deserto como os Tuareg, só comparável segundo estes as práticas matrilineares de certas comunidades asiáticas na costa de Malabar. A feminização do conceito da África dita ‘negra’ cedo ocupará um lugar à parte no imaginário islamizado e cristão: a nudez dos corpos, e sobretudo das raparigas e mulheres, e a suposta libertinagem sexual que tanta curiosidade despertou entre os homens que ali foram procurar a sua fama e fortuna, rapidamente se tornou outra imagem de marca destes povos. Ao outro lado ficou a imagem da masculinidade africana, dominada por um sentido guerreiro e uma convivência poligâmica. Ficou assente que estas e outras sociedades africanas não corresponderam às normas patriarcais difundidas pelos governos absolutistas das monarquias europeias e da igreja de Roma que pretensamente partilharam a autoridade sobre o mundo e seus povos. É precisamente destas contradições que aqui falamos.

Rainhas, bruxas e prostitutas Geralmente, quase todos os historiadores escolheram e ainda escolham, sem pensar, sociedades ocidentais como quadro de referência para fazer valer os seus argumentos e provar as suas hipóteses. A maior parte dos estudos históricos de inspiração ‘clássica’ excluiu simplesmente a parte considerada ‘inculta’ e ‘bárbara’ do mundo, como a constituição americana se esqueceu dos Índios. Quando alargou o seu alcance geográfico para incluir o Atlântico Sul, criou divisórias artificiais através da imposição de parâmetros cronológicos e

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raciais. Devido a sua nascença oitocentista, a historiografia da ‘expansão’ impôs não só uma corte com o passado pré-Atlântico, mas também uma separação artificial entre o período précolonial e colonial. Assim distribuídas as diferentes fatias do bolo da historiografia mundial, numa sequência de passos lentos as fronteiras erigidas entre ‘gentios’ e ‘cidadãos’ foram progressivamente removidas até o ponto de só dividir estados e sociedades civis. Quando a partir dos anos trinta do século XX se começou a olhar para o ‘Sul’ numa perspectiva social e cultural através do estudo do espaço mediterránico, houve uma mudança significativa de métodos e conteúdos. Este movimento ‘braudeliano’ iniciou uma procura determinada nos arquivos enquanto fontes já amplamente estudadas foram sujeitas a uma releitura. O estudo da desigualdade e do desfasamento evolutivo em espaços diferentes, e com isso o estudo comparativo de culturas, começou a delinear-se e ter cada vez mais adeptos. Entretanto, os trabalhos de arqueólogos e etnólogos tinham criado mais pontos de interrogação do que respostas, abrindo brechas no determinismo biológico e cultural, a eugenética e o racismo, que tanto se opuseram a miscegenação pelos supostos efeitos da ‘degeneração’ e da ‘contaminação cultural’1[4]. Embora, a existência de comunidades híbridas obrigou os estudiosos de se debruçar sobre a interacção social e cultural em tempos mais remotos. A própria eugenética reconheceu que os efeitos da luxúria ‘nativa’ do além mar protagonizada por sereias de sangue suspeita, tinha de tal modo ‘seduzida’ e ‘corrompida’ homens nobres, religiosos e aventureiros, tinha resultado numa miscelânea biológica e cultural particularmente resistente. Os muitos silêncios sobre as vidas paralelas, as relações entre os sexos de ‘castas’ diferentes, afim ‘o convívio íntimo’ no ultramar, já não podiam ficar tabu. A pesquisa histórica e antropológica revelou aquilo que a igreja e a inquisição já tinham amplamente diabolizada, isto é que a agência ‘gentia’, feminina tinha uma dinâmica histórica invulgar. Sobre a ‘expansão’ portuguesa, um dito muito conhecido fala da origem dos mulatos, eliminando o papel das mulheres ‘outras’, enquanto a responsabilidade pelos rebentos do cruzamento foi exclusivamente atribuída aos machos. No mesmo sentido, um conhecido defensor da “selecção eugenética dos progenitores” reconheceu que “a confluência racial em vários pontos, a emigração predominante de indivíduos masculinos, não de casais, da metrópole e a falta de prevenções de raça na maioria dos nossos compatriotas e a carência de ou insuficiência de restrições legais e regulamentações convenientes ” tinham estado na base do mestiçamento1[5]. Isto é, só houve lugar para a paternidade por parte de um sexo ‘forte’ aparentemente fraco. Afinal, “homens foram considerados mais susceptiveis para a torpeza moral que mulheres, quem pois eram responsáveis pelo estado imoral dos homens.”1[6] No começo das explorações mundiais no século XV inquisidores mantinham como “facto incontornável” que “o sexo frágil” era “mais crédula; mais facil de influenciar; mais fraca em corpo e espirito; menos firme nas suas convicções e na manutenção da fé; mais carnal do que o homen; menos inteligente do que o homen; mais vingativa e ciumenta; mais dada a afeições e paixões que procura, ao que obsessivamente pensa e inflige a outros através da bruxaria; impulsiva e de memoria fraca, além de lhes faltar disciplina; mentirosa e vaidosa.” Até acharam não era boa ideia do homem casar já que “uma mulher não é mais do que inimigo da amizade, uma punição inescapavel, um mal necessario, uma tentação da natureza, uma calamidade desejada, um perigo doméstico, um apetito prejudicial, um demónio da natureza pintada com cores exuberantes” E para completar este dicionário misógino acrescentaram que “quase todos os reinos e imperios do mundo foram derrubados por mulheres.”1[7] Dos poderes ocultos delas já ninguém duvidava. E num contexto atlântico ainda menos como a Laura de Mello e Souza e outros sublinharam nas suas publicações1[8]. As descobertas no que diz respeito à física humana e sobretudo a feminina a partir do século XVII, lentas mas progressivas, deram relevo e conteúdo ao protagonismo biológico e autónomo da mulher. Entretanto o estado e a igreja mantiveram a primazia da agência masculina sobre a feminina; a mobilidade da mulher através do casamento garantiu a transmissão do património. As desigualdades em termos sociais e biológicos ao nível de género e parentesco, ainda maiores no caso do ultramar, só começaram ser investigadas a sério no século XIX. A popularização de Africanas e Africanos como objecto de estudo que se iniciou nesta altura, não ficou somente patente nas exposições coloniais organizadas por toda

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a Europa, mas também se fez sentir nas revistas geográficas com recurso a gravuras e fotografias que se multiplicaram seguindo a corrida para África a partir da conferência de Berlim (1885-6). Antecedentes já houve em tempos mais remotos no caso das ‘moura/os’ e ‘mourisca/os’ vindos de África do Norte que a seguir a conquista cristã da península ibérica foram convidadas para festas e casamentos da realeza portuguesa para mostrar as suas canções e danças exóticas. Sempre com base em relações hierárquicas, a escrava moura ao contrário da sua homóloga negra, era considerada suficientemente atraente como concubina dos senhores brancos1[9]. Com o erotismo atribuído as mouras, com mais destaque para a moda oriental que passou por Europa no século XVIII, contrastava o naturalismo das Africanas.1[10] Aquilo que alimentava sobremaneira a curiosidade dos Europeus eram as feições, os corpos delas e deles, emoldurados em revistas e salas ou mais tarde expostos ao vivo em museus. Foi um pequeno passo dos estudos botânicos e médicos que se multiplicaram através de missões no chão africano a partir do século XVIII, ainda em pleno tráfico de escravos, para um caso insólito que ia criar muitas ondas no mundo europeu de então. Foi o da Sara Baartman, uma jovem de origem sul-africana cujo destino será de exibir a sua anatomia perante europeus curiosos durante a sua vida curta e até depois da sua morte. Os paralelos com o famoso ‘homem elefante’ seriam mais que óbvios, se não fossem outras interesses, nomeadamente do foro sexual, que alimentaram as atenções. Apesar de tentativas de abolicionistas de libertar a Sara ou a ‘Vénus Hotentot’ como era conhecida, dentro de cinco anos ela tinha morrido sem direito a descanso: o seu cérebro e órgãos sexuais foram conservados e expostos no Museu de l´Homme em Paris até 1985. A volta europeia desta mulher infortunada contribuiu muito para a formação de ideias sobre a pressuposta sexualidade ‘gentia’ e o género de mulheres africanas, cuja mais valia de reprodutora de mão de obra já fora notada e explorada nas plantações americanas e cairelas. Estereótipos contemporáneos basearam se regra geral em observações sobre mulheres escravas no outro lado do Atlântico, realçaram a promiscuidade destas, a sua crueldade, a sua negligência das responsabilidades maternas e infidelidade conjugal acrescentando essas qualidades com a sua condição passiva, oprimida e servil. A posição da mulher em relação ao do homem foi considerada mais favorável em sociedades ‘evoluídas’ do que em sociedades ‘primitivas’1[11]: “pode-se medir o nível de civilisação de uma sociedade segundo a independência e o respeito que a mulher goza.”1[12] Mas os preconceitos também seguiram outros vectores, sublinhando as contradições desta misoginia: a elas também foram atribuídas posições destacadamente ‘matriarcais’, sobretudo a partir do século XVIII, teses repescadas por africanistas como Herskovits nos anos trinta do século XX. Sobretudo em certas sociedades escravocratas como as Caraíbas e o Brasil, onde a invenção tardia de tradições matriarcais destacou a região da Bahia1[13]. Neste último caso “as filhas de santo, de pele negra, fortes e altas, não tinham nada do que as pessoas de classe elevada pensam ser feminino e sedutor (..) de facto elas faziam lembrar homens vestidos como as mulheres de Bahia.”1[14] Estamos perante uma ‘confusão de géneros’ no que diz respeito ao ‘caso’ africano, que sobrevive até hoje. As raízes desta se encontram no tempo das ‘descobertas’, apesar de as teses terem sido ‘refinadas’ no tempo colonial. Na literatura ‘mercantil’, pré-colonial sendo muito sensível a associação de questões religiosas as políticas, o estatuto de ‘rainhas’ reforçada com aquele de ‘sacerdotisa’ são um bom exemplo da conflitualidade de géneros. Não era por acaso que o mesmo Herskovits trouxe as suas ideias sobre o matriarcado nas Caraíbas dos seus estudos de campo em Dahomey sobre a ‘kpojito’ ou rainha mãe dos Fon 1[15]. No mesmo sentido a Hilda Kuper se mergulhou na mesma altura no reino Swazi de África do Sul para descrever as rainhas mãe ou ‘ndlovukazi’1[16]. Os muitos estudos que seguiram sobre os reinos dos Asante de Ghana, dos Edo de Benin, dos Yorubá e dos Igbo de Nigéria tomaram consciência das raízes profundas de matrilinhagens na costa Oeste-Africana, em tempos fonte de ampla escravatura. Os investigadores, antropólogos, maioritariamente de origem anglosaxonico mais se preocuparam com as representações da personalização do poder recriaram pela primeira vez uma imagem da força e fama no feminino, e com recurso a oralidade.

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Formou-se desde então um conceito da ‘mulheres grande ou ‘big woman’ que na sua qualidade de rainha (-mãe), sacerdotisa ou comerciante, serviu como alavanca contra o paradigma patriarcal da autoridade e poder no masculino de Meyer Fortes e outros. Por conseguinte, representações de mulheres africanas assumiram nesta perspectiva características geralmente atribuídas a homens em Europa. Não podemos esquecer que a maior parte da documentação escrita foi produzida por comerciantes, missionários e oficiais, invariavelmente do sexo masculino. Tanto o menosprezo como a idealização de mulheres africanas tem o seu origem nos opúsculos destes homens letrados e iluminados. Sem se dar conta disso lançaram elementos de uma personalidade feminina que juntava em dozes variáveis partes de rainha, bruxa e prostituta numa caldeirada picante. O facto de esta criatura incutir simultaneamente medo e desdém, condicionados pelo estatuto e acção destas mulheres, se escrava, forra ou nobre. Das canetas dos célebres autores correu muito pouco ou nenhuma tinta para dar voz e cara as mulheres que estavam muito mais próximas deles nas suas digressões, as ladinas e boçais, a serventia doméstica; afinal, a existência dessas era um facto consumado. Se não era necessariamente para consumo público, elas apareceram numa forma indirecta nas suas contemplações sobre a suposta natureza africana. Ao contrário das sociedades latifundiárias na outra banda do Atlântico, pouco se sabe da esfera doméstica nas casas e senzalas em terras africanas. Muito se esconde atrás desta coabitação silenciosa e intimidade não assumida: só os relatórios dos visitadores, as muitas devassas feitas nas capitanias e os (poucos) testamentos que sobrevivem quebram o sigilo e deixam-nos aproximarmos alguma maneira delas. Por conseguinte, ficamos a saber muito mais sobre o modo de viver dos reis e rainhas ‘gentias’ de que sobre as companheiras dos cidadãos, ‘vezinhos’ ou ‘moradores’, no ultramar.

Gentias e escravas, forras e nharas A área compreendida entre os rios Senegal e Sherbro, este último na Serra Leoa, chamada Rio de Guiné de Cabo Verde ou simplesmente Rios de Guiné, até agora pouco estudada, não foge a regra. Os ‘hospedes’ que lá se fixaram para períodos que iam de uns anos até toda a vida, na sua maioria soldados de fortuna e degredados, de origem humilde, não tiveram incentivo nem vontade de contar as suas experiências. Fugindo aos impostos, a justiça, a perseguição religiosa ou a pobreza, muitos deles nunca regressaram a sua terra natal. Os poucos que confiaram as suas andanças ao papel, geralmente apresentaram uma versão feita a medida dos seus objectivos e leitores, regra geral a Corte: um perdão, uma condecoração, pensão ou um privilégio real. Assim ficamos a saber das qualidades patrióticas ou cristãs dos protagonistas, empregadas na defesa do reino e da fé perante predadores europeus e africanos. Além da habitual graxa passada ao Rei e Papa, o auto-elogio é um traço constante nos seus relatos dos quais se serviram para projectar a sua imagem; um bom exemplo de marketing ‘avant la lettre’. Dados arquivísticos e bibliográficos sobre o período do século XV até o tempo actual, mostram as enormes lacunas existentes respeitante as sociedades africanas durante séculos de trocas atlânticas. Muitas destas vão ficar tão como estavam antes até o século XX: desconhecidos, permanecendo ‘buracos negros’ cheios de informação mas sem difusão escrita. Os dados ao que temos acesso estão essencialmente repartidos por três tipos de fontes: relatos de viajantes, ofícios das capitanias e compilações das duas anteriores. No que diz respeito ao primeiro século e meio, isto é dos meados do século XV até os princípios do século XVI, o universo escrito refere quase exclusivamente a relatos de comerciantes e missionários. Um aspecto de relevo é o facto de os documentos chaves deste período foram produzidos por Cabo Verdianos, Portugueses de nome, mas de fundo cidadãos AfroAtlanticos1[17]. Estes três autores, capitães da marinha mercante e bons conhecedores da costa e os rios, que na linguagem contemporânea teriam sido classificados como ‘filhos da terra’, fornecem dados extensos sobre as sociedades africanas habitando as zonas costeiras. A sua ascendência africana revista, então. No que diz respeito as relações de sociais em geral e de género em particular, essas se revelaram afastadas, até contrárias aos padrões até então conhecidas e aceites. Estes desvios das normas patriarcais se manifestaram na poliginia, na matrilinearidade, nos poderes

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cosmológicas, nos hábitos infantis, na nudez e libertinagem das mulheres, na sua falta de higiene; todos essas características apontavam para ‘seres inferiores’. Dado os interesses económicos e sexuais em jogo, as circunstâncias condicionantes que mais dores de cabeça deram aos hospedes e parceiros eram as questões de herança e de adultério. Uma observação frequente é que os reinos (e bens) são herdados “pelos sobrinhos, filhos de suas irmãs da parte da mãe”. Porque? Porque “estas sabidamente eram suas irmãs e não os filhos das suas mulheres.” Não tinha Ibn Battuta uns séculos antes observado os ‘costumes bizarras’ dos Tuareg cuja herança ia “para os filhos da irmã do falecido, excluindo os seus próprios filhos”?1[18] Nestas circunstâncias a maior preocupação dos Africanos parece ter sido, segundo estes viajantes, as consequências da infidelidade conjugal, impondo penas severas aos adúlteros. De tal modo que, aproveitando o tráfico de escravos, os condenados - e com eles linhagens inteiras - foram vendidos como cativos. Ao ênfase sobre esta questão não foi decerto alheio o comportamento pouco cívico dos hospedes atlânticos. Não avisou também o Coelho nos meados do século XVII numa nota introdutória “não lhe namorem as molheres que he mayor crime que podem fazer, porque em muitas partes lhes custará a vida e nas mais a fazenda.”1[19] Mas as mulheres africanas, simultaneamente vitimas e sedutoras, também não eram santas: “sem embargo destas leis são mui devassas e fazem cada dia adulterio aos maridos.” 1[20] E estratégias também não lhes faltaram: ‘E usam os adúlteros uma treta, que não terem copula com elas em casa, senão no campo e em matos, porque depois acusando-os os maridos pelo caso, diz o adúltero aos juizes que lhe perguntem adonde fez com sua mulher. Se foi no campo jamais dizem, porque o têm por grande infâmia e dizem que são animais. E não assinando lugar donde foi a culpa cometida, ficam os acusados livres. E provada pagam aos maridos certa pena em que os condenam, e ficam vivendo com suas mulheres.”1[21] Como, interrogamos-nos, sabem estes hospedes tanto das escapadelas desta gente? E porque se preocupem tanto com este assunto? Se missionários obtiveram confissões, de moradores até escravos que lhes contaram as seus pecados, os homens do trato mantinham varias relações com africanas, todas fontes de informação preciosas. As escravas e forras com que se rodearam, as ‘ladinas’ ou ‘boçais’, lavandeiras ou sósias, serviram como janelas para o mundo africano. Elas viveram nas povoações junto aos entrepostos comerciais que se formaram ao longo do século XVI na costa e nos rios da Guiné. Não obstante de constituírem a maioria dos habitantes destas localidades, estas mulheres só de vez em quando aparecem na documentação dispersa. Dado os costumes locais no que dizia respeito as padrões de transmissão de bens, a hierarquia doméstica tinha sobremaneira importância. As preocupações daqueles que procuraram a sua fortuna em África através do comércio eram decididamente económicas, de tal modo que a literatura está repleta de referências ao património. Contudo, a segunda fonte chave de informação, os arquivos do Conselho Ultramarino e outras instituições estatais, permite tirar algumas conclusões. Comparados com os relatos de viajantes estes documentos tem uma desvantagem, porque referem exclusivamente ao espaço ‘cristão’, deixando quase todo o mundo africano ‘vizinho’ de fora. A autoridade das capitanias e presídios não se estendia além da ‘praça’. Mas por outro lado falam de pessoas, indivíduos, tanto europeus como africanos, e dos boatos, intrigas e conflitos, isto é da vida real e comum nestas pequenas comunidades. Um factor constante é a questão das prepotências dos ‘reis’ vizinhos em cujo chão se encontraram e que herdaram tudo. A doença e morte eram ameaças que condicionavam a permanência de hospedes no solo africano. A falta de defesas adequadas e de segurança are outra. Enquanto os moradores habitando portos no beira rio dificilmente se pudessem isolar da vizinhança que geralmente não consentia a construção de muralhas e paliçadas, o único remédio é ser tão móvel quanto possível. O tráfico fluvial e marítimo dava lhes mobilidade e segurança, as embarcações eram ao mesmo tempo espaços de negócio e armazéns. Quem ficaram em terra eram principalmente escravos e forros ao serviço dos comerciantes e oficiais, pertencendo a população ‘grumete’ ou ‘kriston’ que vivia do trato. Os laços que ligaram destes ao chão africano eram vários, reforçados através laços de parentesco, casamentos, adopção e ritos de passagem. Vivendo em bairros ou tabankas (aldeias) encostadas as praças e entrepostos comerciais, estas comunidades tinham os seus próprios leis, magistrados, sacerdotes e festas. O desequilíbrio demográfico era grande, sobretudo por causa da

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exportação das camadas jovens e o excedente feminino típico para sociedades que praticam poliginia. Além disso, um factor determinante era a escravatura doméstica em que mulheres dominaram, ao contrário do tráfico atlântico de escravos1[22]. “A predominância de mulheres entre os cativos significava que havia mulheres suficientes para servir como concubinas para os ricos e poderosos, e para o trabalho nos campos, sobrando bastantes para garantir uma vida doméstica ao escravo macho comum.” Negar os direitos de maternidade e paternidade sobre os filhos dos cativos - cujo estatuto se perpetuava na linha feminina - além de não permitir a acumulação ou a transmissão de bens entre eles, permitiu ao dono de controlar a (re)produção e as receitas da senzala ou ‘funko’. Se as relações (sexuais) com as escravas eram fortemente hierarquizadas, o relacionamento com mulheres forras vindo do meio kriston, trazia vantagens para ambas as partes. A coabitação entre mulheres grumetas e homens brancos ou crioulos era a regra nestas localidades, sendo as primeiras que tomaram conta da casa e do negócio durante as ausências frequentes dos segundos em missões comerciais. Não podemos esquecer a facto de o seu capital principal, os escravos, terem muito mobilidade, não hesitando em caso de crise, ausência ou morte do dono de se refugiar no chão vizinho. Esta repartição de tarefas ia tornar-se um padrão comum nas redes comerciais na zona costeira Oeste-Africana a partir do século XVI. Dado que as mulheres regra geral sobreviveram os maridos/companheiros, elas muitas vezes se casarem com ou se aliarem a outros parceiros vantajosos. Nas fontes detectam-se muitas viuvas com nomes portugueses gerindo negócios a partir das suas casas por toda a costa. Estas ‘nharas’ ou ‘signares’ tinham grande fama de ‘mulheres grandes’ graças aos seus laços conjugais, de parentesco, de amizade com todos os espaços sociais em questão (Africano, Atlântico e Afro-Atlântico). Um factor decisivo em termos de sobrevivência nestas paragens era precisamente a existência de laços de parentesco entre os vários actores envolvidos. Como os exemplos abaixo descritos mostram, a questão da acumulação e transmissão de capital social, económico e cultural era o ponto fulcral destas relações. Tomando em conta o caracter matrilinear das sociedades africanas nesta região e o facto de os actores atlânticos serem geralmente alheio ao meio, assim carecendo de ‘geração’ ou parentes colaterais no local, a (primeira) mulher tinha uma posição de força. Os filhos, legítimos e espúrios, os primeiros na terra natal (por ex. Europa ou Cabo Verde) e os segundos no chão africano, tinham regra geral grandes dificuldades de fazer valer os seus direitos. E se a mulher em questão não se cuidava de defender contra as estratégias dos capitães mores e governadores que tinham com alvos predilectos as heranças dos moradores e as caixas dos ‘defuntos e ausentes’ a um lado, e dos chefes por outro, ela se arriscava de perder tudo. Balançando neste fio, as ‘nharas’ seguraram-se através de alianças com jogadores chaves em vários campos ao mesmo tempo, aproveitando os seus conhecimentos dos diversos espaços.

Bibiana e Ambrósio Vaz As imagens fortes emanando das fontes seiscentistas acerca de uma mulher, a Bibiana Vaz de França, nascido na Guiné e membro de um clã ou ‘gan’ poderoso na localidade de Cacheu, levaram alguns historiadores de apresentar-lhe como um exemplo da ‘ascendência dos comerciantes mulatos’ na região neste período.1[23] A praça e povoação de Cacheu era na altura o nó das redes comerciais Atlânticos do tráfico de escravos nos ‘Rios de Guiné do Cabo Verde’, fundada no século XVI e elevada a vila em 1605. Fundado por ‘lançados’, isto é comerciantes que ‘se lançaram com os negros’ contra a vontade expressa das Cortes desde o princípio do século XVI, o lugar era um entreposto para o trato vindo do interior, isto é da zona da Casamança e de Kaabú onde saíram aproximadamente 3000 escravos por ano. Com uma população fluída de entre 700 e 1500 almas (incl. escravos) Cacheu era o maior porto ‘português’ na Costa, junto com as suas dependências de Farim e Ziguinchor. Muitos destes comerciantes tinham ascendência sefardita e cabo verdiana, nutrindo pouco simpatia para com os governos de Lisboa e Madrid. Negócios lucrativos com rivais Ingleses e Franceses eram a regra. Os conflitos entre a população e a administração local confrontados com uma falta crónica de receitas e uma população migratória também eram frequentes. O ambiente de briga e intriga era ainda mais acentuada por causa dos constantes reivindicações e intervenções

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gerências de chefes africanos vizinhos rejeitando quaisquer monopólio de interesses portugueses. Exigindo o pagamento de tributos vários, as chamadas ‘daxas’, estes obrigaram os representantes máximos dos hospedes de regular contenciosos através da ‘palabra’, isto é de negociar para pacificar. Gans com a dos Vaz de França e dos Gomes eram muito influentes em Cacheu, de tal modo que a aliança entre os dois através do casamento entre Bibiana e Ambrósio Gomes oferecia vantagens mútuas. As primeiras tentativas de Lisboa de chamar a si o comércio (de escravos, panos, kola e tinta) da Costa com a criação da Companhia de Cacheu em 1676 provocou como era de esperar constantes conflitos por causa da oposição dos comerciantes locais e chefes vizinhos. Com a morte de Ambrósio em 1679, o fim do contrato da Companhia em 1682 e a nomeação de um novo capitão mor, José Gonçalves de Oliveira no mesmo ano, a Bibiana, o seu irmão Ambrósio Vaz e seus sobrinhos Francisco e António Vaz formaram um núcleo duro e poderoso dos chamados ‘filhos da terra’ em Cacheu. A sua rede de negócios estendia do Rio Gâmbia a Norte até a Serra Leoa ao Sul, baseado em laços de parentesco com chefes locais e alianças com outros ‘lançados'. Na sua capacidade de cabeça do casal, a Bibiana tinha entretanto aumentado o seu património consideravelmente com a herança do seu falecido marido, não obstante as petições do seu filho Lourenço, algo desesperado reclamando o seu direito. O facto de o seu pai ter sido “um dos mais ricos homens que houvera naquellas partes” não era obviamente alheio a sua decepção de ver tamanho “falta de justiça (..) numa terra tão falta de letrados”. Quando o Conselho Ultramarino deliberou que se deviam fazer as partilhas, a Bibiana já tinha colocado a maior parte dos bens fora do alcance, alias muito limitado, da administração e do filho. Afinal os seus laços de parentesco com a realeza africana de zonas de grande interesse comercial garantiram uma mobilidade e segurança material e pessoal invulgar como os acontecimentos iam provar. O desrespeito pelas leis e convenções patriarcais servia para evidenciar a falta de responsabilidade materna, de carinho, de civilização desta mulher, africana mas ao mesmo tempo cidadã portuguesa. Entretanto, a oposição dos moradores a renovação do contrato da Companhia e a sua recusa de abdicar dos negócios com a concorrência, levaram o novo comandante da praça de Cacheu, ao mesmo tempo administrador da Companhia, de proibir a vinda de embarcações estrangeiras. A revolta do povo não tardou: no dia 25 de Março 1684 prenderam o dito capitão a saída do hospício onde se celebravam missa, meteram no em ferros e o enviaram a Farim, onde “num corredor escuro” da casa de Bibiana, permaneceu “por espaço de 14 meses com insano tratamento.” Leia-se no relatório de sindicante sobre os incidentes que durante o levantamento um morador entregou “o bastão que tirou ao prezo a Bibiana Vaz, ella os acompanhou a praça onde disse palavras que a concluem como culpada.” O documento em questão que pretende mostrar a (ir)responsabilidade desta mulher através da sua demonização, mas acaba assim por revelar o estatuto impar que a Bibiana gozava entre os seus pares. Aquando a ‘república’ instituída na praça com o afastamento do seu comandante, os moradores seguidos pelo povo ‘cristão’ decidem de não mais admitir capitães do reino nem das ilhas (de Cabo Verde), que nenhum português negociara com os gentios mas só com moradores da praça, e que não aceitaram o contrato da companhia nem admitiram os administradores desta. Este duro golpe contra interesse portugueses e o risco de perder o seu principal ponto de apoio na região, não podia ficar sem consequências. Durante o sequestro do capitão mor os revoltosos alegadamente teriam praticados desvios consideráveis a fazenda real através de negócios com os ‘inimigos’ europeus. Apesar das muitas petições feitas pelos moradores de Cacheu contra os efeitos nefastos resultante da criação da Companhia e contra as prepotências dos capitães mores que chamaram todo o comércio a si, não houve da parte da metrópole nem das Ilhas intervenção alguma. A resistência dos moradores ficou patente no facto de a maioria deles andaram a negociar e morar no mato, no sertão, se esquivando a pagar direitos ao cofre real, em realidade as bolsas do capitão-mor e da Companhia. Cacheu não era mais que um entreposto empobrecido, desprovido de contribuintes e fontes de receita, cuja administração se encontrava num meio hostil, assolado por judeus, crioulos e gentios.

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Identificada como ‘o principal delinquente’ pelos ofícios do governador das Ilhas de Cabo Verde e do capitão de Cacheu que conseguiu fugir da sua prisão e seu sucessor, estes clamaram pela justiça e pelo julgamento das cabeças da revolta. Os documentos são inequívocos ao afirmar que presença de Bibiana Vaz prejudicava o comércio dos moradores; como provas da inconveniência das suas actividades serviram acusações sobre o trato dela com os inimigos gentios e ingleses feito sob juramento por vários testemunhos. Cedo as autoridades concluíram que seria preciso “mandar retirar logo a dita Bibiana Vaz para a Ilha de São Tiago (do archipelago de Cabo Verde)” para “examinar as culpas e procedimentos desta molher.” Além disso, comunica o capitão-mor de Cacheu sofrendo de febras palúdicas, convinha fazer um inventário dos bens de Bibiana e sequestrar os bens do seu irmão e sobrinho entretanto acautelados. Dentro de poucos meses a Bibiana, seu irmão e um outro cúmplice no levantamento estão presos na cadeia de Ribeira Grande, a sede da administração em Cabo Verde, acusados do “levantamento, de descaminhos ás cofres da FR e de comércio com os estrangeiros”. Depois de terem sido notificados da ordem de se desembarcar para Portugal, os réus fazem uma petição alegando a falta de meios de subsistência e razões de saúde, enquanto apresentam os seus fiadores que estão dispostos a pagar “a quantia que a nossa senhoria quizer.” Ficamos a saber do importante apoio que o gan Vaz de França goza em Cabo Verde entre “as pessoas principais neste arquipélago”. Pela primeira vez a figura de Bibiana começam a ter contornos mais definidos e reais quando o processo nos informa que ela é “uma molher velha com oitenta anos de idade que nem ca em sua vida se embarcou mais que para esta ilha”. O seu estado de saúde inspira muitos cuidados por ela estar de cama “com sezões sérias e perigosas (..) correndo grande risco e perigo da sua vida (..).” O cirurgião-mor avisa que “qualquer aballo que avia no corpo a julgo por morta e por ser molher muito velha esta incapaz de tudo a mudança quanto mais huma doença tão grande como ella tem.” Na dita certidão encontra-se ainda a observação: “pela dita Bibiana Vaz de França asinou o seu rogo por ser molher e não saber ler nem escrever.” O vulto desta mulher de oitenta anos, presa, doente e iletrada, cujo domínio do comércio e da política na Costa de Guiné fica assente em vários ofícios, devassas e sindicâncias que tanto a diabolizaram, fica logo mais humanizada e personalizada. Ficando em Cabo Verde, o processo se arrasta algum tempo enquanto as autoridades tentam por varias vias inventariar e sequestrar os bens dos réus. Mas as tentativas todas fracassam dado que “os bens desta mulher estão todos em terras de gentios e por isso se lhes não achou quase nada no sequestro que se lhe fez” apesar dos “grandes dispendios que o emissário fez com os negros de Guiné”. O mesmo comenta “se a minha lealdade não fora tanta ficará Bibiana Vaz em Guiné metida no gentio porque a tirei da caza de um Rey para onde fugio.” A teia de laços e interesses que seguravam os negócios de Bibiana e os seus parentes naquelas paragens impediram quaisquer esforço neste sentido. Convenientemente o sobrinho, prevenido, tinha se deslocado para a Serra Leoa ficando com a maior parte dos bens, enquanto “a Bibiana só ficou com a maior parte dos escravos generos de tão má reputação que nao se podem valer delles os senhores: porque se intentão como alguns, todos os mais fogem e se segurão nos gentios.” Nem valia a pena mandar sindicante: “não tem ca que fazer porque os que andão auzentes não he facil acolhelos a mão.” A administração portuguesa que arrematava os direitos de alfândega a feitores ou a companhias de comércio sobre não somente carecia de meios e autoridade, até lhe faltaram os moradores. Afastadas as hipóteses de obter qualquer ideia ou rasto do cabedal da Bibiana, nem dos seus parentes, a Bibiana e o seu irmão recebem um perdão Real. Enquanto a Bibiana entretanto libertada já se encontra no seu chão africano, ela faz uma campanha insistente para o regresso do seu irmão. A situação catastrófica do comércio português na Costa, que se complicou ainda mais durante o domínio espanhol, obrigou a Corte de resolver esta questão receoso de perder ainda mais influência e aceitação na região. O aviso do sindicante é claro: “se quizer apertar e constranger a Bibiana Vaz a aos mais outros maiores subsidios creio que tudo se perderá.” Nem sentenciar os revoltosos ao degredo fazia muito sentido “porque Cacheu necessita de habitadores para a sua conservação”. A recém criada nova companhia de cariz monopolista - a Companhia de Cacheu e Cabo Verde em 1690 - também precisava de um

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começo mais propício. O falecimento do seu mais feroz crítico e inimigo, o então governador de Cabo Verde, abre para Bibiana e os seus cúmplices o caminho a revisão da condenação a pagamento de avultadas multas a pagar em géneros correntes (as ‘barafulas’ ou ‘bandas’, tecidos de algodão fabricadas nas Ilhas ou no continente). Pelo facto de não existir uma contabilidade ou fiscalização fiável não se podia provar nem quantificar os alegados descaminhos da FR. Reduzindo as penas pecuniárias e restituindo a sua casa então sequestrada que deixou “os reis gentios muitos satisfeitos”, tomando em conta que ela tinha sofrida “grandes perdas (..) na sua ausência” nas Ilhas, procedeu-se a renegociação de um acordo. O texto da dita ‘promessa e obrigação’ é muito revelador das relações de poder nesta região, da política conciliatória de Lisboa e Ribeira Grande a comerciantes antes perseguidos, e a posição de força que estes últimos detinham, com destaque para a Bibiana e seu irmão. Anos antes a Bibiana tinha dado um gesto de boa vontade “em sinal de agradecimento” do perdão Real recebido, se oferecendo de construir um forte em Bolor, local estrategicamente situado na entrada do Rio Cacheu. Mas a Bibiana é mais uma vez poupada e respeitada porque se lê no documento: “porém como a dita promessa no que respeita aos ditos fortes he impossível comprillas por ser mulher.”: afinal mulheres, e ainda menos viuvas de oitenta anos, não construíram fortes. Em comutação desta promessa a Bibiana oferece “voluntária e livremente” pagar as despesas da sua construção dando como garantia a sua pessoa e bens. Porque a sua casa se achava “hoje muito atenuada de cabedais e somente com alguns escravos” ela fará o pagamento faseado em dois tranches, pagando o segundo só quando o seu irmão lhe é restituído. Sem o seu irmão disse ela a continuação do negócio não estava garantida “por ela ser mulher”.

Conclusões O caso acima exposto da Bibiana Vaz e o seu irmão Ambrósio tem todos os ingredientes de uma intriga moderna e até tem um fim feliz. O papel principal e desempenhada por uma mulher africana cujo corpo e pessoa pouco corresponde às imagens até então veiculadas sobre o a sua ‘raça’, ‘classe’ e género. Fazendo recurso mais que uma vez a suposta fraqueza do seu sexo, e invocando e seu estado de saúde, a sua idade e a falta de meios, esta viuva de oitenta anos que tinha encabeçada uma revolta, mantendo o capitão mor de Cacheu durante mais um ano preso na sua casa, fazendo negócios com Ingleses, Franceses e Africanos, se esquivando ao pagamento de direitos, consegue obter dentro de tempo recorde um perdão Real, libertar-se dos seus inimigos, voltar a Guiné, ver restituído a sua casa e reduzido as multas, fazendo uma promessa cujos termos ainda lhe deixam bastante espaço de manobra. Habilmente usando as prerrogativas do seu género, e por cima de viúva de um capitão-mor com grande prestígio e cabedal, a sua personalidade forte e autoridade incortornável se impõem a este ‘thriller’ cheia de suspense, constituindo a chave para o seu desfecho. O seu irmão, trinta ano mais novo, desempenha um papel secundário, como alias todos os outros homens neste enredo. A sua libertação ficava condicionada ao empenho da sua irmã que não se cansa até lhe resgatar da prisão em que se encontra. Embora a sua irmã se tinha descuidada das suas responsabilidades maternas em relação a um filho que se achava afastado dos negócios e da sua terra natal, o negócio e o afecto fraternal pareciam andar de mãos dadas, sublinhando um grão de interdependência inerentes aos laços laterais tão característicos destas paragens. Os outros jogadores, incluindo o governador de Cabo Verde e os capitães-mores saem bastante mal desta estória por terem sidos pouco firmes ou demasiado zelosos, muitas vezes agindo com base em raciocínios mesquinhos e vingativos. Cúmplices com a crise em que o trato português se mergulhou ao longo dos anos, as autoridades de Lisboa tinham perdido o controle sobre a situação. O perdão e a promessa de Bibiana é disto um bom exemplo. Alias a fraqueza da posição portuguesa no comércio na Costa de Guiné perante a concorrência não permitiu mais. Afinal a nova companhia estava sob tutela espanhol. A posição dos comerciantes crioulos, os ‘filhos da terra’, não tinha sofrida com estes incidentes, ao contrário, saiu reforçada, estando eles no mô de cima. O abandono do comércio guineense por parte das autoridades portugueses estava iminente com a expansão dos negócios do Brasil e a

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crescente importância de Angola. O facto de ter sido uma mulher, africana, velha e iletrada como Bibiana para confrontar estados, companhias e negociantes com esta realidade, que apesar dos seus ‘crimes’ até consegue sair com dignidade, foi uma lição que estas instituições e os homens que os dirigiram dificilmente podiam negar ou esquecer. Graças a estas circunstâncias, ficamos nos também à par deste capítulo da história da Guiné dando voz a sua protagonista que tanto confundiu os seus delatores. 1[1] Mestrado em Ciências Políticas e Pós-mestrado em Relações Econômicas Internacionais, Mulheres e Desenvolvimento, Universidade de Leiden, Holanda; Investigador do Centre of African, Amerindian & Asian Studies, Universidade de Leiden e Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, Portugal. 1[2] Westkott, Marcia ‘Feminist criticism of the social sciences’, in: Harvard Educational Review, 49, 4, 1979: 422-30. 1[3] Scott, Joan W. ‘The Problem of Invisibility’, in: Kleinberg, S.J. (coord.) ‘Retrieving Women’s History’, Providence, 1988 1[4] Stoler, Laura Ann ‘Carnal Knowledge and Imperial Power: gender, race and morality in colonial Asia’, in: Leonardo, Micaela di ‘Gender at the Cross roads of Knowledge: feminist anthropology in the postmodern era’, Berkeley, 1991: 51-101 1[5] Correia, A.A. Mendes ‘O mestiçamento nas colonias portuguesas’, Lisboa, 1940: 13. 1[6] Stoler (1991): 81. 1[7] Kraemer, Heinrich & Spengler, Jacob ‘Malleus Maleficarum’, (1486), Londres, 1928. 1[8] Ver desta autora por ex. ‘Inferno Atlântico’: demonologia e colonização, secs. XVI-XVIII’, São Paulo, 1993. 1[9] Saunders, A.C de C.M. ‘História social dos escravos e libertos negros em Portugal (14411555)’, Lisboa, 1982: 140. 1[10] Boetsch, Gilles & Sabarese, Eric ‘Le corps de l’Africaine: erotisation e inversion’, in: Cahiers des Études Africaines, 153, 1999: 123-44. 1[11] Evans Pritchard, E.E. ‘The Position of Women in Primitive Societies and in our own’, Londres, 1957 1[12] Guyot, Y.(1901) in Boetsch & Savarese (1999): 129. 1[13] A obra de Ruth Landes citada em Verger, Pierre ‘A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil’, in: Culturas Africanas, Unesco, 1985: 272-309. 1[14] Citação de Landes, Ruth ‘A cidade das mulheres’, Rio de Janeiro, 1967 em Verger (1985): 283. 1[15] Herskovits, Melville J. ‘Dahomey, an ancient West-African kingdom’, New York, 1939 1[16] Kuper, Hilda ‘An African Aristocracy: rank among the Swazi’, Oxford, 1944 1[17] Almada, André Alvares de ‘Tratado Breve dos Rios de Guine do Cabo Verde’, Lisboa, 1594/1964; Donelha, André ‘Descrição da Serra Leoa e dos Rios de Guiné do Cabo Verde’,

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Lisboa, 1625/1977; Coelho, Francisco de Lemos ‘Duas Descrições Seiscentistas da Guiné’, Lisboa, 1669-1684/1990. 1[18] Ibn Battuta ‘Voyages’, 3 vols, Paris, 1982: 403. 1[19] Coelho (1684/1990): 92. 1[20] Almada (1594/1964): 96. 1[21] Ibidem 1[22] Klein, Martin A. ‘Women and slavery in the Western Sudan’, in: Robertson, C & Klein, M.A. ‘Women and slavery in Africa’, Wisconsin, 1983: 67-92. 1[23] Rodney, Walter ‘A history of the Upper Guinea coast, 1545-1800’, Oxford, 1970: 200-213.

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