Participação e tensão na gestão de uma rádio escolar (IV Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídia - 2014)

October 10, 2017 | Autor: Zeca Teixeira | Categoria: Educação, Música, Cotidiano
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Participação e tensão na gestão de uma rádio escolar: sobre música, tecnologia e diáspora negra

José Carlos Teixeira Júnior PROPED/UERJ [email protected]

Introdução O presente trabalho tem como objetivo principal discutir a emergência de uma tensão cultural (dentre tantas outras existentes, certamente) no processo de criação e gestão participativa de uma rádio escolar. Trata-se de um projeto de Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas sediadas no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) articulado à pesquisa “Artes do Fazer: Diálogos e Alianças da Afrodiáspora em Redes Educativas” (CNPQ) e ao Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ), desenvolvido pelo grupo “Culturas e Identidades no Cotidiano” no âmbito do Laboratório Educação e Imagem da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FE/UERJ) e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROPED/UERJ). Ao assumir, conforme orientação de Benjamin (1983), as chamadas “técnicas de reprodução” como práxis política, a rádio em processo de construção em uma escola municipal carioca apresenta-se como um campo de conhecimento bastante fértil para a emersão da complexidade da diáspora negra (GILROY, 2001) em determinados contextos urbanos, como na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo. É neste sentido que abordaremos, ainda mais especificamente, a emersão da ambivalência da expressão “tudo 2” (cantada e decantada nas montagens de diversos funks carioca tocados na referida escola e sugerida massivamente como nome de sua rádio) durante os encontros com seus alunos e professores. Se, por um lado, esta expressão enuncia os chamados “traficantes de drogas” (FILHO, 2007) locais no processo de reestruturação geopolítica do mercado varejista de drogas ilícitas da Cidade Maravilhosa, por outro lado, ela enuncia também uma identidade bastante significativa dos jovens desta mesma comunidade escolar (“tamo junto”, “tudo na paz”). Estas questões fronteiriças entre música, identidade e violência – recorrentes no debate da diáspora negra, vale ressaltar (GILROY, 2001) – nos permite afirmar que se o tão valorizado método participativo oferece de fato alguma contribuição a uma possível justiça cognitiva – e realmente acreditamos que sim –, não será, contudo, como fim em si mesmo. Muito longe disso, trata-se de apenas um bom início de um processo ainda mais amplo e complexo de emergência das mais diferentes tensões culturais.

Criação e gestão participativa de uma rádio escolar Em março deste ano de 2014 iniciamos a Oficina de Rádio na Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga. A referida escola municipal foi criada e assim nomeada pelo decreto municipal nº 9.994 de 19/02/1991, tendo iniciado suas atividades escolares, contudo, em março de 1990, ano seguinte à morte de seu patrono, o chamado Rei do 125

Baião. Ela está localizada em Jacarepaguá (Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro), região pertencente à 7ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) da Secretaria Municipal de Educação (SME) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, e possui cerca de 60 professores e de 1200 alunos dos dois segmentos do Ensino Fundamental, distribuidos nos turnos da manhã e da tarde. Apesar de estar situada no bairro da Freguesia, a grande maioria de seus alunos reside em Cidade de Deus (mais comumente chamada de CDD por seus moradores), enquanto uma minoria reside, basicamente, em Gardênia Azul e Rio das Pedras (outras duas localidades próximas, porém fortemente marcadas pela constante migração de nordestinos). Em todos os casos, contudo, trata-se de localidades historicamente marcadas pelo estereótipo de violência e de pobreza (SEGALA, 1991; ZALUAR, 2000; ALVITO, 2001). A Oficina de Rádio se apresenta como parte do projeto “Culturas, sonoridades e processos identitários afrodiaspóricos na comunidade escolar Compositor Luiz Gonzaga” contemplado pela FAPERJ através do edital de Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas Públicas sediadas no Estado do Rio de Janeiro, disponibilizado no ano de 2013. Com uma duração prevista para doze meses (mais especificamente de março de 2014 a fevereiro de 2015), este projeto (que é um desdobramento de uma pesquisa de doutorado, em fase de conclusão, que pesquisa a prática de tocar-ouvir música no cotidiano escolar) apresenta como objetivo principal a criação e a gestão participativa de uma rádio na referida escola municipal. Ao assumir as tensões da chamada “técnicas de reprodução” (BENJAMIN, 1983) como campo de conhecimento e as determinações das leis federais 10.639/2003 e 11.769/2008, tal criação e gestão propõe, por um lado, reforçar uma prática musical já realizada há cerca de quatro anos no cotidiano da escola (mais especificamente, a prática de uma equipe de som escolar apelidada de Gonzagão Digital), como também, por outro lado, contribuir de forma ainda significativa no processo de emersão das histórias afrodiaspóricas locais – as quais encontram justamente em suas práticas musicais um amplo e complexo “circuito comunicativo” (GILROY, 2001) – e, consequentemente, no tensionamento de seus próprios estereótipos (BHABHA, 2013). A Oficina de Rádio consiste no principal núcleo de ação deste projeto. Trata-se de um coletivo formado por professores e alunos da escola (mais especificamente alguns alunos do sétimo, oitavo e nono anos do ensino fundamental), assim como estudantes do curso de graduação em Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (os quais atuam como bolsistas de Iniciação Científica pelo próprio projeto). Ele funciona, assim, como um mediador das relações entre a rádio e os mais diferentes segmentos da comunidade escolar: universidade, professores, alunos, funcionários, direção, familiares e diferentes localidades atendidas pela escola (Cidade de Deus, Gardênia Azul e Rio das Pedras). Através de encontros realizados semanalmente, às sextas-feiras, são discutidas as mais diferentes questões e estratégias que se apresentam necessárias à realização do projeto, como, por exemplo, a criação do nome da rádio, primeiro desafio da Oficina. No intuito de realizar a mediação proposta na comunidade escolar, o coletivo da Oficina de Rádio resolveu colher sugestões com os diferentes segmentos da escola para, após uma seleção prévia, eleger um nome para a rádio da escola através de uma votação. Dentre as mais diversas sugestões que surgiram, cinco foram escolhidas para compor a cédula de votação: Gonzagão Digital, Tudo 2 Digital, Gonzaga Mix, A Voz do Aluno e Espaço Escolar. A exemplo da atual democracia representativa brasileira, o coletivo optou por realizar uma votação aberta a todos os membros da escola, cuja decisão ficaria a cargo da

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maioria. Assim, durante algumas semanas, uma urna circulou pela escola. E a vibração de grande parte dos alunos (do primeiro ao nono ano) já se mostrava bastante evidente: – “É tudo 2!” –, gritavam muitos deles. Durante o respectivo processo de votação, contudo, a sugestão do “tudo 2” foi problematizada em um dos nossos encontros de sexta-feira: se, por um lado, esta expressão (cantada e decantada em vários funks tocados na Gonzagão Digital) referia-se à ideia de parceria, enquanto um “tamo junto”, “tudo na paz” (ideia, aparentemente, mais conhecida por todos ali do coletivo e da própria escola), por outro lado, ela se referia, também, ao Comando Vermelho, organização que, historicamente, dominou o comércio varejista de drogas ilícitas na cidade do Rio de Janeiro, de uma forma geral, assim como também em Cidade de Deus, de uma forma mais específica.

Tudo 2 Sexta-feira, dia de Gonzagão Digital. Para alegria de alguns, indiferença e indignação de tantos outros, o funk toca forte em uma caixa amplificada conectada ao software Virtual DJ instalado em um netbook sob as mixagens, os scratches e os loops de alguns alunos-DJs, assim como, também, sob o olhar atento de alguns outros colegas. Segundo estes mesmos alunos, observar os colegas, acompanhar os tutoriais dispopníveis na internet e praticar sempre que possível os recursos destes softwares foram os principais caminhos pelos quais começaram a dominar essa prática de disc jóquei. Pela caixa amplificada conectada a um netbook com o software Virtual DJ Free instalado, o aluno-DJ Max coloca pra tocar no pátio interno da escola durante os vinte minutos de recreio a montagem “Tudo 2 (união 13 & Karatê)”, com os MCs B13, GL e CL. Ouve-se, assim, um “pode [sílaba ‘po’ sampleada] se preparar, porque a 13 se uniu com o Karatê”. Sampleagem com batidas agudas. “É [sampleagem da palavra ‘é’] tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2. Karatê [sílaba ‘ka’ sampleada] e 13 se uniu, Karatê [sílaba ‘ka’ sampleada novamente] e 13 se uniu, Karatê e 13 se uniu. É [sampleagem da palavra ‘é’] tudo 2, é tudo 2, [início da base beat box] é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2, é tudo 2. Karatê [sílaba ‘ka’ sampleada] e 13 se uniu, Karatê [sílaba ‘ka’ sampleada novamente] e 13 se uniu, Karatê e 13 se uniu. Não tem pelo amor de Deus. [Pausa na base beat box e uma colagem do trecho da música dos Racionais MC’s, ‘Da Ponte pra Cá’] Não adianta querer, tem que ser, tem que pá. O mundo é diferente da ponte pra cá [fim da colagem]. É [sampleagem da palavras ‘é’] o 2!”. Sampleagem com batidas agudas e reinício da base beat box com batidas médias e graves sampleadas. Repete desde o início da montagem com a base beat box até a colagem da referida música dos Racionais MC’s, realizada com a respectiva base em pausa. Novamente a sampleagem com batidas agudas e reinício da base beat box com batidas médias e graves sampleadas até finalizar a montagem. O funk-montagem narrado nas linhas anteriores nos traduz um pouco da polifonia e dialogicidade (BAKHTIN, 2010) da expressão “Tudo 2” (TD2). Trata-se de uma expressão atravessada tanto pela união das microlocalidades da Cidade de Deus (“Karatê e 13 se uniu”) como também pela execução impiedosa dos que a elas se opõem (“não tem pelo amor de Deus”). Em suas insistentes sampleagens, o TD2 ocupa uma posição de fronteira que Certeau certamente caracterizaria como “ser um estrangeiro na própria casa” (CERTEAU, 1994, p. 70). Uma ponte (apropriando-me, também, das palavras citadas dos Racionais MCs, “Da ponte prá cá”, neste mesmo funk-montagem)

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em constante vigilância e em tensas negociações entre os estereótipos de identidade e de violência. Em outras palavras, a expressão TD2 enuncia, por um lado, um movimento do Comando Vermelho (organização que, historicamente, dominou o mercado varejista de drogas ilíticas da cidade do Rio de Janeiro, de uma forma geral, e da Cidade de Deus, de uma forma mais específica), tanto interno (de unificação de suas diferentes lideranças) como externo (de aliança com outras organizações) diante de um processo mais amplo, conforme nos esclarece Alves (2010), de reorganização geopolítica deste mercado varejista carioca marcado, justamente, pela sua des-hegemonização. Um processo, ainda segundo Alves (2010), que tem sido cotidianamente explorado pela mídia corporativa e pelo próprio governo do Estado de uma forma maniqueísta como se fosse uma luta entre o Bem (representado pela política da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, marcada basicamente pela implementação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora – UPP) e o Mal (representado de uma forma bastante genérica e superficial pelo chamado tráfico de drogas). Por outro lado, contudo, esta mesma expressão enuncia, também, uma identidade dos jovens desta comunidade escolar: “tamo junto”, “tudo na paz”. Trata-se de uma identidade que poderia ser muito bem ilustrada, por exemplo, pela narrativa de um professor de português da escola. Ao se deparar com um aluno do último ano do ensino fundamental ao lado de fora de sua sala de aula tumultuando o corredor da Compositor (e, consequentemente, as aulas em andamento nas salas de aula mais próximas), o referido professor se dirige seriamente ao aluno e diz: – Companheiro, você poderia voltar para sua sala de aula, por gentileza! Imediatamente, o referido aluno se vira para este professor e sem falar absolutamente nada, realiza um movimento corporal (usado e abusado, cotidianamente, pelos alunos da escola) deste TD2: com uma das mãos com a palma voltada para o próprio corpo, faz o número dois (dedos indicador e médio esticados, e os demais encolhidos) levemente inclinado para o lado. Após este movimento, o aluno retorna para sua sala de aula, porém com um enorme sorriso no rosto voltado para o referido professor que deixa evidente seu posicionamento, não de obediência nem de submissão, mas sim de parceria em relação a uma alteridade (neste caso específico, o referido professor de português).

Considerações finais A complexidade do “tudo 2” evidencia algumas das tensões que marcam a realização desta proposta de gestão participativa. – Mas gente, “tudo 2” significa “tamo junto”, “tudo na paz”! A gente vai valorizar esta ideia na escola e não a ideia do tráfico – argumentava uma aluna; – Se eu ouvisse uma rádio com nome de “tudo 2”, nunca passaria pela minha cabeça que ela fosse de uma escola – argumentava outra aluna; – E se um dia a “firma” mudar? Isso às vezes não acontece, não é? E aí, a gente vai mudar o nome da rádio também? Mas ainda assim, a “firma” nova vai perdoar? – reforçava o argumento do professor. – Pô, mas a galera estava vibrando com este nome: “é tudo 2, é tudo2”! – exclamava um aluno.

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– Nós estamos em uma escola pública utilizando uma verba pública para a realização deste projeto. Até explicar para o público o sentido que estamos propondo valorizar, já nos enquadraram por apologia ao tráfico – argumentava outro professor. Por fim, o coletivo optou em refazer todo o processo de votação, socializando com a comunidade escolar (neste mesmo processo de revotação) os argumentos que justificaram (justificaram?) a mudança. A mediação que este coletivo se propôs realizar a partir de determinadas “técnicas de reprodução” (BENJAMIN, 1983) – mais especificamente, a criação e gestão participativa da referida rádio escolar – se apresentou, como tentamos mostrar no decorrer destas páginas, fortemente atravessada por questões fronteiriças entre música, identidade e violência – questões bastante recorrentes da diáspora negra, vale ressaltar (GILROY, 2001). Trata-se, portanto, de um fato que nos permite concluir com a problematização de que se o tão valorizado método participativo oferece de fato alguma contribuição a uma possível justiça cognitiva – e, realmente, acreditamos que sim –, não será, contudo, apenas como um fim em si mesmo. Muito longe disso, trata-se sim de um bom (e tenso) início de um processo ainda mais amplo e complexo de emergência das mais diferentes tensões culturais.

Bibliografia ALVES, José Cláudio Souza. “Uma guerra pela regeografização do Rio de Janeiro. Entrevista especial com José Cláudio Alves”. In Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 2010 (disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/38721-umaguerra-pela-regeografizacao-do-rio-de-janeiro-entrevista-especial-com-jose-claudioalves, visualizado em agosto de 2014). ALVITO, Marcos. As cores de Acari. Uma favela carioca. Rio de Janeiro, FGV, 2001. BAKHTIN, Michail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução e prefácio de Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época das técnicas de reprodução”. In Textos escolhidos. 2ª ed (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 3-28. BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2013. BRASIL. Lei 10.639. Brasília: Congresso Nacional, 2003. __________. Lei 11.769. Brasília: Congresso Nacional, 2008. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. FILHO, Orlando Zaconne. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. SEGALA, Lygia. O riscado do balão japonês: trabalho comunitário na Rocinha (19771982). Rio de Janeiro, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, 1991. ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado de pobreza. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

Palavras-chaves: Educação. Cotidiano. Tecnologia. Música. Diáspora Negra.

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