Passageira em trânsito: do não-lugar ao lugar na poesia de Marina Colasanti

June 9, 2017 | Autor: V. de Oliveira | Categoria: Poetry, Contemporary Poetry, Poesia Brasileira, Marina Colasanti
Share Embed


Descrição do Produto

Ensaio

Passageira em trânsito: do não-lugar ao lugar na poesia de Marina Colasanti Vera Lúci a d e O l ivei r a

O

mundo global, caracterizado pela aceleração do tempo e pelo excesso de informações e imagens, fruto da concentração urbana, das transformações espaciais, da mobilidade social e da rapidez dos novos meios de comunicação, em vez de diminuir as distâncias, de abolir as fronteiras e aproximar os seres humanos, gerou um individualismo exacerbado e erigiu ainda mais barreiras e muros de segregação social. A modernidade produziu também o que o antropólogo francês Marc Augé define como o não-lugar, correspondente aos espaços homologados e permeados de pessoas em trânsito, que, no entanto, não interagem e não se encontram verdadeiramente, como os aeroportos, as estações ferroviárias e rodoviárias, os supermercados, os centros comerciais, as grandes cadeias de restaurantes e hotéis (AUGÉ, 2009). Lendo o livro Passageira em trânsito, de Marina Colasanti, publicado em 2009 pela Editora Record, vencedor do Prêmio Jabuti de 2010, foi inevitável retornar a Marc Augé e à sua definição de não-lugar

Poeta, ensaísta e professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia. Recebeu diversos prêmios pela sua produção, entre os quais o de Poesia da Academia Brasileira de Letras, em 2005. A autora, que escreve tanto em português como em italiano, tem poemas e ensaios publicados no Brasil, Itália, França, Alemanha, Romênia, Estados Unidos, Espanha e Portugal.

179

  Vera Lúcia de Oliveira

como realidade característica do nosso tempo. São, estes, os novos templos do consumismo, onde se vendem e se compram sempre os mesmos produtos. Por esses espaços passamos sem deixar rastros e sem estabelecer nenhum vínculo de relação com a alteridade. A autora questiona, nesse belo livro, justamente a relação do sujeito com esse tempo e esse espaço de passagem, visto a partir de duas perspectivas, a objetiva e concreta do embate com o real, caracterizado, como dissemos, pela fragmentação e isolamento do ser humano, e a subjetiva e interior do poeta, que busca e propõe novas leituras e interpretações do mundo à luz das transformações radicais dos últimos anos. São recorrentes em Passageira em trânsito os termos que conotam os ambientes padronizados da globalização, como avião, pista, comboio, trilhos, carros, túnel, metrô, mensagens luminosas, prédios, portas de emergência, aeronave, shopping, passaporte, fronteiras, check in, milhagem, embarque, estacionamento etc. Note-se que, já a partir do título, o texto – mais do que indicar um momento ou um espaço determinados – define uma condição existencial, constante também no percurso da autora, que é escritora migrante, transnacional e bilíngue. Marina Colasanti nasceu em Asmara, na Eritreia, então colônia italiana na África. Ainda na infância, transferiu-se com a família para a Itália, onde viveu os primeiros dez anos e, em 1948, veio para o Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro. Em 1968, saiu a sua primeira obra, Eu sozinha, e desde então publicou mais de quarenta livros, entre poesia, prosa e literatura infantojuvenil. Se a condição de “passageira em trânsito” é, pois, para a autora, um dado de fato, gerado pela contingência autobiográfica, no livro tal condição, sem prescindir da relação com sua vivência específica, assume um significado mais vasto e universal, tornando-se a imagem do homem contemporâneo, em sua errância e movimento constantes, exposto, por isso, ao risco da perda das referências culturais e identitárias. O eu lírico de Passageira em trânsito, ao contrário, nunca se perde, mesmo se locomovendo por continentes, países e línguas diferentes, mostrando, assim, que é possível manter a própria integridade. Certamente, a experiência autobiográfica forneceu instrumentos à autora, para realizar plenamente tal 180

Passageira em trânsito  

périplo, e ela de fato impregna-se de todos os lugares visitados e vividos, estabelecendo vínculos sólidos com as pessoas que fizeram parte de sua vida. Tal experiência autobiográfica fez com que nenhum lugar, nenhum espaço frequentado, por mais anônimo que fosse, passasse despercebido ou escorresse indistintamente pelos seus olhos. O que vemos no livro é que, assumindo voluntariamente uma atitude de atenção e escuta, é possível habitar até mesmo os ambientes da despersonalização e transformar, pela poesia e com a poesia, o não-lugar de passagem em tempo-espaço identitário, em condição existencial de quem não renuncia à consciência e à autoconsciência em nenhum momento e por nenhum motivo, como no poema “Viagem por um fio”, onde a autora colhe numa delicada imagem, que se contrapõe ao ambiente asséptico e tecnológico de um avião, a de uma mulher que borda e viaja dentro da viagem, praticando um dos ofícios femininos mais antigos da humanidade. Note-se, aqui, como a ação de criar conote o universo feminino, pois o fio que une “mão e tecido” é o mesmo que liga “cordão e placenta”: “Na Classe Executiva deste avião aplicada como o homem com seu laptop uma mulher borda. Fino fio liga mão e tecido – cordão e placenta – enquanto a agulha vai ponto a ponto tecendo a nova vida de um desenho. Olhar posto no bastidor perfil recortado contra a janela do avião a mulher viaja.” (COLASANTI, 2009, p. 79) O tema do livro é, pois, a viagem, o olhar estranhado e curioso sobre o mundo, a sensação de precariedade do viajante, o atravessamento de espaços, 181

  Vera Lúcia de Oliveira

próximos ou distantes, rurais ou urbanos, antigos ou modernos, onde o ser leva sempre consigo a força da própria individualidade, que não se contrapõe ao desejo intrínseco de entrar em comunhão com pessoas e ambientes, naquilo que eles têm de mais específico e exclusivo. Os versos de Marina são claros, enxutos, frequentemente irônicos, harmoniosos, medidos e musicais: cada palavra está em seu justo lugar. Muitos dos textos têm a data e a indicação do lugar em que foram escritos, o que ajuda o leitor a realizar, com a autora, essas viagens em profundidade nas coisas. Perpassando-os, traçamos um mapa afetivo que nos conduz à poética e à vida da autora: Asmara, Seoul, Miami, Cidade do México, Paris, Jerusalém, Roma, Madri, mar Báltico, Beja, Cairo e outras cidades e países. Algumas poesias são escritas em italiano, sem a tradução ao lado, quase a retomar um diálogo com a língua dos primeiros anos de vida, língua que parece ter o dom de embalá-la e que é, como afirma, o refluxo, na boca, da sua alma: “Fra l’arrosto e l’insalata si scatta la foto al ristorante. Il sorriso si fredda con la carne e del momento resterà un sapore vago come quello dell’unto in fondo al piatto. Ci vorrà poi la data scritta dietro per non dimenticare il giorno in cui fummo tanto felici.” Roma 2001 (idem, p. 57) Na dedicatória, posta no início do livro, lemos: “Para Affonso, que comigo partilha a dupla viagem de vida e poesia.”, onde “Affonso”, como sabemos, está para Affonso Romano de Sant’Anna, poeta e ensaísta, seu companheiro de vida. A partir da dedicatória, vemos que, para a autora, poesia é viagem, recognição, recuperação e, ao mesmo tempo, perda e abandono de lugares e

182

Passageira em trânsito  

pessoas. Não é casual que a morte se insinue e acompanhe todo o livro, mostrando o seu lado de angustiante expectativa, como no poema “Meu corpo”. Também a morte é viagem, a mais misteriosa entre todas, porque dela não se retorna. A viagem, portanto, em todas as suas modalidades, define e condiciona o percurso do eu lírico no livro, que assume a condição do nômade errante. Encontramo-lo em aviões que taxiam na pista, em trens que passam velozes (idem, p. 11), em esquinas e estradas desconhecidas (idem, p. 12), em metrópoles anônimas, em metrôs que perfuram a noite (idem, p. 16), em shopping center (idem, p. 30), em fronteiras e mundos que a poeta atravessa, buscando a viagem vertical dentro da horizontal. É recorrente, na literatura e nas artes em geral, a imagem da vida vista como passagem, como viagem que é, também, um itinerário interior. Este seria caracterizado por diversas fases, que correspondem a momentos distintos de tomada de consciência da própria identidade e do mundo ao redor, quando não como possibilidade de transcendência da vida e de superação da morte. São conhecidas, nesse sentido, as viagens de alguns dos maiores escritores e artistas, como Petrarca, Erasmo de Rotterdan, Leonardo da Vinci, Montaigne, Montesquieu, Goethe, Byron, Shelley, Keats, Nietzsche, Ungaretti, Joyce e tantos outros, que modificaram, ampliaram e enriqueceram a visão de mundo desses autores. Parábola da dolorosa travessia humana é, por excelência, a Comédia, de Dante, que influenciou tantos grandes nomes de todas as literaturas. Nesse livro de Marina Colasanti, a passagem e a viagem são metáforas, alegorias do nosso destino de peregrinos precários, por um tempo tantas vezes destituído de história: “Ninguém nos diz onde as colunas de Hércules se erguem onde na estrada reta rompe a esquina

183

  Vera Lúcia de Oliveira

onde a quina a falha, onde a ruptura em que o tempo se fratura. ‘É logo ali’, murmuram vagamente e vagamente apontam com um gesto de mão que nada indica.” (idem, p. 12) Os termos “viagem” e “viajar” enriquecem-se, porém, aqui, de novas conotações: viaja-se até mesmo sem sair de casa e não sempre quem se locomove no espaço realiza viagens. Um doente viaja na dor (como no poema “Hérnia é o nome”, p. 28), uma joia antiga viaja de corpo em corpo (como em “Viagem na pele”, p. 81), o silêncio viaja nas bocas e nas consciências que não denunciam o mal do mundo (em “Boca travada”, p. 78), o poesia viaja dentro de um quadro de Chagall (em “Le poète allongé”, p. 42), uma filha viaja pela memória da mãe através de um retrato (em “Foto no álbum”, p. 89). Não há momentos mortos nesse percurso lírico, nem tempos indistintos à espera de outro tempo que virá, instantes que não existem em si e por si mesmos, como as longas esperas nas filas ou a duração dos percursos, em que – por vezes – pomos a consciência em repouso, como se fosse possível descansar de ser e de existir. Para essa peregrina, que se acostumou a fazer do trânsito e da deslocação também um percurso interior, todos as fases do caminho, mesmo as aparentemente destituídas de significado, são viagens no verdadeiro sentido do termo. O ato de viajar retoma, assim, o sentido primário, de experiência inaugural e introspectiva, gerado pela necessidade de conhecimento e formação. O tempo nesse processo é, também ele, instável, sinônimo de transformação. A autora colhe a mudança, a transição contínua de uma coisa em outra, mostrando que o que nos conota é, mesmo, a errância e a impermanência: “É quando a noite ainda não é tudo / embora o dia se dê já por perdido / é quando o que é rasteiro fez-se escuro / mas o céu nas costuras ainda é claro, (...)”. (idem, p. 39) Já a partir do primeiro poema, vemos que a autora transforma o não-lugar em espaço de iluminação e descoberta, pois o olhar do poeta acompanha o 184

Passageira em trânsito  

movimento interno e externo, em busca do elemento que torna os fatos destituídos de significado em instantes plenos, dos quais a poesia brota: “Taxia na pista o avião que me leva. Do lado de fora do campo os muitos vagões de um comboio avançam nos trilhos. Duas forças se lançam no mesmo sentido irmãs por segundos, e logo o avião se desprende do chão as rodas se escondem no ventre o avião faz-se ave. Abaixo o trem lentamente se torna um traço de lápis no verde.” (idem, p. 11) Nessa exploração e indagação do mundo, o eu lírico vai aos poucos desnudando também o depauperamento de valores e modelos culturais, sociais e religiosos, aos quais se ligavam gestos, cerimônias e ritos que foram e são parte da identidade de tantos povos, como em “Outra era a subida”, em que a autora estabelece analogia entre subir os degraus da Acrópole e subir as escadas rolantes de um shopping: “Nas escadas do shopping necessário não é subir degraus. (...) Outra era a subida quando a planta do pé 185

  Vera Lúcia de Oliveira

pisava pedra. Escadas não rolam na Acrópole. Dos novos templos fáceis de galgar quantas colunas sobrarão no tempo?” (idem, p. 30) É emblemático observar como os vários vocábulos ligados à atividade de viajar foram sendo, com o tempo, redefinidos em termos de simplificação e esvaziamento de sentidos, como se a globalização fosse também uma padronização e uma estandardização da linguagem e das línguas em geral. Assim, se os novos templos e símbolos do consumismo se padronizaram, a ação de subir não pode mais ser associada a um movimento de ascese e elevação espiritual. Há, porém, uma constante busca de sinais do humano, mesmo no aparentemente inumano, como no poema “No altíssimo topo”, em que o olhar da poeta registra a minúscula figura de um homem, que se move precária no topo de um prédio: “No alto do alto / do altíssimo edifício / um mínimo homem / se move sobre / o fio / do abismo”. (idem, p. 31) Nessa busca, a poeta, por vezes, empresta sentimentos e humaniza máquinas e instrumentos de uso cotidiano, cúmplices e testemunhas de tantas horas de nossa vida, como na poesia “No shopping”: “Irmãos de raça como os tubarões – noturna metálica pele focinho adiantado e silêncio – os carros deslizam vorazes à caça de vagas no aquário cinzento do estacionamento.” (idem, p. 76) Ocorre, outras vezes, como no poema “No antigo tempo” – título irônico, pois referido a Seoul, moderna megalópole de onze milhões de habitantes –, 186

Passageira em trânsito  

que a solidão se faça aguda, causada pela despersonalização do espaço e pela apropriação venal da natureza, elementos que a autora colhe em toda a sua extensão, andando pela cidade. Não são, então, os homens a falarem a língua do poeta, mas algo da paisagem que sobreviveu e que testemunha a história dos lugares antigos: “Só a chuva e/o rio Hangan fluindo no antigo tempo entre ponte e ponte / falam a língua que sei.” (idem, p. 16) Em “Segurança e normas”, há uma irônica paródia da linguagem repetitiva, pseudo-objetiva e um tanto autoritária dos avisos de segurança, que tantas vezes ouvimos nas viagens aéreas, aos quais a autora acrescenta vocábulos e expressões próprios, em que sentimentos e incertezas se inserem, desvirtuando e corrompendo a polidez da voz padronizada: “Este avião tem seis portas de emergência assinaladas com saída-exit máscaras descerão do céu como espírito santo se a pressurização for para o espaço e no choco do assento cochilam amarelos coletes salva-nada. (...) O que nos salva é o céu vedado pelo chão de nuvens e a gratidão que a companhia expressa por termos escolhido estar aqui.” (idem, p. 29)

187

  Vera Lúcia de Oliveira

Observe-se que o título do livro é uma tautologia, em que o segundo termo aparentemente reitera o conceito do termo anterior.1 No entanto, se no vocábulo “passageira” está implícito o significado de “em trânsito”, ao mesmo tempo, essa reiteração reforça e conota diversamente o substantivo, intensificando a acepção de precariedade do mesmo. Talvez essa exigência de redefinir os termos ligados à viagem se verifique, como vimos, pela banalização que o conceito sofreu a partir da massificação do turismo, que ligou o termo “passageiro” ao de “consumidor”, modalidade geralmente superficial e utilitarista de contato com a realidade. Ao optar, no título, pelo substantivo “passageira”, usado e abusado nas mil frases da linguagem comercial e turística, que se exprime por jargões e anúncios publicitários, a autora sentiu, assim, a exigência de acrescentar-lhe o complemento circunstancial de modo “em trânsito”, que lhe dá nova luz. É importante atentar para o fato de que um passageiro em trânsito não é alguém que se define pelo lugar de onde partiu ou pela localidade aonde chegar (não, portanto, por uma cidade, uma nação, uma pátria), mas pelo processo instável de deslocamento, pelo caminhar constante. Esse peregrino está, assim, exposto às condições dos percursos, às estradas e fronteiras, à mercê do mundo vasto e aberto, sem proteção e abrigo. Ao mesmo tempo, ele se caracteriza pela extrema liberdade como condição interior, pela virgindade do olhar, pela desautomatização da relação com o real, pelo espanto diante de tudo, elementos constitutivos da poesia e da arte. O passageiro em trânsito não é o exilado, que vai à deriva. Uma das diferenças marcantes entre viagem e exílio, com efeito, está no fato que o viajante parte porque deseja fazê-lo e não é obrigado a permanecer em nenhum lugar, a liberdade é a sua guia e bandeira; o exilado deixa a própria terra porque deve fazê-lo e, já que lhe é proibido o retorno, a viagem é para ele uma espécie de morte. Eis, pois, que a condição de passageira em trânsito torna-se uma metáfora do viver, do mover-se, do realizar tudo o que torna digna a vida, para subtrair a memória 1

O substantivo “passageiro”, segundo o Dicionário Houaiss, indica o viajante, o indivíduo que é transportado num veículo, público ou particular; como adjetivo, indica o que passa rapidamente, o que é transitório. (HOUAISS, 2001, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p. 2.143). “Trânsito”, sempre segundo o Houaiss, é o ato de circular de pessoas, é a passagem de um lugar a outro ou mesmo de um estado ou situação a outro, indicando também a situação passageira em que provisoriamente alguém se encontra. (idem, pp. 2.751-2.752)

188

Passageira em trânsito  

da sua consumação, para imprimir rastros na terra e versos na página: “Preciso ler um bom poema antes / de dormir. /(...) Ler um bom poema / antes que a morte venha / e escreva o seu.” (idem, p. 49) Em Passageira em trânsito, Marina nos presenteia com uma poesia delicada, intensa e feminina, de escritora e intelectual em busca do sentido profundo de cada gesto e momento, mesmos os aparentemente mais corriqueiros. O seu olhar vai além, tentando colher o que é irrepetível em cada instante para arrancá-lo da dispersão total, que tudo dilui. A sua é uma poesia concreta e sensual, em que as palavras se impregnam de vida e acariciam a superfície do mundo, como um prolongamento do corpo. Esse é o livro de uma viagem poética pelo mundo, não ao gosto dos antigos relatos dos cronistas, preocupados em colher o exótico ou em fornecer leituras da realidade funcionais aos vários projetos expansionistas, mercantilistas e coloniais. Temos, aqui, instantâneas de intensa participação e empatia com o ambiente e com os homens ao redor, como no poema “Essauira ao sol”. Essauira é uma das localidades do Marrocos mais visitadas pelos turistas. Cidade antiga, declarada patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO, é também uma conhecida estância de mar, apreciada pelos extensos areais e dunas. Pois bem, entre tantos elementos pitorescos e mesmo exóticos do lugar, a atenção da poeta colhe o olhar dos homens de albornoz, fixo e perdido para além do grande mar oceano, sonhando, talvez, viagens e mundos desconhecidos, expressão e sonho que se cruzam com os da autora e nos quais ela se reconhece, para além de todas as diferenças sociais, culturais, religiosas: “Os homens de albornoz olham o mar sem que nada no mar seja remo navio ou vela inflada. 189

  Vera Lúcia de Oliveira

Os homens coloridos ciprestes de capuz olham o mar só mar enquanto sua sombra plantada a sotavento sulca a esplanada branca como espuma.” (idem, p. 80) E em Cartagena de Índias, a força do vento, que fustigou e modelou por séculos as antigas e sólidas muralhas de pedra da cidade, modela também o poema, cuja estrutura é polida, essencial e enxuta. Veja-se a terceira estrofe, “A pedra é como o pão / que o vento amassa / uma esponja de pedra / que leveda / uma força de lava / que não passa”, onde o termo “pedra”, pode perfeitamente ser substituído pelo de “poema” (idem, p. 45). Não há idealização de tipo saudosista nesse olhar aberto sobre o mundo, não se parte em busca de paraísos intactos ou de lugares fora do tempo, em que, presumivelmente, se teriam conservado características típicas, hoje mancomunadas pelo ambíguo e nivelador termo “étnico”, comunidades que representariam uma alternativa e mesmo um antídoto contra os aspectos nocivos da globalização. O olhar da poeta está pronto a colher as transformações, as imbricações e mesmo as idiossincrasias entre passado e presente, entre antigo e moderno, em que os elementos de tais oposições binárias nem sempre se harmonizam e onde a contrafação e a homogeneização se inserem de forma sub-reptícia: “O monges na Coreia se vestem de neblina finos trajes cinzentos que o vento vaza. (...) 190

Passageira em trânsito  

Das altas golas emergem as cabeças raspadas lisas como pedras de rio as mãos se ocultam nas mangas mas os pés traiçoeiros entregam tênis de marca.” Seoul 2005 (idem, p. 20) Se é verdade que a viagem hoje perdeu sua aura iniciática, esses poemas nos restituem de novo a magia e a poesia da descoberta e do encontro com outros mundos e culturas. O estranhamento, que experimentamos quando percebemos ao redor perfumes, rumores, sons de línguas e vozes desconhecidas, ajudam a criar as condições para que a poesia se manifeste. O que a autora revela e evidencia não são apenas impressões rápidas de lugares, anotações de hábitos e costumes típicos, instantâneas estacadas de paisagens, mas a densidade do encontro com a vida e com a alteridade, que se imprime em sua sensibilidade e consciência e que representa o verdadeiro objetivo da viagem. Marina nos leva e nos acompanha nessa descoberta do mundo, mesmo que esse mundo seja, em parte, constituído por não-lugares de passagem e dispersão, destituídos de magia e profundidade. Ela se debruça também sobre esses espaços de solidão extrema, em que nos perdemos em meio à massa de gente que corre apressada, com as mesmas perguntas que a humanidade sempre se pôs, sem nenhuma certeza ou resposta. O livro é ainda mais atual se pensarmos que, para além do turismo de massa, que caracteriza o mundo de hoje, o fenômeno dos deslocamentos de inteiras populações, provocados por guerras, perseguições, destruição do ambiente, carestias, conquistou dimensões planetárias. Aprender a conservar, a entender e a utilizar o alfabeto das emoções e do respeito pelas culturas e identidades diversas é a melhor forma de atenuar os traumas das migrações do nosso tempo. 191

  Vera Lúcia de Oliveira

Um outro fator, que atesta sobre a atualidade e a relevância desse livro, é o fato de que o espaço físico e geográfico sofreu nas últimas três décadas, afirma Zygmunt Bauman, uma radical desvalorização do seu conceito e valor. A alta finança internacional, descentrada, extraterritorial, mediada pelo ciberespaço, para poder manejar melhor e com menos escrúpulos o enorme capital de que dispõe, se libertou completa e irresponsavelmente da relação que mantinha com o território e com as comunidades – e das responsabilidades em relação aos mesmos –, esvaziando a importância do lugar físico e dos seres que nele residem, com seus problemas reais. Segregação, separação, exclusão, desintegração são, como vimos, a consequência desse processo. (BAUMAN, 1998) Valorizar o espaço, humanizar o lugar, que é ponto nevrálgico de encontro e intercâmbio entre os homens, como também o não-lugar, onde o ser se anula e perde a sua especificidade, tornou-se uma forma de resistência ainda mais imperiosa e urgente para os poetas. A autora se põe, aqui, voluntariamente, nessa confluência de tantas vias, estradas, prédios e territórios urbanos que querem, de novo, serem habitações, bairros, cidades, países, pátrias, sem fomentar fundamentalismos ou neotribalismos, que apostam em abolir o presente.

Bibliografia AUGÉ, M. Nonluoghi: Introduzione a una antropologia della surmodernità. Trad. D. Rolland, Milano: Eléuthera, 2009 [título original Non-lieux, 1992]. BAUMAN, Z. Dentro la globalizzazione: le consequenze sulle persone. Trad. O. Pesce, Roma-Bari: Editori Laterza, 2010 [título original: Globalization. The Human Consequences, 1998]. BINDE, J. L. “Não-lugares – Marc Augé (resenha)”. Revista Antropos, volume 2, ano 1, maio de 2008, pp. 121-124. COLASANTI, M. Passageira em trânsito. Rio de Janeiro: Record, 2009. _____ Minha guerra alheia. Rio de Janeiro – São Paulo: Editora Record, 2010.

192

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.