Patrimônio adequado Evolução do conceito de patrimônio histórico e confronto entre neocoloniais e modernos

July 23, 2017 | Autor: Daniel Freitas | Categoria: Modernism, Architectural Preservation & Restoration, Patrimonio Cultural, Lucio Costa
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Patrimônio adequado Evolução do conceito de patrimônio histórico e confronto entre neocoloniais e modernos Daniel Medeiros de Freitas

Andreas Hyussen utiliza o termo cultura da memória para descrever o atual e obsessivo consumo por fatos do passado1. Além da transformação da memória em produto de consumo, o autor observa a gradual substituição do privilégio dado ao futuro pelo foco no passado. Observação que contém a inversão de um processo de ruptura temporal que, em diversos autores, aparece como definidora da idéia de modernidade e, por contraponto, ligada à origem do conceito de patrimônio histórico. Tomando o conceito de patrimônio como tema, gostaríamos de investigar as questões ligadas à sua evolução. Neste aspecto, embora este conceito busque se apoiar em critérios de imparcialidade histórica, parece existir uma contaminação mútua entre sua elaboração e a concepção que determinadas épocas têm de sua própria cultura e relação com a história, havendo uma adequação do conceito de patrimônio à demanda de cada período. Por outro lado, a preservação exige de cada período uma sistematização, materializada em critérios e conceitos, capaz não só de revelar, mas também de mapear a mutabilidade das visões da história enquanto disciplina ao longo dos períodos. Na primeira parte, o trabalho busca descrever, ainda que de forma breve e incompleta, a evolução do conceito de patrimônio a partir do enfoque sugerido2. Na segunda parte, iremos detalhar um período que ilustra melhor nossa hipótese, o momento de fundação do SPHAN em 1937 no Brasil. A última parte do trabalho se dedica a formular questões sobre o comportamento do conceito de patrimônio na sociedade da cultura da memória. PARTE I Conscientes do risco de empobrecer o conceito, mas visando construir um objeto compatível com o tipo de histórico que buscamos, podemos considerar que patrimônio histórico é o conjunto de bens que desperta interesse de preservação por vincular determinados valores. Estes valores foram organizados de forma abrangente ainda no século XIX pelo historiador vienense Alois Riegl, que antecipou muitas das questões contemporâneas referentes à definição de patrimônio histórico. Riegl identifica no monumento duas categorias de valor: rememoração e contemporaneidade. Os valores de rememoração são ligados ao passado, divididos em três categorias: valores para a história e história da arte, valores 1 2

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

A estrutura do histórico apresentado se baseou na sistematização formulada por Françoise Choay no livro Alegoria do Patrimônio. Também foram utilizados para tal os artigos Algumas considerações sobre o patrimônio de Leonardo Castriota e O tempo da arquitetura de Carlos A. L. Brandão.

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artísticos e valores de ancianidade ou ação do tempo sobre o objeto. Já os valores de contemporaneidade se ligam ao presente e se referem, sobretudo, ao uso enquanto patrimônio. Todos estes valores, agregados de forma cumulativa ao longo da história, serão a linha a partir da qual ordenaremos a evolução que se segue. Quando Choay3 define monumento em arquitetura, ela observa que, originalmente, o termo designava a intenção da obra em vincular um passado selecionado a fim de torná-lo memorável. Este conceito se situa em um período histórico a que Castriota4, baseado em Benjamin, identifica como o chamado tempo cíclico, onde o passado era utilizado como modelo a se reproduzir. A origem do monumento está, portanto, situada na busca de atribuir significado ao uso ou tarefa do objeto, ou ainda, vincular valor à matéria. Ainda neste aspecto, Brandão5 descreve que a arquitetura monumental representava uma ordem fora da dimensão terrena, fora da história. Uma vez que o conceito de patrimônio histórico depende da noção da ação do tempo, não foi possível o desenvolvimento de preocupações ligadas à preservação dentro do tempo cíclico. O início da modernidade, ainda segundo ordenação cronológica de Castriota, se situa na gradual substituição do conceito de tempo cíclico pelo modelo de progresso linear, onde o futuro se torna o foco, devendo ser construído a partir da análise do passado. Neste período, situado por volta do século XV, Choay descreve valores ligados tanto a preocupações de ordem histórica como ao resgate da beleza clássica perdida. No renascimento, os monumentos clássicos eram a confirmação da autenticidade dos livros e o vestígio de uma antiguidade, separada da experiência do presente, concepção temporal inexistente até a idade média. Pode-se dizer que a distinção entre patrimônio e monumento começa a se delinear quando valores que não estão presentes na concepção original do monumento passam a ser a ele agregados. Outra diferenciação fundamental entre patrimônio e monumento está no deslocamento do primeiro para um tempo passado, diferenciado do tempo presente e separado por perspectiva histórica. O século XVII é a época da ampliação dos campos da história e da arte. Na área da preservação, uma nova comunidade de eruditos se dedica a pesquisas e registros dos vestígios e objetos do passado, atribuindo aos objetos valor documental. Neste momento, o valor atribuído ao patrimônio histórico continua independente de sua intenção em comunicar este valor ou, de forma mais marcante, qualquer objeto passa a portar informação sobre o passado, independente de ser ou não concebido para esta função. As insipientes formas de preservação se materializam, portanto, em extensos inventários e ilustrações de cunho documental dos objetos, através de metodologia próxima às da enciclopédia. O interessante é que este inventário, quando retira o bem de seu contexto tradicional, o converte em

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CHOAY, Françoise. A alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESPE, 2001

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CASTRIOTA, Leonardo Barci. Algumas considerações sobre o patrimônio. Arquiaméria. Sub-tema I. Ouro Preto, 1992.

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BRANDÃO, Carlos A. L. O tempo da arquitetura. Apresentado em palestra na Faculdade de Arquitetura da UFBA. 2001

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modelo a ser seguido, o que afeta não só a postura da preservação e restauração, mas também a visão do passado após as revoluções francesa e industrial. A Revolução Francesa promoveu a destruição dos monumentos históricos e, o impulso contrário visando a preservação, atribuiu novos valores ao conceito de patrimônio. As edificações passaram a abrigar, além de fatos marcantes do passado e confirmação dos ideais de beleza clássica, valores nacionais de união em prol da nação, valores cognitivos da história local, valores econômicos e valores artísticos, nesta hierarquia. A atribuição destes valores coincide com a busca de coletivização do passado e sua preservação. Este novo status do patrimônio também está presente na revolução industrial inglesa, onde a sociedade convive com a brusca inversão de valores tradicionais e novas delimitações espaciais e temporais. Uma discussão fundamental do período é a preocupação com o futuro da arte e do artista na sociedade industrial, baseado no antagonismo entre a razão e criatividade. Neste momento, o papel do patrimônio e o valor a ele associado passa a ser o da representação do olhar do artista criador através da emoção estética. Dois aspectos são determinantes neste deslocamento. O primeiro, o fato de fazer do patrimônio algo mais adequado ao temperamento individual e, por conseqüência, a valores nacionais, adequando o discurso da preservação aos discursos de construção das identidades locais. O segundo, a busca de desvencilhar o conceito de patrimônio da ação do tempo, deslocando o valor histórico para o estético, de certa forma protegendo-o do caráter efêmero e das profundas alterações pelas quais passava a sociedade. Neste contexto, a arquitetura busca retornar a um tempo ideal anterior, oposto à arquitetura industrial. Esta não aceitação e anseio de reverter o processo de industrialização foi um sentimento mais fraco na França que na Inglaterra, diferença de assimilação que criou divergências no modo de lidar com o patrimônio e sua preservação. Enquanto que na França ocorria uma crescente musealização dos monumentos do passado e aceitação das mudanças em curso, os ingleses trabalhavam em direção contrária, visando a reintegração dos antigos monumentos ao cotidiano, com vistas a reconstruir sua ligação com as tradições para promover a reversibilidade da história. Duas correntes de preservação se consolidam neste momento. A corrente de restauração inglesa buscava recuperar a reverência ao passado, sendo os monumentos mais importantes aqueles que ofereciam ligações estreitas com o local. Daí a valorização da arquitetura inglesa gótica, as edificações populares ou vernáculas e, pela primeira vez, os pequenos conjuntos urbanos. Os restauradores desta corrente optavam por práticas antiintervencionistas, onde a marca do tempo era considerada parte da essência do edifício, o que, de certa forma, valorizava o aspecto deteriorado e o ambiente não industrializado e rústico das pequenas vilas, igrejas góticas e ruínas6.

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Uma hipótese a ser verificada posteriormente é a relação dos princípios desta corrente de restauração com o impacto negativo gerado pelas primeiras cidades industriais, cuja inadequação contribuiria para este repúdio ao futuro, e o fortalecimento das políticas liberais, que defendiam a não intervenção do Estado na cidade. Na mesma senda, vale ressaltar

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Noutro oposto, a corrente francesa se voltava para a construção do futuro a partir da compreensão dos elementos do passado. Restaurar era criar um estado completo do monumento, uma arquitetura ideal que nasceria a partir da compreensão dos sistemas construtivos do passado, um resgate do método e da intenção de cada época e não da matéria. O francês Viollet-le-Duc é o teórico mais influente nas intervenções do final do século XIX, prevalecendo na Europa o estilo francês de restauração7. A ruptura com o passado se intensifica nos primeiros anos do século XX a partir da idéia, ou retomada da idéia, de que um novo homem deveria se formar para o futuro, para uma revolução, possível somente através da ruptura total com a tradição. Esta ruptura coincide, não por acaso, com as primeiras cartas internacionais de preservação e tentativas de lidar com a questão de forma global. Para aprofundar a discussão faremos aqui um recorte para o caso brasileiro, onde a arquitetura moderna e a questão da preservação constroem nesta época uma peculiar proximidade. PARTE II No Brasil, a questão da preservação só adquiriu contornos nítidos com a fundação do SPHAN em 1937, mesma época em que duas cartas internacionais homônimas tornariam a preservação e a arquitetura moderna questões globais, a Carta de Atenas de 1931 e a Carta de Atenas de 1933. O processo de colonização no século XVI e o período imperial que se seguiu não tinham a intenção imediata de consolidar ou resgatar a cultura da nova terra, assumindo o caráter funcional do sistema colonial. Noutra direção, mas também avessa a idéia de valorização e restauração das edificações nacionais, a primeira república buscava a construção da identidade nacional, sobretudo baseada na negação do passado colonial e valorização de novos ideais. Somente no início do século XX a idéia de recuperação do patrimônio se associou de forma definitiva ao desejo de construção da identidade nacional, através de duas correntes antagônicas, “neocolonias” e “modernos”. É nosso objetivo verificar porque o conceito dos últimos saiu não só vitorioso, como é considerado ainda hoje mais abrangente e influente que o primeiro. O termo neocolonial designa um tipo de arquitetura de base neoclássica, adepta a modelos e tradicionalmente vinculada às belas artes, que buscava adequar o vocabulário arquitetônico à realidade e identidade local. No Brasil, dois fatores parecem ter contribuído para sua difusão8. O primeiro, o amadurecimento tardio de um discurso do próprio neoclássico de adequação ao local e papel da que, enquanto na Inglaterra a tradição liberal fez com que a restauração tivesse sua origem ligada a movimentos civis e de iniciativa privada, na França ocorre sua ligação a um Estado forte baseado em valores coletivos e públicos. 7

Dentre os teóricos que buscaram conciliar as correntes inglesa e francesa, além do já citado Alois Riegl, o trabalho de Camilo Boito merece destaque. Boito foi autor da primeira tentativa de síntese para construção da teoria crítica da restauração, diferenciando a noção de autenticidade, ou a ação legítima do tempo sobre a matéria, da de legitimidade, ou necessidade de diferenciar a parte restaurada do original. A intenção de Boito foi evitar tanto a restauração fantasiosa promovida por Le Duc quanto a inércia antiintervencionista pregada por Ruskin, principal teórico da corrente inglesa. 8

A utilização do período colonial como estilo nacional também ocorreu em diversos países da América Latina e Central e nos Estados Unidos. Nos países onde havia maior legado indígena também foram feitas releituras do estilo. Para aprofundar ver AMARAL, Aracy (coord.). Arquitectura neocolonial. América latina, Caribe, Estados Unidos. Ed. Memorial. 1994.

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arquitetura em fortalecer a identidade e tradição, o que levou os arquitetos brasileiros do período a buscarem no colonial a particularidade de um estilo nacional. O segundo fator foi a aceitação do estilo pela arquitetura norte americana e crescente influência cultural (até então exclusivamente européia) que o país começava a exercer nos países da América Latina. No relacionamento com a preservação, o neocolonial contribuiu para elaborar as primeiras tentativas de resgate, ainda que de forma desarticulada e pontual9. Porém, esta desarticulação não explica o insucesso das medidas, o que reside, acreditamos, no conceito de patrimônio e sua inadequação à demanda do período histórico. Vejamos alguns fatores que contribuíram para isto. O primeiro, a ligação da cultura a aspectos morais e patrióticos, muitos deles valorizando aspectos raciais da grandeza da raça portuguesa10. Outro fator, a incapacidade de lidar com a idéia de progresso, industrialização e mundialização dos valores, criando um abismo entre a construção da identidade nacional e o progresso que se insinuava. Antes de apresentar a corrente oposta cabe compreender o que estava em jogo e qual o contexto deste embate. Estudando o contexto histórico da época, o historiador Boris Fausto11 nota que uma das preocupações centrais do governo federal associava a idéia de construção de um país progressista e moderno com a construção da identidade nacional. O conflito entre as duas correntes de preservação, era, portanto, parte de um conflito maior, ou seja, a oportunidade de atuação e implementação de projetos no bojo das reformas getulistas. Cavalcanti situa a vitória moderna no momento em que o ministro do governo Gustavo Capanema Decidiu não construir o projeto em estilo “marajoara” de Arquimedes Memória, vencedor do concurso público para a nova sede do Ministério da Educação e Saúde (MES), convidando Lúcio Costa, que, acompanhado de uma equipe “moderna” brasileira e com a consultoria de Le Corbusier, edificou um prédio que se tornou um “clássico” da arquitetura do século XX. Concomitantemente, encomendou a Mario de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, o anteprojeto de criação de um instituto destinado a “determinar, organizar, conservar, defender e propagar o patrimônio artístico nacional.” 12

Esta “vitória” se baseava numa combinação de fatores, dentre os quais a questão da preservação e a definição do conceito de patrimônio histórico têm grande relevância. O conceito moderno de patrimônio começou a ser construído baseado na conjunção de alguns fatores e atuações de uma

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Dentre as ações visando a preservação se destacam os inventários promovidos por José Mariano Filho em Minas Gerais, a atuação de Gustavo Barroso no Museu Histórico Nacional e as manifestações e projetos de Ricardo Severo, Victor Dubugras, Osvaldo Teixeira e Carlos Maul. 10

Gustavo Barroso fez parte do grupo de intelectuais que, em 1932, fundou a Ação Integralista Brasileira (AIB), doutrina que buscava a construção de um Estado forte unificado pelo lema “Deus, Pátria e Família”. Com discurso anti semita e conservador, o movimento ganhou certa adesão popular (cerca de 200 mil em 1937) e combatia tanto o Estado Liberal como os Comunistas. 11

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,2002.

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CAVALCANTI, Lauro. (org). Modernistas na Repartição. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ: Minc-IPHAN,2000. p12.

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brilhante geração de intelectuais13. Mario de Andrade, autor do projeto que originou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), foi talvez, no campo da restauração, o maior responsável pelo deslocamento do passado para o presente das origens da consciência nacional. Defendendo a idéia de que a cultura deveria ser atual e universal, o autor fala da necessidade não apenas de pesquisar e procurar a identidade nacional, mas também de descobrir e, se necessário, construir esta identidade. O conceito de patrimônio busca, portanto, a síntese entre passado e futuro, entre a tradição e a renovação da sociedade. O segundo fator fundamental na construção do patrimônio moderno pode ser reconhecido mais claramente na atuação de Lúcia Costa. Especificamente sobre a arquitetura, Costa discorda do discurso que considera a arquitetura colonial desprezível porque feita por portugueses incultos. Através de estudos in loco e baseados em parâmetros técnicos, o arquiteto defende que a casa portuguesa é adaptada, e esta adaptação advém da utilização de cada elemento sem mentira pelo mestre de obra, baseado no saber popular. Esta maneira de fazer, com exatidão e objetividade técnica, guiado pela beleza e verdade, é o verdadeiro patrimônio colonial e, portanto, a identidade cultural da nação. Lúcio Costa cria, portanto, um conceito de patrimônio ao mesmo tempo capaz de associar a tradição com o discurso contemporâneo, desmistificar a autoridade conferida ao passado e criar liberdade e legitimidade de intervenção nos bens. Com um conceito de patrimônio menos técnico e estético e mais político, foi um terceiro modernista, Rodrigo de Melo Franco, quem garantiu continuidade administrativa à questão da preservação no Brasil. Para ele, a preocupação central deveria ser a garantia da integridade do patrimônio, suas características primitivas e ambiente adequado, e não sua aparência. Preocupado com o contrabando de peças, defendia que o melhor meio de garantir preservação era a partir da educação popular e distribuição do conhecimento. Alguns aspectos parecem ser responsáveis pela proximidade do SPHAN de Rodrigo aos modernos, dentre eles a valorização do caráter inaugural do órgão, o sentimento heróico de começar do zero, e o caráter pedagógico de grande escala. Como observa Cavalcanti foi “através de uma vinculação histórica e de uma vinculação ética”14 que o modernismo se inseriu na cultura brasileira. Retomando a sistematização de valores proposta por Alois Riegl na primeira parte do trabalho, seria interessante construir uma comparação entre os dois conceitos de patrimônio em conflito para melhor compreender como se deu esta vinculação histórica e ética.

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Dentre eles, Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Rodrigo Melo Franco de Andrade e os arquitetos Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, José de Souza Reis, Paulo Thedim Barreto, Renato Soeiro e Alcides Rocha Miranda, todos ligados à “academia” do SPHAN. 14

CAVALCANTI, Lauro. Op. Cit., p21.

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Vimos que os valores, segundo Riegl, se dividem em de rememoração, subdivididos em três categorias, e de contemporaneidade. Vamos começar pelos últimos, os valores de contemporaneidade, situados no uso presente que confere ao objeto a condição de patrimônio. Embora ambas as correntes, neocoloniais e modernos, não possuírem uma distinção clara do valor de contemporaneidade, a diferença fundamental de lidar com este valor está na forma como os primeiros não dissociam o uso enquanto patrimônio do uso a ser construído. Os valores reconhecidos no uso eram os mesmos que a produção arquitetônica almejava. Quando José Mariano Filho afirma: “Procurae accommodar o interesse da vida social de hoje á noção classica do conforto brasileiro”15, ele associa o valor do uso passado a um modelo para futuros projetos. Em direção contrária, os modernos, querendo considerar a nova arquitetura uma demanda do futuro, praticamente anulam o valor de uso do patrimônio edificado. Os valores de rememoração, segundo grupo proposto por Riegl, são subdivididos em três valores. O primeiro deles, a rememoração para a história e história da arte. No discurso de preservação neocolonial parece haver uma sobreposição entre história e arte, fruto do pensamento que considera o passado a única verdade a ser perseguida pela arte do presente. Mesmo quando ocorre a preocupação de preservar um patrimônio como as residências coloniais, sua importância é rechaçada, como fez por exemplo Aníbal de Matos, opondo incultura popular, “sombria e desapropriada”16 às obras eruditas. Este pensamento se inverte nos modernos. No decreto de Mario de Andrade há a diferenciação clara entre valores históricos e para a história da arte, ambos com maior abrangência de bens que o período imediatamente anterior. Mas é em Lúcio Costa que estes valores são colocados no foco da discussão. No momento em que o arquiteto inclui a produção atual na linha evolutiva da arte e da história, ao mesmo tempo aproximando progresso e tradição, o conceito de patrimônio moderno não só legitima as inovações do novo estilo como também possibilita a releitura do passado colonial à luz de novos valores, o que ficará mais nítido na rememoração para a arte. Diante dos valores de rememoração para a arte, ou a condição ímpar do patrimônio enquanto obra de arte, os neocoloniais buscavam associar a identidade do país à vida dos grandes gênios e obras do passado. O objetivo desta concepção se aproxima ao resgate que associamos ao período pós industrial, que é o de opor o valor artístico ao progresso, reforçando o status de verdade conferido ao passado. Isto se torna claro em relação à figura de Aleijadinho, artista brasileiro valorizado pelos neocoloniais pela capacidade de manipular e adequar modelos passados ao caráter nacional, a quem Lúcio Costa toma como arquétipo a ser combatido17. O arquiteto moderno desmistifica a figura de Aleijadinho com

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AMARAL, Aracy. (coord). Op. Cit., p.18.

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Citado em COSTA, Lúcio. Lúcio Costa, registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

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É interessante a existência alguns conflitos dentro do SPHAN que não vieram a tona. No caso de Aleijadinho, os ataques de Lúcio Costa pareciam conviver com a admiração de Rodrigo de Melo Franco pelo artista, cujo maior biógrafo foi o avô de Rodrigo. Esta democracia e convívio de interesses dentro do SPHAN tem papel fundamental na continuidade administrativa da instituição.

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adjetivos fortes, caracterizando sua produção de “soluções forçadas”, “imprevistas” e “desagradáveis” porque obtidas a partir da “emoção do artista” em “delírio”, fruto de uma “volúpia doentia” ou “sofrimento individual”. Opondo a figura de Aleijadinho – magro, delicado, fino e estável – à da arquitetura colonial – calma, estável, simples e essencial – é feita uma reconstrução da imagem do passado, mais adequada ao discurso do futuro modernista. Lúcio Costa anula o valor ligado ao artista do passado e direciona este valor artístico para o coletivo, ou seja, o converte em valor da técnica. O último valor, a rememoração para a ancianidade ou as marcas que o tempo impõe no objeto, é, ainda hoje, o mais negligenciado e, ao mesmo tempo, mais controverso18. Os maiores riscos quando se lida com este valor são a supressão de outros valores associados ao patrimônio, inexpressivos no momento da restauração, mas importantes para o futuro, e o risco de uma restauração fantasiosa, baseada não no que o objeto foi, mas no que esperávamos que fosse. Neste aspecto, há uma proximidade entre o tratamento neocolonial e moderno, ambos buscando resgatar, embora por motivos opostos, a condição original do patrimônio colonial. O caso extremo da atuação moderna é a busca de normatização das construções em Ouro Preto influenciada pelo diagnóstico que apontava para a uniformidade do conjunto histórico a ser restituído. Enquanto os neocoloniais aproximavam arquitetura e restauração através de um ideal baseado na colagem de elementos comuns, os modernos buscavam a construção de um modelo de uniformidade e coerência. Ambos se distanciavam da realidade colonial e, infelizmente anulavam as informações acrescidas ao longo dos séculos XVIII e XIX a este patrimônio. PARTE III O conceito de patrimônio histórico atravessará a segunda metade século XX convivendo com a progressiva abrangência dos bens, do público, da diversidade dos meios de preservação e, na mesma medida, do esvaziamento de sentido dos valores a eles associados. Sobre a capacidade de adequação do conceito ao período, poderia ser demonstrado como, no Brasil, a década de 60 atribuiu valores políticos ao patrimônio, enquanto que, nos anos 70, estes valores foram ligados à idéia de cidadania. O discurso das minorias foi associado à preservação na década de 80, bem como o da exclusão na década de 90. Atualmente, dois valores são associados de forma mais forte ao conceito de patrimônio, o valor econômico e a vinculação ao discurso ambiental. Sobre o valor econômico do patrimônio na sociedade contemporânea, Choay observa que este se insere num projeto maior a que ela chama engenharia da cultura, prática que visa sobretudo multiplicar o número de público e, conseqüentemente, a rentabilidade dos bens. Indústria que produz espetáculo para as massas, baseada em técnicas de 18

A questão geraria uma discussão que não cabe no trabalho. Pode-se dizer que á comum associar a restauração com a reforma do patrimônio ou o retorno à sua condição original, onde o acréscimo ao longo dos anos é considerado ruído que deve ser suprimido, o chamado diradamento, efetuado, no entanto, de forma pouco criteriosa. Na maior parte da literatura que se dedicou ao assunto esta supressão é colocada a critério do restaurador, cujo objetivo é restaurar a unidade da obra. Alguns autores que se dedicam ao tema são Cesare Brandi, formulador dos critérios do chamado restauro crítico, e Ulpiano Bezerra de Menezes, estudioso do papel documental dos artefatos.

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animação cultural e produtora de passividade, homogeneização cultural, exclusão social nos centros históricos, dentre outros impactos negativos. A industria do patrimônio se baseia no princípio de que o valor do bem está em seu diferencial para consumo e capacidade de se vincular a determinada identidade ou originalidade, sendo às vezes difícil a distinção entre um situação de valoração do valor econômico do patrimônio ou a condição de patrimônio enquanto valor de diferenciação do produto. Já o conceito de desenvolvimento sustentável se vincula ao patrimônio baseado na idéia de que a cultura seria a “transformação pelo homem das coisas naturais”19, cabendo à atual geração a garantia de uso de determinado bem às gerações futuras. Por outro lado, a negação do atual sistema de desenvolvimento presente no discurso ambientalista contribuí para a noção, nem sempre verdadeira, de que comunidades e meios de produção do passado são mais adequados ao conceito de sustentabilidade. Retomando Riegl, os valores de remoração e contemporaneidade parecem tomar diversos caminhos. O primeiro destes caminhos, a associação a histórias locais como instrumento de identidade cultural e coesão social, onde a função da memória seria a de criar continuidade de culturas tradicionais. Um segundo caminho é o aumento da vinculação de histórias bibliográficas ou auto bibliográficas, um processo de musealização e medo do esquecimento, possibilitado em parte pelo acesso a mídias e formas de memórias artificiais. Nos dois caminhos apontados, o excesso de informação e a incapacidade destas em comunicar experiência e constituir coerência documental, produzem mais amnésia do que rememoração. O valor de rememoração para a arte cai na mesma regionalização quando não resulta no culto superficial ao gênio individual criador, mais adequado ao contexto do consumo. O discurso vinculado em material promocional recente sobre a preservação no Brasil se baseia no uso de expressões como resgate da originalidade, ousadia, criatividade e diversidade dos artistas do passado. Mesmo o discurso de valorização do ser humano passa por menção a artistas como Aleijadinho e, sintomaticamente, Niemeyer. O ideal contemporâneo busca uma “estética revolucionária e universal”20 capaz de emocionar o “espectador”. A palavra espectador indica bem a intenção de vincular patrimônio à emoção e ao encantamento como valores intrínsecos ao objeto. O valor de contemporaneidade, antecipado por Riegl há mais de um século, só agora começa a aparecer com mais clareza nas ações contemporâneas de preservação. Um dos exemplos mais claros é a discussão em torno da idéia de tombamento de uso de edificações ou áreas urbanas, onde reconhecem-se casos em que o uso de determinada área, vinculado a estruturas que não se enquadravam nas categorias de patrimônio, deve ser protegido. 19

Definição encontrada no documento “Diretrizes para a proteção do patrimônio cultural de Minas Gerais” produzido no ano de 2001 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA. 20

Antônio Ximenes em texto introdutório de MOREIRA, Leide (Coord.). Humanidade no Patrimônio Urbano no Brasil. Um Olhar de Antônio Peticov. Unesco, 2002.

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Apesar da multiplicidade de enfoques possíveis consideramos que a discussão central a ser enfrentada no conceito contemporâneo de patrimônio histórico não está ligada à sua abrangência ou aos critérios e viabilidades de preservação21. A discussão central é o esvaziamento de significado do bem, ou sua incapacidade de comunicação e vinculação de valor. A cultura da memória produz uma quantidade enorme de memórias “ocas” ou, usando o termo de Choay, protéticas. Um exemplo extremo, citado por Hyussen, é a comercialização bem sucedida das memórias musicais de um seleto clube de jazz, o Aerobleu, que teria funcionado na década de 30, mas que nunca existiu além da estratégia de venda. O mais grave é que o exagero desta postura pode ser transportada para a maior parte das políticas de preservação contemporâneas, embora camufladas em discursos que ultrapassam o âmbito da preservação. No campo do patrimônio edificado, por exemplo, não são poucos os casos de construção de espetáculos, efeitos cênicos e reconstrução de passados idealizados, incluindo neste exemplo as edificações emblemáticas do recente planejamento de Curitiba e a estetização dos centros históricos do Pelourinho, Tiradentes e Praça XV de novembro no Rio de Janeiro. A sociedade contemporânea, como a neocolonial e moderna brasileira, continua idealizando no passado o que o futuro não lhe oferece, o que Hyussen chama de “desejo de âncora na instabilidade e fragmentação”. A produção obsessiva por passado demonstrou ser incapaz de contribuir para este objetivo, pelo menos enquanto não conseguirmos apreender os valores associados ao patrimônio histórico. Apreensão inversamente proporcional à transformação do patrimônio histórico em imagem a ser reconstruída e adaptada ao olhar de cada período histórico. A restauração, quando busca critérios capazes de não comprometer o bem para o futuro, talvez ofereça pistas para a possibilidade de construção imparcial do conceito de patrimônio. Ou talvez, esta imparcialidade seja ela mesma uma fantasia que não sobrevive à multiplicidade de enfoques e versões no nosso contato com a história. Nos dois casos, um caminho possível, diante da manipulação do conceito de patrimônio, é a concentração na elaboração dos critérios de valoração, a fim de compreender esta manipulação em bases sólidas, evitando o risco de que a preservação se converta em seu avesso, ou seja, o comprometimento e falsificação dos valores para o futuro. Diante desta imparcialidade, Mario de Andrade afirma em texto sobre uma pequena capela paulista que, diante da busca desiludida de valores e respostas no patrimônio, é preciso “tomar cuidado para que não crie, como a fome criara, nova e oposta miragem”22.

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Sobre a abrangência do conceito, esta nos leva ao aumento quantitativo dos bens, sendo hoje um exercício difícil apontar objetos que não considerados patrimônio histórico. Sobre as políticas de preservação, ocorre também aumento quantitativo, contribuição originada mais do fomento às políticas de turismo e planejamento urbano, do que de uma evolução da disciplina. 22

CAVALCANTI, Lauro. Op. Cit., p.25.

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