Patrimonio e Identidade

September 27, 2017 | Autor: Fernando Magalhães | Categoria: Cultural Studies, Anthropology, Cultural Heritage, Patrimonio Cultural, Antropología
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Os museus de sítio, locais, regionais, bem como os monumentos que se inscrevem na história de uma nação ou de uma região (religiosos, civis e outros), os objectos produzidos pelo artesanato (cerâmica, vidro, têxteis, vime e outros), pela indústria, pela agricultura, pelas artes, etc., constituem-se como meios privilegiados através dos quais se faz a identificação de um povo a um espaço e a um tempo e, portanto, se fabrica a identidade. Da mesma forma, o património imaterial, sejam as canções, as danças, os provérbios, os mitos, as romarias ou as feiras, é um símbolo aglutinador de uma comunidade na medida em que as pessoas o usam como reforço e coesão do “nós” social. Assim se constrói a memória de um povo, de uma aldeia, de uma freguesia, de um concelho, de um distrito, de uma região, de um país. São as imagens do passado, a ritualização da memória e a vivência do presente, ainda que sujeitas sempre à (re)invenção da tradição, que reforçam a ordem social.

ISBN: 978-972-8562-60-1

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Ficha Técnica Título Património e Identidade Organizadores Ricardo Vieira, Fernando Magalhães Revisão Maura Mendes Edição Profedições, CIID / IPLeiria Concepção Gráfica SerSilito-Empresa Gráfica, Lda. Tiragem 750 exemplares Depósito legal 288411/09 ISBN 978-972-8562-60-1 1º Edição 2009 Profedições, Lda. / Jornal a Página R. D. Manuel II, 51 c – 2º andar – sala 2.5 4050 Porto Tel. 226002790 – Fax 226070531 livros@profediçoes.pt http://www.apagina.pt

Agradecimentos Instituto Politécnico de Leiria Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Leiria Jornal de Leiria CARTES – Associação de Autores das Cortes Câmara Municipal de Leiria Grupo Etnográfico Danças e Cantares da Nazaré Bibliotecas Municipais do Distrito de Leiria Rancho Folclórico Rosas do Lena João Delgado Augusto Mota

Introdução Ricardo Vieira e Fernando Magalhães CIID - IPLeiria

Os museus de sítio, locais, regionais, bem como os monumentos que se inscrevem na história de uma nação ou de uma região (religiosos, civis e outros), os objectos produzidos pelo artesanato (cerâmica, vidro, têxteis, vime e outros), pela indústria, pela agricultura, pelas artes, etc., constituem-se como media privilegiados através dos quais se faz a identificação de um povo a um espaço e a um tempo e, portanto, se fabrica a identidade. Da mesma forma, o património imaterial, sejam as canções, as danças, os provérbios, os mitos, as romarias ou as feiras, são símbolos aglutinadores de uma comunidade na medida em que as pessoas as usam como reforço e coesão do “nós” social. Assim se constrói a memória de um povo, de uma aldeia, de uma freguesia, de um concelho, de um distrito, de uma região, de um país. São as imagens do passado e a ritualização da memória, ainda que usando sempre a (re)invenção da tradição, que reforçam a ordem social presente. Efectivamente, «é uma regra implícita pressupor uma memória partilhada entre os participantes em qualquer ordem social. Se as memórias que têm do passado da sociedade divergem, os seus membros não podem partilhar experiências ou opiniões» (Connerton, 1993: 3). Surgem sentimentos mais fortes ou mais fracos de identificação com uma região. É assim também, no caso de Leiria, onde elementos como a fotografia, o cinema, o teatro, o vidro, o património monumental, bem como os objectos afectos a uma região onde o mar e a terra se encontram, têm servido os discursos que fazem a região de Leiria. Com este ciclo de conferências confrontam-se discursos diversos de académicos e outros agentes culturais de Leiria que permitem evidenciar a heterogeneidade de materiais que servem as representações culturais da região. Uma análise e compreensão aprofundada das instituições, museus, processos museológicos, monumentos religiosos, civis e outros, é vital para pesquisarmos como os sentimentos subjectivos de pertença das populações que habitam a região de Leiria se manifestam materialmente.

A legitimação da memória e o processo identitário não são, contudo, pacíficos. Não se trata de um processo passivo. A legitimação e afirmação dos marcadores identitários de uma região passa por negociações, interacções, conflitos e antagonismos vários. Nesta interacção há jogos de poder na reivindicação sobre quem decide, como e o que serve para objectivar uma identidade. A identidade não é, assim, uma coisa acabada, não é uma essência necessariamente materializada no património arquitectónico, monumental, etnológico ou outro. A identidade não é sinónimo absoluto de algo herdado do passado. Esse apego primordialista da busca da identidade leva a um olhar dualista sobre a mesma: ou se tem ou não se tem identidade. Ora, a identidade, como processo de identificação, é dinâmica e é simultaneamente passado (a memória, reactualizada pela preservação dos objectos bem como pela ritualização dos mitos por intermédio das romarias, festas, procissões, festivais de folclore e outros), presente e futuro (o projecto colectivo). Não estamos, portanto, a falar do “carácter único, regional e idiossincrático de Leiria” à semelhança do que fez o antropólogo Jorge Dias para Portugal, em meados do século passado, ou mesmo Jaime Cortesão no seu “Universalismo da Cultura Portuguesa”. O nosso olhar não é o do folclorista que tantas vezes coisifica a cultura de cada espaço em volta de denominadores comuns relativos à habitação, à indumentária, ao património, à gastronomia, etc., encerrando a cultura num passado fossilizado e fechando-se à ideia do projecto que cada comunidade idealiza para si, planifica, e, tantas vezes, concretiza. Para José Mattoso, na sua obra “A identidade Nacional” de 1998 (Gradiva), e retomando o trabalho do psicólogo Eric Erikson, para identificar um objecto é preciso: 1) distingui-lo de qualquer outro; 2) atribuir-lhe um significado; 3) conferirlhe um valor. A identidade é, aqui, também, e antes de mais, um sentimento de pertença, de identificação. Assim, neste modo de pensar, pessoas há que poderão ser culturalmente diferentes e identificarem-se com as mesmas coisas: mesmos símbolos, mesmos ideais, os mesmos centros de poder, etc. Pode haver identidade na diversidade. Identidade não é necessariamente sinal de uniformidade cultural. Identidade é força colectiva, 7

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

criadora também de novos futuros. Novos futuros que, também, não têm que romper necessariamente com todo o passado. Podem, ao invés, readequá-lo a novas conjunturas económicas, novas oportunidades políticas que reconstroem o todo social e sentimento de pertença, de auto e de heteroimagem. A identidade é também relacional. A identidade não é, pois, como foi dito, algo de estático, uma essência única e distinta de todas as outras. A distinção é também uma construção. A diferença com a qual nos comparamos para nos tornarmos fortes é, assim, tantas vezes, criada, para não dizer mesmo inventada. Por isso, como já dizia Barth (2004), e em meados do século passado, a diferença é mais social do que cultural. Estamos, nesta linha, próximos também do que nos diz o historiador Eric Hobsbawm (1983) na sua obra “A invenção da tradição”. Por isso afirmamos reiteradamente que as pessoas e as comunidades não se pensam no vazio. Fazem-no de uma forma relacional. Fazem-no por referência a outrem, no caso presente por referência também ao património dos outros. Mesmo que haja semelhanças materiais, artísticas, monumentais, patrimoniais entre alguns grupos, a verdade é que as comunidades recriam e usam o bricolage identitário para se distinguirem dos outros, com os quais não se querem identificar, combinando de maneira diferente os mesmos símbolos e ícones patrimoniais. Este livro resulta da passagem da oralidade à escrita de um conjunto de conferências que o Centro de Investigação Identidades e Diversidades (CIID) promoveu na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Leiria, entre os meses de Fevereiro e Maio de 2005. O primeiro capítulo que dá pelo nome de Fotografia, Cinema e Teatro em Leiria, tem textos de Luís Mourão e Carlos Alberto Silva, dois animadores e intelectuais da região de Leiria que muito possuem para contar sobre a história do teatro e do cinema em Leiria. O capítulo 2 versa o papel do vidro na construção da identidade da região de Leiria, através dos textos de Emília Marques que pensa o processo das identidades vidreiras como hipótese da passagem de uma cultura local à regional, e de Fernando Magalhães que pensa o vidro enquanto elemento identitário da região de Leiria, nomeadamente a metamorfose do capital económico em capital cultural. 8

O terceiro capítulo é dedicado a pensar a reconstrução do património imaterial dos imigrantes brasileiros em Portugal. É introduzido por Cristóvão Margarido que mostra que as dimensões objectivas condicionam mas deixam um campo em aberto para cada imigrante reconstruir o seu self na trajectória social. Através do estudo de algumas trajectórias sociais e de alguns casos concretos que enformam diferente modelos de ser imigrante entre a cultura de origem e a cultura de partida, Ricardo Vieira e José Trindade, em consonância com um documentário do CIID realizado com imigrantes brasileiros em Leiria, apresentam alguns ideais tipo para desconstruir a ideia homogénea de cultura dos imigrados. No património monumental, 4º capítulo desta obra, surgem-nos três textos diversos no tema e no enfoque, de Saul António Gomes, professor da Universidade de Coimbra, de Dina Alves e de Fernando Magalhães, professores do Instituto Politécnico de Leiria, mas que têm em comum a análise de como o património monumental serve os discursos de construção de uma identidade regional. Finalmente, o 5º capítulo, denominado “Património Cultural: A Terra, o Mar, Camponeses e Pescadores”, apresenta textos de Ricardo Vieira, Acácio de Sousa, José Travaços dos Santos, Fernando Barqueiro e José Trindade, que oscilam entre a análise da comunidade como construção cultural e a comunidade como construção social no sentido da reconstrução resultante do jogo dialéctico entre os de dentro e os de fora (Barth, 2004).

Referências bibliográficas

BARTH, F. (2004). “Temáticas permanentes e emergentes na análise da etnicidade”, in VERMEULEN, H. e GOVERS, C. (2004). Antropologia da Etnicidade: Para além de “Ethnic Groups and Boundaries”, Lisboa: Fim de Século, pp. 19-44. CONNERTON, P. (1993). Como as sociedades recordam, Lisboa: Celta. HOBSBAWN, E. (1983). The Invention of Tradition, Cambridge: Cambridge University Press.

FOTOGRAFIA, CINEMA E TEATRO EM LEIRIA

Teatro e Cinema em Leiria Luís Mourão Professor e Encenador

Gostava de conseguir ser muito breve e, ainda assim, dar-lhes uma ideia relativamente clara do que penso sobre a situação em que se encontra hoje a prática de Teatro em Leiria. A cidade, por si só, contava no início da década de oitenta com mais de duas dezenas de profissionais de Teatro. Hoje, vinte anos depois, creio que sobrevivem da prática profissionalizada da arte duas pessoas1. O que é que aconteceu? Que ensinamentos podemos retirar para dar consistência ao discurso presente e poder esboçar caminhos no futuro? Deixem-me partilhar convosco duas ou três coisas que aprendi ao longo destes anos. No início da década de oitenta, Leiria era ainda uma pequena cidade provinciana onde nada ou quase nada acontecia. No final da década a situação era diferente — a cidade era agora, de repente, uma cidade média onde o crescimento do tecido urbano e da população residente mais do que duplicou. Uma cidade média integrada, ainda por cima, por força das circunstâncias numa rede imensa de cidades europeias, mas onde nada ou quase nada acontece2. Falo da cultura nas suas múltiplas manifestações e do Teatro em particular.

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Na cidade e em regime de exclusividade suponho que só o Pedro Oliveira e a Vitória Condeço, de “O Nariz – Teatro de Grupo”, continuam a trabalhar. Acontece em contraponto, embora de forma irregular, uma quantidade apreciável de manifestações que quase-cultura. Quase-arte, frequentada por quase-público e executada por quase-artistas. Não posso deixar de vos remeter para o aprofundamento desta noção fundadora de “quase-arte” e dos seus desdobramentos. Dmitry A. Leontiev tem um texto de referência nesta matéria com o título “Funções da Arte e Educação Estética” publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian na sequência de um ciclo de conferências realizado em 1999: Fróis, João Pedro (Coor.), Educação Estética e Artística: Abordagens Transdiciplinares, Lisboa: FCG – Serviço de Educação e Bolsas, 2000, pp. 129 a 145

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Pelo meio ficaram as tentativas, os projectos, os sucessos e insucessos de uma quantidade apreciável de pessoas ligadas à prática teatral. Todo o saber-fazer acumulado ao longo desses anos, todos os materiais e estruturas laboriosamente construídos ou sacrificadamente adquiridos foram irremediavelmente desbaratados. Não ficou cá nada, ou quase nada. É exactamente neste aparente contra-senso que radica em boa parte este “estado de coisas”. Nunca se traçou, nem de perto, uma política local de intervenção cultural. O poder local contou sempre com as consequências mais ou menos inconscientemente previsíveis do processo de “enchimento” da cidade como motor de substituição da sua insubstituível responsabilidade. Trabalhouse sempre, e continua-se a trabalhar ainda hoje, sobre a ideia errada de uma possível auto-regulação por inércia. Deixo-vos só três das várias ideias que sustêm, declaradamente, ou não, esta atitude. A primeira é a de que o crescimento da cidade, e o consequente desenvolvimento de uma média e pequena burguesia urbana levaria ao desenvolvimento de “estilos de vida” correspondentes — também no domínio do consumo cultural — sem outra razão que não fosse o simples facto de coexistir no mesmo espaço urbano. Não foi, não é assim. O público de cultura — privado entre outras coisas de mecanismos de identificação e afirmação que só são adquiridos por repetição; “consolado” por eventos ocasionais — não aumentou em termos proporcionais3. A segunda ideia é a de que o aumento dos índices de escolarização da população, uma realidade indesmentível na cidade de Leiria, se traduziria em maior abertura e participação nos eventos culturais, isto é, seria por si só condição suficiente para aumentar os níveis de procura de satisfação em termos de consumo de arte. Deveria saber-se bem de mais que não é assim4. Pelo contrário, se existe público adulto potencial que exige con3

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Talvez até tenha diminuído como parecem apontar os dados de frequência dos espaços de teatro na década de oitenta, na cidade e até alguma tendência de redução de espectadores em relação aos festivais. Não conheço, porém, nenhum estudo sobre o assunto e a afirmação é meramente intuitiva (mas comummente partilhada, devo dizer). Sobre esta questão vale a pena ler, por exemplo: Costa, António Firmino da, Machado, Fernando Luís e Almeida, João Ferreira de Almeida, “Estu-

Teatro e Cinema em Leiria

tinuidade de trabalho e intervenções específicas é exactamente aquele que se encontra nas escolas do ensino superior. A terceira ideia errada não diz respeito ao público mas aos produtores de cultura. Sobretudo, permitam-me que sublinhe sem ignorar outras vertentes, aos artistas profissionalizados que desenvolvem o seu trabalho nos diversos tabuleiros das chamadas artes performativas5. A ideia errada, dizia-vos eu, é a de que o impulso voluntarista dos agentes criadores conjugado com a procura espontânea dos novos cidadãos atraídos por um impulso não menos incompreensível e visceral de consumo, bastaria, de per si, para manter e alimentar uma rede profissionalizada de oferta de eventos, uma rede consolidada e produtiva6. É evidentemente

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dantes e amigos — trajectórias de classe e redes de sociabilidade” in Análise Social, nº 105-106, 1990, pp. 193-221; Nunes, João Sedas e Duarte, Maria Paula, “Usos do tempo e gostos culturais” in Pais, José Machado (coord.), Práticas culturais dos Lisboetas, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 1994; Monteiro, Paulo Filipe, “Os Públicos dos teatros de Lisboa: primeiras hipóteses” in Análise Social, nº 129, 1994, sobretudo pp. 1236 a 1238; Silva, Augusto Santos e Santos, Helena, Prática e Representação das Culturas: um inquérito na Área Metropolitana do Porto, Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 1995; Lopes, João Teixeira, A Cidade e a Cultura – Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas, Porto: Afrontamento, 2000 As artes performativas não são um corpo estável mas é talvez consensual permitir que enquadrem as manifestações artísticas que se concretizam frente a espectadores vivos e não de outra forma: desde as bandas de garagem, às performances, à dança, ao circo ou ao teatro. Os meios, técnicos e humanos, que mobilizam são, em qualquer dos casos, sempre relativamente avantajados. Falo de estruturas profissionalizadas porque é disso que me interessa falar. E, também, porque são elas que podem verdadeiramente, por norma, notem bem — por norma, ser referidas como factores de transformação real, com efeitos duradores e de referência. Sabemos que nem sempre assim é e sabemos de igual forma que o trabalho criador dos não profissionalizados é vital, muitas vezes do ponto de vista estritamente da renovação estética ou artística e ocasionalmente do da renovação de relações e práticas. O vazio das políticas locais em material cultural tanto diz respeito a uns como a outros, obviamente. As necessidades é que são diferentes. Mas este não é o local nem o tempo para aprofundar estas questões. Ao poder político local restaria, portanto, esperar para ver e pouco mais. Os apoios pontuais a esta ou aquela iniciativa, a este ou aquele evento cultural não são, na realidade, mais do que parte activa nesse acto de “expectativa de auto transformação”. A única excepção diz respeito à intervenção junto das escolas dos níveis mais baixos de escolarização onde se afirma o discurso da formação de públicos futuros e onde, sobre essa ideia, se

não só uma atitude sem fundamento mas também uma ilusão perigosa que sempre que falha, e falha sempre, não conduz, ou raramente conduz, à inversão de uma política cultural no sentido da sustentabilidade das práticas artísticas locais mas às mais variadas tentativas de desculpabilização e de “remedeio”7. O que não se percebe desde logo é os conjuntos de produtores culturais como objectos empresariais. Desculpem-me a linguagem mas é disso que se trata — empresas culturais que vivem do produto do seu trabalho por oferta a um público consumidor. A natureza particular do produto e as peculiaridades das instituições culturais não invalidam este facto. São estruturas criadoras de postos de trabalho8 que reforçam fortemente a imagem e a confiança do tecido empresarial local e que cumprem funções nomeadamente de valorização do local, do regional e do nacional; de estímulo à participação cívica e de afirmação das multifunções de cidadania e constituem-se ainda como mecanismos essenciais de compensação e valorização de

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foi desenvolvendo a intervenção consequente — desigual mas coerente. Mas nem por isso esse momentâneo assumir de responsabilidades pela autarquia, com a compra de alguns espectáculos, deixa de ser enquadrável na atitude geral de “política cultural quase zero”, além de ter sérias dúvidas sobre a sua eficácia quando não integrada numa política de públicos e espectáculos mais vasta. Mas esta é, mais uma vez, outra questão. Recordo-me bem da desastrosa intervenção da então Secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia (nesse tempo Patrício Gouveia), em finais da década de oitenta, junto aos grupos de Teatro do Porto, quando constatada uma situação de desfuncionamento se optou não pelo estímulo (reforço de apoio; ajuda em encontrar outras fontes de financiamento; efectivação das delegações regionais como verdadeiros centros de recursos e outras tantas soluções que se alinhavam em cima da mesa) mas pela proposta de juntar. Juntar, pura e simplesmente, pequenas estruturas diferenciadas (e fortemente diferenciadas) em grandes estruturas, então sim, financiadas pelo poder central. O Porto ficou praticamente sem grupos de Teatro — ou melhor, num primeiro momento, ficou mesmo sem nenhum grupo de teatro. Aliás, os efeitos destruidores dessa decisão ainda hoje, mesmo depois dos impulsos, de esperança e financeiros, da Capital Europeia da Cultura, são bem visíveis no tecido de criadores teatrais da cidade. De forma directa mas, evidentemente, sobretudo indirectamente. O seu contributo à renovação do tecido empresarial genérico e particularmente às indústrias do turismo e lazer e à promoção de produtos para exportação tende a ser menosprezado excepto em situação de necessidade — que é uma forma, digna de ser estudada, de desresponsabilização e incompreensão da realidade (mesmo aquela onde se movem). É, em última análise uma manifestação pura de pouca inteligência. 11

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

um saber-fazer fortemente especializado, promovendo a sua fixação e o seu desenvolvimento9. Os Grupos de Teatro (mas, claro está, não só os grupos de Teatro) quando integrados numa política cultural local coerente são instrumentos fundamentais de promoção da auto-estima dos colectivos locais e de valorização dos índices de literacia cultural das populações. E são precisamente esses factores de elevada auto-estima e de níveis razoáveis de literacia que se hão-de constituir como pilares da construção de um público estável, interessado e estimulante. O contrário, concordarão comigo, nem sequer faz sentido. Nem é preciso dizer-vos que quando as ideias que sustêm uma política são erradas a política desenhada só pode ser gritantemente errada. E é pena, mas é verdade, que quase sempre só nos apercebamos disso quando de vez em quando, como aqui, fazemos as contas.

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De mais do que uma forma é a afirmação da recusa da substituição (repito, substituição) de uma política local substantiva pelo prémio camarário, pelo festival ocasional ou, tanto quanto me parece a 30 quilómetros de distância, a fantástica ideia da Câmara Municipal da Nazaré de importar criadores para darem substância ao seu teatro municipal — a ideia de facto não é nova mesmo entre nós e não é futurismo afirmar que tenho a certeza absoluta que sei como vai acabar, mais tarde ou mais cedo.

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O Teatro em Leiria e na região Carlos Alberto Silva Educador e Animador Cultural

As origens mais remotas da actividade teatral em Leiria são tão misteriosas como no resto da província. Isto porque os registos mais antigos que se conhecem se reportam ao século XIX, como nos esclarece João Cabral, no seu livro «O Teatro Amador em Leiria». Durante este último século e meio, vários foram os espaços da cidade adaptados a esse fim, e várias as personalidades e grupos de cidadãos que se dedicaram quer à concepção e apresentação de criações teatrais, quer à viabilização de espectáculos de companhias que por aqui passaram. Entre esses espaços, o destaque vai, naturalmente, para o Teatro D. Maria Pia, por ter sido o primeiro edifício que se sabe ter sido construído expressamente para a actividade teatral e afins. Inaugurado em 1880, como resultado do empenhamento de um grupo de leirienses, esta sala durou quase 80 anos e teve uma actividade assinalável no domínio do teatro, até aos anos 40, altura em que o celulóide veio conquistar as preferências dos espectadores locais. Foi demolido em 1958, em parte devido ao seu mau estado de conservação, na ambição de se construir um edifício maior e mais moderno. Depois de várias peripécias, acabou por ter continuidade no Teatro José Lúcio da Silva. Mas isso é outra história, em que o cinema leva a palma. Hoje, Leiria tem já uma oferta de espaços para as artes do espectáculo bastante variada, como o Teatro Miguel Franco, o Auditório do IPJ, os do Orfeão de Leiria, o do Te-ato, para além de diversas instituições públicas e privadas. Quanto às personalidades que não podem deixar de ser referidas, o destaque vai para Miguel Joaquim Leitão, um fervoroso adepto da arte teatral, que se envolveu activamente, durante décadas, na dinamização de diversos projectos locais, entre eles o do próprio Teatro D. Maria Pia, de que foi um dos mais activos impulsionadores.

O seu nome foi lembrado por vários grupos teatrais, que o assumiram como patrono, o último dos quais, o Teatro Miguel Leitão, de que fizeram parte, por exemplo António Campos, Miguel Franco, Joaquim Manuel (Quiné) e o próprio Dr. Augusto Mota, aqui presente. Uma boa parte da história que aqui evocamos é caracterizada pelo envolvimento de uma elite ilustrada na produção teatral, com um público selecto a animar as plateias e algum apoio popular. É sobretudo a partir de 25 de Abril de 1974 que se assiste a uma verdadeira explosão da dinâmica teatral, com o surgimento de largas dezenas de grupos - na cidade, no concelho e no distrito. Só a título de exemplo, no Festival de Teatro Amador do Distrito de Leiria, promovido pela Casa da Cultura da Juventude de Leiria, no âmbito do antigo FAOJ, participaram, entre 1979 e 1987, mais de quarenta grupos diferentes, com uma programação anual com a 10 a 15 peças novas, em cada uma das suas sete edições. E isto é apenas uma pequena amostra. Em Junho de 1982, a revista Debate, da mesma Casa da Cultura, dá conta da existência de 16 grupos com espectáculos montados e mais 10 em fase de ensaio. E a lista está longe de ser exaustiva. Por outro lado, os anos 80 marcaram uma nova etapa, com o aparecimento de grupos profissionais e semi-profissionais, como o TELA - Teatro Experimental de Leiria, o Teatro da Columbina, o Teatro das Quatro Estações (em Leiria) e o Teatro da Rainha (nas Caldas da Rainha). Foram grupos de média duração que sobreviveram enquanto houve condições favoráveis ao nível da política cultural nacional, até ao período dos governos de Cavaco Silva. Todos acabaram por se extinguir no meio de grandes dificuldades, ou por se deslocar, como foi o caso do Teatro da Rainha, cujo elenco rumou a Évora. Mas a cidade e a região não ficaram sem teatro, pese embora o abrandamento da dinâmica grupal. Alguns projectos sobreviveram e sedimentaram-se ao longo destes últimos 20 a 30 anos, por vezes sob a asa protectora de vetustas colectividades como o Orfeão de Leiria ou o Ateneu. Continuam a animar a cena leiriense os grupos Te-Ato, O Nariz e o Teatro do Ateneu de Leiria, entre outros. Em Pombal, o Teatro Amador de Pombal continua vivíssimo, 29 anos depois da 13

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

sua fundação, já com os filhos dos fundadores a tomar o lugar dos pais. Na Marinha Grande, o Teatro do Operário tem uma história idêntica. E há outros mais, que seria fastidioso referir aqui. Alguns grupos evoluíram, acompanhando o percurso particular de determinadas pessoas. O actual Te-ato foi inicialmente o TEAR-TAC, Teatro Amador das Cortes e depois o TEAR-TAAL, Teatro Amador do Ateneu de Leiria. João Lázaro foi e é o responsável. Também Joaquim Manuel (Quiné) tem mobilizado e dinamizado grupos sucessivos, desde que veio para Leiria, nos anos 60. Há também sinais de reactivação de antigos grupos, um pouco por todo o lado. Em Óbidos, por exemplo, ou nas Caldas da Rainha, para onde o Teatro da Rainha voltou em 2002. Por outro lado, alguns grupos novos, embora por vezes efémeros, têm surgido nos últimos tempos. E, na minha opinião, isso é em parte resultado da influência dos festivais, que têm apostado em estratégias inter-concelhias e de descentralização territorial, levando o teatro até às aldeias mais afastadas da região. O destaque vai para o Festival de Teatro da Alta Estremadura e para o Festival ACASO que, grosso modo, abrangem os concelhos de Pombal, Leiria e Marinha Grande, mas não só. Continua a haver, também, festivais de teatro amador, por exemplo, por mão do INATEL. E, a partir do exemplo da Câmara Municipal de Leiria, os grupos de teatro escolar têm prosperado com o incentivo de festivais próprios, nomeadamente aqui e em Pombal, com grande adesão por parte das escolas. Um outro género particular tem ganho uma expressão inusitada na região: o teatro de marionetas. A companhia S. A. Marionetas, de Alcobaça, é a mais expressiva nesta área e a responsável pela realização do festival «Marionetas na Cidade», já com sete edições concretizadas. Já as Câmaras Municipais de Leiria, Marinha Grande e Pombal se haviam lançado, a partir de 1998, na realização de um festival do género a Semana das Marionetas, que se alargou a outros municípios, mas depois se fragmentou. Também a dramaturgia de autores locais marca presença ao longo destes cerca de 150 anos. Pelo menos desde 1867, com as peças de José Luís do Souto, passando pela opereta «Alda», de 1895, da autoria de João Pereira Gomes e José de Oliveira Zúquete, até à actualidade, quase uma centena de textos dra14

máticos de vários autores foram escritos e publicados, a maioria deles representados em palcos leirienses. Miguel Franco terá sido o autor que maior projecção conseguiu, com o seu «O Motim» a ser representado pelo Teatro Nacional D. Maria II. Curiosamente, a última peça em que representou, numa encenação que o TELA fez em sua homenagem, em 1986. Mas, nos dias de hoje, o exemplo do Luís Mourão é igualmente merecedor de destaque, já que as suas peças, cuja qualidade é amplamente reconhecida, são representadas de norte a sul do país. Muito mais haveria a dizer sobre este assunto, mas dado o espaço concedido, vou ter que me limitar a este breve apontamento. Espaços, grupos, textos e festivais: são estes os eixos principais para a manutenção de uma dinâmica de produção e difusão teatral, condições que, com alguns altos e baixos, têm sido preenchidas na nossa região.

VIDRO E IDENTIDADE DA “REGIÃO” DE LEIRIA

O Vidro na Região de Leiria Apontamentos fotográficos

Foto 1 Entrada da fábrica de vidro Jasmim Glass Studio, Marinha Grande

Foto 2 Peças de vidro a cores – loja Jasmim Glass Studio, Marinha Grande

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 3 Peças de vidro a cores – fábrica de vidro Jasmim Glass Studio, Marinha Grande Fonte: CIID

Foto 4 e 5 Trabalhando o vidro – fábrica de vidro Jasmim Glass Studio, Marinha Grande Fonte: CIID

Foto 6 Galhetas Unidas – Testemunho antigo do Vidro na Marinha Grande (Século XVIII)

Foto 8 Vaso comemorativo (Anos 30/40) Fonte: Museu do Vidro da Marinha Grande

Fonte: Museu do Vidro da Marinha Grande

Foto 7 Caravelas Portuguesas (Anos 30/40) Fonte: Museu do Vidro da Marinha Grande

Identidades vidreiras: da Marinha à região?1 Emília Margarida Marques Antropóloga – FCSH - UNL

Boa tarde! Gostava, em primeiro lugar, de agradecer ao projecto Identidade(s) & Diversidade(s) o convite para estar hoje aqui. Devo dizer que, tal como os colegas que me antecederam no uso da palavra, também já estou com a cabeça a fervilhar de ideias, há muita coisa para dizer a respeito de vidro e identidade. Há muitos dados e reflexão já disponíveis mas, como não temos muito tempo, gostaria de me cingir ao tema do debate: o vidro e a identidade da região.

O que é a identidade? Talvez possamos pensar a identidade como uma dinâmica de práticas e representações de auto e hetero definição. Dinâmica porque é um processo social e, como tal, histórico. (A sociedade existe no tempo e a história é feita por pessoas, logo, socialmente; falar de história e de sociedade vai quase dar ao mesmo.) A identidade não é, portanto, um desenho acabado e estático, antes é movimento, como um filme – mas um filme sempre em rodagem. Não é uma essência, i.e., um traço inerente, consubstancial a determinado grupo: actualiza-se, transmite-se, aprende-se, modifica-se, constrói-se – em miríades de encontros e desencontros entre as pessoas e entre os grupos sociais. Dinâmica de práticas e representações, porque se faz de ideias, narrativas, discursos, modos de ver – mas também de comportamentos, actos, maneiras de fazer isto ou aquilo. Práticas e representações de identidade conjugam-se entre si: por exemplo, a maneira como alguém representa a sua pertença a determinado 1

O presente texto deve ser entendido apenas como registo de uma intervenção oral, tendo sido elaborado a partir da transcrição da respectiva gravação áudio.

estrato social pode influenciá-lo na escolha de uma actividade de lazer; por outro lado, uma determinada prática surgida no seio de um grupo social (por exemplo, um gesto técnico, ou um objecto) pode ser trabalhada por esse grupo em termos de identidade, pode vir a adquirir um valor identitário. Finalmente, práticas e representações de auto e hetero definição porque nos dizem (e nos servem para dizermos) quem somos; e quando nós dizemos quem somos estamos também a dizer que somos distintos dos outros e que esses outros são de outras maneiras que não a nossa. Em face disto, o que é que se pode entender, então por identidade vidreira marinhense? Há na Marinha Grande, evidentemente, várias formas de as pessoas se identificarem enquanto marinhenses, situando-se cada um face a essas narrativas em função do seu percurso e lugar social. Mas entre todas elas avulta um discurso e algumas práticas que constroem uma associação indissolúvel e identitária entre a Marinha Grande e a sua indústria vidreira: a Marinha Grande é a terra do vidro, existe tal como a conhecemos graças à presença do vidro e, reciprocamente, os marinhenses são vidreiros. Esta construção resulta de dois processos interactuantes, que se desenrolam já ao longo dos duzentos e cinquenta e tal anos de existência da indústria vidreira da Marinha Grande. Por um lado, o processo de constituição do grupo vidreiro, no sentido de grupo sócio-ocupacional: os vidreiros enquanto grupo social e não só enquanto pessoas cuja profissão é trabalhar o vidro. Por outro lado, o processo, que interactua com este e lhe é paralelo no tempo, de estabelecimento de uma identidade (no sentido lógico, xy) entre as condições de marinhense e de vidreiro – nós somos marinhenses, logo, somos vidreiros – e que se consubstancia na célebre frase “na Marinha Grande, quem não sopra já soprou”. Gostava de comentar que, se muitas vezes as frases deste tipo (ditos, provérbios), são de autoria indefinida e nos parecem vir nebulosamente da noite dos tempos, neste caso isso não acontece: a origem da frase está identificada e sabemos que surgiu por volta de 1945. Aliás, a fórmula não é exclusiva da Marinha Grande. Por exemplo, em Tavarede, perto da Figueira da Foz, há uma intensa actividade teatral e lá costuma-se dizer que “quem não representa já representou”. (De resto, há mesmo ligações muito interessantes entre Tavarede e Marinha Grande, porque 17

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

no âmbito das actividades culturais oposicionistas, durante a ditadura, veio muitas vezes à Marinha o grupo de teatro de Tavarede.) Mas regressando ao dito “quem não sopra já soprou”, quem o cunhou foi o então presidente do Sindicato Vidreiro, parafraseando (segundo registou, na época, o periódico Voz da Marinha Grande), o ditado nazareno “quem não rema já remou” (outro exemplo da mesma fórmula). Nesta altura, o presidente do Sindicato era um oposicionista infiltrado na estrutura corporativa – o que não é despiciendo, como podem calcular, para a interpretação da frase em causa. Mas regressando aos dois processos interactuantes de que estava a falar. O primeiro processo – a constituição dos vidreiros enquanto grupo social coeso, com a sua autonomia e capacidade de se reproduzir no tempo – resulta, em primeiro lugar, da raridade inicial do saber técnico vidreiro na Marinha Grande, trazido sobretudo por estrangeiros, que vieram para a Marinha trabalhar na primeira manufactura. Houve necessidade, para que a indústria permanecesse, de que esse saber técnico se desenvolvesse e se reproduzisse: era preciso criar novas gerações de vidreiros. Ora, o que aconteceu foi que esse saber estava, quase em exclusivo, nas mãos dos próprios executantes. Por características que têm a ver com o material, com as técnicas disponíveis para o trabalhar e com aquilo que dele se pretende obter, é obrigatório que o executante tenha capacidades de avaliação do estado da matéria-prima (o qual se modifica rapidamente ao longo do processo de fabrico) e de decisão quanto à sequência desse processo. Portanto, não é possível “taylorizar” completamente a indústria do vidro, no sentido de separar a execução da decisão. Aquele que está a executar é que tem que tomar essas decisões, no momento. Sendo, assim, detentores de um saber indispensável à marcha da indústria, os vidreiros puderam construir autonomamente os mecanismos da respectiva transmissão e, consequentemente, os mecanismos da sua reprodução social (reprodução social do saber e reprodução social dos vidreiros enquanto grupo), puderam constituir-se como um grupo operário qualificado – não porque aquelas coisas sejam difíceis de saber e de fazer (que até são, e de que maneira, para um leigo!) mas porque são eles que detêm aquele conhecimento: é vidreiro que ensina vidreiro e não engenheiro que ensina vidreiro. 18

A propósito dos mecanismos sociais de produção e reprodução desse conhecimento técnico, podíamos falar do chamado frasco do vidreiro (já hoje aqui mencionado), que é um frasco achatado para pôr líquidos. (A propósito, há também uma forma dita vidreira de o utilizar, comendo as sopas com a colher e prendendo o frasco nos dedos – o que permite, com uma só mão, levar à boca alternadamente a colher e o frasco, enquanto a outra mão segura o recipiente das sopas; é preciso ver que durante muito tempo as fábricas não tiveram refeitórios, os operários sentavam-se a comer sem mesa.) Mas o frasco do vidreiro tornou-se também um objecto emblemático dos mecanismos de reprodução social do grupo: quando o aprendiz começava a tornar-se vidreiro, o mestre fazia-lhe um frasco, assinalando o facto de que ele estava a progredir na profissão. Por outro lado, volta e meia os vidreiros faziam frascos para seu próprio uso. Num e noutro caso, em que são utilizados os meios de produção da empresa, há por parte dos vidreiros uma apropriação do seu trabalho, que em termos materiais é mínima mas em termos simbólicos é forte. É como se dissessem: “sou eu quem aqui trabalha, eu é que detenho a técnica, logo, também sou dono disto”. Gostaria de vos falar, ainda, dos “dez minutos”, que são uma situação institucionalizada de aprendizagem no interior da equipa vidreira de trabalho. Trata-se de uma prática muito antiga, que ainda hoje acontece muitas vezes. A obragem (como se chama à equipa de trabalho vidreira) é fortemente hierarquizada (hoje menos), encontrando-se no topo o oficial. A certa altura, cerca de dez minutos antes de acabar o trabalho, o oficial retira-se e todos sobem um grau na escala (o 1º ajudante passa a oficial, o 2º ajudante a 1º ajudante, sempre assim), para treinarem as competências que lhes serão necessárias quando, efectivamente, forem promovidos. Evidentemente, a taxa de rejeição, por defeito, dos objectos fabricados neste período de aprendizagem tende a ser mais elevada do que quando o oficial está presente. No tempo em que se ganhava à peça, isto significava que os “10 minutos” eram um tempo roubado ao salário e consagrado à reprodução social: os vidreiros pagavam, por assim dizer, para manter no interior do grupo o domínio do conhecimento técnico. É importante notar que não há neste processo determinismos técnicos: não foi por o vidro ser difícil de trabalhar que as coisas aconteceram assim; foi pelas circunstâncias particulares em que a

Identidades vidreiras: da Marinha à região?

indústria do vidro evoluiu na Marinha Grande. Noutros contextos em que se trabalha o vidro não aconteceu do mesmo modo. No caso marinhense, toda a complexidade associada ao processo técnico foi trabalhada pelos vidreiros – porque o que puderam fazer num determinado contexto histórico – no sentido da sua qualificação e autonomia enquanto grupo executante. Paralelamente à construção dos vidreiros enquanto grupo social, decorre o processo de construção de uma identidade marinhenses/vidreiros, aquele que resulta numa frase como “na Marinha, quem não sopra já soprou”. De um ponto de vista estatístico, os vidreiros propriamente ditos, aqueles que “sopram” o vidro, que trabalham junto ao forno, não são todos os marinhenses. Nunca o foram, mesmo quando a indústria do vidro era a actividade económica predominante – até porque as fábricas tinham então grandes sectores de decoração e acabamentos, empregando muita gente. No entanto, dá-se um fenómeno de extensão, que um sociólogo francês, Marcel Maget, designou por “grupo co-activo”. Existe uma actividade económica importante, de grande relevo, numa determinada localidade – e o conjunto da população tornase-lhe co-activa, ajusta-se, molda-se àquela actividade, tanto em termos de práticas como em termos de representações. Portanto, no caso marinhense, embora a maior parte das pessoas nunca tenha soprado coisa nenhuma, embora não sejam efectivamente vidreiros, assumem-se como tal, de modo mais ou menos directo, no seu discurso de identidade: i.e, na maneira como se auto definem incluem a indústria do vidro, o penoso trabalho à boca do forno, a perícia dos vidreiros, a sua capacidade reivindicativa, etc. (tudo isto em combinações diversas, consoante o lugar social de cada um em cada momento). Um aspecto bastante interessante – e que permite suportar interpretações como as que tenho estado a apresentar – é ser possível seguir a elaboração deste discurso ao longo do tempo, através dos documentos escritos que ficaram: imprensa local, autores locais, documentos da administração pública e da própria fábrica Stephens desde o séc. XVIII, etc.. Evidentemente que este discurso não se elaborou apenas por via escrita, mas há também elementos muito sólidos que indicam uma intertextualidade grande do registo escrito e do registo oral: muitos textos escritos fixam elementos recolhidos do discurso oral – ao

mesmo tempo que funcionam como suporte prestigioso para novas elaborações orais. Em tudo isto, há um aspecto fulcral para o tema do nosso debate, e que é este: a Marinha Grande vidreira constrói-se por diferenciação relativamente à área circundante. À volta temos povoações agrícolas, um ou outro pólo de actividade piscatória, alguma silvicultura – e no meio de tudo isso a Marinha destacavase como vila industrial isolada (tratando-se, ainda por cima, de uma indústria com as características de espectacularidade que vimos no filme). Durante muitas e muitas décadas dos séculos XIX e XX, a Marinha apresenta-se diversa da região circundante em termos demográficos (apresentando, por exemplo, um crescimento populacional sustentado, mesmo quando no país e nos concelhos circundantes se observa o oposto), económicos (por exemplo, níveis superiores de rendimentos e de salários), sociais (por exemplo, taxas de alfabetização e de escolarização mais elevadas). Ainda nos Censos de 1980, 50% dos activos do concelho estavam ligados à indústria do vidro. E reparem que se trata do concelho, o qual incluía a freguesia da Vieira de Leiria, que não é uma freguesia vidreira; considerando apenas a freguesia da Marinha, maior seria ainda a percentagem (que não está disponível). Neste contexto, a relação identitária da Marinha Grande com o vidro elabora-se como estritamente local, de modo algum regional. A indústria vidreira e as particularidades marinhenses que dela resultam são trabalhadas como elementos de oposição, de diferenciação face aos concelhos à volta, face à região envolvente. O marinhense representa-se como diverso dos seus vizinhos – e a recíproca não é menos verdadeira. Veja-se o precoce “turismo cultural” das visitas às fábricas de vidros, que começa no século XIX, quando o comboio chega à Marinha Grande; vários monarcas lá foram, inclusive. Ia-se ver o que era diferente, reconheciase nos marinhenses/vidreiros um ethos próprio. Durante a ditadura, o oposicionismo prevalecente na localidade, de inspiração sobretudo comunista, foi outro traço muito trabalhado nestas representações; o mesmo se aplica ao facto, que muitos dados corroboram, de a ligação à igreja católica ter sido na Marinha Grande, durante muito tempo, menos acentuada que nas terras circundantes. 19

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Quando o vidro deixou de ter a importância que antes tivera, em termos de emprego, em termos económicos e sociais – o que aconteceu, de facto, pouco depois dos Censos de 1980 que há pouco citei, na sequência da crise enorme da indústria vidreira na primeira metade dessa década – também a especificidade estatística da Marinha Grande no seio da região começou a diluir-se. Hoje (e também porque nas localidades vizinhas, e no país, muita coisa mudou) já não há a tal diferença em termos de crescimento demográfico, de taxas de natalidade, de migrações, ou em termos de níveis de instrução, de níveis de rendimentos ou níveis salariais, ou até, pelo menos de modo tão acentuado, em termos de comportamento eleitoral. A Marinha Grande já não é assim tão diferente do que está à volta. Evidentemente, o facto de se perder essa especificidade objectiva não impede, antes pelo contrário, que o vidro continue a ser trabalhado na construção da identidade marinhense; já não é o recurso económico principal, mas é, sem dúvida, o mais importante recurso simbólico. Posto tudo isto, a pergunta que fica para debate não pode deixar de ser a seguinte: se a identidade Marinha Grande/ vidro é uma identidade claramente local e construída por oposição ao circundante, em que termos poderá uma identidade vidreira, que hoje existe apenas ao nível marinhense, ser apropriada no seio de uma unidade mais vasta que se venha a constituir enquanto região? Há pouco falei de dois processos: a constituição dos vidreiros enquanto grupo sócio-ocupacional autónomo e a construção da identidade marinhenses/vidreiros. Aquilo que está em causa quando se fala de “vidro e identidade da região” corresponderia a um terceiro processo: a construção de uma identidade vidreira supra-marinhense, envolvendo a região (ela própria ainda uma entidade em esboço). Quais serão os poderes, elites ou grupos sociais que poderão liderar esse processo? Quais poderão ficar de fora? E que consequências é que isso poderá trazer para a própria identidade vidreira marinhense? Do mesmo modo que o tecido industrial marinhense tem obrigatoriamente que ser considerado por quem quiser pensar, aqui na zona, uma região com alguma pertinência económica, será o vidro, enquanto recurso identitário, igualmente relevante para a sua pertinência simbólica? 20

O Vidro na Região de Leiria: Entre o uso quotidiano e o simbolismo cultural Fernando Magalhães Antropólogo – CIID -IPLeiria

Introdução Os elevados índices de produção e consumo de bens caracterizam, em grande parte, os movimentos socioculturais actuais. Assim, a elevada transacção de objectos que hoje se verifica, quer do ponto de vista da produção, quer do de consumo, implica, também, fluxos enormes de ideias. O valor do objecto, neste contexto, ultrapassa o mero utilitarismo que as sociedades modernas nos habituaram a reconhecer-lhes, na medida em que constituem, portanto, veículos em torno dos quais gira a vida social e cultural das populações (Miller, 1991; 1995). Estes factores constatam-se, à semelhança de outros lugares, na Marinha Grande em particular, e na região de Leiria em geral, particularmente desde a instalação das primeiras indústrias vidreiras, no século XVIII, nesta região. A fundação da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande representando mais do que a introdução desta localidade na modernidade ocidental, do ponto de vista industrial, constitui um passo inicial na redefinição da identidade dos marinhenses, de um sentimento de identificação ligado, em grande parte, ao vidro. Os objectos de vidro são, no século XXI, apropriados pelos marinhenses, na objectivação da sua nova identidade. A significação do vidro enquanto bens puramente utilitários, é bem diferente daquela que eles adquirem no contexto museológico. Neste, eles são elevados ao estatuto dos Deuses, porque constituem a memória da sociedade onde se integram, e, mais do que isso, a sua imortalidade, metaforicamente falando, permite-lhes fazer a ponte entre o mundo visível, e o invisível, entre o presente e o passado mais ou menos longínquo (Pomian, 1984: 62-68). Se todos os objectos são pedaços do mundo material, cuja materialidade lhes permite ocupar, tal como nós, um tempo e um

espaço, e os «distingue de outras criações humanas insubstanciais, tais como a música, um poema, ou a ideia de casamento» (Pearce, 1992:15), nem todos encontram um lugar no museu. Existe todo um processo de selecção que conduz à recolha de determinados, por norma poucos, objectos, por parte dos responsáveis dos museus, em detrimento de outros (a imensa maioria dos que nos rodeiam diariamente). Neste contexto, faz sentido questionarmo-nos sobre a atribuição, por parte das nossas sociedades, de um valor cultural distinto a uns objectos enquanto obscurecem outros, que, cessando o seu valor utilitário, são aniquilados. O que possuem estes objectos de tão especial que os leve a perpetuarem-se no tempo e no espaço? Porque se selecciona apenas uma ínfima parte daqueles milhões de objectos que nos acompanham no dia-a-dia? Quem decide e que razões levam à selecção do que vai para o museu ou para a sala de exposições? Em que reside afinal o valor de determinados objectos, que conduza não só à instalação de museus, mas também muitas das empresas a instalar núcleos museológicos? Será que elas descobriram o poder comunicativo / discursivo que o objecto musealizado pode ter? Que simboliza ele? O saber e a arte de moldar a natureza? Serão eles o testemunho de um passado glorioso, perpetuado no presente, e uma porta aberta para o futuro da comunidade que servem? Ou será a raridade, atestado de excelência da cultura local? Os objectos de vidro, inseridos em museus, servem para pensar, estimulando reflexões e discursos acerca destas e de outras questões. Eles constituem meios por intermédio dos quais se definem as identidades culturais da Marinha Grande e da região de Leiria. Como, utilizando um determinado tipo de objectos, se constrói o discurso identitário local ou regional? Neste contexto, serão pois alguns objectos de vidro, cuja “materialidade” e aspecto físico lhes permite a capacidade de se ancorar no tempo e no espaço bem como a atribuição de valores especiais tais como uma vida social, um poder de sobrevivência física que os permite relacionar com acontecimentos passados, e a sua capacidade de serem possuídos e avaliados”1, que irão com mais facilidade encontrar um lugar no museu. 1

PEARCE, S. M., (1992) Museums, Objects and Collections: A Cultural Study, Leicester and London: Leicester University Press. 21

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Estas são algumas das questões sobre as quais nos debruçaremos ao longo deste texto, procurando demonstrar os processos que conduzem à selecção e atribuição de significados culturais, muito particulares, aos objectos introduzidos e conservados pelos museus (cf. Magalhães, 2002:169-182). A Marinha Grande, enquanto localidade e Leiria enquanto região, onde aquela localidade está inserida, e que com ela partilha o histórico pinhal do mesmo nome. Aplicaremos assim as técnicas da semiótica ao estudo do Vaso comemorativo dos centenários da independência de Portugal (1930/1940), depositado e exposto ao público no Museu do Vidro da Marinha Grande, o qual se instalou no Palácio Stephens, antiga residência do industrial inglês Guilherme Stephens, responsável pela recuperação e dinamização da primeira fábrica de vidros da Marinha Grande, de quem havia sido percursor John Beare, em 1748.

Do Vidro ao Cristal Tradicionalmente, talvez devido à sua materialidade, à sua existência física, sempre observámos os objectos como uma entidade exterior ao sujeito, deste factor nasceu a própria ciência moderna, com a sua pretensa objectividade, o estudo de algo exterior ao sujeito, pouco mutável, ou seja algo que não conhece a vida (exceptuando os seres vivos, claro) e por isso incapaz de pensar, de reflectir, de mudar o seu próprio comportamento, por que também não o possui (Giordan, 1984:121). Por outro lado, os objectos, quando inseridos no museu, parece que se tornam ainda mais estáticos, literalmente ancorados no espaço e no tempo, o seu significado parece eterno, porque a sua materialidade, imortalidade e exterioridade relativamente ao corpo subjectivo e corruptível do ser humano assim o permite. Será isto realmente assim? De acordo com Charles Smith (1989:6-21) ou Susan Vogel (1991:191-204), em oposição a estas ideias tão frequentemente observadas, os objectos dentro do espaço museológico assumem vários significados relacionados quer com a sociedade onde nos situamos, quer com o espaço e o tempo em que nos localizamos, ou ainda, com a própria cultura inerente ao museu. O objecto é assim alvo de inúmeras leituras e interpretações que tornam o seu significado dinâmico, e mesmo desafiador da velha dicotomia sujeito/objecto. Neste sentido, podese afirmar que todos os objectos possuem uma vida social que os 22

acompanha, a partir do momento em que são elaborados até ao seu fim. Uns duram apenas algumas horas, mas outros, como os que estão presentes nos museus, podem durar séculos, ou mesmo milénios, o que faz com que eles adquiram no espaço e no tempo, uma história, passando por diversas mãos, lugares, e contextos diversificados de uso. Serão pois estes objectos que irão com mais facilidade encontrar um lugar no museu. Os objectos f ísicos não podendo ser dissociados das ideias que comandam a vida social e cultural dos Homens, desempenham um papel fundamental na reprodução social, pois possuem a capacidade de comunicar certas tradições do grupo às gerações futuras, funcionando, portanto, como sistemas de comunicação de ideias e valores. Os objectos de vidro contemporâneos, presentes no museu, não são mais do que o testemunho do saber, de gerações passadas, frequentemente projectado nos jovens do presente. Os objectos, assumindo um papel importante na definição da identidade do grupo, constituem, assim, importantes meios de socialização. Se todos os objectos podem funcionar como meios de comunicação permitindo a reprodução social, nem todos o fazem com a mesma intensidade, no mesmo tempo e em espaços semelhantes. Neste sentido, os objectos de vidro na Marinha Grande assumem um lugar particularmente importante no desenvolvimento de um sentimento de pertença local. Ainda que, neste início do século XXI, a produção destes objectos não assuma a importância que teve noutros tempos, relativamente à economia local, o seu valor simbólico, enquanto meios de objectivação e projecção de uma identidade comum cresceu à medida que aquele diminuía. O Museu do Vidro da Marinha Grande foi inaugurado em 1998, e os objectos aí colocados assumem agora o estatuto de património, não só local, mas também nacional, e europeu, como é possível observar logo na entrada que lhe dá acesso. Enquanto em circulação, e sujeitos ao processo de produção e consumo, a massa de objectos de vidro produzidos e consumidos no local, lembram-nos constantemente onde estamos, e como nos devemos comportar em relação aos outros, funcionando portanto como meios de socialização, eles regulam as nossas atitudes e formas de comportamento (Gossman, 1975; cf. Miller, 1995). A partir do momento em que estes objectos assumem o estatuto de património, são sacralizados e passam a ocupar o espaço

O Vidro na Região de Leiria: Entre o uso quotidiano e o simbolismo cultural

do museu, continuando, no entanto, a funcionar como meios de comunicação, e reguladores do comportamento. Uma vez dentro do museu do Vidro, os objectos expostos lembram à comunidade local e aos outros visitantes, embora de forma diferente da preconizada por Daniel Miller (1991; 1995), quem somos, de onde vimos, e como se formou a nossa cultura. Por intermédio da educação, recorrendo-se aos objectos enquanto meios privilegiados de informação, efectua-se a reprodução social, na medida em que é constantemente lembrado o passado cultural da comunidade. No museu do Vidro da Marinha Grande, o frasco do vidreiro, ou a garrafa de 6 vinhos, apresentam-nos um passado feito de mitos e heróis, de grandes e exímios artesãos que com a sua arte e o saber fazer contribuíram decisivamente para a constituição da cultura local por um lado, e a partir daí para a nacional, por outro. O vidro no contexto marinhense representa a inserção do local na modernidade, na Europa moderna. Os objectos de vidro testemunham, neste contexto, a existência de grandes artistas, que com a sua habilidade muito contribuíram para a rica herança cultural da Marinha. Seja a produção da vidraça, seja a produção de outro tipo de objectos de vidro, de embalagem, ou mesmo de simples decoração, como a cristalaria por exemplo, de facto, pode-se dizer que todos eles constituem esse testemunho das artes que os antepassados dos marinhenses foram capazes de dar origem, contribuindo dessa forma para uma maior coesão social. No caso do museu do vidro, da mesma forma que a antiguidade, sobressai o nível artístico e simbólico dos objectos. É frequente associar um grande valor ao vidro em função das suas origens antigas, ainda que, no contexto marinhense, essa antiguidade se prolongue por cerca de 250 anos, o suficiente para a edificação sólida de uma identidade objectivada por intermédio desse quarto estádio, que é o vítreo (Mendes, 2002). A esta ocorrência não estará por certo alheio o facto deles possuírem a capacidade de transportarem o passado para o presente, de fazerem, tal como refere Pomian (1984) a ponte entre o visível e o invisível, pois eles estiveram lá. O edifício onde está instalado o museu, o antigo palácio Stephens, dotado de todo o seu recheio, e, cada objecto presente neste museu, possuem uma data que os permite localizar no tempo, e neste sentido, tanto podem possuir cerca de cinquenta ou sessenta anos de existência como vários outros séculos. A caravela portuguesa, tal como os

vasos decorativos com motivos nacionalistas, que tanto serviram a ideologia salazarista, são dos anos quarenta. As galhetas unidas, peças que tinham a particularidade de associar o utilitarismo à arte e complexidade de fabricar o vidro provêm, por sua vez dos séculos XVIII e XIX. A magia destes objectos reside, por um lado, no facto de eles serem capazes de sobreviver ao longo do tempo, e sobretudo, de terem tido uma relação “real”, “única” com acontecimentos passados (Pearce, 1992:24), tornando-se as únicas vozes de um passado mais ou menos distante. Neste contexto o vaso pintado e assinado por João Barradas, não sendo muito antigo (anos 30/40), acabou por se transformar num símbolo de uma época à qual jamais quereríamos voltar: a ditadura salazarista. Na origem do fabrico do Vaso estão as comemorações centenárias de Salazar, na década de 40. Este objecto, tal como a caravela portuguesa, nasceu no seio de uma comunidade operária, a qual jamais se identificaria com a ideologia política que vigorou em Portugal até há cerca de 30 anos atrás. Contudo, é mesmo dif ícil tentar fazer essa ponte com os acontecimentos passados, tomando em conta um objecto que, obviamente na Marinha Grande ninguém quer associar, hoje, à ditadura fascista. Talvez por esta razão ele seja mais apreciado do ponto de vista estético do que pelo seu simbolismo resultante do facto de ter sido produzido para fins políticos. Actualmente, mais que a ideologia, parece estar presente a beleza artística do vaso, pelo que parece ser esta, a visão mais actual acerca do significado do objecto. Em todo o processo que conduz à selecção de certos objectos, cada sociedade “escolhe” a partir de uma grande (mas não infinita) série de possibilidades, aquilo que irá definir a sua individualidade. Trata-se de uma escolha dinâmica que, a um determinado momento, permite a uma dada sociedade uma grande série de possibilidades comunicativas, incluindo o corpo de cultura material. Podemos então dizer que o vaso resultou de uma escolha, ou selecção, tornando-se uma forma de comunicação que, nos recordaria uma época à qual jamais queremos voltar. Para ser de uso social toda a série de possibilidades comunicativas deve estar estruturada according to socially understood rules which command broadly-based social support, and which will, of course, be a part of the local system of domination and subservience (Pearce, 1992:26). 23

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Por volta dos anos 30/40, o vaso de Jorge Barradas é já o resultado de um processo de produção de ícones, em consequência do desenvolvimento industrial da Marinha Grande e de Portugal, pelo que não só se começa a pensar a fundação de um Museu do Vidro, como são produzidos objectos, propositadamente para as comemorações centenárias, como é o caso da caravela portuguesa ou daquele vaso, actualmente em exposição no Museu. Atente-se, neste sentido, à decoração do vaso: motivos nacionalistas que visam projectar o espírito imperial da nação, a mensagem que Salazar pretende transmitir através desta decoração prende-se com a exaltação dessa mesma nação, procurando para isso imagens históricas, marcantes na definição da identidade portuguesa, como é o caso dos descobrimentos, das caravelas ou das naus portuguesas como elementos pictóricos, pintados sobre o vidro. O mar, o escudo de Portugal ou a esfera armilar são escolhidos pelo poder político como símbolos das glórias de outrora, que a nação foi capaz de atingir. Neste sentido, esses são símbolos que, associados ao vidro, ajudam a ditadura fascista a legitimar o seu poder, exacerbando o nacionalismo. Actualmente, o vaso constitui, portanto, um signo na medida em que está relacionado com o contexto particular do salazarismo: 1940 e as comemorações centenárias. Por um lado, simboliza quer num contexto turístico, quer educativo, uma época, que não deve ser esquecida, mas ficar na memória para que não voltemos a esse passado ditatorial, por outro lado, para a população local, mais do que símbolo de uma época, ele representa um grande artista na arte de decoração do vidro, e a sua beleza, puramente estética, no sentido de ser apenas admirado. A prova é que se passaram a produzir réplicas, em massa, deste objecto, que passou a assumir uma função decorativa Nos estudos que a ele se referem, no sentido de elucidar o público, o vaso é considerado como uma verdadeira obraprima, sendo uma das peças de maior valor histórico, documental e artístico do museu do Vidro da Marinha Grande. Mais do que isso, o vaso simboliza o labor das gentes da Marinha e o seu sentido de apuramento estético, tendo-se por isso transformado em património. Jamais passaria pelo pensamento de qualquer marinhense observar este vaso como um símbolo positivo da ditadura. É claro que o simbolismo, que hoje possui este vaso, não é o mesmo que sempre deteve no passado, mas resulta antes de uma escolha por parte de uma determinada sociedade, numa dada 24

época. Por exemplo se, por alturas dos anos 30 e 40 do século passado, o vaso simbolizava todo um regime político, assente num passado nacional que se pretendia glorioso, posteriormente, ele passa a ser admirado única e exclusivamente pela sua beleza, pela arte emanada. O simbolismo do vaso reveste-se ainda de mais importância se tivermos em conta o facto de ter sido produzido, propositadamente para as grandes comemorações nacionalistas dos anos 40, ele não foi só escolhido, como produzido para tal efeito, num processo um pouco ao invés do que é frequente acontecer. Este objecto marca o discurso ditatorial, nacionalista, bem patente nas palavras de Oliveira Salazar: Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever (Nogueira, 1978 in Pereira de Moraes, 1998:485). Estas associações, frutos de circunstâncias espacio-temporais específicas, sustentam então uma relação metafórica com o período político de finais dos anos de 1930 e inícios dos 40. O 25 de Abril e o fim do regime ditatorial traz um novo simbolismo a todos os objectos que de uma forma ou de outra eram associados ao período, digamos, salazarista, uns são abandonados, destruídos, deixados à sua sorte, outros ficam como testemunho de um época à qual não mais queremos voltar, e outros ainda, como é o caso do nosso vaso, perdem completamente o significado político que tinham e incrementam o estético. É esta capacidade que os objectos possuem de actuarem concomitantemente quer como signos, quer como símbolos, que lhe dão essa magia de transportarem uma parte do passado para o presente. Mas, também pelo facto de esses mesmos objectos poderem ser alvo de re-interpretações simbólicas, advém o seu poder peculiar e ambíguo. Em resumo, o vaso atravessando todos estes anos possui, então, uma história simbólica, mas, enquanto ele “sobrevive” fisicamente, irá reter uma relação metonímica com o contexto político da década de 40 e concomitantemente com as comemorações centenárias (hino ao nacionalismo, à ditadura salazarista?), e neste sentido, ele actua como um “signo”, uma parte intrínseca desses acontecimentos. Esteve lá. Temos então um signo, capaz de uma reutilização simbólica, a qual cria novas séries de significantes. O vaso, enquanto signo é capaz de transportar um significado, porque ele possui uma relação “eterna” com os acontecimentos passados, e é isto que nós

O Vidro na Região de Leiria: Entre o uso quotidiano e o simbolismo cultural

experienciamos como o poder do “objecto actual”. Por outro lado, ele também influencia em parte a natureza de significado recém-criado, ajudando a conduzir as mudanças que cada parole sucessiva representa (cf. Pearce, 1992:28-30). O objecto possui, no entanto, outros atributos responsáveis pelo poder que ele tem de trazer o mais ou menos distante passado para o presente. Um deles reside na sua capacidade de serem efectivamente possuídos, e a tradição museológica é apenas mais um dos modos de possessão dos objectos. Ao facto de poderem ser possuídos, vendidos, passarem de mão em mão, não está alheia por um lado, a circunstância de constituírem elementos físicos e, por outro, de serem desejáveis, e são tanto mais desejados quanto maior for o valor que a comunidade lhes atribui (cf. Pomian, 1984). O valor dos objectos de vidro reside não só no facto de constituírem importantes fontes de prazer estético e de conhecimentos históricos e científicos, mas também no tipo de material com que são elaborados. Na nossa sociedade a raridade é, em si mesma, uma fonte de valor e pode manifestar-se na utilização de metais nobres como o ouro e a prata, ou noutro tipo de materiais como as pérolas ou o marfim (Gonseth, 1984:25; Pearce, 1992:33). No museu do vidro da Marinha Grande, à valorização dos objectos, não está alheio o tipo de material com que são elaborados. Não sendo o vidro propriamente um material raro ou nobre, ele possui características particulares que o permitiram entrar no mundo da arte mais refinada. Como vimos, o vidro possui características tão específicas que levaram alguns autores a não o considerarem em qualquer dos estados conhecidos (liquido, sólido ou gasoso), criando-se um 4º estado da matéria, o estado vítreo (Mendes, 2002:15). Como refere este investigador, as características endógenas (do vidro), por um lado, e a variabilidade do seu comportamento (…) por outro, fazem dele um material com uma especificidade tão destacada que torna dif ícil a sua inclusão em qualquer um dos estados tradicionais da matéria: sólido, liquido ou gasoso. De facto ele apresenta uma rigidez mecânica correspondente à dos materiais cristalinos, mas a sua estrutura molecular é desordenada, isto é, semelhante à dos líquidos. O facto deste tipo de materiais ser acessível apenas a alguns grupos sociais até muito recentemente, também ajuda a explicar o valor a eles atribuído. A vidraça, material que viria a originar os belos vitrais das catedrais góticas, serviram ao longo dos séculos,

pelo menos em parte, para avaliar o estatuto e a importância de todos os elementos ligados à produção do vidro. Durante muitos séculos, a relativa complexidade da manufactura vidreira conduziu à sua possessão apenas por parte de grupos ou classes sociais privilegiadas, com destaque sobretudo para os cristais mais refinados. Vidraceiros, cristaleiros e outros elementos ligados ao vidro gozaram, durante séculos, de certos privilégios, a que só outros grupos sociais destacados tinham acesso. Associado ao material, na atribuição de valor ao objecto, está o nível artístico com que ele foi trabalhado. O vidro presta-se à criatividade, de facto, dificilmente se bate os mestres vidreiros na arte de criar, de transformar material do mais vulgar que há como a sílica ou o chumbo em objectos de grande complexidade e apurado valor estético. O vidro transforma a luz e cria belos efeitos visuais, origina curiosas formas geométricas onde o limite é a criatividade, e pode, ainda, ser polido, lapidado, gravado e pintado de acordo com os gostos e a criatividade do artista numa determinada época e espaço do tempo. Por outro lado, as características únicas inerentes ao vidro tais como a transparência ou a durabilidade, originam objectos sem qualquer paralelo entre os seus pares fabricados com outros materiais. A propósito desta questão, na obra História do Vidro e do Cristal em Portugal, José Amado Mendes sublinha o seguinte: Pela sua natureza e características, as relações entre o vidro e a arte sempre foram muito estreitas. De facto, o vidro proporciona ao artista material ímpar para as suas obras. Por sua vez, o artista, com o seu saber, a sua imaginação e ilimitada criatividade, fornece ao vidro - não só ao artístico mas inclusive, ao de uso comum e utilitário – uma graciosidade e uma beleza que muito o valorizam (Mendes, 2002:119). E citando um outro autor (Ray Leier), Amado Mendes (2002:119) refere o seguinte: «Fogo, forma e luz; três aspectos únicos do vidro que não emergem em nenhum outro meio de arte. Este material enigmático captura a imaginação […]. Desde artistas e coleccionadores a estudiosos e conservadores de museu, o vidro tem despertado uma atenção sem paralelo e mais dedicação do que qualquer outro meio. O facto dos mais apurados trabalhos artísticos serem concomitantemente os que possuem um valor particular deve-se, segundo Susan Pearce (1992), à circunstância de ao artesão, que lhes deu origem, ser exigida uma elevada experiência prática, que leva muito tempo a ser conseguida. Por esta razão, o artífice trans25

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

forma-se num mestre, cuja elevada importância do seu trabalho é reconhecida pela sociedade, a qual lhe fornece, por via desse reconhecimento, grande parte dos materiais por ele usado assim como a alimentação, a roupa e/ou o abrigo. Um objecto de grande execução artística exige, por norma, uma elevada perícia e muito tempo, pelo que transporta uma «espécie de investimento extra, em grande parte suportado pela sociedade, e do qual esta deve, da mesma forma, tirar partido» (Pearce, 1992:33). Para além disto, os objectos, presentes no museu do vidro da Marinha Grande, são vistos como uma parte importante da herança cultural local e nacional, onde o seu aspecto material é ultrapassado para se atingir o espiritual. Para além do objecto físico, está toda uma panóplia de aspectos inerentes à sua produção, sejam económicos, religiosos, sociológicos ou estéticos, dos quais, os objectos são as únicas testemunhas “oculares” que chegaram até nós, o que concorre da mesma forma para a sua valorização.

Conclusão Podemos referir que os objectos de vidro, pelo seu material, dotado de características específicas, como a transparência, a capacidade de ser moldado, onde não existem limites à criatividade e à imaginação, tem constituído, ao longo destes 2 últimos séculos, um óptimo meio para a objectivação das identidades múltiplas que habitam os actores sociais da região de Leiria. A Marinha Grande enquanto localidade, e a região de Leiria, no seu todo, viram, também, por intermédio do vidro, a sua inserção na modernidade ocidental, tardia é certa, como toda a industrialização portuguesa. São estes objectos elaborados a partir de materiais, aparentemente, vulgares, aos quais foi atribuído o poder de simbolizarem a capacidade de todos os marinhenses produzirem autênticas obras de arte, que encontrarão o seu lugar no museu. Todas as comunidades procuram meios através dos quais objectivem os seus sentimentos subjectivos de pertença, e na Marinha Grande os objectos de vidro serviram e servem bem este propósito. É assim que os objectos representativos do que mais sublime existe na comunidade, a sua identidade, assumem um especial relevo no contexto do museu do Vidro da Marinha Grande.

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TRAJECTÓRIAS SOCIAIS E IDENTIDADES PESSOAIS

Condições sociais objectivas e subjectivas na construção da(s) identidade(s) Cristóvão Margarido Assistente Social – CIID - IPLeiria

Tive o prazer de moderar a mesa da terceira conferência do Ciclo património e identidades, subordinada ao tema trajectórias sociais e identidades pessoais. Poderá o leitor, à primeira vista, perguntar-se sobre o que terão as trajectórias sociais e as biografias nelas estudadas a ver com o património. Muito! É habitual representar-se mentalmente o património, quer por parte do senso comum, quer mesmo por parte do campo intelectual (Bourdieu, 2002) como os artefactos construídos, a monumentalidade ou a dimensão paisagística, ecológica e turística, a cultura material, de resto, bem tratada, bem marcada, bem evidenciada ao longo de todo o ciclo de conferências de que nesta obra se apresentam as principais sínteses. Contudo, há que não esquecer que a cultura material é um reflexo da cultura espiritual. Como recorda Herskovits (1973) a obra cultural é produto da mão e do cérebro e, portanto, o património abrange quer as dimensões tangíveis quer as dimensões intangíveis da cultura, embora estas só muito recentemente tenham visto reconhecimento por parte da UNESCO. Foi neste sentido que a comunidade internacional adoptou a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível em 2003. “Para muitas pessoas, especialmente as minorias étnicas e os povos indígenas, o patrimônio imaterial é uma fonte de identidade e carrega a sua própria história. A filosofia, os valores e formas de pensar refletidos nas línguas, tradições orais e diversas manifestações culturais constituem o fundamento da vida comunitária. Num mundo de crescentes interações globais, a revitalização de culturas tradicionais e populares assegura a 28

sobrevivência da diversidade de culturas dentro de cada comunidade, contribuindo para o alcance de um mundo plural.”1 Desta forma, ao apresentarmos hoje aqui um videograma produzido pelo CIID, usando extractos de entrevistas etnobiográficas realizadas a imigrantes brasileiros residentes em Portugal, estamos não só a falar de como estes adoptam uma ou mais referências valorativas, religiosas, gastronómicas, desportivas, musicais, numa só palavra, culturais, para se auto-identificarem; como, também, do património tangível e intangível que cada imigrante elege como referência para resgatar a memória e manter vivas a identificação quer à(s) cultura(s) de origem quer à(s) cultura(s) de chegada. Acabei de escrever no plural, propositadamente, porque, efectivamente, ao contrário das visões mecanicistas da sociedade, cada indivíduo atravessa hoje cada vez mais culturas e auto e hetero-transforma-se, usando variadíssimos quadros de referência e de identificação. É por isso que comungo da análise de Amin Maalouf que se nega a aceitar a identidade pessoal como uma processo monolítico e estanque de identificação com uma única cultura. “A identidade não é algo que nos seja entregue na sua forma inteira e definitiva; ela constrói-se e transforma-se ao longo da nossa existência” (Maalouf, 2002: 33) Por outro lado, ainda, ele assume como seus diferentes patrimónios, diferentes referenciais de identificação, o que o torna, nas suas próprias palavras, numa identidade complexa e compósita “Cada uma das minhas pertenças me liga a um vasto número de pessoas; entretanto, quanto mais numerosas as pertenças que tenho em conta, mais especifica se revela a a minha identidade” (Maalouf, 2002: 27) Para além do DVD ”Partir, Chegar, voltar”, analisado a seguir pelos colegas José Trindade e Ricardo Vieira, temos a honra de contar neste painel com a participação do Dr. Rowney Furfuro, Médico Dentista, radicado há vários anos em Leiria, nascido no Brasil, ele próprio protagonista deste filme, onde assistimos a diferentes modos de gerir as pertenças de origem e as pertenças de chegada nessa identidade mestiça (Laplantine e Nouss, 2002). 1

http://www.unesco.org.br/areas/cultura/areastematicas/patrimonioimaterial/patrmimaterial/mostra_documento

Condições sociais objectivas e subjectivas na construção da(s) identidade(s)

É possível vermos, na análise dos biografados no filme e no texto que se segue, os variados usos não só do património material, mas, também, imaterial para construir uma pertença entre o Brasil e Portugal e dar sentido ao eu que é sempre um nós (Vieira, 1999) como fica bem explícito na mensagem de Denys Cuche: “Isto porque lhe subjaz o dilema trágico entre o mais exaltante (euforia) e mortífero dos conceitos, o da liberdade (espécie de lirismo triunfal de inegável prestigio sonoro), e o sentimento de pertença, de filiações e de memória (disforia) que tanto podem ser entendidas como o lastro que permite ao navio viajar a prumo como o peso que lhe dificulta a escolha imponderada dum destino extravagante.” (Cuche, 1999:17)

Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre (2002). Esboço de uma teoria da prática, Oeiras: Celta Editora. CUCHE, Denys. (1999). A Noção de Cultura nas Ciências Sociais, Lisboa: Fim de Século. HERSKOVITS, Melville J. (1973). Antropologia cultural: man and his works, São Paulo: Mestre Jou. LAPLANTINE, François; NOUSS, Alexis (2002). A mestiçagem, Lisboa: Instituto Piaget. MAALOUF, Amin (2000). As Identidades Assassinas, Algés: Difel Difusão Editoria, S.A. VIEIRA, Ricardo (1999). Ser igual, ser diferente: encruzilhadas da identidade, Porto: Profedições.

Webgrafia http://www.unesco.org.br/areas/cultura/areastematicas/patrimonioimaterial/patrmimaterial/mostra_documento)

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Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal Ricardo Vieira e José Trindade Antropólogos – CIID - IPLeiria

1) A identidade como processo A conferência de hoje fala das trajectórias sociais de imigrantes brasileiros em Portugal. A identidade é um processo de construção e reconstrução. Jaír, Edilson, Sandra e Ronaldo1 nasceram no Brasil, têm trajectórias sociais que os torna inacabados. Outros poderão ter trajectórias muito semelhantes; mas as pessoas podem jogar, podem transformar-se, em termos de querer para si próprios, de assumir em termos de identificação, podem vir a ser em determinada altura produtos identitários diferenciados. Esta é uma ideia base deste texto, que está na génese do documentário que apresentamos hoje2. Cada um de nós nasce num lugar, mas não podemos mais pensar, no século XXI, a identidade como sendo essa pertença, essa identificação apenas com o lugar de nascimento, com a língua primeira, com as primeiras palavras, com a primeira religião, com o primeiro amor, com esse primeiro, primeiro, primeiro… que se pode classificar de primordialismo. Toda a gente já sabe disto e toda a gente fala sobre isto; mas às vezes não se fala ainda com convicção; daí que seja importante, antes do filme, antes da análise, esta introdução. Muitas vezes, quando alguém como Ronaldo, assumidamente multi e intercultural que transporta dentro de si, não uma dimensão monocultural, mas uma dimensão pluriface1 2

Os nomes são fictícios. “Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal”, documentário realizado por Ricardo Vieira e José Maria Trindade, no âmbito Centro de Investigação Identidade(s) e Diversidade(s), Instituto Politécnico de Leiria.

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tada, pode falar duas, três, quatro línguas, pode conhecer a bíblia, o alcorão, etc., – e conhecer o alcorão não torna necessariamente a pessoa num muçulmano; conhecer a bíblia não torna necessariamente a pessoa num cristão – a dimensão da identificação é outra dimensão muito mais consciente e muito mais profunda. Ainda que algumas pessoas saibam já isto, a verdade é que, muitas vezes, assistimos na televisão (que é um órgão de propaganda e de formação de atitudes e de opiniões potentíssimo), acabamos por ouvir entrevistadores, jornalistas a perguntar: “Oiça Ronaldo, está cá há 17, 18 anos, isso é tudo muito importante, mas lá no fundo, lá no fundo, quem é o Ronaldo?” Esta pergunta enferma de um desconhecimento, porque já está a orientar a pessoa para se colocar lá no fundo, no fundo, na origem, como se a pessoa não fosse nascimento, prosseguimento, processo e desenvolvimento. E porquê brasileiros? Nós estamos a fazer isto com vários imigrantes. Brasileiros, primeiro porque são imigrantes, segundo porque os imigrantes nos permitem pensar este conceito da identidade como processo. Porque é mais notório ver os mundos culturais que um migrante, seja emigrante ou imigrante, atravessa. É mais notório, é mais objectivo falar deles do que falar de cada um de nós que nesta vida, cada vez mais globalizada, é também um migrante. A passagem da casa para a escola é um processo de migração cognitiva e emotiva, também. Mas é mais fácil pensar nesta metamorfose, nesta transformação do eu pensando no imigrante: “Quem eu era”, “Quem eu sou”, “Quem eu quero ser”. O modelo de análise que propomos tornase aí mais visível. Nós não somos apenas de um lugar. Nós estamos a falar hoje aqui de trajectórias sociais, de identidades pessoais, num ciclo de conferências que têm como título “Património e Identidade”. É preciso pensar que esta paisagem portuguesa, esta paisagem f ísica e esta paisagem humana se alteraram. Os outros estão mais visíveis entre nós. Os brasileiros estão mais visíveis entre nós. Eles fazem parte deste património, e, neste sentido, é o próprio Portugal que se torna ainda mais multicultural do que era; e, de alguma forma, estamos a falar de património também. O que vos queríamos mostrar é que não só o Ronaldo, como todos os imigrantes, como todos nós, somos processos migra-

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

tórios. Como dizíamos há pouco, cognitiva e emotivamente. A metáfora é aquela do rio: nascemos numa margem. O P r oc e s s o de M e s tiç a ge m C ultura l Nova C ultura – Identidade num dado momento

??

Rio Rio

C ultura de O rigem

Essa margem inicial não é necessariamente a margem final do contexto social que vamos habitar no futuro enquanto adultos. A pessoa ao aprender, transforma-se: a pessoa aprende a andar, aprende a falar. Isto é apenas um modelo bipolar muito simples, muito dicotómico. Nós começámos por aplicar este modelo de análise no filme que realizámos com os imigrantes, em carne viva, que permitem pensar que os imigrantes não têm que ser classificados como sendo apenas um tipo de modelo. De facto, cada um de nós tem momentos de identificação, às vezes com mais ênfase na primeira margem, a cultura de origem, a primordial; outras vezes, mais na cultura de chegada. Nós identificamos aqui um tipo etnocêntrico, de acordo com a cultura de partida. Aquele que parte, pensa o mundo, mas vê o mundo sempre centrado nos valores desse primordialismo identitário: a primeira margem. Podemos falar do emigrante que parte do Brasil para Portugal ou de um contexto para outro e não quer identificar-se com a cultura de partida porque estrategicamente não é conveniente, como aconteceu com os portugueses quando foram para os Estados Unidos e precisaram até de metamorfosear os nomes. São estratégias sociais. A pessoa acaba por ver o mundo centrado na cultura de chegada – a segunda margem – e a esses nós damos o nome de oblato, aquele que renega a cultura de origem. Depois temos outros tipos: o bilingue ou bicultural, ou multicultural, que habita duas ou mais margens e que consegue ser aqui (e ser significa dominar a língua do ponto de vista linguístico e do ponto de vista antropológico); e temos outras variantes

que são esses terceiros – e todos nós somos terceiros, só que às vezes não queremos é ter consciência disso, assumindo-nos como puros, como se alguém fosse puro do ponto de vista cultural, como se todos nós não fossemos mestiços. Não são só os brasileiros, não são só os imigrantes. Não há hoje culturas puras. Somos já mestiços e cria-se uma nova mestiçagem nessa interacção. Essa terceira dimensão de que temos vindo a falar e que às vezes leva a que o indivíduo seja mais híbrido e tenha até crises de identidade. Porque há pessoas que têm identidades transfronteiriças. Imaginam, por exemplo, um alentejano e um amigo do lado de lá, em Espanha? Devem estar pouco preocupados, nas conversas, e na ida ao café e ao cinema, em estar a distinguir se um é português, e o outro é espanhol. O problema da identificação aí é outro! Estamos aqui a ilustrar, por um lado, a ideia de identidade objectiva, a do bilhete de identidade, da naturalidade, nascimento; e outra, muito mais interior, muito mais subjectiva, que é esse processo de identificação. Por último, nós temos usado também o conceito de trânsfuga intercultural, para o sujeito que consegue fazer a síntese entre os vários mundos que habita. Mas a grande questão é rompermos com essa ideia monolítica da identidade de que a pessoa é só uma coisa: se é português tem que ser católico, e não pode ser português e muçulmano3. As variantes são mesmo todas possíveis! Portanto, perante brasileiros que vamos ver aqui, quem são estes? Metade brasileiro, metade português? Haverá pessoas que darão esta resposta! Mas a identidade compartimenta-se? Alguns outros falam de diferentes “eus”: eu não sou um, sou vários; há diferentes “eus” conforme o contexto. Há outros que dizem, como por exemplo, Amin Maalouf (2002: 10): “Não tenho várias identidades, tenho apenas uma, feita de todos os elementos que a moldaram segundo uma dosagem particular que nunca é a mesma de pessoa para pessoa…”. Quer dizer, a trajectória social, que pode ser muito semelhante e a identidade pessoal com essa dosagem que é essa vontade de identificação com A e não com B, com A-,não com A+,é diferente de pessoa para pessoa. O que faz com que diferentes trajectórias sociais, diferentes condições objectivas vividas possam criar identificações interiores muito diferenciadas, por vezes… 3

Um entre muitos exemplos possíveis para ilustrar a complexidade de cada sujeito. 31

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

2. Identidade dos imigrantes: em busca de uma nova dimensão Ao analisar as histórias de vida de imigrantes temos como objectivo descrever os modos como estes viveram as experiências de migração e como esses processos afectaram as suas atitudes a propósito da diversidade. Pretendemos também examinar de que forma as histórias de vida são actualizadas no quotidiano; e daí as várias maneiras possíveis de os imigrantes integrarem as suas culturas de origem no processo de aculturação que estão a viver. Apresentaremos os casos de quatro imigrantes brasileiros em Portugal, Ronaldo, Marcelo, Marco e Márcia que representam quatro maneiras diferentes de viver entre culturas. Ao contrário do que habitualmente se assume nos estudos culturais sobre imigrantes, que tendem a explicar as patologias sociais e mentais como resultado de desenraizamento, especialmente entre filhos de imigrantes, alegadamente atormentados por viverem divididos entre culturas diferentes, acreditamos que os sujeitos têm capacidade para viver confortavelmente e sem qualquer espécie de patologias em mundos diferentes. O comportamento patológico é consequência da interiorização de uma identidade estigmatizada, e não o resultado do desenraizamento cultural. Muitos estudos sobre imigrantes têm provado este facto. O modelo que usamos aqui para explicar as diferentes estratégias utilizadas pelos imigrantes nas sociedades de chegada foram inspiradas nas leituras de Bastide (1955), Dévereux (1972), Camilleri (1989) e De Vos (in Tap, 1986). Assumimos uma abordagem etnopsicológica no nosso estudo na metamorfose da identidade entre os imigrantes em situações de aculturação. A socialização e as experiências de aprendizagem que decorrem durante uma vivência alteram a sua identidade pessoal. Ao longo das diferentes formas de metamorfoses culturais ocorridas nos imigrantes, este documento foca o que nós descrevemos como uma “transfusão cultural” (Vieira, 1999a, 1999b). O modelo que utilizamos para explicar as diferentes estratégias usadas pelos imigrantes nas sociedades de chegada compreende duas formas de lidar com a situação de aculturação: o 32

trânsfuga intercultural e o oblato. O primeiro caso refere-se aos imigrantes que integram a cultura de origem na identidade cultural emergente, tanto implícita como explicitamente; o último renega a cultura de origem e idealiza a cultura de chegada, o que conduz ao imigrante monocultural. Estas são apenas duas das estratégias possíveis entre várias.

3. Metamorfoses da identidade dos imigrantes Os imigrantes que vivem entre culturas podem escolher entre uma atitude pragmática de integração na sociedade de destino ou, ao contrário, privilegiar uma dimensão ontológica, vivendo de acordo com a cultura de origem. Neste caso, o apelo das raízes influencia o comportamento podendo levar à recusa da cultura de chegada. Há ainda um tipo de estratégia identitária que é a de viver perfeitamente entre os dois mundos. Para muitos imigrantes, o sucesso na nova sociedade implica quebrar com as fronteiras estreitas do lugar de partida e a integração numa nova cultura que, em grande parte dos casos, traz consigo uma metamorfose ou mesmo uma transfusão cultural nas suas vidas. Sucesso nesta nova sociedade significa um acesso à maneira de pensar da nova cultura e pode levar a um abandono da cultura de origem a favor de uma segunda cultura. Acedendo à cultura baseada na escrita e na lei do mercado, muitas vezes diferente da cultura de nascimento, significa deixar para trás a primeira identidade e criar uma outra: alguém que já não é o que foi, mas sim alguém que vive inteiramente de acordo com a cultura de chegada. Por isso, o tornar-se um membro da nova sociedade pode levar a pelo menos dois tipos de transformação: Pode ignorar-se e esquecer-se o passado cultural; ou, por outro lado, pode utilizar-se a riqueza da cultura de origem como um leque de experiências, como muitas no quotidiano, levando a um eu intercultural. Para alguns, viver numa nova sociedade não é fácil porque viver numa sociedade moderna implica um corte com a antiga forma de pensar e viver. A modernização da sociedade é baseada, como disse Weber, na racionalização da vida social. Para muitos imigrantes vindos de sociedades pré-modernas ou préburocráticas, viver entre estes dois mundos, pode levar a uma

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

divisão deles próprios, causando aquilo que Bastide (1955) chamou de principio de corte. Com isto, Bastide, descrevendo a situação dos afro-americanos no Brasil, refere-se à capacidade dos indivíduos de viver em cada mundo como uma pessoa diferente, fazendo uso de diferentes racionalidades. Isto é o caso da pessoa que trabalha num banco e algumas horas mais tarde pode estar a tomar parte no candomblé. O primeiro modelo aplica-se àqueles que têm medo de falar de si e denunciar o seu passado. Nunca falam das suas origens, do lugar onde nasceram, onde cresceram e viveram antes de emigrarem. Procuram transmitir a ideia de que são produto da cultura de chegada. Na sua comunicação, nunca usam elementos dos contextos da infância nem da cultura de partida, nem mesmo quando se encontram com pessoas da mesma origem. É o oblato. O oblato educa os seus filhos para a nova sociedade e negalhes o passado. É comum para muitos filhos de imigrantes ao chegarem à adolescência lamentarem-se da ausência de passado que os leva em busca das suas raízes nos países de origem dos seus antepassados. O segundo modelo é o trânsfuga intercultural. Neste modelo há uma aceitação da nova cultura sem rejeitar a antiga. O trânsfuga intercultural integra a cultura do país de chegada no seu universo pessoal, o que dá uma nova dimensão à cultura de origem sem a destruir ou substituir, dando-lhe uma terceira dimensão resultante da integração comparativa do eu e do outro, do nós e do eles. Os imigrantes de tipo trânsfuga intercultural aceitam que são híbridos e não têm qualquer problema em viajar aos contextos do passado.

4. Partir é aprender Antes de emigrar para outro país as pessoas já têm características socioculturais, tais como disponibilidade para entrar em diálogo, o ter ou não empatia, e uma aptidão para a comunicação intercultural, que podem tornar o processo de integração mais fácil. A principal ideia da nossa mensagem é portanto a seguinte: o imigrante é um indivíduo e já o era antes de ter iniciado a sua viagem.

[...] Uma criança deixa a casa da família; a partida: um segundo nascimento. Toda a aprendizagem requer esta viagem com outra e outras, mas durante esta viagem muitas coisas mudam. (Serres, 1993: 59). Na verdade, partir implica uma espécie de metamorfose, um cruzamento, mesmo que as pessoas não tenham consciência disso. Alguns usarão o reconhecimento da alteridade, experienciada ou observada, para fortalecer a identidade do eu e do nós, e reforçar os sentimentos e atitudes que podem conduzir ao etnocentrismo ou à xenofobia. Chegam a aceitar a multiculturalidade na realidade social, mas não aceitam a comunicação intercultural. Outros usarão o reconhecimento dessa alteridade para relativizar o seu próprio mundo e tornarem-se interculturais. As circunstâncias e experiências de vida variam enormemente, tal como os indivíduos envolvidos no processo de construção, de uma ou outra maneira de ser e de pensar. Ao estudar as diferentes histórias de vida de pessoas que são agora adultos, imigrantes, mas que também são obviamente indivíduos com variados papeis sociais, procurámos reconstruir as viagens e experiências específicas que desde a infância até à idade adulta contribuíram para o desenvolvimento das suas atitudes perante a diversidade humana – em alguns casos meramente multicultural e noutros intercultural –, incluindo, claro, o seu comportamento social e os seus hábitos.

5. Historiar a Emigração Portuguesa Portugal é um país de emigração. Esta emigração está estreitamente ligada com a construção do seu império marítimo, começando na costa Atlântica de África e nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, no século XV. Durante o século XVI os portugueses espalharam-se pelo Oriente. E desde o século XVII até meados do século XX foi o Brasil o destino principal da emigração portuguesa. Após a Segunda Guerra Mundial, a Europa Ocidental, e principalmente a França, foi a terra prometida para os portugueses, que deixaram o seu rural e subdesenvolvido país em busca de uma vida melhor. Perto de 1.2 milhões de portugueses emigraram durante a década de 1960. 33

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

300000

de imigrantes em Portugal no final da década de noventa seria multiplicar por 5 os números oficiais. Imigrantes da Europa Oriental residentes em Portugal

250000 200000 150000 100000

900

50000

800

0

700

19 60 19 63 19 66 19 69 19 72 19 75 19 78 19 81 19 84 19 87

Número de emigrantes

Variação da Emigração em Portugal entre 1960 e 1988

Anos

Emigração Total

Emigração Ilegal

Fonte: Boletim Anual da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, MNE, 1988.

Estima-se que haja perto de 4 milhões de portugueses ou descendentes de portugueses a viver fora de Portugal. As maiores comunidades portuguesas vivem em França, que alberga mais de um milhão, e Alemanha. Muitos cidadãos portugueses foram de Angola e Moçambique para a África do Sul, onde existem perto de 700 mil portugueses migrantes, e há também números bastante significativos no Canadá, nos Estados Unidos, Brasil e Venezuela. Outros pequenos países na Europa têm largas comunidades de portugueses: Luxemburgo, onde os portugueses representam um terço da população, Holanda, Bélgica e Suiça. Este país e o Reino Unido tornaram-se importantes destinos da emigração portuguesa a partir dos anos 80; ao contrário da tradição de emigração permanente nestes últimos vinte anos a emigração portuguesa passou a ser temporária. A crise do petróleo da década de 1970 teve um grande impacto nas economias dos países ocidentais, em particular um grande aumento da taxa de desemprego. Como consequência disso, muitos países industrializados mudaram a sua atitude em relação à imigração. Isto explica o extraordinário aumento da imigração ilegal nos primeiros anos da década. No final da década de 1980, Portugal tornou-se um país de imigração, com a chegada de imigrantes da Europa de Leste, principalmente ucranianos, moldavos, croatas, russos e romenos, entre muitas outras nacionalidades. Como a maioria dos imigrantes não está oficialmente registada, os números oficiais não reflectem a realidade. Um cálculo mais razoável do número 34

Bulgária Croácia Moldávia

500 400 300

839

504

600

200

Nota: Em 1987 e 1988 não há dados para a emigração não legal.

757

694

256 128

Roménia Rússia Ucrânia

100 0 Fonte: Relatório estatístico de imigração de 2002, Ministério da Administração Interna, SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Núcleo de Planeamento.

Em Portugal, hoje em dia, o número de imigrantes deve estar perto de 500 mil, maioritariamente trabalhadores que vêm sem as suas famílias, representando mais de 10% da força de trabalho em Portugal. Por todo o país, imigrantes do Leste podem ser vistos a trabalhar maioritariamente na construção civil, construindo as novas pontes, as estradas e as casas do Portugal moderno. Por isso é expectável que num futuro próximo, à medida que a sua situação em Portugal for sendo regularizada, em termos profissionais e legais, a dimensão da população migrante, especialmente vinda da Europa do Leste e do Brasil, aumente com a chegada das suas famílias.

6. O Regresso As minorias mais representativas em Portugal são originárias das antigas colónias: Angola, Cabo Verde, Moçambique, Brasil, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Depois da revolução de 1974 as colónias portuguesas em África tornaram-se países independentes. À medida que estes países se viam envolvidos em tumultos políticos, muitos dos seus cidadãos procuraram refúgio na antiga metrópole colonial (Machado, 2002). O imbróglio político que se seguiu à revolução portuguesa em Angola e Moçambique trouxe a Portugal a maior onda de refugiados que o país alguma vez testemunhou: Portugal recebeu meio milhão de cidadãos portugueses fugindo da guerra civil entre movimentos de independência.

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

A acrescentar a isto, Portugal foi sempre um muito importante destino de imigrantes de Cabo Verde. Eles foram e continuam a ser a maior comunidade estrangeira a viver em Portugal. A guerra civil na Guiné-Bissau no final da década de 1990 fez com que muitos refugiados procurassem a segurança de Portugal. De repente, o país que usava da sua homogeneidade como uma garantia de paz e identidade nacional, tornou-se uma sociedade multicultural (Bastos & Bastos, 1999), com africanos de Angola e Moçambique, chineses de Macau e Indianos que no início da década de 1960 escaparam das colónias portuguesas na Índia, Goa, Damão e Diu para Moçambique, e andavam de novo em fuga. Portugal foi também um porto seguro para muitos Timorenses que escapavam à feroz repressão que se seguiu após a invasão da antiga colónia portuguesa por parte da Indonésia. Imigrantes mais significativos residentes em Portugal 140000 120000

125909

100000

África

80000

América do Sul

60000 40000 20000

Europa Oriental

32462 4755

0 Fonte: Relatório estatístico de imigração de 2002, Ministério da Administração Interna, SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Núcleo de Planeamento.

Durante a década de 80, os brasileiros, especialmente de classe média, começaram a olhar para empregos mais lucrativos do que aqueles que podiam encontrar no Brasil. No final da década de 90, um segundo fluxo de imigrantes mal pagos e pouco qualificados começou a chegar a Portugal. Este fluxo continua forte nos dias de hoje. Estes imigrantes trabalham sobretudo nos restaurantes, bares e construção civil. Imigrantes da Venezuela podem ser maioritariamente encontrados na ilha da Madeira. Embora muitos conservem a nacionalidade venezuelana, eles são portugueses ou descendentes de portugueses que regressaram nos últimos 15 anos, devido à instabilidade política e social naquele país, onde há uma comunidade portuguesa muito numerosa.

África (PALOP)

Outros de África

Angola – 25734

6705

Cabo Verde – 54208

América Outros da Central e do Sul América Central e do Sul Brasil – 26551 2365 Venezuela – 3546

Guiné-Bissau – 20236 Moçambique – 4996 São Tomé e Príncipe – 7325

Há uma tradição portuguesa, quer por parte da gente comum, quer de uma certa tradição intelectual, que gosta de afirmar que a sua atitude para com os povos colonizados foi distinta da dos outros colonizadores. Ao contrário dos britânicos, por exemplo, eles reclamam terem sempre tido um contacto estreito com os nativos das colónias (Pires, 2003). Esta ideologia de “racismo suave”, ou luso-tropicalismo, central na ideologia imperialista do regime de Salazar, o ditador que governou Portugal quase meio século, serviu de inspiração ao estudo sociológico da sociedade Brasileira por Gilberto Freyre (1957). Freyre argumenta que a sociedade brasileira é o resultado da capacidade e necessidade dos portugueses em se misturarem com outras “raças”, particularmente os escravos negros que foram levados de África para o Brasil para trabalhar nas plantações. Esta teoria serviu perfeitamente o propósito do regime fascista em Portugal para proclamar a diferença e para legitimar a possessão dos territórios coloniais muito depois de todas as nações europeias terem deixado África e Ásia. Imigrantes dos PALOP + Brasil em Portugal residentes em Portugal 140000 120000

119204

100000 80000

PALOP

60000

Brasil

40000

26551

20000 0 Fonte: Relatório estatístico de imigração de 2002, Ministério da Administração Interna, SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Núcleo de Planeamento.

35

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

para Lisboa. Mas quando cheguei a Madrid, naquele mesmo dia, eu peguei na minha bagagem e fui directo para a estação de São Martinho e apanhei o comboio para Portugal. […] Eu trabalhei ilegalmente em Lisboa. Dois anos mais tarde eu comecei a trabalhar numa fábrica de mobiliário. Foi nessa altura que o governo português abriu a possibilidade aos imigrantes de terem um visto de residência para aqueles imigrantes que tinham um contracto de trabalho. E eu consegui o meu primeiro visto. Estou agora no terceiro. Estou legal desde há três anos. [...] Eu trabalhei ilegal durante muito tempo…Em restaurantes os patrões não empregam imigrantes ilegais. Eles têm medo. Até há pouco tempo estava a viver sozinho, mas agora estou a viver com um colega que chegou há um ano; e há dois outros colegas que chegaram há uma semana, e há um rapaz que trabalha aqui num restaurante. Eu penso que ele é africano. [...] Quando eu cheguei não senti uma grande diferença porque eu vi muitas coisas similares e outras coisas diferentes. Mas em relação à linguagem e cultura não há grandes diferenças, desde que eu me familiarizei rapidamente com eles.

7. Vozes de imigrantes 7.1. Jaír Lopes Jaír, de 29 anos, nasceu no Brasil no estado de Minas Gerais na cidade de Padre Paraíso, no centro do país, próximo da fronteira com o Estado da Baía. A mãe é uma professora reformada e o pai foi mineiro. Jaír nunca trabalhou nas minas. O pai trabalhou muitos anos nessa vida dura. A minha família vive numa boa casa, com toda a mobília graças às pedras que o meu pai descobriu nas minas.

Na busca de um futuro diferente Eu sempre tive aquilo que sempre quis. Os meus pais deram-me tudo até aos meus 23 anos de idade. Então eu pensei que estava na altura [...] eu não completei o liceu, eu não tenho grande inclinação para ler… Eu estudei até ao 11º ano e depois deixei a escola. Eu trabalhei na rádio durante 10 anos. Dois dos meus colegas, também membros da Igreja Baptista como eu, vieram para Portugal e eu pensei: “Se eu ficar aqui, posso ter uma boa vida mas nunca terei um futuro. Eu preciso de ser independente. Por mais quanto tempo poderia eu depender dos meus pais?” Aquele pareceu-me um bom momento para partir [...].

Portugal [...] na altura, no final de 1999, várias pessoas estavam a partir para Portugal e para os Estados Unidos. Mas era muito dif ícil para os Estados Unidos. Era preciso provar que tínhamos um rendimento milionário, ou que éramos donos de vários terrenos para conseguir crédito. E foi o destino também. [...] na altura Portugal foi a primeira escolha. Havia várias pessoas em Lisboa que me poderiam receber. Eu estava esperançado em fazer qualquer coisa. O meu itinerário para Portugal foi o seguinte: apanhei um avião para Madrid, onde passaria a noite num hotel. Isto era o que estava planeado com a agência de viagem, Ibéria, quando comprei o bilhete. E no dia seguinte eu voaria 36

diz:

Em relação à imagem que Jaír tem dos portugueses, ele há boas e más pessoas; há pessoas tristes e pessoas alegres, por isso nunca parei para pensar sobre a imagem que eu tenho dos portugueses. [...] Eu nunca senti nenhuma discriminação por ser estrangeiro, nunca. Na Nazaré as pessoas mostram que sou igual a elas e eu dou-me bem com todas as pessoas da Nazaré. Eu tenho muitos amigos [...] criei muitas amizades porque eu também fiz por isso. Uma vez eu vi um patrão a falar duro com um jovem trabalhador português e eu pensei: “Como é que eu irei reagir se ele alguma vez falar assim para mim?” Eu estava em Portugal há quatro meses apenas, e não sabia o que tinha acontecido, mas não existe razão para qualquer pessoa tratar um ser humano daquela maneira.

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

A metamorfose Os hábitos culturais de Jaír mudaram; por exemplo, ele alterou a sua dieta da comida típica dos brasileiros, como o arroz e o feijão, para a comida tradicional portuguesa: Eu gosto muito de comer arroz com feijão, mas quando sou eu a cozinhar eu acrescento carne e preparo-o de forma que fique idêntico à sopa da pedra. Quando eu cheguei, fui viver para a casa de uns amigos; e estes amigos estavam a trabalhar para uma família portuguesa que costumava sentar-se com eles à mesa e conversar com eles. Esse casal tinha um filho, e quando ele estava a contar piadas eu ria mas na realidade eu não conseguia perceber uma palavra do que ele estava a dizer. Quando eles estavam a falar entre eles, eu olhei e pensei que eles poderiam estar a falar mal dos seus empregados. Tudo me passou pela cabeça. [...] Hoje em dia o meu sotaque é misturado. Muito mesmo. [...] Hoje em dia, eu falo um misto de brasileiro e português. Por exemplo, eu já não digo “Brasiu”. Já digo Brasil. Hoje em dia, quando falo com a minha mãe e lhe digo que vou à escola de condução, e uso o termo português, ela não percebe, por isso tenho que utilizar o brasileiro “auto escola”.

O eu intercultural Para Jaír, o futebol é uma ferramenta com a qual ele construiu uma ponte entre a sua cultura de origem e a cultura portuguesa. Assim, em Portugal ele tornou-se um fã do Benfica apesar de ele continuar a ser um fã do Atlético Mineiro. […] Quando eu cheguei a Lisboa eu vi tantas pessoas com a camisola do Benfica e apenas um com a do Sporting, eu pensei: Eu vou ser um fã do Benfica, é a equipa mais popular. Então ouvi a história do clube, que já não ganhava o campeonato há muito tempo, mas isso não fazia diferença porque o meu clube no Brasil apenas ganhou o campeonato uma vez; mas é muito difícil porque no Brasil há 15 equipas que lutam pelo campeonato.

Jaír encontra-se regularmente com outros brasileiros; eles frequentemente almoçam juntos, até mesmo sem avisar; ele vê os canais brasileiros na TV Cabo e muitas séries brasileiras que são transmitidos pelos canais portugueses. Fala com pessoas no Brasil duas a três vezes por semana para saber como as coisas estão a correr.

O seu projecto actual [...] Eu já comprei uma casa e um pedaço de terra no Brasil com o dinheiro que ganhei aqui […] Eu comprei-o muito barato. Se eu quisesse podia comprar duas propriedades por ano e não preciso de poupar tanto. Antes de ter 35 anos eu quero aproveitar a vida. Eu conheço muitos imigrantes brasileiros que vieram para Portugal e tudo o que comem é arroz e ovos no sentido de poupar o mais possível; mas eu não faço isso. Eu como carne todos os dias.

7.2. Edilson e Sandra Edilson e Sandra estão casados há quatro anos. Têm um bebé recém-nascido. Vieram de uma cidade do interior a 400 km de São Paulo, São José de Rio Preto. Edilson trabalha numa estação de serviço na Nazaré. A Sandra deixou de trabalhar quando casou. Até há poucos meses, trabalharam os dois num café, mas quando engravidou deixou de trabalhar. Actualmente estão a tratar do processo de legalização. Juntamente com o casal, vive um irmão da Sandra e outro imigrante brasileiro. Nós temos um visto para três meses mas está a acabar; agora precisamos de uma licença de trabalho. (Edilson) Sandra tem um irmão a viver em Lisboa que a ajuda financeiramente.

Em busca de um futuro melhor Quatro anos passaram desde que nos casamos. Sandra não estava empregada e não tínhamos condições de pagar todas as contas. Tínhamos acabado de comprar uma casa e de pagá-la metade. Decidimos tentar a nossa sorte, com 37

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

os dois a trabalhar talvez conseguíssemos melhorar a nossa situação. O irmão dela já estava em Portugal. Vendemos tudo. Apenas mantivemos a casa. (Edilson)

Um começo difícil Para Edilson a adaptação inicial foi difícil: Nós levamos um ano até nos adaptarmos…Nos primeiros dois dias, eu queria voltar para o Brasil. […] O contacto com as pessoas, vê-las, a forma de falar, o clima, há mais alegria no Brasil. Aqui é muito calmo […] Então eu estive em casa doente e quis ir embora. É diferente. Não estou a dizer que é mau […] Nós não conhecemos muito de Portugal, apenas conhecemos Leiria e Lisboa. Nós não viajamos porque não temos carro e sem carro nada feito. E para além do mais, eu não tenho carta de condução.

A vida de imigrante Quando Sandra estava a trabalhar pudemos poupar algum dinheiro. Em Portugal a vida dos imigrantes é assim: num casal, um paga as contas e o outro poupa o dinheiro e eu não estou a mentir. Pode perguntar a quem quiser. A nossa vida aqui é do trabalho para casa e de casa para o trabalho, e quando tivemos fora foi por causa do bebé. Nós não podemos ir beber um copo à noite. O dinheiro que gastaríamos nessas bebidas seria necessário para outras coisas. Por isso vemos televisão à noite.

As duas margens do rio Nós temos o canal 25 que nos traz as novidades do Brasil; podemos ver também muitas séries brasileiras. Tudo o que os brasileiros querem é televisão, futebol e Carnaval, nada mais […] (Sandra). O churrasco tradicional que reúne os brasileiros ao fim-desemana não é um hábito regular deste casal por motivos económicos, dizem eles. Em ocasiões especiais como a passagem de ano e os aniversários, eles normalmente visitam outros imigrantes brasileiros para matar as saudades de casa: 38

Eles vêm aqui e nós vamos para casa deles…apenas dois ou três casais. (Sandra) Nós telefonamos para casa todos os fim-de-semana e isso ajuda a suportar as saudades de casa. Nós precisamos de saber como estão os nossos irmãos, como está a mãe, ela adora falar sobre a bebé. Quando o Leandro nasceu, a mãe de Sandra veio para ficar connosco durante três meses para ajudar a sua filha. (Edilson)

O projecto é regressar [...] Se tivéssemos melhores condições aqui, eu com um emprego, o Leandro num jardim-de-infância, mesmo assim teríamos que visitar o Brasil porque já passou muito tempo. A espera é a coisa mais complicada. Toda a nossa família lá e nós aqui…isso faz-nos querer deixar tudo. (Edilson)

A rejeição da metamorfose Este casal não parece estar muito interessado em triunfar na sociedade Portuguesa. Não demonstram grande interesse em se integrarem na sociedade local e participar nas festas e viver de acordo com o quotidiano português. Não se sentem muito mudados, porque o seu projecto é voltar para o Brasil, logo que a vida o permita. Mudados? Não! Apenas um pouco diferentes na forma de aproveitar o tempo livre. Tivemos que mudar porque estávamos acostumados a sair muitas vezes. Eu tinha o meu emprego, o meu carro, a minha moto, eu tinha tudo. Eu costumava ir para o trabalho à tarde e depois íamos para casa do meu irmão. Aqui não podemos fazer nada disso. Por isso sentimos uma grande diferença. (Edilson) Ainda em relação à comida, este casal recusa a cultura portuguesa. Eles conhecem os pratos portugueses mas não gostam deles: Eu tento arranjar comida brasileira o máximo possível” (Sandra).

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

Edilson gosta de beber a cerveja portuguesa mas acrescenta imediatamente: Também gosto da cerveja brasileira […]. Enquanto Jaír usou o futebol como uma plataforma para o processo de identificação com Portugal, Edilson utiliza o desporto para enfatizar a sua identidade brasileira: É assim, no Brasil a competitividade é maior, há mais equipas; aqui não há tantas equipas mas também é bom porque há muitos jogadores que são estrangeiros. Existem três boas equipas, Sporting, Porto e Benfica mas eu não sou fã de nenhuma dessas equipas […] Se há um jogo entre Portugal e Brasil, “eu apoiarei o Brasil porque é o melhor. (Edilson)

A imagem de Portugal A imagem de Portugal que este casal tinha antes de deixar o Brasil era a imagem que lhes fora transmitida pelos seus avós portugueses, que nasceram na ilha da Madeira. Para aqueles que ficaram no Brasil: Portugal é um país muito rico. Eles pensam que nós somos ricos, cheios de dinheiro, que estamos a ter uma grande vida porque eles não sabem os sacrifícios que temos que fazer e o quanto isso é duro para nós […]. (Sandra) Quando questionados sobre a sua relação com os portugueses e a existência de discriminação, a sua resposta é ambivalente: Nunca tivemos problemas. (Sandra) Nós sempre nos apresentamos como brasileiros mas fomos muito descriminados no início. Muitas pessoas eram desagradáveis connosco quando estávamos no trabalho, falavam connosco com desprezo: “Faz isto, faz aquilo, estás aqui para trabalhar! (Edilson) Eram sobretudo aqueles bêbados que ficavam no café após este fechar que mais nos irritava […] Até considerámos o regresso ao Brasil porque isso não era aceitável. Não fizemos mal a ninguém. No dia seguinte o patrão veio falar connosco e disse para termos calma. (Edilson) [...] Às vezes as pessoas ficavam nervosas, não por causa do serviço mas sim por algum mau funcionamento das

máquinas que os fazia ficar à espera um pouco, e então eles diziam: “Tinha que ser um brasileiro”. Eu normalmente respondia que tinha muito orgulho em ser brasileiro e perguntava-lhes se tinham algum problema com isso. Eu sou sempre educado com toda a gente no meu trabalho. Não faço mal a ninguém, eu pago os meus impostos. (Edilson)

O projecto [...] O nosso plano era trabalhar até ao final do ano para levar algum dinheiro para casa e depois regressar ao Brasil. (Edilson) Viemos para aqui com a intenção de ficar no máximo um ou dois anos. (Sandra) Mas o nascimento de Leandro veio alterar o projecto. Agora não é possível; talvez no próximo ano porque se ela não encontrar um emprego, e eu sou o único a trabalhar não vale a pena estar longe dos amigos e não conseguirmos poupar dinheiro. (Edilson) A ideia é voltar ao paraíso perdido da cultura de origem, apesar das dificuldades da vida no Brasil: A dificuldade é esta, era difícil para nós quando éramos só dois, agora com o bebé para alimentar, é mais complicado. (Edilson) Contudo, o projecto é uma construção permanente, dando origem a novas dúvidas: Eu fiz um plano para Janeiro do último ano que foi alterado pelo facto de ela ter ficado grávida; agora estamos a planear ir embora, talvez no próximo ano, mas este plano também pode ser alterado. (Edilson) Enquanto Sandra está certa de que a felicidade reside no regresso ao Brasil, Edilson está dividido, dizendo uma coisa e quase de imediato o oposto, não interessando o tema da discussão: comida, bebida, tempos livres, Carnaval, ou as suas ideias sobre os portugueses e a sociedade portuguesa: 39

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Eu não tinha ideia nenhuma dos portugueses; não conhecia a cultura mas agora que a conhecemos, nós até gostamos. O primeiro ano foi terrível, mas agora tenho uma boa impressão, gosto tanto que até estou inclinado a ficar mais tempo […]. (Edilson)

7.3. Ronaldo Ronaldo é médico. Está em Portugal há dezassete anos. Tem uma família luso-brasileira (a mulher é portuguesa, de Coimbra), e tem duas filhas do primeiro casamento. Embora nascidas em Portugal, não lhes foi concedida na altura a nacionalidade portuguesa, devido à legislação que vigorava então.

O eu intercultural Ronaldo reclama para si o direito de ser tudo: da primeira, da segunda e de todas as margens. Assume-se como um projecto em aberto: Eu sinto-me um cidadão da Terra. Eu não sou aquilo que nasci, eu sou o que construí, eu sou o que sou hoje. Se vai ser assim amanhã, não sei, provavelmente não. Provavelmente amanhã vou juntar mais coisas, mais aprendizagens, mais experiências e se calhar vou estar diferente, vou estar com outras visões, até me posso tornar um fundamentalista ou ainda um indivíduo mais aberto do que sou hoje. Não vejo as coisas com essa fixação no tempo. A minha experiência de vida foi fundamental para essa minha capacidade camaleónica de me adaptar. A sua adesão à cultura de origem faz-se por um apego às tradições alimentares do Brasil, e a firme recusa de pratos tradicionais portugueses. Esta identificação primordial é também fortemente reivindicada através de um investimento afectivo na escola de samba a Portela, ou no clube de futebol brasileiro, o Flamengo; investimento que não faz em qualquer clube português. Não me peçam para torcer por outra escola que não seja a Portela, não vale a pena, é a escola de samba do meu coração cujas cores são azul e prata. Eu assisto ao 40

desfile da Portela religiosamente os outros vejo [risos]; é um pouco ritual, também há o ritual quando sento para ver o Flamengo a jogar, não é a mesma coisa que sentar para ver o Porto jogar ou o Benfica. Quando o Flamengo joga saiam de perto de mim porque aí o fundamentalismo quase chega às raias da loucura [risos] tenho os meus pontos fracos, sou humano. O Flamengo é que é o meu coração, o que é que eu vou fazer eu não consigo torcer por outra equipa. Quando estão ali duas equipas a defrontarem-se escolhe-se uma para ter mais simpatia mas não me consigo fixar por outra equipa, não dá para sofrer, é o Flamengo. Se o futebol funciona como âncora importante à cultura de origem, essa dimensão ontológica, o apelo das raízes, é reforçada pelas preferências alimentares, inequivocamente brasileiras. A alimentação , importante veículo do simbólico, é um reduto para Ronaldo afirmar a sua identidade original, e rejeitar a assimilação total na cultura portuguesa, pela veemente recusa dos pratos mais emblemáticos da cozinha portuguesa. Eu não me adaptei facilmente do ponto de vista alimentar. Na altura em que cheguei a Portugal, os cozidos, os grelhados não faziam parte da minha alimentação, eu até hoje continuo a alimentar-me brasileiramente: abomino couves; então caldo verde é uma questão fora de qualquer conversa; o cozido à portuguesa é um prato que não me serve para rigorosamente nada; entretanto o bacalhau do jeito que for, “marcha” que é uma “gracinha”; tenho um “asco” de sardinha assada – para mim aquilo é a visão do inferno, é o quadro de Dante bem pintado; mas em contrapartida sou apaixonado por um robalinho grelhado, há uma identificação com as coisas e não com a nacionalidade delas. E posso me gabar de ter ensinado a minha esposa a fazer muita coisa que ela faz hoje, de comida brasileira e não só.

“Um português de brincadeira” na margem de cá

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes Brasileiros em Portugal

Através da família portuguesa, das filhas, e da nação, simbolizada pelo hino português que entoa de forma emocionada, este imigrante brasileiro reclama a sua portugalidade. Você coloca pão para assar no forno, o que é que sai de lá? Pão ou borboleta? Sai pão. Portanto, as minhas filhas são portuguesas, elas nasceram aqui, filhas de pais brasileiros mas são portuguesas, sempre senti isto. A questão é saber qual o enfoque que se vai dar a esta questão, oficialmente não são, tecnicamente se calhar também não. Eu, inicialmente, mantive-me completamente brasileiro, imigrante sem laços. O estatuto de igualdades, direitos e deveres transforma-me num indivíduo brasileiro com os mesmos direitos e deveres de um cidadão português, é como se eu fosse português de brincadeira. O Hino Português me faz muita diferença, eu tenho uma relação com o Hino Português muito curiosa porque quando eu chego a Portugal e vejo a eloquência, a rapidez com que o hino chega aos portugueses, eu fiquei completamente encantado com isso, então ficou uma simpatia muito grande pelo hino. Hoje quando se canta o hino nos jogos da selecção, por exemplo, há bem pouco tempo estava a começar um jogo de Portugal e começámos a cantar o hino “Heróis do mar nobre povo …” e as minhas filhas ficaram a olhar para mim e perguntaram-me se eu sabia o hino todo. Claro que eu sei como é que eu vivo há 17 anos aqui e não ia saber o hino, esse hino para mim já faz muita diferença. A “portugalidade” já me é muito cara. Não vou deixar de ser brasileiro nunca.

A metamorfose É ainda o olhar dos outros que permite objectivar a transformação operada, e tomar consciência dessa disjunção da identidade. Eu não sou o Ronaldo sempre, muitas vezes não tão directamente, mas mais pelas costas, eu sou “O Brasileiro”, ah é aquele médico brasileiro. Isso dá-te uma dimensão da importância da conduta que cada indivíduo como uma individualidade tem fora do seu país, você é representante do seu país.

Não, sou brasileiro, mas também posso dizer que sou português.

A fuga pela terceira margem do rio Com um pé em cada margem, onde criou raízes, Ronaldo é como uma orquídea, viajando pelo espaço em busca da terceira margem, o lugar que não existe em parte nenhuma, ou que poderia ser qualquer lugar da Terra. Claro que eu tenho raízes, não há como negar isso, agora não quer dizer que eu não possa estar bem onde estou. As raízes das orquídeas estão metidas na árvore que as sustenta, mas elas às vezes vão até o solo, as raízes das orquídeas são muito grandes, a planta é que é pequenina. A sensação que eu tenho é que o Brasil é pequeno demais, Portugal é pequeno demais. Se por qualquer razão eu tivesse que ir viver para a Rússia ou para a Bulgária eu iria, não sei se teria mais ou menos dificuldade, mas eu não encararia com nenhum receio o facto de ir viver para a Bulgária. O emigrante é um sem terra, não tem lugar no mundo, haviam de criar imediatamente a “Emigrónia” (risos) porque é um problema seríssimo. Eu aqui em Portugal sou brasileiro e quando vou ao Brasil sou português. A “Emigrónia” não existe, eu não tenho canto. Hoje quando vou ao Brasil toda a gente me chama “O Português”. Há duas cidades no mundo que eu trocaria Caldas da Rainha por qualquer uma delas: Barcelona e Rio de Janeiro, mas este não existe mais, é uma cidade extremamente violenta, abusivamente desumana para aquilo que eu gosto. E sou completamente siderado por Barcelona, rendido, são as duas cidades que me encantam definitivamente a nível de modo de vida e isso dá mais ou menos uma ideia da minha maneira de ser, sou pouco ligado a formalidades.

8. Em jeito de conclusão A sociedade portuguesa é presentemente uma sociedade multicultural dispondo de todas as variedades linguísticas e culturais 41

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

dos locais que outrora fizeram parte do império português. Juntamente com os imigrantes dos antigos territórios portugueses em África, Ásia e América do Sul, há também os europeus de Leste que depois da implosão da União Soviética começaram a procurar uma melhor vida na Europa Ocidental. O estudo das metamorfoses na identidade dos imigrantes mostra que pode haver diferentes estratégias. Vivendo entre duas culturas, o indivíduo numa situação de aculturação é confrontado com a escolha de uma ou de outra. Como resultado disso, o imigrante pode tornar-se etnocêntrico, como a Sandra, que recusa a nova cultura e idealiza a cultura de origem; ou um oblato, que idealiza a cultura de chegada e esconde a cultura de origem; ou o trânsfuga intercultural, como o Jaír e o Ronaldo, que sintetizam ambas as culturas, e tornam-se terceiras pessoas; ou, ainda como o Edilson, alguém que não consegue fazer essa síntese e é incapaz de escolher. Vive dividido entre dois mundos (Vieira, 2004).

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PATRIMÓNIO MONUMENTAL

Património Monumental da Região de Leiria Apontamentos fotográficos

Foto 1 Vista para o castelo de Leiria, da Praça Rodrigues Lobo

Foto 2 Perspectiva do castelo de Pombal

Foto 3 Escadaria do Santuário de Fátima

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 4 Santuário de Fátima

Foto 5 Vila de Óbidos

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 6 Mosteiro da Batalha

Foto 7 Mosteiro de Alcobaça

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria1 Saúl António Gomes Historiador

1. Quero começar por agradecer à Organização deste Ciclo de Conferências “Património e Identidade”, o amabilíssimo convite, formulado pelo Senhor Doutor Ricardo Vieira para participar neste vosso projecto. É com muito gosto que aqui estou. A minha vinda a esta Cidade, nesta ocasião, traz-me à memória a parábola evangélica do Filho pródigo. Oxalá eu não desmereça da confiança em mim depositada. Há pouco, a Senhora Doutora Alda Mourão, muito gentilmente, na apresentação que vos fez do meu currículo científico, alongou razoavelmente o seu significado. Isso, eventualmente, explicar-se-á mais por essa liturgia da prodigalidade do filho que retorna à casa paterna, do que pelo mérito que efectivamente a minha obra deterá. Expostas estas palavras, que não têm outro sentido que não seja o apelo à benevolência da assembleia presente, passo a entrar na reflexão que me foi pedida, a qual se debruça sobre a questão do significado histórico e sociocultural hodierno da monumentalidade edificada na região leirenense, observada enquanto património, isto é, enquanto herança recebida, mantida e transmitida pelas gerações de antanho aos tempos de hoje.

1

Este texto corresponde ao espírito da intervenção oral formulada no Ciclo de Conferências “Património e Identidade”, na Escola Superior de Educação de Leiria, no dia 13 de Abril de 2005. Dando-lhe esta forma escrita, naturalmente, aproveitamos para aclarar algumas das ideias enunciadas, precisar algumas outras e acrescentar, pontualmente, alguma bibliografia de rodapé que poderá auxiliar o Leitor no aprofundamento das questões suscitadas.

2. Quando falamos de património, naturalmente, falamos de tempo, de memória, de História. Falaremos, ainda, de matéria e de espírito, de testemunhos materiais e imateriais da História cuja protecção, em forma legal e garantia dos Estados, se detecta já no século XVIII, acentuando-se nas Centúrias seguintes. Refiro-me não somente ao património natural com a sua geologia e sedimentações naturais alheias ao Homem, mas a um património construído e montado por pessoas, experienciado por elas, na medida em que aquilo que se encontra na base de qualquer “património” é, muito justamente, a comunidade humana na sua propensão habilis, construtora e criadora, simbólica e alegórica2. Reflectir a temática do “património histórico” deve, em verdade, partir da equação maiêutica, escolar, via que, uma vez trilhada, poderá conduzir-nos à compreensão da pessoa, do auctor enquanto construtor do projecto monumental. Os monumentos, como a cidade de Tebas, a das “sete portas”, são realizações humanas, sangue e suor de gentes edificadoras guiadas por saberes técnicos e científicos, tanto quanto por ideias políticas ou ideologias justificadoras. Um monumentum, no seu espírito artístico, nunca é um acto isolado. Traz consigo a memória e a inteligência do passado humano e transporta-as numa postura quase sagrada para o futuro. Como, aliás, a própria etimologia da palavra monumentum deixa entrever, na sua associação entre monere, indicadora de trazer, realizar, com mens e memine, no sentido indo-europeu de (co)memorar, de recordar, de reconduzir ao espírito criador. “Monumentum” significa, neste sentido, aquilo que leva e conduz à ideia fundacional, aquilo que a actualiza, traduzindo-se em acto de recordação feito construção sólida, arquitectónica e táctil. 2

De referir que uma das primeiras leis europeias promulgadas proibindo a destruição de edif ícios antigos, de estátuas, moedas e outras antiguidades deve-se, justamente, ao rei português D. João V, datando de 20 de Agosto de 1721, Lisboa (Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo — Gaveta 2, Mº 4, Nº 64, fls. 1 e 2). Para uma evolução histórica da evolução desta questão, vd. Robert Brichet, “Protection des monuments historiques, des fouilles archéologiques et des sites”, in L’Histoire et ses Méthodes (Dir. Charles Samaran), Paris, La Pléiade, 1973, pp. 969–1023; António Nabais, “Património Cultural”, in Dicionário Enciclopédico de História de Portugal, Vol. II, Lisboa, Publicações Alfa, 1985, p. 85; Jean Pierre Mohen, Les Sciences du Patrimoine, Paris, Éditions Odile Jacob, 1999. 45

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Os monumentos testemunham, como sugeríamos, o princípio da vida humana inteligente e inovadora. Os monumentos sem vida, sem habitantes de coração vivo, desfalecem, entram em letargia, em literal e acentuada deterioração. Este fenómeno é particularmente visível no património monumental arquitectónico. Daí resulta, primeiramente, um aspecto e/ou espectro de ruína, por vezes romântica, outras vezes medonha, quase sempre sedutora, propícia à exercitação da imaginação, ao imaginário livre do sonho. Mas uma ruína pode falsificar o objecto patrimonial na sua vitalidade. Uma sociedade civilizacional não pode deixar de preservar os seus “bens culturais”, valorizando-os pela investigação, conservação, exposição e divulgação nos planos científicos, educativos ou lúdicos, como, aliás, se consagra, com felicidade, na recente Lei-Quadro dos Museus Portugueses3. O conceito de bem cultural remete à lexicografia de património e às suas lógicas subjacentes. O património, material e imaterial, senhoria espaços e tempos próprios. A sua experimentação concretiza-se na afirmação de um território que pode ser um ecomuseu ou um museu como edif ício mais tradicional, num discurso identificador que apresenta propostas educacionais no domínio da saber, da investigação, mas também no quadro da vida e da sua descoberta pelo acesso fundamental ao speculum do passado nas suas expressões artísticas ou artesanais, nas suas arqueologias do antanho mas também prospectivas do porvir. O património não pode ser, assim, uma caixa-forte cujo código de acesso só é permitido a alguns poucos guardiões. Deve ser partilha, conhecimento e cidadania em ordem a garantir o maior objectivo da democratização da cultura, da promoção da pessoa e do desenvolvimento social universal4. No entanto, sabemos que, durante muito tempo, a intervenção do Estado português no património histórico em ordem a promover a sua preservação, especialmente o arquitectónico, esquadrinhou os tecidos monumentais nas fronteiras do seu esvaziamento e do princípio do retorno a um ambiente edificado 3 4

Lei nº 47/2004, de 19 de Agosto. Lei-Quadro dos Museus Portugueses, cit., artº 3º, 1. Os mesmos espírito e princípios encontram-se na legislação internacional dedicada à protecção dos bens e heranças culturais. Vd. Cartas e Convenções Internacionais. Património Arquitectónico e Arqueológico. Informar para proteger, Lisboa, IPPAR, 1996.

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puro e imaculado. O património monumental ou museológico é em numerosos casos, ainda hoje, uma defesa intáctil, inabitável, estigmatizado pela redoma de vidro de um como que “noli me tangere”, prevalecendo os modelos de gestão autocráticos inibidores do pleno cumprimento do alto desígnio da acessibilidade do património ao maior número dos cidadãos. De facto, a liquidação desse património monumental na sua funcionalidade, iniciada frequentemente pela aplicação de uma gestão financeira insensível aos padrões de vida das massas populacionais de um país, contudo, em vez de aproximar as pessoas do mesmo, afasta-as, quebrando-se os laços de comunhão social entre o presente e esse passado, assim se fragilizando as hipóteses de sobrevivência e de transmissão dessas heranças culturais que se tornam pouco relevantes para a experiência cultural quotidiana dessas mesmas populações. Um conjunto patrimonial, por mais rico e fausto que possa parecer, não é, em realidade, significante para uma população maioritariamente dominada pela pobreza económica ou pela ausência de políticas sociais públicas de protecção e apoio. Isso poderá contrariar-se, naturalmente, pela democratização do sistema educacional. Mas este, para ser equilibrado, necessita da identidade emergente desse mesmo património cultural, o qual, como escrevemos, não é prioritário numa sociedade sem recursos económicos. A política parece afectar todo o património cultural e este espelha certamente toda a política, estrutural ou conjuntural, de uma nação. Há que entender a existência de um contrato social entre o presente e o passado que não pode castigar aquilo que o devir histórico tem de mais precioso, isto é, o Homem na sua realidade concreta e em permanente e dialéctica transformação. As políticas de defesa, salvaguarda e protecção do património revelamse, hoje em dia, cada vez menos democráticas na concessão dos direitos inalienáveis da sociedade global em aceder de forma livre ao seu passado enunciado na realidade palpável que o espelha e a que chamamos património histórico. O Estado, em particular o português, nos seus agentes burocráticos tentaculares, tem vindo a obscurecer, pelo interdito, pela multiplicação de exigências financeiras traduzidas em taxas e direitos de “imagem”, bem assim pela ausência de valorização pública dos espólios museográficos e arquivísticos, a luminosa patine que torna os objectos patrimoniais dignos de admiração e de contemplação.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

Contemplar é comungar, partilhar, revestir-se do espírito edificante. Os nobres e antigos ideais de serviço público, de serviço da “res publica”, estão, em Portugal, demasiado esquecidos dos agentes e técnicos que devem realmente defender, valorizandoo, esse património monumental. Há necessidade de uma outra cultura patrimonial. De uma cultura que veja no património um objectivo comum, um marco da identidade colectiva, tornando-o numa referência social cujo conhecimento, estudo e divulgação importa incentivar, criando estruturas para tal, e não, como tantas vezes se experimenta, interditando-o, privando-o de muitos modos, atitudes que o tornam prisioneiro de opções de penumbra fria sem vida e sem paixão. Na liturgia desta relação do património com a vida, encontramos o convite à revisitação das heranças culturais e históricas. Parece-nos muito simbólico, quanto sintomático, um aparente cientismo exacerbado quando se montam exposições museográfico-documentais todas elas percorridas na penumbra e em ambientes em geral frios. Porque, eventualmente, o património, ou algum património, se preserva melhor a baixas temperaturas. Mas isto é, na minha interpretação, uma neomitologia contemporânea, um retorno à alegoria simbólica da caverna pré-platónica, do encontro da verdade e do encontro do saber na obscuridade telúrica. O património vive em contrariedade e segundo princípios contraditórios.

3. Na região de Leiria, por exemplo, quando as monjas cistercienses de Santa Maria de Cós (c. Alcobaça) foram obrigadas a abandonar o seu edif ício monástico, em 1834, este começou de imediato a ser saqueado, não merecendo, desde então e até meados do século XX, qualquer restauro5. Bem pelo invés, tornou-se pedreira e estaleiro de obras locais mais ou menos públicas, mais ou menos privadas. Foi preciso atingir a década de 1950, para o Estado começar a olhar para esse antigo património de Cister. 5

Vd. Cristina Pina e Sousa e S. A. Gomes, Intimidade e Encanto. O Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Cós (Alcobaça), Leiria, Magno e IPPAR, 1998.

De um Cister que, enquanto ideia, se revela tópico, hoje em dia, muito relevante na vida económica e social da região leiriense, sendo usado e abusado nos domínios turístico e publicitário. Mas enquanto aquele Mosteiro foi habitado pelas suas devotas e austeras religiosas, sempre se cuidou, preservou e potenciou o conjunto edificado. Porque, antes de tudo o mais, era um espaço habitado. Uma telha que se partia, uma infiltração de água que fragilizava uma parede, uma janela ou porta que se estragava, tudo era prontamente reparado. Com o abandono do edif ício, no entanto, tudo se transformou em liberal e nacional ruína. Não se recuperou, ainda, em terras dos antigos Coutos de Alcobaça, muito do património monumental outrora levantado naquelas paisagens pelos hábitos e saberes dos antigos Cistercienses. Conventos, como o de Cós, igrejas e capelas, granjas e quintas, lagares e moendas, por ali se espalham tantas vezes expondo, nas suas paredes arruinadas, a agonia de um património que sobrevive, hoje, mais na memória social e oral das populações locais do que na capacidade das instituições públicas em preservarem e revitalizarem tais monumentos históricos, porque de monumentos, efectivamente, se trata. É certo que a História não tem regressos. No entanto, parece-nos que todo o monumento restaurado necessita de funcionalidade e vocação. Ora, restaurar para o vazio é contraditório. Por outro lado, usufruir de um património, como garantia democrática e constitucional, em suma, cultural, não colide com a sua utilização por parte de outras entidades. Há que, em muitos lugares, devolver às populações, às autarquias, às paróquias a responsabilidade da gestão e preservação desses património monumental, em grande parte ilegitimamente apropriado pelo Estado no decurso dos seus processos revolucionários como sucedeu em 1834 e 1910, bem como entre aquelas datas. Recordava, pois, que quando falamos de património deveremos considerar, em primeiro lugar, as pessoas, só depois os monumentos; as pessoas nos monumentos e para além dos monumentos. São as pessoas que construíram essas histórias de lugares e bens culturais edificados; histórias projectadas em materialidade, em objectos cujo sentido se remete inteiramente ao Homem. A grande questão do património cultural é, assim, a do Homem entrevisto enquanto construtor da sua própria identidade. 47

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

“No princípio era o caos” , ideia que tomamos dos textos da memória genesíaca da Humanidade. Fazem parte, tais textos, da estrutura religiosa do Ocidente e, de algum modo, da historicidade da região de Leiria. Leiria começa também nesse “caos” inicial e simbólico. Mais do que um povoamento ininterrupto, neste território, temos povoamentos e repovoamentos. A ocupação pré-histórica deste espaço geográfico, objectivamente, não define a ocupação medieval do mesmo. Esta medievalidade tem capitalidades próprias, de que, no presente, somos herdeiros. Mas a ocupação contemporânea do território leiriense, no século XX, especialmente nos últimos 30 anos, ultrapassa em muito as arqueologias habitacionais mais ancestrais. Neste sentido, a ocupação contemporânea do espaço leiriense parece ser muito a-histórica quando colide e apaga esse património histórico e arqueológico de outrora, cuja formatação contraria a pressão habitacional hodierna, gerando tensões e perdas patrimoniais verdadeiramente lamentáveis. Neste ponto, bem poderemos enunciar que o presente afronta o seu passado6. Isso é, naturalmente, uma contradição. E a primeira contradição, quando reflectimos sobre o património local leiriense, é, por um lado, a que deriva da postura assumida do reconhecimento científico e laboratorial da relevância, da qualidade e do significado transfronteiriço do património 6

Para uma informação mais consolidada acerca destes processos, veja-se o recente catálogo Habitantes e Habitats. Pré e Proto-História na Bacia do Lis (Coord. Geral de Susana Carvalho e de João Tiago Tavares), Leiria, Câmara Municipal de Leiria, 2005. O período romano foi bem estudado por João Pedro Bernardes, na sua dissertação de doutoramento intitulada A Civitas Colliponensis, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2002 (policopiada). Para a Idade Média e séculos mais imediatamente posteriores, seja-nos lícito remeter para os nossos trabalhos “A Organização do Espaço Urbano numa Cidade Estremenha: Leiria Medieval”, in A Cidade. Jornadas Inter e Pluridisciplinares, Actas, Vol. II, Lisboa, Universidade Aberta, pp. 81-112; “A População e o Povoamento de Leiria do Século XII ao XVI”, in Leiria-Fátima, Órgão Oficial da Diocese, Ano III, Nº 8, Número especial - 450º Aniversário da Diocese e Cidade de Leiria, Maio-Agosto 1995, pp. 225-317; Introdução à História do Castelo de Leiria, (2ª edição revista e ampliada), Leiria, Câmara Municipal de Leiria, 2004; “O Priorado Crúzio de Santa Maria de Leiria do Século XII à criação da Diocese”, in Catedral de Leiria. História e Arte (Coord. de Virgolino Jorge), Leiria, Diocese de Leiria-Fátima, 2005, pp. 13-46 e Porto de Mós. Colectânea Histórica e Documental. Séculos XII a XIX, Porto de Mós, Câmara Municipal de Porto de Mós, 2005.

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construído nesta região versus a projecção espectacular que o mesmo tem, ou melhor, não tem, de uma forma geral e a título de exemplo, no âmago da escolaridade oficial e dos respectivos programas de ensino, no campo celebrativo da comunicação social como jornais, rádios e televisões, e, finalmente, das aprendizagens intelectuais nacionais, da lusitana intelligentia, em torno do património histórico português, mediterrâneo e ocidental. Toda a gente sabe que existe um Mosteiro de Alcobaça, coroa de glória do património monumental cisterciense europeu; mas muito poucos colocam o Mosteiro de Alcobaça na região que é a sua, a leiriense, como se se tratasse de um monumento insituado, erguido em território imaginário e não concreto, de uma aparição sem historial humano. O mesmo poderemos escrever em relação ao Mosteiro da Batalha, no qual repousam várias gerações da dinastia avisina, justamente aquelas que a fundaram e lhe emprestaram maior brilho e glória. São dois monumentos mundiais, classificados como tal pela Unesco, instituição em que se concentra o melhor da inteligência mundial, mas que não parecem arrastar notoriedade para o todo patrimonial que é o Distrito de Leiria7. São monumentos em Portugal, mas a sua localização na estremadura leirenense escapa de todo aos roteiros e inventários patrimoniais sobre os mesmos. Como se, em boa verdade, a história desses dois grandes monumentos não fosse, em primeira mão, a desta região, das cidades e vilas que os envolvem, daquelas gerações que, aqui vivendo e morrendo, ergueram, por suas mãos, tais góticas arquitecturas. A contradição está neste aparente desacerto entre o significado mundial de tais monumentos e o seu sentido local verdadeiro. Os leirenenses, em geral, conhecem bastante bem a sua história. Esta não coincide frequentemente com aquela que, por vezes, vem nos manuais escolares oficiais. Por exemplo, toda a gente que aqui vive sabe que a chamada Batalha de Aljubarrota aconteceu no Campo de S. Jorge, antigo e presente termo de Porto de Mós. Mas a imensa maioria dos portugueses coloca-a na actual povoação de Aljubarrota, na qual, de facto, ela não decorreu, posto que dali tenham retirado, gerações tardias e estrangei7

A classificação dos monumentos do Distrito de Leiria pode verificar-se comodamente, até 1993, no caderno Património Arquitectónico e Arqueológico Classificado. Distrito de Leiria, Lisboa, IPPAR, 1993.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

ras, o título que a celebraria mundialmente. Se, por hipótese, o cronista Froissart fosse leirenense, não teria cometido tal erro e ter-lhe-ia chamado, como o fizeram durante muitos anos os portugueses que nela combateram, simplesmente Batalha Real, a qual, no Portugal de finais do século XV, ainda todos identificavam perfeitamente como aquela que ocorreu no dia histórico de 14 de Agosto de 13858. Esta ausência de entendimento claro do significado regional da história nacional que aqui se ancora, pressupõe uma tarefa imediata para os historiadores da região: a de investigarem mais profunda e amplamente o passado deste território. Só com essa investigação, cremos, se poderá ultrapassar a debilidade e desacerto apontados entre Leiria e a sua grande monumentalidade, a qual, como se referiu, não é vulgarmente reposta no seu terreno histórico-arqueológico efectivo.

4. Depois do “caos”, que é o do espaço que a natureza-mãe nos dá e que foi sendo ocupado e reocupado esquecidamente, teremos o espírito do lugar. E o espírito do lugar é qualquer coisa muito notória, porque, como verificávamos há pouco, na intervenção acerca de Óbidos, aqui estamos perante uma vila que se mostra como berço da medievalidade, como espaço feminino e fecundo, progenitor, como cidade de rainhas, como urbe metamorfoseada em mãe-natureza, uma metafórica mãe-rainha que se encontra gravada no inconsciente colectivo português. Isso não corresponde, enquanto complexo fenómeno antropológico cultural, posicionável no campo da memória social nacional, a uma herança exclusiva do Estado Novo. Já na Primeira República essa vocação de Óbidos para berço de uma medievalidade portuguesa era uma ideal que agradava aos círculos cultos do tempo. O Guia de Portugal, dirigido pelo caldense Raul Proença, cujo volume em que o Distrito de Leiria é tratado foi editado em 1927, glosa com bastante felicidade o tema. Uma Óbidos que o último quartel do século XX, em plena Democra8

Por curiosidade, veja-se o que escrevemos sobre o tema em “A Memória da Batalha Real de 1385”, in Tempos e História. Comemorações dos 500 Anos do Concelho e Vila da Batalha, Leiria, Câmara Municipal da Batalha e Magno, 2000, pp. 37-75; bem como João Gouveia Monteiro, Aljubarrota. 1385. A Batalha Real, Lisboa, tribuna da História, 2003.

cia, valorizou como nunca, legitimando-a nos planaltos do saber universitário e anexando-a a um certo cosmopolitismo burguês ainda de matriz lisboeta9. Mas Óbidos é, como se sabe, um centro histórico essencialmente moderno, nele dominando os edif ícios de habitação e as igrejas, como a alcáçova castelã, profundamente remodelados nos séculos XVI a XVIII. O espírito do lugar é, contudo, medievo, ou como tal é social e culturalmente projectado, dando azo a recentes encenações que projectam uma Óbidos em horizontes históricos que, em boa verdade, nunca foram os seus ou só muito fugazmente o poderiam ter sido. Óbidos é, claramente, uma herança dos séculos cristãos inaugurados com o povoamento e fundação da vila pelos colonos contemporâneos de D. Afonso Henriques. A estrutura urbana reitera traçados medievos, posto que o seu edificado apresente, sobretudo, como escrevemos, uma fisionomia da arquitectura urbana portuguesa dos séculos modernos. Naturalmente, Óbidos exemplifica muito bem o que deveremos entender por espírito do lugar no domínio das heranças patrimoniais. O espírito do lugar é verdadeiramente importante do ponto de vista da identificação de um património, mesmo que negue a cientificidade do que é objectivo, do que é visível, do que é imediato. Óbidos, por exemplo, será sempre, por mais que os historiadores demonstrem a inexactidão da asserção, um imaginário medieval amuralhado. E, em último lugar, neste processo um pouco religioso, encontramos aquilo a que poderemos chamar de consciência do património. Uma consciência do espírito, do espírito do lugar de que falávamos, entidade a que os intelectuais, os historiadores, os antropólogos, os sociólogos, os arquitectos e outros cientistas interessados pelo homo historicus e que gostam de História, dão interpretação e sentido, disponibilizando, através dos meios de comunicação social ou de edição científica demonstrativa ou de divulgação mais ou menos opinativa, às populações interessadas os fundamentos essenciais da sua identidade histórica, cultural e patrimonial. Populações que, em Portugal, de um modo geral, mesmo quando não são muito letradas, revelam possuir sempre um gosto particular pelo conhecimento do seu património 9

Vd. Teresa Bettencourt da Câmara, Óbidos. Arquitectura e urbanismo. Séculos XVI e XVII, Lisboa, INCM – C. M. Óbidos, 1990. 49

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

edificado. Património que procuram utilizar como espaço de recepção, de fidalga hospitalidade e de integração dos elementos exteriores ou estrangeiros que o visitam.

5. Mas, interroguemo-nos, o que é que acontece quando se constrói um monumento? Como é que e porque é que esse fenómeno histórico se concretiza na “pátria” leirenense? Em primeiro lugar, devemos referir que pensamos em monumentos de aparato como o Castelo de Leiria, o Mosteiro da Batalha, os Castelos de Ourém ou de Porto de Mós, o antigo Convento do Bom Jesus de Porto de Mós ou a Abadia de Santa Maria de Alcobaça. Referimo-nos, pois, à grande monumentalidade. A sua projecção deriva não tanto de sinergias locais e endógenas, mas antes das opções mecenáticas do Estado. No caso dos castelos mencionados, a sua edificação denuncia as opções de ocupação do território por parte da Monarquia reinante nos séculos XII e XIII. De facto, sabemos que o estabelecimento dessas fortalezas resulta, em parte, de uma pressão social e demográfica muito considerável na zona de Coimbra, a qual acabou por obrigar parte da população ali residente a procurar novos lugares de habitat a Sul do Mondego. As áreas de Soure, Ega e Redinha, por exemplo, desenvolvem-se sustentadamente a partir desse fenómeno sóciodemográfico e económico. A defesa dessas populações deslocadas para o Sul obriga as autoridades governantes a tomarem opções em ordem a protegê-las e a organizá-las administrativa e politicamente. Edificam-se, assim, castelos e concedem-se cartas de foral. O território torna-se, desse modo, espaço de ataque por parte dos poderes muçulmanos fortemente sediados em Santarém, os quais se sentem ameaçados pela ocupação cristã da bacia hidrográfica do Rio Lis e da faixa atlântica costeira. Leiria e Óbidos, no actual Distrito, polarizam o essencial desse percurso histórico undecentista. Leiria, aliás, encontra cedo o seu território motivador. Ele coincide com o que os antigos povoadores medievais designaram de terras de “Leirena”, étimo do qual deriva o de “Leirenense”, usado eruditamente já nos escritos do filólogo e historiador Luciano Justo Ramos, oriundo desta mesma região. É na sua peugada que eu uso este termo “leirenense”, porque ele me parece histo50

ricamente mais preciso e geograficamente mais abrangente do que o de “leiriense”, frequentemente reduzido à geografia política do concelho contemporâneo. No alfoz leirenense, em época medieva, integrava-se praticamente todo o território ainda coincidente com os limites da actual Diocese de Leiria-Fátima. Os actuais concelhos de Leiria, Marinha Grande, Batalha, Porto de Mós (com Minde, freguesia entretanto integrada no município de Alcanena e Distrito de Santarém), parte de Pombal e grande porção do de Alcobaça elucidam o que foram esses antigos limites do Priorado e depois da Diocese de Leiria. Esse primitivo espaço revelou-se demasiado vasto para a capacidade de polarização urbana de Leiria. Ao longo da sua história, aliás, a cidade de Leiria sempre se revelou um pólo urbano de pouco peso demográfico face ao volume populacional representado pela soma dos habitantes das aldeias e sedes de vintena dispersas pelo seu aro rural. Ainda assim, a cidade logrou conservar funções administrativas, judiciais, fiscais e históricomonumentais que pesaram na manutenção do seu estatuto de “capital” municipal e também de sede de almoxarifado, de contadoria comarcã fiscal e de comarca administrativa, judicial e fiscal, desde os séculos medievos, e, desde 1835, de distrito10. Dentro dessas estremas leirenenses, germinaram outras entidades de cariz concelhio, posto que em grau e substância diferenciada entre si. Paredes, hoje já só recordada na toponímia litorânea, foi póvoa marítima com estatuto concelhio, criada por D. Dinis (†1325). Algo de semelhante, mas sem o significado administrativo e judicial semelhante àquele, aconteceu com Monte Real, póvoa igualmente fundada no reinado daquele Monarca. Como diferente foi, ainda, o processo de afirmação e autonomização do concelho da Batalha, imposto aos senhores de Leiria (o Rei e a casa donatária da vila, dos Condes e depois Marqueses de Vila Real) e à oligarquia leiriense pelos antigos operários que laboravam no estaleiro da construção do mosteiro gótico batalhino. Foram estes que, em verdade, se impuseram como comunidade vicinal dotada de características individualizadoras. A sua cultura política, nesse meio artesanal e operário 10

Para um conhecimento mais pormenorizado desta evolução, leia-se o nosso estudo “Origens tardo-medievais de uma comarca estremenha: o exemplo de Leiria”, in Arqueologia do Estado, Lisboa, História e Crítica, 1988, Vol. II, pp. 1101-1117.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

como era o estaleiro de construção civil e monumental, caso da Batalha de 1400, era suficientemente distinta e activa para dar origem a um discurso reivindicativo de maiores privilégios e autonomia autocrática local. Tentaram-no, sem sucesso, por 1450, mas viram o seu esforço recompensado em 1500, ano em que D. Manuel I lhes concedeu, como é conhecido, pleno estatuto municipal11. Por outro lado, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória ou da Batalha, símbolo ideológico comemorativo da independência portuguesa face ao iberismo castelhano, viu a sua edificação arrastar-se, como era cânone nessa época, por mais de um século. Os seus custos financeiros foram enormes. Posto que não possuamos os cadernos de despesa ou de encargos da obra, sabemos que, na maior parte, a construção gótica foi financiada pelo dinheiro das rendas do Almoxarifado de Leiria, geradas pelas actividades agrícolas e comerciais locais. Poderemos dizer que foi a riqueza local, derivada do pelo trabalho e iniciativa dos que aqui moravam, que a Batalha foi construída. Se, em verdade, ela representava uma enorme despesa de recursos da região, por outro, naturalmente, ela própria se afirmava como mercado de consumo e, consequentemente, como plataforma geradora de dinâmicas económicas que beneficiaram toda a região. A sua matéria-prima, o calcário, não foi importado nem da zona de Coimbra, nem do Alentejo, sendo antes de extracção local, principalmente das faldas das Serras de Aire e de Candeeiros. Refira-se, a propósito, que alguns curiosos estrangeiros dos séculos XVIII e XIX, especialmente britânicos, se referem a este Monumento como tendo sido construído em mármore. Leitura apreçada, numa região que não oferece, entre os seus recursos mineiros, o mármore, sendo que tal facto conduziu a que, como materiais de construção monumental desta área, em grande parte, se tenha optado por calcários e liozes, por vezes pintados como mármore fingido, caso do que se vê, por exemplo, no

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Vd. o meu livro O Mosteiro de Santa Maria da Vitória no Século XV, Coimbra, Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Coimbra, 1990, bem assim o ensaio intitulado “O Nascimento do Concelho de Batalha”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura – Universidade de Coimbra e Magno, 2001, pp. 381-410.

impressivo Santuário de Jesus dos Milagres, nos arredores da cidade de Rodrigues Lobo. Não deixa de ser curioso, no entanto, que a ignorância desses turistas, ou o esquecimento de quem escreve já na distância espacial e temporal, os leve a identificar os materiais usados no levantamento de tais monumentos como mármores. A leitura seria possível no Alentejo, mas dificilmente no norte granítico ou no centro-litoral estremenho calcário português. O mármore é, contudo, o grande elemento de génese matricial da monumentalidade clássica europeia, especialmente a greco-italiana. Quem conhece as cidades italianas, naturalmente, identifica claramente a riqueza em matéria-prima marmórea desses territórios e, portanto, associa-lhes a grande construção, os grandes modelos construtivos traduzidos nas suas belas catedrais e palácios renascentistas. Estamos, como é bom lembrar, na Estremadura. Os séculos medievais e modernos assim identificaram o território “provincial” no qual Leiria nasceu e se afirmou. Alexandre Herculano, na sua História de Portugal, ainda utiliza o conceito de Estremadura central para aí colocar os velhos Coutos de Alcobaça, enquanto Orlando Ribeiro a referencia na “Estremadura setentrional”. Mas os finais do século XIX e primeira metade do XX, contudo, fizeram do Concelho de Leiria uma fronteira fragmentada. O Rio Lis passa a ser representado, nos mapas escolares de Portugal continental, como a linha de fronteira entre Estremadura e Beira Litoral. Esta é, como se vê, uma invenção conceptual tardo-oitocentista nunca devidamente resolvida quando aplicada ao antigo território leirenense. A extinção da Diocese de Leiria, em 1882, aplicou já uma bitola que prenunciava a “fronteira” Estremadura versus Beira Litoral, colocando à área meridional do Bispado no Patriarcado de Lisboa e a área nortenha no Bispado de Coimbra. Os leirenenses, no entanto, não aceitaram, a própria Igreja não conseguiu compreender o retrocesso histórico, e a Diocese seria restabelecida em 1918, recuperando as suas fronteiras seculares12. É nessa herança, bem como na informação científica de carácter geográfico, etnográfico e histórico, que, desde há uns 12

Vd. Luciano Coelho Cristino, “A Diocese de Leiria-Fátima”, in Catedral de Leiria. História e Arte (Dir. Virgolino Jorge), Leiria, Diocese de LeiriaFátima, 2005, pp. 47-94. 51

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

trinta anos para cá, se tem vindo a propor um conceito algo renovador, o de Alta Estremadura, o qual deve, em boa parte, a sua propalação ao profundo conhecimento etnográfico e histórico de estudiosos da craveira de Manuel Matias Crespo ou de José Travaços Santos, na senda, aliás, da herança de Tito Larcher e de outros seus contemporâneos, sendo que foi prontamente assimilado pelas elites políticas e culturais locais hodiernas13. Estamos na Estremadura. Uma Estremadura que é desde cedo espaço privilegiado de transitoriedade oportuna para uma Coroa itinerante por excelência, como o eram as monarquias do Medievo. D. Afonso Henriques sabia-o muito bem, facto plenamente demonstrado pela sua opção pela conquista prévia, em 1147, de Santarém e, só depois, de Lisboa. Porque, como se sabe, Santarém abria as portas do avanço para Lisboa, assim como a edificação do castelo de Leiria assegurava uma plataforma estratégica de abastecimento e de acolhimento na caminhada de Coimbra para aquela urbe escalabitana, situada que estava a meio caminho da jornada14. Como magna questão dessa opção de conquista de tais cidades emergia a necessidade de ocupação da extensa faixa atlântica que, desde esse momento, passava a controlar. Essa faixa atlântica viu desenhar-se uma fronteira histórica e natural definida pelas Serras de Sicó, Aire, Candeeiros e de Montejunto. No seu flanco ocidental abre-se um território cuja orografia, em geral plana, torna mais fácil os percursos das gentes e a abertura de vias de circulação de bens e pessoas. Ele é, em verdade, um território no qual se pode construir uma estrada com menos custos e mais eficácia em termos de ganhos de tempo para quem nela transitar. Tal situação não se verifica em caminhos serranos traçados nas declivosas Serras de Aire e dos Candeeiros. No quadro histórico regional, não foi um acontecimento fortuito a fixação de uma abadia cisterciense em Alcobaça e a atribuição à mesma, por doação régia, de um extenso domínio coutado. É certo que os Monges de S. Bernardo poderiam ter sido colocados em Ourém ou noutra área próxima ou distante 13

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Como o demonstram a Associação dos Municípios da Alta Estremadura (AMLEI) ou a geografia inspiradora da associação cultural e cívica ADLEI, entre outras. Aspecto já enfatizado por José Mattoso, “A cidade de Leiria na História Medieval de Portugal”, in Fragmentos de uma composição medieval, Lisboa, Estampa, 1987.

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em vias de colonização. Mas tal não sucedeu, reservando-se Tomaréis para uma pequena fundação monástica, primeiro de obediência crúzia e, desde 1217, bernarda. Os Cistercienses souberam ocupar e explorar de forma rentável todo o território alcobaciano que lhes foi atribuído. Acarinharam a emergência de novas aldeias e concelhos nesse espaço, arrotearam as suas paisagens, drenaram pauis e encanaram valas de água, construíram caminhos, pontes, lagares, celeiros e outras infra-estruturas que permitiram a transformação dos bens agrícolas e a prosperidade do comércio desses bens e excedentes produtivos15. O seu legado foi tão forte, que, na contemporaneidade fez germinar o novel conceito geográficopolítico de “oeste”, aplicado em estudo sobre aquele território, dos anos de 1960, depois apropriado para baptismo de um inédito quadro administrativo artificial como é o de “Oeste”16, para abranger uma parte substancial das confluências “fronteiriças” dos actuais Distritos de Leiria, Santarém e Lisboa, preterindose, assim, a matriz plurissecular consubstanciada na designação “Estremadura”. O mar, por seu turno, assumia uma vocação globalmente estruturante na economia desta região. Não tanto pela densa atlantização do povoamento costeiro — este concentra-se sobremodo no flanco oriental das manchas dunares, procurando os veios de água afluentes do eixo principal que é o rio Lis — mas antes pela sua apropriação como factor económico muito relevante na vida regional. É certo que, nesta matéria, os séculos medievais foram mais dinâmicos do que as centúrias que lhe sucederam. A importância do mar naqueles é bem mais considerável do que nos últimos, nos quais os assoreamentos se revelaram irreversíveis, areando póvoas marítimas e fazendo decair 15

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Cf., por todos, Iria Gonçalves, O património do Mosteiro de Alcobaça nos séculos XIV e XV, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1986, bem como os estudos reunidos no catálogo A Arte Sacra nos antigos Coutos de Alcobaça, Lisboa, IPPAR, 1995. Não poderemos deixar de registar, neste tema, a importância, até enquanto intelectual construtor da “identidade” regional estremenha, Joaquim Vieira Natividade, mormente a sua obra A Região de Alcobaça. Algumas notas para o estudo da sua agricultura, população e vida rural, Alcobaça, s. d. Porque, em boa verdade, os resultados científicos, por vezes, inspiram o vocabulário geográfico político. Vd. A Região a Oeste da Serra dos Candeeiros. Estudo económico-agrícola dos concelhos de Alcobaça, Nazaré, Caldas da Rainha, Óbidos e Peniche, Lisboa, 1961.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

as alfândegas locais, de que a mais documentada é a de Salir do Porto, na confluência da “concha” de S. Martinho17. Mas era pelo Atlântico que, em tempos medievos e modernos, se exportavam madeiras e produtos agrícolas para os mercados urbanos de maior densidade populacional; neles se estabeleceram taracenas ou estaleiros de construção naval; aí aportavam frotas de cruzados, de peregrinos e, sobretudo, mercantis, oriundas do Norte da Europa, aproveitadas, entre outros, por mercadores judeus estabelecidos nas principais vilas do actual Distrito18, aqui descarregando têxteis e produtos de consumo de algum luxo; no seu entorno se estabeleceram práticas piscatórias de mar frequentadas por campanhas dos residentes mais litorâneos como sucedia na Foz do Lis (em 1403, por exemplo, os moradores da Granja de Carvide (c. Leiria) eram obrigados a pagar décima do peixe que pescassem “em huuã barca com que vãao pescar ao mar asy com redes come sem ellas”), em S. Pedro de Muel, e, mais fortemente, nas póvoas de Paredes, da Pederneira, de Alfeizerão, de S. Martinho do Porto e de Salir do Porto19. Tal relevância atinge um ponto maior entre finais do século XIII e meados do século XV, marcados pela política repovoadora, reflorestadora e arroteadora dos campos do Lis e da orla 17

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Para tudo isto, veja-se João Cordeiro Pereira, Portugal na Era de Quinhentos, Cascais, Patrimonia, 2003, pp. 49-63 e, também, Adolpho Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e Ilhas Adjacentes, Lisboa, 1905; A Laranjo Coelho, A Pederneira, Lisboa, 1924; Fernando Castelo-Branco, “Os portos da enseada de S. Martinho e o seu tráfego através dos tempos”, in Anais da Academia Portuguesa da História, II série, vol. 23, tomo I, Lisboa, 1975, pp. 257-282; Idem, “O “ilheo de Peniche” na Romagem de Agravados de Gil Vicente”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XI, Paris, 1977, pp. 283-290; Idem, “Alguns aspectos da evolução do litoral português”, in Boletim de Geografia de Lisboa, Lisboa, Julho-Setembro, 1957, pp. 341343; Idem, “Tráfego portuário e História regional portuguesa”, in Actas do Colóquio Papel das áreas regionais na formação histórica de Portugal, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1975, pp. 244-247; Mariano Calado, Peniche na História e na Lenda, 3ª edição, s. l., 1984; Memorial da justiça, que ao real Mosteiro de Alcobaça assiste, na causa, que lhe faz o procurador da rainha n(ossa9 senhora sobre os direitos do porto da villa de S. Martinho, offerecido aos senhores juizes da causa, pelo D. abbade geral esmoler mór, Lisboa, Oficina de Pedro Ferreira, 1756. Vd. S. A. Gomes, “Os Judeus de Leiria Medieval como Agentes Dinamizadores da Economia Urbana”, in Revista Portuguesa de História, T. XXVIII, Coimbra, 1993, pp. 1-31. Cd. Arala Pinto, O Pinhal do Rei. Subsídios, 2 volumes, Leiria, 1938; S. A. Gomes, Introdução à História do Castelo de Leiria, cit., p. 317.

costeira de D. Dinis e de D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa (naquele tempo, contudo, donatária de uma grande parte da Estremadura portuguesa20), bem como dos reis que lhe sucederam. Foi aquele Monarca, recorde-se, que fundou, em 1282, a póvoa e concelho de Paredes e deu azo ao estabelecimento e desenvolvimento de novos pequenos povoados, como Monte Real e Pataias, no termo de Leiria. Paredes e Pataias seriam doadas, pelo rei D. Fernando I, ao Mosteiro de Alcobaça21, no último terço do século XIV, passando a Abadia cisterciense a controlar e quase monopolizar os melhores e mais activos portos ou povoações mais próximas da faixa litorânea. Antigos concelhos como Louriçal, Pombal, Leiria, Porto de Mós e Óbidos, para além, como vimos, do extenso território alcobacense, tinham na faixa costeira uma plataforma de interesses económicos bastante relevante, mesmo aqueles cujos alfozes não lindavam verdadeiramente com tal linha marítima, posto que com fronteiras muito vizinhas, com ela se relacionando proveitosa e intensamente (v. g., Porto de Mós e a concorrência dos seus habitantes no culto do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, como a relevância da celebração, ainda em Novecentos, da festividade de Nossa Senhora da Vitória, ermida/santuário nas imediações da antiga Paredes). Essa ligação ao oceano permanecerá bastante activa ainda nos séculos XVI a XVIII, atrofiando-se, desde então, em razão do assoreamento dos portos e das alterações nos tecidos social e económico do País. A uma economia piscatória e de transporte de matérias-primas, sobretudo as madeiras, como referimos, substitui-se, nos séculos XIX e XX, a perda de peso das actividades artesanais piscatórias e a crescente dinâmica burguesa do lazer e do turismo balnear com profundo impacte no ordenamento territorial dessa paisagem marinha22.

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De referir que Abrantes, Alenquer, Lourinhã, Óbidos, Torres Vedras, Ourém, Porto de Mós e Leiria, entre outros concelhos, integravam o património da Casa dessa Rainha. Cf. S. A. Gomes, “O Mosteiro de Alcobaça ao Tempo do Rei D. Pedro I”, in Colóquio “Inês de Castro”. Actas. 15 de Janeiro de 2005, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 2005, pp. 47-78. D. Francisco Oneto Nunes, A arte xávega na Praia da Vieira. História e Imagens — documentos fotográficos de Dora Landau, Vergílio Guerra Pedrosa e outros, Marinha Grande, Junta de Freguesia da Vieira de Leiria, 2004. 53

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

O mar não podia deixar de estar intimamente associado ao historial da antiga Comarca e depois Distrito de Leiria. Integra, como é bem sabido, a essência da história nacional no seu todo e com particular densidade o passado leirenense. A vida contemporânea, contudo, esqueceu essa dimensão histórica, compreendendo-se, neste ponto, o quase esquecimento da dimensão marítima assumida pelos séculos medievais e modernos nesta região23.

6. Naturalmente, o processo histórico amadureceu a matriz civilizacional local, a identidade cultural leirenense. A dimensão dos acontecimentos históricos nacionais que ocorreram neste espaço geográfico, bem como do património memorial e monumental a que deram lugar, confundirão facilmente o pulsar estritamente local. Talvez resida nessa abundância trans-local dos testemunhos históricos aqui edificados uma das razões para a aparente ausência de capacidade, por parte dos habitantes aqui nascidos e criados, em reduzirem-se a uma única e pequena pátria. Naturais e nascidos em concelhos como Batalha, Marinha Grande ou Porto de Mós, com frequência, em situação de grande exposição pública, dizem-se oriundos de “Leiria”. Raramente precisando a sua freguesia ou lugar de residência ou origem. Não vivemos já, em verdade, o tempo do rei D. Carlos I e da propalada anedota do pescador, que os historiadores do contemporâneo português tanto se comprazem em contar, que se dizia natural apenas da “Póvoa”, omitindo o nome do seu País que obviamente bem conhecia e que reservava a um contexto dialógico e antropológico distinto do da situação evocada. Os Mosteiros de Alcobaça e da Batalha foram construídos, justamente, na Estremadura, na área de influência de Leiria, entre as águas atlânticas e as serranias de Candeeiros e de Aire, não nas antigas e igualmente medievais Províncias de Entre23

Uma das leituras e reflexão mais afortunadas sobre este problema deve-se a Jaime Cortesão, nos seus Factores Democráticos na Formação de Portugal, Lisboa, 1974. Na peugada dessa temática, a que convém associar os nomes e obras pertinentes de António Sérgio e de Orlando Ribeiro, confrontese o mais recente balanço de Vitorino Magalhães Godinho, Portugal. A emergência de uma Nação, Lisboa, Edições Colibri, 2004.

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-Douro e Minho, de Trás-os-Montes, da Beira, de Entre-Tejo e Guadiana ou do Algarve. Devemos anotar que, em primeiro lugar, Alcobaça se assume como panteão da renovação dinástica da Monarquia portuguesa, ou seja, foi somente quando a ideia de “regnum” se apresentou concluída e garantida, que os reis portugueses deixam de se sepultar em Coimbra para passarem a vir tumular-se numa zona não de cidade, mas antes na abacial fortaleza das ricas liturgias cistercienses, em pleno tecido rural24. Mas, ainda assim, uma zona que é simbolicamente relevante e que vê ampliar-se o seu significado político e alegórico em Portugal desde que aí foi sepultado D. Afonso II (†1223), para fechar com a deposição de D. Inês de Castro e de D. Pedro, por 1357-1367, nas sumptuosas e magníficas arcas tumulares especialmente lavradas para garantia da perpétua memória daqueles cônjuges reais, das suas particulares biografias mas também da atestação da universal gloria mundi ali plastificada e fixada na simbólica de uma composição apocalíptica e da presciência da “roda da fortuna” , nascer e morrer, que a todos alcança. Foi nesse território que se resolveu a questão fundamental da guerra entre D. Afonso III e D. Sancho II, entre 1245 e 1248, garantindo uma actualização das políticas monárquicas para o Reino, como foi aqui que o Bolonhês convocaria as primeiras Cortes parlamentares com representação dos municípios e, do mesmo modo, neste espaço que D. João I viu garantida a sua assunção ao trono português na Batalha Real vizinha aos decantados campos de Aljubarrota. Os reis medievais portugueses, como se compreende, não se enterravam para serem esquecidos como, eventualmente, sucedia na Antiguidade com alguns imperadores, nomeadamente Alexandre, o Grande, tumulado em local secreto a fim de evitar profanações. Enterravam-se, os reis lusos, em magníficos panteões e túmulos artisticamente lavrados e decorados para construir a memória geracional da Nação, para consolidar a ideia de portugalidade, de pátria eterna. Deste ponto de vista, aliás, é curioso realçar que o primeiro rei a ser sepultado em Alcobaça foi D. Afonso II, um rei legislador, codificador, jurista. Um rei que ainda se intitula, por 24

Vd. José Mattoso, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal — 1096-1325. I. Oposição. II. Composição, Lisboa, Estampa, 1985.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

vezes, nalgumas das suas cartas, como “Rei dos Portugueses”, ainda que mais frequentemente “Rei de Portugal”. Nos séculos medievos, marcados pelo predomínio antropológico da guerra, da religião e da disputa de poderes, a consciência cultural da nação, da etnia, antecipa a da territorialidade política cujas fronteiras, aliás, ainda eram uma questão em aberto naqueles anos. A Abadia engrandeceu-se para dignificar tais governantes. D. Afonso III (†1279) quis aí receber sepultura. D. Dinis e D. Isabel de Aragão alteraram essa linha de sepultamentos em Alcobaça, conquanto a hipótese tivesse chegado a interessá-los. D. Afonso IV preferiria Lisboa, próxima de Odivelas, onde seu pai jazia, encerrando-se definitivamente o panteão dinástico real alcobaciano com o acolhimento dos féretros de D. Inês e D. Pedro. Com eles, na verdade, a região ganhou duas das jóias mais ricas e belas da escultura medieval gótica europeia, as quais, ainda hoje, justificam a visita de gentes oriundas de lugares bem distantes de Portugal. Depois, um filho de D. Pedro I, o Mestre de Avis e rei iniciador da Segunda Dinastia, triunfante nos campos de Porto de Mós e Aljubarrota, aqui faria erguer o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, a Batalha. Ele prolonga a mesma estrutura privilegiada da região leirenense como espaço de trânsito entre Coimbra e Lisboa, entre o Norte e o Sul, afirmando Leiria como zona de eleição para a tumulação e memorial dos novos reis de Quatrocentos, reis de uma Dinastia refundadora da Nação que reconhece a Leiria, como se vê, a singularidade de lugar central na (co)memoração da história de Portugal. De uma Leiria, como acontecia com a generalidade das vilas portuguesas medievais, muito dependente da economia agrária, mas, ainda assim, urbe povoada por gente mesteirosa e empreendedora, dedicados operários de engenhos de serração de madeiras, de moagens de cereais, de pisoarias, de lagares de azeite, de extracção e transformação de recursos de subsolo (ferro, carvão, calcário, cal, sal-gema) de fabrico de papel de trapo, já referenciado em 1411 e confirmado em documentos posteriores. Uma Leiria centro de um território rico em floresta e em oferta cinegética e aquíloca, sempre aprazíveis para a nobreza e o seu gosto pela caça de montaria ou de cetraria. Alcobaça e Batalha são, do ponto de vista da razão da sua edificação no entorno leiriense, não direi propriamente o resultado de uma coincidência histórica, mas antes edificações resultantes

de um dinâmico processo histórico português que encontrou neste território um lugar de concretização e de edificação: primeiro pelo estabelecimento de Leiria e de todo o povoamento que esta sintetiza, depois pela consumação de acontecimentos históricos de âmbito nacional que aquela preexistência permitiu e a que deu corpo e memória traduzida em obras comemorativas e religiosas monumentais. Eles são os dois grandes centros construtores da identidade desta região; grandes pela sua escala construtiva e pela extensão temporal secular desses projectos, traduzida na aplicação de financiamentos públicos centrais, regionais e locais muitíssimo consideráveis. Sem a preexistência de condições regionais para recepcionar tais projectos monumentais e históricos, a Coroa portuguesa não teria visto tais projectos realizados. A sua edificação trouxe numerosa mão-de-obra estrangeira especializada à região. A sua fixação neste espaço contribuiu poderosamente para o surgimento de novas dinâmicas sociais e de mercado de oferta e de procura de trabalho. Não se tratou, na verdade, de um fenómeno transitório, mas, bem pelo contrário, de uma fixação de gentes cuja descendência aqui permanecerá ao longo de várias gerações. A dar disto, há focos enriquecedores e diferenciadores que são protagonizados, essencialmente, pela vitalidade da comunidade estrangeira judaica, que se instalou muito cedo em Leiria e que, no século XV, se expande pelas vilas de Pombal, Porto de Mós, Óbidos, Aljubarrota e outras do Couto alcobaciano. Em 1470, por exemplo, Porto de Mós conta já com uma pequena sinagoga, o que não pode deixar de significar que a vila se estava a tornar num importante centro comercial tardo-medievo, suficientemente atractivo para a colocação dos produtos mercantis tradicionalmente negociados pelos Judeus. Eles desempenharam, ainda, um papel determinante no financiamento, através do empréstimo de dinheiro, das economias concelhias locais. Só os fluxos emigratórios dos séculos modernos — traduzidos na expulsão e fuga dos cristãos-novos e nas saídas de “cristãosvelhos” para as praças do Império, aspectos cujo peso demográfico, em boa verdade, não parece fácil de medir com precisão estatística — e, mais particularmente, da emigração dos locais para o Brasil ou, mais tarde, para a Europa e para a América do Norte e Canadá, fizeram inverter essa tendência de crescimento populacional que detectamos na região nos finais dos tempos 55

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

medievais e, ainda, por todo o século XVI, a avaliar pelo número de criação de novas freguesias religiosas então conhecido. O esvaziamento populacional do Distrito de Leiria, particularmente duro em Oitocentos e em Novecentos, conduziu a uma substancial perda de identidade. Neste ponto, recordo a história, narrada por Serra Frazão, na sua monografia acerca de Porto de Mós, redigida pela década de 1930, segundo o qual ninguém sabia explicar, nem mesmo os mais velhos, naquela Vila e naquele tempo, o significado das armas heráldicas municipais gravadas na fachada do edif ício da Câmara Municipal25. Esse complexo e, quiçá, mais aparente do que substancial, esvaziamento da identidade local leirenense viria a abrir lugar para a recepção de outros elementos culturais, trazidos com os novos residentes, oriundos sobremodo do Portugal setentrional, senão das Ilhas e das antigas Colónias africanas. O contributo destes, por exemplo, para o património gastronómico regional é uma evidência histórica (de Angola chegam-nos as deliciosas “brisas do Lis”, como é público), como o foram as, até há poucos anos, activas casas de Trás-os-Montes ou dos Açores, na cidade de Leiria, para além de outros fenómenos desportivos e de lazer inspirados no universo desportivo da capital olisiponense (v. g., clubes de futebol, revistas teatrais). A extinção das Ordens Religiosas, em 1834, teve um impacte cultural profundo na região. O papel educacional e cultural erudito dos mencionados Mosteiros de Alcobaça e da Batalha extinguiu-se definitivamente desde então, tendo as suas bibliotecas e arquivos recolhido, no que tinham de mais substancial e rico, a Lisboa. O enorme potencial cultural e artístico que essas Casas representavam cessou definitivamente. Com elas, muitas outras de menor riqueza, mas ainda assim activos centros educacionais e religiosos, foram igualmente fechados e os respectivos patrimónios deixados ao abandono e a saque. Estruturas houve que viriam a ser completamente demolidas (v. g., Santa Ana de Leiria, Nossa Senhora da Conceição em Alcobaça, Hospício de Minde) ou de que apenas sobrevivem ruínas impressivas (v. g., S. Miguel das Gaeiras, S. Bernardino de Peniche, Santa Maria de Cós, Capuchos de Leiria, Santo Agostinho de Leiria, Nossa Senhora da Luz, em Pedrógão Grande), 25

Serra Frazão, Porto de Mós. Breve Monografia, Porto de Mós, Câmara Municipal de Porto de Mós, 1982.

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enquanto algumas outras estruturas foram adaptadas para edif ícios de funcionalismo público (v. g. Nossa Senhora do Cardal, em Pombal, Seminário de Leiria, etc.) ou privado industrial (S. Francisco de Leiria). Muito poucos sobreviveram e nem sempre em transmissão continuada e directa (vd. Convento Desagravo do Louriçal). A Batalha chegou a ser equiparada a studium universitário no século XVI. Nela ensinou D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, voz maior da Teologia católica quinhentista, e estudou, por exemplo, Francisco Rodrigues Lobo, o maior de todos os poetas leirenenses26. O curriculum do Estudo de Alcobaça, neste âmbito, é bem conhecido, ali se tendo formado uma boa parte dos intelectuais portugueses, mormente daqueles que, entre Quinhentos e Setecentos, assumiram a redacção da Monarquia Lusitana, compêndio respeitável e ainda hoje lido da história lusíada. A deslocalização desses centros de formação intelectual para outras cidades, sem que nada os tenha substituído, significou a perda de capacidade de atracção e de motivação desta região para uma vasta elite intelectual. Os naturais que, outrora, enchiam esses claustros, doravante saem para longe e raramente retornam. Este fenómeno verificou-se até à década de 1970, só sendo contrariado depois desse momento. Um outro importante factor no desvanecer da relevância do património histórico patrimonial da região prende-se com o enfraquecimento da intervenção régia nela mesma. Se, nos séculos medievos, Leiria era palco frequente das visitas reais, fazendo da cidade uma urbe temporariamente régia, e se, mais a Sul, Óbidos sediava os interesses das Rainhas portuguesas, dando, no “Outono da Idade Média”, azo à fundação de Caldas da Rainha, nos séculos modernos tal realidade alterou-se profundamente. Óbidos e Caldas da Rainha, em verdade, continuam pólos frequentados pela Corte até à extinção da Monarquia, facto que lhes explica uma boa parte do respectivo património monumental; Leiria, por seu turno, episcopaliza-se, mas o que aufere em capacidade administrativa eclesiástica não alcança os antigos níveis mecenáticos da Coroa. Ainda assim, movimentos artísticos como o do Barroco conhecem exemplos de esplendor particularmente elucidativos nos novos santuários de 26

Ricardo Jorge, Francisco Rodrigues Lobo. Estudo Biográfico e Crítico, 2ª edição, Lisboa, Fenda, 1999.

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria

peregrinação como Nossa Senhora da Encarnação, Ourém ou Jesus dos Milagres. O Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, por seu turno, fora do Bispado, mas não dos gestos mecenáticos dos seus Bispos, atravessa os seus séculos mais gloriosos entre Quinhentos e Oitocentos. A história do século XX trouxe a Leiria um novo período de protagonismo e obrigou os seus intelectuais a repensarem a identidade regional. Isso sente-se com muita veemência em torno da questão da restauração da Diocese, lograda em 1918, mas também em consequência dos ideários republicanos de homens como Tito Larcher ou Ernst Korrodi e da acção destes em prol da restauração do castelo leiriense e da fundação da Biblioteca Erudita e Arquivo Distrital de Leiria, bem como do Museu distrital. O último terço do século XX, período a que ainda pertencemos, conheceu um estrénuo combate em matéria de reflexão acerca da identidade local e da defesa do(s) seu(s) património(s). O Sul do Distrito, por seu turno, viu-se recentrado na sua própria realidade e economia locais, mantendo-se reivindicativo de autonomia administrativa pública, mas sem efectivo peso populacional e político para se constituir em região dotada de identidade exclusiva. A ideia que nós temos, hoje em dia, de uma Leiria medievalizada, deriva, por um lado, do pausado restauro do seu Castelo e, por outro, do avanço da investigação histórica universitária sobre a cidade e a sua região. A exposição “Leiria a saque”, nos finais da década de 1970, mexeu profundamente com a consciência patrimonial leiriense. Essa actividade, sucedida por outros actos, mormente por campanhas em defesa do património cultural na Imprensa local, dá força a uma inquietação social que se tem vindo a traduzir na afirmação de associações e na montagem de iniciativas culturais pertinentes, as quais têm permitido aprofundar a questão da “identidade” leirenense. Ainda assim, Leiria, ou a sua opinião mais informada traduzida em artigos de opinião publicitados em jornais e outros meios de comunicação social, lamenta-se frequentemente da sua aparente ausência de peso no todo nacional. Como se, em boa verdade, a identidade local fosse uma questão essencialmente sujeita ao reconhecimento da região por Lisboa, em particular, e por Portugal, em geral. Naturalmente, independentemente desse reconhecimento, a região continuará a sua história e aprofundará o seu sentimento de pertença a um espaço e de se afirmar

como comunidade política dotada de uma sempre renovada identidade. Foi essa ampliação dos quadros intelectuais da região que permitiu a implementação de uma maior sensibilidade cultural em Leiria e na sua região, a qual teve efeitos directos em matéria de protecção do património histórico, arqueológico, artístico e etnográfico regional. É nesse contexto, creio, que devemos posicionar o esforço de descoberta e de valorização pública, nos anos de 1990, do conjunto de frescos quatrocentistas da velha igreja de S. Francisco de Leiria, bem assim as excepcionais pinturas murais da abóbada da sacristia do Mosteiro de Batalha, cuja dimensão e qualidade estéticas justificam a vinda à região de públicos informados e interessados em conhecer e ver tais legados patrimoniais do Quattrocento lusitano27. A participação central do Estado na construção da identidade da região, como vimos, foi muito relevante no passado; mas ela não foi absolutamente determinante. Ela permitiu o surgimento de grandes projectos neste espaço, suscitou-os, mas a respectiva montagem dependeu essencialmente das condições locais de sustentação e de consumação de tais projectos monumentais. Trouxeram despesa, tais projectos monumentais, mas contribuíram substancialmente para o enriquecimento, na longa distância, dos padrões de vida cultural e da própria dinâmica económica de toda a região. Ainda hoje, esses castelos e mosteiros, vilas e cidades, estações arqueológicas e produções artesanais, essa terra e esse mar oceano, são uma herança insubstituível e fundamental da “alma leirenense”, conjugação vocabular traduzida, com rara felicidade, na metonímia maior que Afonso Lopes Vieira lhe dedicou, ao considerá-la, com felicidade, o promontório histórico estremenho “onde a terra se acaba e o mar começa”. 27

Vd. S. A. Gomes, Vésperas Batalhinas. Estudos de História e Arte, 2ª edição, Leiria, Magno, 2000; Idem, “Notícia Sobre os Frescos de S. Francisco de Leiria”, in Lusitânia Sacra, 2ª Série, Tomo 8/9 (1996-1997), Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 1996, pp. 573-598; Idem, “Há 500 anos, em S. Francisco de Leiria...”, in Cadernos ESAP, Porto, Cooperativa de Ensino Superior Artístico do Porto, Nºs 2/3 (Dezº, 1997), pp. 132-149. Anote-se que o estudo das pinturas franciscanas de Leiria, cuja descoberta fundamental bem como primeira interpretação científica avocamos, posto que o seu estudo nos continue a merecer investigação e reflexão, suscitou o interesse de Luís Afonso, o qual lhes dedicou a obra intitulada O Convento de S. Francisco de Leiria, Lisboa, Livros Horizonte, 2003. 57

Identidade e Património – Um percurso por Óbidos Monumental Dina Duarte Alves Historiadora

1. Identidade, Memória e Património Nesta comunicação, procuraremos, ainda que de forma sucinta, analisar um dos aspectos estruturantes da identidade de uma comunidade – o seu património histórico edificado –, conscientes de que este mais não é do que um dos vários elementos que a integram e estruturam. Óbidos, a vila e sede de concelho sobre a qual nos iremos debruçar, pertence ao distrito de Leiria, diocese e relação de Lisboa. Situada na Estremadura, numa região de transição entre o Norte e o Sul de Portugal, era localizada nos inícios do século XVIII pelo Padre António Carvalho da Costa, na sua Corografia Portuguesa, a “Dez legoas a Sudueste da cidade de Leiria, cinco ao Sul da vila de Torres Vedras, duas do mar Oceano, e huma das Caldas para Sul, em lugar alto tem seu assento a mui nobre, e leal villa de Obidos”1. O seu relevo, caracterizado pela existência de grandes maciços calcários, foi de grande importância na edificação da zona urbana. Esta, situada sobre uma colina despida e seca, contrasta grandemente com a zona plana que a rodeia, rica em florestas e dotada de um solo fértil, propício à prática da agricultura que, durante séculos, constituiu a principal actividade económica dos habitantes do concelho2. A vila, edificada na encosta de um monte alto, perto do rio Arnoia, encontra-se cercada por grossas e robustas muralhas tor1

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António Carvalho da Costa, Corografia Portuguesa e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, t. 3, Oficina de Valentim da Costa, Lisboa, 1712, p. 86. A primazia da actividade agrícola é atestada no importante acervo documental presente no Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Óbidos.

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readas que, em alguns locais se erguem a mais de 13 metros de altura, o que salienta o carácter defensivo da vila, remetendo-nos para o contexto da Reconquista Cristã. O relevo acidentado do morro, onde se situa o castelo e a vila, reflectiu-se, indubitavelmente, na morfologia urbana: as suas ruas, estreitas e tortuosas, parecem jogar às escondidas com os transeuntes. Esta limitação natural se impediu, por um lado, o crescimento da vila, por outro, conferiu-lhe características singulares que a colocam no centro do nosso imaginário medieval. Local privilegiado no que concerne a património histórico edificado, a vila, circundada por uma imponente cintura muralhada, produz no visitante a sensação de ter recuado no tempo e de se encontrar a pisar as mesmas pedras que os antepassados conquistadores e fundadores do reino calcorrearam aquando da sua conquista. Declarado Património Nacional em 19513, a vila e o seu conjunto muralhado formam um todo indissociável que evoca uma grandiosidade, em parte obra inventiva do século XX, assegurando a todos aqueles que a ela se dirigem, a identificação com um passado distante mas emblemático. Esse passado constitui a memória e, neste caso em particular, a memória dos portugueses, base para a formação da identidade, fundamental para a manutenção dos laços de pertença à humanidade e, numa escala progressivamente mais circunscrita, a uma nação e, dentro desta, a uma comunidade. Óbidos, com um passado anterior à fundação de Portugal, é parte integrante da memória e da identidade nacional. A memória, conceito polissémico que abrange, entre outros, os significados de meio de recordar e de mensagem (recordação), possui um carácter colectivo, uma vez que os indivíduos são socializados no âmbito de conjuntos sociais, adquirindo, dessa forma, um passado inerente à sua biografia. A aprendizagem social inicia-se, para a maior parte dos indivíduos, no seio da sua própria família para, depois, prosseguir em espaços mais latos à medida que se processa o seu crescimento. Segundo Zerubavel4, investigador na 3

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Decreto de 16 de Junho de 1910 e Decreto n.º 38 147, de 5 de Janeiro de 1951, segundo o Plano Director Municipal da Câmara Municipal de Óbidos. Eviatar Zerubavel, Time Maps: Collective Memory and the Social Shape of the Past, The University of Chicago Press, Chicago, 2003.

Identidade e Património - Um percurso por Óbidos Monumental

área da memória colectiva, pertencemos a comunidades mnemónicas, comunidades de memória. Estas, segundo o mesmo autor, podem ser de âmbito micro-social (como as famílias) ou macrosocial (como as nações). Algures no meio, estarão as comunidades, como é o caso da que nos propomos analisar. Memória é, então, tudo aquilo que identifica a humanidade com algo por ela construído, que identifica os indivíduos entre si mas que, por outro lado, também os tornam únicos como comunidade. Contudo, sendo a memória um processo, como referem Jeffrey K. Olick e Joyce Robbins5, encontra-se, a cada presente, em constante revisão e reactualização. Assim, sendo a memória um elemento fundamental para a formação da identidade e, atendendo a que a mesma se encontra em constante reactualização e revisão, “não é algo que nos seja entregue na sua forma inteira e definitiva; ela constrói-se, e transforma-se ao longo da nossa existência”, como observou Amin Malouf6. Malouf sugere ainda que, quanto maior é o número de pertenças, de influências e de relações com outros povos e culturas, mais específica se revela a própria “identidade”. Significa isto que, a riqueza cultural será tanto maior quanto mais específica se mostrar a identidade. Todavia, parece verificar-se uma necessidade latente quer por parte da comunidade, quer por parte do poder (e sobretudo deste) de sobrevalorizar e, de certa forma, de “cristalizar” uma determinada época ou influências em detrimento de outras, também presentes, o que se traduz na preservação de apenas uma parte de toda a diversidade daquilo que será, na verdade, o todo constituinte dessa própria identidade. Uma consequência directa desta necessidade ou entendimento é o facto de, dependendo da valorização que a comunidade faz deste ou daquele aspecto, a mesma tenderá sempre a valorizá-lo em detrimento de outros, tentando minimizá-los ou, eventualmente, destruí-los. A vila de Óbidos exemplifica esta valorização ou cristalização de uma época e influência em detrimento de outras. Assim, a vila e o seu conjunto muralhado continuam a ser conotados com a medievalidade e, em particular, com um passado ligado à Recon5

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Jeffrey K. Olick e Joyce Robbins, “Social Memory Studies: from ‘Collective Memory’ to the Historic Sociology of Mnemonic Practices”, Annual Review of Sociology, vol. 24, 1988. Amin Malouf, As Identidades Assassinas, Algés, Difel, 1999, p. 33.

quista Cristã e à fundação do reino. Contudo, as características que hoje apresenta remetem-nos não para o seu passado medieval, mas para um período mais recente: resultado de uma evolução contínua, cujo início remonta ao período medieval, a sua actual configuração data de um período mais tardio, situado, sensivelmente, entre os séculos XVI e XVII. O património histórico edificado, indissociável da memória e, consequentemente, da identidade obidense, sobre o qual nos iremos debruçar, não é o único elemento constitutivo dessa identidade mas é, sem dúvida, o mais visível e o mais divulgado, exercendo grande atracção sobre potenciais visitantes, portugueses e estrangeiros. Certamente que não será alheio a esta valorização e cristalização do seu passado medieval, o facto das obras de restauro da vila e do castelo, com a criação da primeira Pousada de Portugal em edif ício histórico, coincidirem com a vigência do regime de Estado Novo e dos seus ideais nacionalistas, particularmente no que concerne à valorização de um determinado período histórico, ligado à fundação do reino e da nacionalidade. Contudo, se o património cultural, importante para a formação da identidade, procede de toda uma comunidade e a ela deve retornar, caberá, então, às pequenas comunidades e aos indivíduos a ela pertencentes, um papel cada vez mais importante e determinante no estabelecimento do que irá ser considerado património cultural quer enquanto objecto representativo dessa mesma comunidade, quer enquanto legado a deixar às gerações vindouras. A democracia permite aos cidadãos uma intervenção cada vez maior no seio da sua comunidade e um papel mais efectivo na manutenção ou revisão da sua identidade, sancionando ou não as práticas culturais resultantes do poder local. A denominada “indústria cultural”, responsável, em parte, pelo crescente sentimento de que o mundo está a ficar musealizado, estabelece padrões de consumo e usos que remetem os potenciais turistas para a reconstrução de cenários históricos e reconstituição de cenas vividas no passado em lugares agora turísticos. São acções que procuram revitalizar e recuperar algo vivido pela sociedade no passado e que, por algum motivo, permaneceu como que congelado, elegendo para tal determinados actos ou momentos específicos, considerados dignos de serem guardados na memória colectiva. Em Óbidos, esta ideia está bem patente com a reconstituição, nos últimos anos, de feiras medievais, cristalizando, uma vez mais, um 59

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

momento específico da sua longa história. Contudo, a par com estas reconstituições procura, simultaneamente, criar novas memórias e laços de pertença com realidades que, até recentemente, pouco ou nada lhes diziam, como é o caso do Festival de Chocolate. Em 1985, na Conferência Mundial Sobre Políticas Culturais, organizada pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) e realizada no México, surgiu uma definição de Património Cultural mais abrangente, segundo a qual “O património cultural de um povo compreende as obras dos seus artistas, arquitetos, músicos, escritores e sábios, assim como as criações anónimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida, ou seja, as obras materiais e não materiais que expressam a criatividade desse povo: a língua, os ritos, as crenças, os lugares e monumentos históricos, a cultura, as obras de arte e os arquivos e bibliotecas”7. De acordo com esta definição, as relações da comunidade com o seu património cultural circunscrevem-se nas diferentes e complexas esferas da vida social, tornando possível que cada um se reconheça e à sua experiência de vida colectiva. Assim, podemos afirmar que o património cultural é a base e o sustentáculo da identidade da sociedade. Esta identidade cultural constitui a riqueza que dinamiza as possibilidades de realização da sociedade, mobilizando cada grupo social a nutrir-se do seu passado e a colher as contribuições compatíveis com a sua especificidade e a continuar, assim, o processo de criação e de recriação social. A cultura, como referimos anteriormente, procede de toda uma comunidade e a ela deve retornar. Não é nem pode ser privilégio de uma elite nem na sua produção, nem nos benefícios que dela retira. É fundamental uma ampla participação do indivíduo, em particular, e da sociedade, em geral, no processo de criação dos bens culturais, na manutenção dos lugares de memória, na tomada de decisões que concernem à vida cultural e na sua difusão e fruição. Entendida desta forma, a cultura facilitará a construção de laços de significação, ou seja, de identidade, numa estreita colaboração para a preservação e valorização do seu património cultural. Valorizar significa a utilização dos recursos do património cultural, dos bens históricos e artísticos, dotando-os com as condições objectivas e ambientais que ressaltem as suas características específicas e que permitam o seu aproveitamento sem, contudo, desvirtuar a sua

natureza. De acordo com esta concepção, a valorização do património exerce uma benéfica acção reflexa sobre o próprio bem cultural, estendendo o seu efeito à área ou localidade onde se encontra, uma vez que, se o monumento é capaz de atrair a atenção dos visitantes, tal conduzirá ao aumento do interesse de particulares ou mesmo do poder público em adaptar ou instalar infraestruturas adequadas para os receber. O património poderá constituir, desta forma, uma mais valia para o desenvolvimento de uma comunidade. Todavia, esta muito previsível consequência da valorização do património implica uma prévia adopção de medidas reguladoras que, ao mesmo tempo que facilitam e estimulam a iniciativa comercial, impeçam, simultaneamente, a descaracterização do lugar e a perda das finalidades primordiais que se perseguem, isto é, o significado do bem em si e para a comunidade local. Óbidos conta, há alguns anos, com um conjunto de medidas reguladoras, consubstanciadas no Plano Director Municipal de Óbidos (PDM), datado de 1996 e ainda em vigor8. Este define como “objectivo estabelecer os princípios, orientações e regras a que deverá obedecer a ocupação, uso e transformação do solo no território municipal e definir as normas de gestão urbanística para apoio e desenvolvimento económico e social, compatibilizando as diversas aptidões do concelho”9. Na secção II, dedicada às medidas de protecção do património edificado e do património arqueológico10, estão regulamentadas, em estreita articulação com a legislação nacional relativa ao Património, as disposições concelhias tendentes à protecção, preservação, restauro e utilização do património histórico edificado obidense. Assim, e segundo o mesmo regulamento, não é permitida a alienação ou a execução de quaisquer obras de demolição, instalação, construção, reconstrução, criação ou de transformação de zonas verdes, nem a alteração ou uma utilização diferente do monumento contrária à traça original, sem a prévia autorização do Instituto Português do Património Arqueológico (IPPAR)11, quer para as zonas de protecção ou zonas especiais de protecção aos imóveis classificados como 8

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www.vitruvius.com.br

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Segundo o Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março, o Plano Director Municipal deverá ser revisto antes de decorrido o prazo de 10 anos. Plano Director Municipal de Óbidos (PDMO), Cap. I, artº. 1º. PDMO, Cap. II, Secção II, artigos 11 a 14. PDMO, Cap. II, Secção II, art.º 11, n.º 4.

Identidade e Património - Um percurso por Óbidos Monumental

monumento nacional ou imóvel de interesse público, quer para as zonas dos imóveis em vias de classificação. Os imóveis, conjuntos e sítios não classificados, mas que constam do inventário municipal do património, só poderão ser alvo de obras de conservação e restauro e, se justificado, de obras de ampliação desde que as mesmas não diminuam o seu valor patrimonial12. A demolição de edifícios isolados ou integrados em conjuntos edificados que constam do inventário municipal do património só é permitida quando prevista no plano de urbanização ou de pormenor13. O Centro Histórico, formado pelo conjunto classificado da vila de Óbidos, intramuralhas, de acordo com a disposição do Decretolei n.º 38 147, de 5 de Janeiro de 1951, e espaço urbano de nível 1, segundo o Decreto-Lei n.º 211/92, de 8 de Outubro, apresenta uma série de restrições, tendentes a conservar a sua traça original. Assim, no Centro Histórico, onde são privilegiados os valores patrimoniais e o conjunto arquitectónico no seu todo, “só são permitidas obras de conservação e manutenção das construções existentes”14. Contudo, a título de excepção, poderão ser autorizadas, mediante a prévia autorização do IPPAR e de acordo com a legislação em vigor, “obras de adaptação ou remodelação, desde que não se verifique diminuição das características morfológicas e tipológicas das construções”15 como, por exemplo, mudanças de uso de habitação para serviços ou comércio, desde que confinadas ao rés-do-chão, a reconstrução de edifícios mas mantendo a volumetria existente e desde que se prove o adiantado estado de ruína da construção e, por fim, o reordenamento de construções para a criação ou beneficiação de espaços públicos no sentido da valorização da cerca do castelo. À valorização do património, na vertente que temos vindo a considerar, acresce ainda uma outra possível consequência: a possibilidade do património cultural, existente em qualquer lugar, constituir a base ou o ponto de partida para a implementação de actividades turísticas, na medida em que a sua valorização funcionará como estímulo socio-cultural e económico para todos os agentes envolvidos. Assim, um conjunto urbano restaurado e 12 13 14 15

PDMO, Cap. II, Secção II, art.º 11, n.º 5. PDMO, Cap. II, Secção II, art.º 11, n.º 6. PDMO, Cap. III, Secção I, art.º 27, n.º 1.1. Idem.

valorizado e a inserção e a participação da comunidade local nessa tarefa, constituem quer uma lição viva de história, quer uma legítima razão de dignidade social. Salientamos, mais uma vez, que o património cultural pertence, em primeiro lugar, à sociedade e à comunidade que o criou e com o qual primeiramente se identifica. As relações da comunidade com o seu património cultural circunscrevem-se quer na esfera económica, quer nas diferentes e complexas esferas da vida social, pelo que, a partir do momento em que a comunidade deixe, por qualquer motivo, de estabelecer os laços históricos e passe a não se identificar com os seus lugares de memória, os significados são perdidos e o seu património deixa de cumprir a sua função social essencial – a da manutenção da identidade local. De uma noção reducionista de património, que enfatizava os aspectos históricos consagrados por uma historiografia oficial e que, grosso modo, se cingia ao património histórico edificado e às antiguidades, passou-se para uma noção mais ampla, de património cultural, incorporando ao histórico as dimensões testemunhais do quotidiano e os feitos tangíveis e não-tangíveis. Esta maior abrangência do conceito de património cultural relaciona-se com a apropriação da definição antropológica da cultura, entendida como todo o conhecimento que uma determinada sociedade tem sobre si própria, sobre outras sociedades, sobre o meio material em que vive e sobre a sua própria existência. A protecção dos bens culturais assume tal importância que a Carta das Nações Unidas não distingue hierarquicamente os direitos económicos, sociais e culturais, colocando os últimos como um dos factores que condicionam o desenvolvimento, a paz e a segurança entre os povos. É a identidade que confere originalidade e singularidade aos lugares e regiões, distinguindo-os de todos os outros territórios, vizinhos ou distantes. A identidade local revela as formas e a intensidade da integração económica e cultural dos lugares e regiões no passado e no presente. Preservar e reforçar as identidades locais constituem uma condição sine qua non para o futuro da economia e da sociedade. Contudo, duas questões se colocam: como identificar os aspectos da identidade local que devem ser preservados para que se convertam em factores de desenvolvimento e, na sequência desta questão, a quem atribuir o papel de guardiães legítimos da identidade local. 61

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

2. Um percurso por Óbidos Monumental O património histórico edificado da vila de Óbidos é constituído pela própria vila e pelo conjunto muralhado que a envolve. Destacar exemplos desse património afigura-se-nos assaz difícil pois reduz, em muito, o seu significado. De facto, só quando enquadrado num todo maior se torna inteligível, sendo que esse todo é a própria vila. Esta encerra, dentro e fora da sua cintura muralhada, um testemunho cultural e civilizacional demasiado relevante sobre a evolução da comunidade e a formação da sua identidade para que possa ser fragmentado e sujeito a uma análise espartilhada. Óbidos de hoje é, segundo Teresa Bettencourt da Câmara16, o resultado das transformações urbanísticas nele operadas durante o século XVI. Contudo, para melhor entendermos essas transformações, é necessário recuarmos no tempo e traçarmos o perfil urbano de Óbidos medieval, assistirmos ao seu crescimento e às suas transformações nas mãos dos reis e, principalmente, das suas proprietárias reais, as rainhas, numa tradição iniciada por D. Afonso II quando, em 1209, a doou como presente de casamento à sua noiva, passando, a par com outras vilas do reino, a integrar os bens da Casa das Rainhas, uma vez que todos os reis seus sucessores a incluíram na lista de presentes oferecidos às suas futuras esposas. Estas, como senhoras de Óbidos, tinham o dever de promover as edificações na vila, enquanto que os reis limitavam a sua acção aos restauros do castelo e das muralhas, realçando a sua função militar. Óbidos, à semelhança de tantos outros aglomerados urbanos, já se encontrava constituído no século XVI, obedecendo a uma estrutura definida na Época Medieval, organizada em torno da igreja, do mercado e do castelo (não necessariamente por esta ordem), que constituíam os centros da vida colectiva17. O sitio onde se encontra Óbidos, “é uma colina alongada no sentido Norte-Sul, de altitude irregular, mais acidentada a norte (onde se situa o castelo) e na vertente ocidental, e esbatendo-se docemente para o lado este”18. Na base da colina corriam dois rios que desaguavam na Lagoa que, segundo fontes da época, se situava perto da vila, praticamente encostada às muralhas. 16

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Teresa Bettencourt da Câmara, Óbidos, Arquitectura e Urbanismo – séculos XVI e XVII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990. Idem, ibidem. Ibidem, p. 25.

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A planta de Óbidos apresenta uma forma triangular irregular, desenvolvendo-se em função da colina, que assume, assim, um papel determinante na organização do espaço urbano, fechado artificialmente pelas muralhas que, acompanhando as curvas e o desnível do terreno, lhe confere uma forma natural. O relevo acidentado fez com que a vila se espalhasse em anfiteatro de Poente para Nascente. A ocupação humana da colina sobre a qual repousa a vila de Óbidos data de um período muito anterior à sua conquista por D. Afonso Henriques, aliando as condições naturais às exigências de cariz militar. Embora as origens de Óbidos não estejam ainda cabalmente esclarecidas, é aceite que Afonso Henriques tomou o burgo fortificado aos muçulmanos no século XII (1148), com o objectivo de assegurar a defesa da linha do Tejo, tendo-se deparado com uma população muçulmana maioritariamente militar e administrativa, protegida pelos primitivos muros, com uma extensão reduzida que não ultrapassaria aquela que na Baixa Idade Média viria a constituir, segundo Manuela Santos Silva19, a alcáçova da vila. Aquando da tomada de Óbidos aos muçulmanos e, segundo a descrição feita nas Memórias Históricas20, as muralhas teriam duas portas: a nascente, a Porta da Traição e, a poente, a Porta da Vila ou de Nossa Senhora da Piedade. Existiriam ainda várias torres e a cidadela. A população concentrar-se-ia, então, intramuros e a Norte daquela que viria a ser, posteriormente, a Rua Direita. Com a sua conquista, os cristãos substituem os muçulmanos no interior das muralhas e, segundo algumas fontes, no século XIII, a vila de Óbidos seria já densamente povoada. Uma vez conquistada, era necessário zelar pela segurança dos novos povoadores e, para tal, D. Afonso Henriques procede à reforma da muralha. A par com a segurança, urgia cuidar da espiritualidade dos novos habitantes através da edificação de igrejas, sendo que a primeira terá sido a Igreja de Santa Maria. Em finais do século XII, D. Sancho I manda construir a primitiva Igreja de São Tiago, ainda dentro dos muros primitivos, igreja 19

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Manuela Santos Silva, A Região de Óbidos na Época Medieval — Estudos, Colecção PH - Estudos e Documentos, Caldas da Rainha, 1994. Memórias Históricas e Diferentes Apontamentos acerca das Antiguidades de Óbidos, I.N. — C.M./C.M.O., 1985, pp. 10-12.

Identidade e Património - Um percurso por Óbidos Monumental

que, a partir do século XIV, se destaca pelo facto de ser o local onde as rainhas assistiam aos of ícios divinos. A este monarca coube ainda o reforço das muralhas a Poente e a edificação da Torre do Relógio, situada no centro da vila, que dava passagem quer para a cidadela, quer para a muralha. O crescente afluxo de novos povoadores, vindos de um Norte superpovoado e que colaboravam na estratégia defensiva dos primeiros monarcas portugueses, torna o espaço intramuros demasiado exíguo para albergar uma população em crescimento. A solução é construir fora da alcáçova, ou seja, entre a zona muralhada e a Igreja de Santa Maria. As novas construções são espontâneas, sem obedecer a qualquer plano urbanístico. Como a segurança continuava a ser uma prioridade, urgia a construção de numa nova cintura muralhada que englobasse as habitações entretanto construídas. Assim, em finais do século XIII, a cerca terá chegado ao local onde, sensivelmente na mesma altura, foi erguido um novo templo, a Igreja de São Pedro de Óbidos, embora esta zona continuasse profundamente rural. D. Dinis, além dos melhoramentos e da ampliação da muralha, ergueu ainda uma nova torre, a Torre de D. Dinis, ainda existente. Segundo Manuela Santos Silva21, a ocupação da zona Sul não deverá ter sido anterior ao século XIV. Para essa ocupação, foi fundamental a abertura da via que, depois do século XIII, viria a conferir à vila o planeamento urbanístico ainda hoje visível – a Rua Direita. A sua abertura condicionou a nova estrutura vial e urbana. Contudo, o traçado com que hoje se apresenta, resultado da própria evolução urbanística e do crescimento da vila, não será, segundo Teresa Bettencourt da Câmara22, anterior ao século XVI. A vila crescia para sul, acompanhando o declive natural da colina. Em 1370, D. Fernando, envolvido em guerras com Castela e face à necessidade de defender o reino das invasões castelhanas, manda fazer uma nova cerca que se estendia pela encosta até à Torre do Facho, tendo a vila adquirido, então, a configuração com que actualmente se apresenta. Além da nova cerca, D. Fernando fez também construir a Torre de Menagem, ainda existente, dotando-a de um poço-cisterna, fundamental para o abastecimento da popu-

21 22

Manuela Santos Silva, Ob. cit.. Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit..

lação em caso de cerco prolongado. As guerras fernandinas ditaram a última intervenção real nas muralhas durante a Idade Média. Óbidos, no século XVI, não era, nem podia ser, a mesma fortaleza do século XII – a conjuntura histórico-militar mudara, a população crescera e as necessidades eram outras. O actual castelo resulta das inúmeras reparações e ampliações de que foi alvo ao longo dos séculos. Ladeado por duas poderosas torres (a Torre de D. Dinis e a Torre de Menagem), alberga no seu interior o Paço, mandado construir, no século XVI, pelo Alcaide João de Noronha, podendo ainda ser observadas as janelas de recorte manuelino, abertas para o interior do pátio. O portal é encimado pelas armas reais e pelas armas da família Noronha, ladeadas por duas esferas armilares. O castelo, à semelhança do que sucedeu na vila, sofreu inúmeros danos com o Terramoto de 1755, apresentandose, no início do século XX, em avançado estado de ruína. Após a sua recuperação pela Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), foi nele instalada (em finais dos anos 40) a primeira Pousada do Estado em Edif ício Histórico – a Pousada Josefa d’Óbidos. Traçadas as etapas da evolução e crescimento do castelo e da cintura muralhada que envolve a vila, vamo-nos agora debruçar mais pormenorizadamente sobre o seu interior, nomeadamente sobre a sua estrutura urbanística e sobre algum do seu património. As características morfológicas da colina, sobre a qual assenta a vila de Óbidos, foram determinantes na estruturação da malha urbana que a caracteriza, impedindo a sua expansão e condicionando o seu crescimento. As suas ruas, estreitas e tortuosas, diríamos mesmo labirínticas, reflectem o condicionamento imposto pelas exigências do terreno, levando a que algumas dessas ruas se desenvolvessem em degraus. Segundo Teresa Bettencourt da Câmara, “Nesta exigência de adaptação da matriz urbana ao sítio disponível são ainda visíveis traços das concepções muçulmana e medieval do espaço urbano. Da permanência árabe talvez tenha herdado a vila de Óbidos o traçado sinuoso das ruas que necessitam de se acomodar ao espaço que pelas habitações lhes é concedido”23. As casas parecem resistir ao traçado das vias exigido pelo bem comum. A comunicação entre as várias partes da casa fazia-se, muitas vezes, através de passadiços, alguns dos quais ainda hoje 23

Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit., p. 26. 63

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

observáveis. Uma outra característica a salientar é o facto de algumas casas não exibirem fachadas, mas muros brancos que escondem, no seu interior, a habitação e o jardim. Era aí, nesses interiores fechados, que se desenrolava a vida familiar, fosse na casa ou no quintal que a circundava. Na vila de Óbidos predomina a interioridade dos espaços, pressupondo a adopção e a interiorização de valores intimistas o que, aliás, atesta o valor concedido à porta, da casa ou da muralha, sendo que, numa estrutura como a que se verifica em Óbidos, ou seja, virada para dentro, a importância da porta ultrapassa a simples funcionalidade, adquirindo um claro valor simbólico. Ao habitante medieval não coube uma transformação radical do espaço urbano herdado pois, já encontrou um burgo construído, delimitado por muralhas e, segundo Teresa Bettencourt da Câmara24, estaria já traçada a rua que unia as duas principais portas de acesso à vila – a Rua Direita. Diversas fontes arquivísticas atestam a existência de vários arruamentos no século XIV, indicando-nos que Óbidos cedo terá resolvido o problema da pavimentação das suas ruas, calcetando-as, impelido, provavelmente, pela natureza acidentada do terreno, o que se traduziu numa melhoria das condições de vida dos obidenses, particularmente ao nível das deslocações. Era nessas ruas que se desenvolviam as actividades económicas e, à semelhança de outros aglomerados urbanos medievais, algumas eram destinadas exclusivamente à prática de determinadas actividades económicas. A irregularidade do traçado das ruas evidencia a adaptação da malha urbana à topografia acidentada da colina. Assim, ao longo da Idade Média, face à exiguidade do espaço disponível e à inexistência de concepções urbanísticas que determinassem a dimensão das ruas e dos largos, as casas eram construídas adossadas umas às outras e muito próximas dos edifícios religiosos, rodeando-os e tornando os largos muito pequenos. Será apenas no período manuelino que se procederá à desobstrução do largo da igreja matriz de Óbidos, a Igreja de Santa Maria. O seu largo, a agora denominada Praça de Santa Maria, cedo adquiriu importância espiritual e económica, além de constituir um espaço privilegiado de sociabilização. Sob o

telheiro, situado no mesmo largo, funcionava o mercado público, referenciado documentalmente desde o século XIV25. A exiguidade do espaço disponível para construir26 terá sido determinante para que se construísse em altura, sendo que a maior parte dos edif ícios têm, ainda hoje, dois pisos, utilizando como materiais de construção a madeira, o adobe, a pedra e a cal, abundantes na região. Os terramotos do século XVI e do século XVIII destruíram muitas das habitações medievais, cujos vestígios surgem, ocasionalmente, aquando da realização de obras. Nos inícios do século XVI, Óbidos tinha uma matriz urbana determinada pela natureza topográfica do terreno, “podendo a Rua Direita definir-se como um eixo de regularidade num todo caracterizado pela desigualdade e pela assimetria”27. A maior parte do espaço disponível estava ocupado pelas casas. O tecido urbano era segmentado, com partes mais ou menos definidas pela tradição medieval e que se iriam manter na Época Moderna: áreas para as actividades económicas, áreas destinadas às zonas administrativas e áreas relacionadas com a religião. No núcleo urbano, destacase o largo da igreja matriz, rodeado por habitações, a Rua Direita, traçada à medida que a vila crescia, as ruas irregulares e os becos. A muralha constituía uma moldura irregular (em largura) e o castelo a estrutura dominante (em altura), conferindo ao espaço uma constituição orgânica. Na Óbidos quinhentista verificou-se um movimento de renovação urbana, apesar das alterações efectuadas não lhe retirarem a sua matriz medieval. Essas mudanças urbanísticas resultaram, fundamentalmente, do objectivo de melhorar as condições de vida da população, aproveitando o interesse das rainhas pela urbe e pelo seu património e não de uma aplicação das doutrinas urbanísticas renascentistas ou de um aumento da população. As alterações urbanísticas só se tornam possíveis quando se encontram reunidas condições económicas e sociais e, sobretudo, agentes empenhados na sua concretização. Em Óbidos, três grupos de intervenientes evidenciaram-se nesse esforço: a rainha, a câmara e as igrejas28. 25 26

27 24

Idem, ibidem.

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28

IANTT, Colegiada de Santa Maria de Óbidos. Apesar do espaço para construir ser muito limitado, tal não impediu a existência de pequenos pomares, quintais e jardins. Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit., pp. 38-39. Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit..

Identidade e Património - Um percurso por Óbidos Monumental

À câmara coube assumir as principais iniciativas tendentes à alteração da matriz urbana mas, quando estas se revelavam demasiado onerosas para a edilidade, contou com o apoio das rainhas29. É essencialmente sob o patrocínio das rainhas D. Leonor e D. Catarina, em estreita articulação com a edilidade, que se efectuaram as transformações urbanísticas em Óbidos ao longo do século XVI e que lhe conferiram a feição que ainda hoje apresenta. Entre essas alterações, salientamos o alargamento e modernização da Praça de Santa Maria, a consolidação do mercado, a redefinição da Rua Direita e o abastecimento de água à vila. Sob patrocínio dos reis, salienta-se o reforço das muralhas. A Praça de Santa Maria, situada em frente à Igreja de Santa Maria, é o único grande largo existente em Óbidos desde o século XVI. Claro que, se percorrermos a vila, encontramos outros largos, pequenos, situados quase sempre em frente a igrejas, sendo que todos se situam a Este da Rua Direita, onde o terreno é menos acidentado. O Largo de Santa Maria cumpriu diversas funções como, por exemplo, de centro de actividades económicas (mercado), local de sociabilização e de espiritualidade conferida pela existência da igreja matriz de Óbidos, constituindo um espaço extremamente importante e dignificado na malha urbana. Se, na Idade Média, o largo estava parcialmente ocupado por casas e outras construções, na Época Moderna iniciou-se um processo de alargamento e modernização do largo, concluído sob a protecção de D. Catarina, tendo-se, para tal, destruído algumas construções e construídos acessos dignos. Além de promover a desobstrução do largo, esta rainha dotou-o com uma fonte. O percurso até chegarmos ao largo é relativamente curto: entramos pela Porta da Vila, percorremos a Rua Direita em direcção ao castelo e, antes do seu terminus, encontramos o Largo de Santa Maria, situado a alguns metros abaixo do nível dessa rua, delimitado por um muro alto. Encostada ao muro, no mesmo eixo onde se encontra o Pelourinho, ergue-se a fonte que fica em frente ao portal da Igreja Matriz.

29

Segundo Teresa Bettencourt da Câmara, “as transformações urbanas registadas no século XVI na vila de Óbidos ficaram a dever-se à acção directa da Câmara (expansão do Largo de Santa Maria, a partir de 1501), ou à sua intervenção junto da Rainha D. Catarina nos primeiros anos da década de setenta”, Ob. cit., p. 35.

O largo, não sendo feito de raiz na época, não corresponde às normas ditadas pelos tratadistas, pelo que cresceu à mercê das remodelações urbanísticas possíveis, não atingindo as dimensões ideais ditadas pelos teóricos do tempo. A Norte da Praça encontra-se o telheiro, de forma rectangular, abrigando em toda a sua extensão um banco de pedra. A Este ergue-se a igreja, também a marcar as fronteiras do largo, e uma sucessão de ruas e edifícios que tornam o largo algo indefinido. A Oeste, o largo encontra-se rigidamente delimitado pela Rua Direita e pelos seus edifícios. Ao centro, o largo não apresenta qualquer edificação, tal como determinavam os teóricos do urbanismo como Palladio, de forma a permitir a circulação e a cumprir a sua função de centro social, económico, administrativo e judicial da vila. No Largo de Santa Maria realizaram-se actividades económicas desde, pelo menos, o século XV até meados do século XX. Os julgamentos eram realizados no largo, à frente da porta da igreja, para que fossem presenciados pelos habitantes, localizando-se também aí as principais estruturas urbanas (câmara, mercado e fonte), além, claro está, da igreja matriz. Era também à sua volta, ou muito perto dele, que se situavam as casas das principais famílias da vila, conferindolhe uma feição algo elitista. Até há relativamente pouco tempo, o largo manteve sensivelmente as mesmas funções sociais e económicas pois, só recentemente a cadeia, a câmara e o mercado foram daí retirados. À praça moderna exigia-se que fosse o ponto de encontro de ruas e de pessoas, apresentando-se como uma obra de arte. Exigiase harmonia nas construções que a ladeavam e um “mobiliário” urbano adequado a ornamentá-la: a fonte, o arco de triunfo e a coluna ou estátua. Em Óbidos, encontramos alguns desses elementos aconselhados pela tratadística italiana, nomeadamente a fonte e o portal axial da igreja matriz, que constitui um verdadeiro retábulo, aos quais se junta o Pelourinho, mantido pela tradição portuguesa. Este, símbolo do poder municipal e lugar de castigo de criminosos, constitui um elegante monumento manuelino, associado, certamente, à reforma dos forais promovida por D. Manuel I, à qual se seguiu a substituição ou o levantamento de raiz de pelourinhos30. É constituído por uma coluna cilíndrica, em calcário da região, assente sobre três degraus semicirculares, elevando-se em 30

Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit.. 65

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

dois tambores separados um do outro por um cordame disposto a meio, enriquecido pela decoração fitomórfica alternada com bolas dispostas em diagonal. A segunda parte da coluna é rematada no alto de um capitel em forma de pinha, característico do período manuelino, encimado por um pináculo de estrias helicoidais. No capitel concentra-se o maior esforço decorativo: uma secção delimitada por dois cordames e preenchida por um enxadrezado de motivos pequenos. Desta secção parte uma outra, em forma de coroa, que se desenvolve em motivos vegetalistas. O pelourinho de Óbidos não tem a esfera armilar, característica da arte do período manuelino. Junto do lintel encontram-se dois símbolos heráldicos: de um lado, o escudo real e, do outro, o emblema pessoal da rainha D. Leonor (o camaroeiro)31. Embora hoje o pelourinho se situe na Rua Direita, é possível que a sua localização original fosse na Praça, em frente à Câmara. O Chafariz, que marca o fim do aqueduto de Óbidos, ultrapassa a mera função de abastecimento de água, servindo também objectivos de embelezamento do largo principal. Não possuindo a leveza e o rendilhado das fontes quinhentistas do norte do país (por ter sido construído algumas décadas depois), além de não se encontrar no centro da praça, devido à exiguidade do espaço, a solução foi encostá-lo ao muro que suporta a Rua Direita, permitindo em contraponto visual ao Portal da Igreja. Referimo-nos, amiúde, a algumas das igrejas existentes dentro da cintura muralhada de Óbidos: a Igreja de Santa Maria de Óbidos (a igreja matriz), a Igreja de Santiago e a Igreja de São Pedro. A estas juntam-se a Igreja da Misericórdia e a Capela de São Martinho, ainda dentro da vila e, entre outras, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, este fora da cintura muralhada. A existência de cinco igrejas dentro do recinto muralhado demonstra a importância que a Igreja e a espiritualidade assumiam para a comunidade obidense. Essa espiritualidade é ainda muito visível na vila, particularmente aquando das celebrações da Semana Santa. Tentaremos, em breves linhas, tecer algumas considerações sobre algum do património religioso obidense. Iniciaremos o nosso percurso a partir núcleo inicial da vila, pela Igreja de Santiago e, à medida que nos dirigimos para a Porta da Vila, a Sul, apresentaremos outras edificações religiosas.

A Igreja de São Tiago, inserida no núcleo inicial da vila e a segunda a ser fundada em Óbidos32, foi mandada construir por Sancho I em finais do século XII. Totalmente destruída pelo grande terramoto do século XVIII, foi reconstruída em 1772. Constituída, originalmente, por três naves, com o portal axial virado a Poente, comunicando com o interior do castelo através de um passadiço, tornando-se, a partir do século XIV, de uma igreja para uso das rainhas, não apresentava nenhuma entrada voltada para a vila. Contudo, aquando da reconstrução, a sua fachada foi alinhada com a Rua Direita, pelo que a cabeceira ficou voltada para o Norte. Descemos a Rua Direita que, como já referimos, liga o Paço dos Alcaides à Porta da Vila e, percorridos alguns metros encontramos aquela que é a igreja matriz de Óbidos – a Igreja de Santa Maria. Primeiro templo cristão da vila33, sofreu importantes reformas proporcionadas, em finais do século XV, pela Rainha D. Leonor de Lencastre, dotando-o com uma torre sineira adossada à fachada, coberta por um coruchéu piramidal. No seu exterior, destaca-se o belíssimo portal maneirista, encimado pela imagem de Nossa Senhora da Assunção e composto por 2 pares de colunas que sustentam o frontão com friso decorado. O seu interior, de três naves separadas por quatro tramos, assentes em colunas toscanas, é ricamente decorado, atestando o papel deste templo e da própria vila ao longo dos séculos: paredes revestidas por azulejos azuis e brancos do barroco inicial (finais do século XVII) e um retábulo de talha maneirista, com pinturas alusivas à vida da Virgem. Destacam-se ainda, no altar colateral, cinco telas da pintora obidense Josefa d’Óbidos, datadas da segunda metade do século XVII. A Igreja da Misericórdia, situada ao lado da igreja matriz, acompanhando o declive do terreno, foi fundada pela rainha D. Leonor, entre finais do século XV e inícios do século XVI, sendo rodeada pelos edifícios do hospital que também aí fundou. Alvo de várias reformas, conserva, da época quinhentista, características como a planta longitudinal orientada no sentido este-oeste, limitada pela cabeceira e pela fachada principal, sem transepto, sem ábside destacada e sem capelas laterais. No exterior, um portal de arrojada composição, rematado por um nicho que contém uma imagem de cerâmica vidrada e pintada do século XVII, 32

31

. Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit..

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33

Idem, ibidem. Cf. Teresa Bettencourt da Câmara, Ob. cit., p. 30.

Identidade e Património - Um percurso por Óbidos Monumental

representando a Virgem com o Menino. No interior, a igreja de uma só nave encontra-se revestida por azulejos azuis e amarelos, também do século XVII. Voltamos à Rua Direita, avançamos alguns metros e, descendo por uma das suas perpendiculares, deparamo-nos com a Capela de São Martinho, uma capela funerária familiar, que apresenta um gótico muito simples, destacando-se o portal ogival de três arquivoltas, assentes sobre colunelos com motivos vegetalistas. Instituída entre 1320 e 1331, constitui o único exemplo da arquitectura religiosa medieval sobrevivente em Óbidos, tendo sofrido poucos danos com o terramoto. À sua frente, ergue-se a Igreja de São Pedro. De fundação medieval, foi reformada na segunda metade do século XVI, tendo sido bastante danificada pelo terramoto de 1755. Posteriormente reparada, conserva ainda na fachada alguns vestígios do antigo portal gótico. No seu interior, destaca-se o retábulo barroco de talha dourada. Nela, jaz sepultada a insigne pintora obidense Josefa d’Óbidos. Voltando à Rua Direita, seguimos para a Porta da Vila, entrada principal da vila. No seu interior, encontra-se a pequena capelaoratório de Nossa Senhora da Piedade, padroeira da vila, com o seu varandim barroco e revestida com azulejos azuis e brancos, com motivos alegóricos alusivos à Paixão de Cristo, datados de meados do século XVIII. Encontramo-nos, agora, fora da vila e do seu perímetro muralhado, na estrada que liga Óbidos às Caldas da Rainha. À nossa frente ergue-se, imponente, o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, inaugurado em 1747. A igreja, de planta centrada, articula o volume cilíndrico do exterior com um polígono hexagonal do interior, ao qual se anexam três corpos: duas torres e uma sacristia. Apresenta três capelas, uma mor e duas laterais. No seu interior, encontrase a escultura, em pedra, de Cristo Crucificado, objecto de devoção joanina. No seu exterior, destaca-se ainda um jogo de janelas invertidas. Um núcleo urbano não subsiste sem água, pelo que nos parece relevante focarmos a nossa atenção sobre o aqueduto que abastece de água a vila. D. Catarina de Áustria, esposa de D. João III, assim o pareceu entender quando, em 1573, mandou construir o aqueduto que transportava a água até Óbidos, levando, assim, o precioso líquido à urbe. A obra, custeada integralmente pela rainha, tem 2,5km de comprimento sobre arcaria civil pública maneirista,

levantada sobre o vale dos arcos até à Porta do Vale, seguindo, a partir daí, por canalização subterrânea até ao chafariz da Praça de Santa Maria. Corre no sentido Sul/Norte, sendo o primeiro troço, o da nascente, desde a Usseira até ao Vale dos Arcos, subterrâneo com uma extensão de cerca de 3km. Terminamos conscientes de que as referências que fizemos representam, apenas, uma pequena ilustração da riqueza do património histórico edificado obidense. Consideramos que a vila e o seu conjunto muralhado constituem um todo indissociável pelo que, destacar exemplos desse património reduz, em muito, o seu verdadeiro significado. Assim, e face à impossibilidade de apresentarmos toda a sua riqueza patrimonial constituída por ruas, becos, edifícios e, entre outros, por todo um conjunto de pequenos pormenores que, embora aparentemente desprovidos de significação, encerram em si alguns dos elementos constitutivos da identidade e da memória dos obidenses, vimo-nos na contingência de termos de seleccionar alguns exemplos desse património, certos de que ficámos muito aquém dos nossos objectivos iniciais.

Fontes

COSTA, António Carvalho da, Corografia Portuguesa e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal, t. 3, Oficina de Valentim da Costa, Lisboa, 1712. Instituto dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, Colegiada de Santa Maria de Óbidos. Memórias Históricas e Diferentes Apontamentos acerca das Antiguidades de Óbidos, I.N. — C.M./C.M.O., 1985 Plano Director Municipal de Óbidos, Câmara Municipal de Óbidos, 1996. www.vitruvius.com.br

Bibliografia

CÂMARA, Teresa Bettencourt da, Óbidos, Arquitectura e Urbanismo – séculos XVI e XVII, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990. MALOUF, Amin, As Identidades Assassinas, Algés, Difel, 1999. OLICK, Jeffrey K., ROBBINS, Joyce, “Social Memory Studies: from ‘Collective Memory’ to the Historic Sociology of Mnemonic Practices”, Annual Review of Sociology, vol. 24, 1988. SILVA, Manuela Santos, A Região de Óbidos na Época Medieval — Estudos, Colecção PH - Estudos e Documentos, Caldas da Rainha, 1994. ZERUBAVEL, Eviatar, Time Maps: Collective Memory and the Social Shape of the Past, The University of Chicago Press, Chicago, 2003.

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O Museu: da sumptuosidade do edif ício arquitectónico ao seu conteúdo Fernando Magalhães Antropólogo – CIID - IPLeiria

Os discursos em torno dos museus, enquanto edif ícios per si, independentemente das colecções que albergam, têm vindo a ganhar relevo, sobretudo no seio de algumas correntes arquitectónicas ligadas à sua concepção e herdeiras das visões oitocentistas que proclamavam e promoviam o museu a representante privilegiado da nova comunidade nacional. Foi assim que alguns dos mais sumptuosos palácios reais se transformaram em museus nacionais de acesso ao público, ao mesmo tempo que significavam o elevado nível cultural das novas nações (Magalhães, 2005). Assim, a metamorfose de certos edif ícios e a edificação de outros, dotados de uma monumentalidade que lhes concede valor, mais pela sua estrutura arquitectónica do que pelas colecções que albergam, serve, actualmente, como uma importante marca cultural do espaço comunitário, seja ele nacional, regional, ou a urbanidade de uma cidade (Grande, 2006). Susan Pierce (1992), tendo desenvolvido estudos culturais sobre museus, objectos e colecções, retratou de uma forma bastante prof ícua as relações que se podem estabelecer entre o objecto, o museu e a colecção, em que se refere, ao museu como esse edifício monumental, filho da Revolução Francesa. A grandiosidade do edif ício museológico não é, portanto, um fenómeno dos tempos hodiernos, o grande museu de hoje, é o herdeiro do sumptuoso museu moderno. Na mesma linha de pensamento, Carol Duncan (1991; 1995; 1999), observando o espaço ritual do museu, destaca o simbolismo que este adquire, enquanto edif ício monumental destacando-se, por essa via, na geografia arquitectónica das cidades. Por norma são edifícios esplêndidos feitos ou transformados para albergar colecções onde, frequentemente, o exterior se sobrepõe ao conteúdo interior (Barranha, 2006; Grande, 2006). 68

No século XXI, o museu adquire um valor crescente no seio das políticas culturais seguidas por cidades e regiões, constituindo importantes meios de afirmação do que se designa por cidades criativas, bem como motores turísticos e de regeneração do espaço urbano de que são testemunha o Museu Guggenheim, de Bilbau ou o Museu de Serralves, no Porto. A primeira pedra do Museu de Arte Contemporânea de Serralves foi lançada a 27 de Novembro de 1996, sendo convidado Vicente Todolí como director artístico. A 6 de Junho de 1999 o Museu é inaugurado com a exposição “Circa 1968”, exposição que reforçou a ambição internacional do museu. Em 2003 Vicente Todoli assume a direcção da Tate Modern, em Londres e João Fernandes passa a ocupar o cargo de director do museu, constituindo equipa com Ulrich Loock, entretanto convidado para director-adjunto1. A inauguração do Museu de Serralves tem contribuído para a construção de uma imagem renovada da cidade do Porto e do Norte de Portugal, associada à manifestação da alta cultura. A ideia da representação de uma determinada comunidade ou grupo, veiculada pelas instituições museológicas, tem justificado a emergência de edifícios imponentes arquitectonicamente. Inseridos na comunidade regional ou nacional, estes museus, dignos de representação da nobreza comunitária, passam a constituir metáforas da imponência e da nobreza das regiões onde se situam, e que pretendem representar (Mendéz: 2003; 2004). São edif ícios monumentais que transportam consigo significados culturais muito específicos. O Museu Guggenheim de Bilbau, inaugurado em 1997, constitui outro exemplo significativo da busca de representações materiais comunitárias por via da imponência de um edifício que, não obstante albergar valiosas colecções e exposições, o seu exterior arquitectónico se sobrepõe aos olhos do visitante. El Museo Guggenheim Bilbao, obra del arquitecto americano Frank O. Gehry, constituye un magnífico ejemplo de la arquitectura más vanguardista del siglo XX. El edificio representa en sí un hito arquitectónico por su diseño 1

Museu de Serralves [online]. História [citado em 02/04/2008; 20:00 horas], disponível em http://www.serralves.pt/gca/?id=873.

O Museu: da sumptuosidade do edifício arquitectónico ao seu conteúdo

innovador y conforma un seductor telón de fondo para la exhibición de arte contemporáneo2. Mais do que a representação de Bilbau, importante cidade da nação basca, uma das mais reivindicativas do Estado Espanhol e grande centro industrial, com o Museu Guggenheim pretende-se a projecção do País Basco, quer internamente, como externamente, enquanto importante centro de cultura. Este museu representa, por outro lado, uma identidade cultural que se constrói, permanentemente, em contraposição às representações do Estado espanhol, patentes no Prado madrileno. Como referimos no início deste artigo, as causas maiores da emergência dos museus modernos, focalizam-se na emergência da noção de comunidade nacional. Neste sentido, o museu transformou-se num material de memória capaz de incorporar sentimentos subjectivos de pertença a uma determinada comunidade nacional. O que sucedeu em Espanha, é que não se desenvolveu esta noção de Estado-Nação homogéneo, sendo que a grande dificuldade, e mesmo impossibilidade, em impor uma cultura nacional homogénea em todo o Estado espanhol, acabou por constituir o combustível que levou ao desenvolvimento de uma capital monumental, Madrid, albergando um museu não menos monumental: o Museu Nacional do Prado (Holo, 1999). O Museu Nacional do Prado é constituído por um sumptuoso edif ício, desenhado por Juan de Villanueva. Construído em finais do século XVIII e inaugurado como museu em 1819, com ele pretendeu-se realçar em toda a Europa, a existência de una escuela española tan digna de mérito como cualquier otra escuela nacional3. El edificio que hoy sirve de sede al Museo Nacional del Prado fue diseñado por el arquitecto Juan de Villanueva en 1785, como Gabinete de Ciencias Naturales, por orden de Carlos III. No obstante, el destino final de esta construcción 2

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Museu Guggenheim Bilbau [online]. El edifício [citado em 06/04/2008; 11:27 horas], disponível em http://www.guggenheim-bilbao.es/secciones/ el_museo/el_edificio.php?idioma=es. Museu Nacional do Prado [online]. Orígenes [citado em 07/04/08; 12:03 horas], disponível em http://www.museodelprado.es/es/pagina-principal/ coleccion/origenes.

no estaría claro hasta que su nieto Fernando VII, impulsado por su esposa la reina María Isabel de Braganza, tomó la decisión de destinar este edificio a la creación de un Real Museo de Pinturas y Esculturas. El Real Museo, que pasaría pronto a denominarse Museo Nacional de Pintura y Escultura y posteriormente Museo Nacional del Prado, abrió por primera vez al público en noviembre de 1819. Nació con el doble propósito de mostrar las obras propiedad de la corona y descubrir a Europa la existencia de una escuela española tan digna de mérito como cualquier otra escuela nacional. El primer catálogo, realizado en 1819 y dedicado exclusivamente a la pintura española, constaba de 311 pinturas, aunque, en ese momento, se guardaban ya en el Museo 1.510 obras procedentes de los Reales Sitios pertenecientes también a otras escuelas. La valiosísima Colección Real, germen de los fondos del actual Museo del Prado, comenzó a adquirir pleno desarrollo en el siglo XVI en tiempos del emperador Carlos V y continuó enriqueciéndose con el concurso de los monarcas que le sucedieron, tanto Austrias como Borbones. Gracias a la voluntad y al esfuerzo de todos ellos ingresaron en la Colección Real los mayores tesoros que se pueden contemplar hoy en el Prado como El descendimiento de Weyden, El jardín de las Delicias de El Bosco, El caballero de la mano en el pecho de El Greco, El tránsito de la Virgen de Mantegna, La Sagrada Familia, conocida como “La Perla”, de Rafael, Carlos V en Mülhberg de Tiziano, El lavatorio de Tintoretto, el Autorretrato de Durero, Las Meninas de Velázquez, Las tres Gracias de Rubens o La familia de Carlos IV de Goya. A los fondos procedentes de la Colección Real se sumaron después otros que aumentaron y enriquecieron en gran medida las colecciones del Museo con algunas de sus obras maestras como las majas de Goya. Fundamental fue la incorporación de otros museos hoy desaparecidos, el Museo de la Trinidad en 1872 y el Museo de Arte Moderno en 1971, pero también fueron decisivos los numerosos legados, donaciones y compras. Procedentes del Museo de la Trinidad ingresaron en el Prado algunas obras relevantes como La Fuente de la 69

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Gracia de la escuela de Jan Van Eyck, los retablos de santo Domingo y de san Pedro Mártir realizados para santo Tomás de Ávila por Pedro Berruguete y los cinco lienzos del Colegio de doña María de Aragón de El Greco. Del Museo de Arte Moderno provienen gran parte de los fondos del siglo XIX, entre los que destacan obras de los Madrazo, Vicente López, Carlos de Haes, Rosales y Sorolla. Desde la fundación del Museo se han incorporado a sus colecciones más de dos mil trescientas pinturas y gran cantidad de esculturas, estampas, dibujos y piezas de artes decorativas mediante legados, donaciones y compras, que engloban en su mayoría el apartado de Nuevas Adquisiciones. Numerosos legados han enriquecido los fondos del Museo, tales como el de don Pablo Bosch, con su magnífica colección de medallas, el de don Pedro Fernández Durán, que sumó a su amplísima colección de dibujos y artes decorativas una obra maestra de la pintura como la Virgen con el Niño de Weyden, y el de don Ramón de Errazu con pintura del siglo XIX. Entre las donaciones cabe reseñar la de Las Pinturas Negras de Goya que hizo el Barón Emile d’Erlanger en 1881. Entre las múltiples obras ingresadas mediante compra se encuentran algunas tan destacadas como las que se han efectuado en los últimos años, entre ellas la Fábula y la Huída a Egipto de El Greco, en 1993 y 2001, La condesa de Chinchón de Goya en el 2000 y El barbero del Papa de Velázquez en el 2003. La colección está formada por aproximadamente 7.600 pinturas, 1.000 esculturas, 3.000 estampas y 6.400 dibujos, además de un amplio número de objetos de artes decorativas y documentos históricos. En la actualidad, el Museo exhibe en su propia sede unas 1300 obras, mientras que alrededor de 3100 obras (‘Prado disperso’) se encuentran, como depósito temporal en diversos museos e instituciones oficiales, y el resto se conserva en almacenes4.

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Museu Nacional do Prado [online]. Orígenes [citado em 07/04/08; 12:03 horas], disponível em http://www.museodelprado.es/es/pagina-principal/ coleccion/origenes.

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A inauguração do Museu Nacional do Prado constituiu um tributo a Madrid, que deveria possuir a dignidade das outras capitais europeias, afirmando-se concomitantemente enquanto capital de um grande Estado: o espanhol. Esta cidade passou a ser capital de Espanha, apenas em 1561, e a aquisição da dimensão mundial e europeia fez-se através da construção de avenidas, palácios e outros edifícios de dimensão assinalável. No século XVIII, a inauguração do Museu do Prado constituiu, portanto, uma metáfora da inserção de Espanha na modernidade europeia. Assim, numa primeira fase, em que vigorou a ideia do museu moderno, construído como forma de dar corpo à ideia da comunidade nacional, o edif ício do museu deveria ser tão digno e sumptuoso como a nação que pretendia ser representada, dotada de um passado glorioso. Da ideia de museu enquanto representação da comunidade nacional rapidamente se partiu para as comunidades regionais e locais. O início do século XX marca essa viragem, existindo hoje exemplares que, ainda inspirados nestas ideias da museologia clássica, se caracterizam por museus locais/regionais, ou que representam actividades locais e/ou regionais, instalados em edif ícios históricos mais ou menos sumptuosos, como acontece com o Museu de Alberto Sampaio em Guimarães. Na região de Leiria alguns desses exemplos podem ser observados no Museu do Vidro da Marinha Grande, em que possuímos um edif ício monumental apalaçado, construído na segunda metade do século XVIII, para residência de uma das figuras mais marcantes da história marinhense, Guilherme Stephens. Não sendo a primeira figura ligada ao vidro Stephens foi, contudo, o grande impulsionador da indústria vidreira marinhense, tendo legado ao concelho uma série de edif ícios de valor arquitectónico, de que constitui exemplo o citado palácio. O museu do vidro, inaugurado em 1998, tem a particularidade de albergar colecções de objectos relacionados com o vidro, tendo esta matéria estado na origem da sua construção. É, portanto, um caso paradigmático da transformação de um edif ício apalaçado, num museu. Possuímos, contudo, muitos outros exemplos de museus monumentais disseminados pelo continente europeu. Neste sentido, um dos exemplos mais marcantes do grandioso museu moderno, é materializado pelo museu do Louvre.

O Museu: da sumptuosidade do edifício arquitectónico ao seu conteúdo

O museu do Louvre era um antigo palácio real, aberto apenas à grande aristocracia que, em consequência da Revolução Francesa, foi transformado em museu de acesso público. Pela sua magnitude arquitectónica e simbólica, tanto ou mais do que as colecções que o museu alberga, o Louvre transporta uma mensagem relacionada com a mudança social oitocentista e de que as nossas sociedades actuais são directamente herdeiras: foi o fim da sociedade de estrutura social medieval, e o início da sociedade moderna, burguesa, saída da Revolução Francesa, pautada pelo conceito de cidadania baseada nos pressupostos da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O Louvre foi um dos veículos escolhidos pelos poderes napoleónicos para transportar esta mensagem de mudança. Em princípio, todos eram livres de aceder, nas mesmas circunstâncias de igualdade, às melhores realizações do EstadoNação francês, incorporadas pelo museu. O Louvre deveria contribuir para uma maior fraternidade entre todos os franceses. A abertura das portas do palácio significava, portanto, a abertura das portas da sociedade, a instalação do Estado-Nação dotado de cidadãos nacionais. O Museu do Louvre significava também a República Francesa, a sua monumentalidade e a imponência da capital nacional: Paris. Pela reconstrução da cidade, monumental e monumentalizada, Paris constitui um dos melhores exemplos da inauguração do conceito de Estado-Nação de cultura homogénea e centralizada numa grande capital nacional. A inauguração do museu britânico data de finais do séc. XVIII, embora os britânicos gostem de frisar o ano de 1753, reivindicando o estatuto de detentores do primeiro museu moderno, numa alusão à emergência do museu do Louvre em finais do século XVIII e inícios do XIX. Trata-se, contudo, de um edifício também de porte monumental e marcante nas geografias londrina e britânica. Outro exemplar de arquitectura monumental é patente pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o qual, inserido na época moderna, possui variadas colecções de arte do século XX. Neste, como nos outros casos, a dimensão patrimonial do edif ício, de arquitectura imponente, impõe-se ao visitante. Estamos perante um edifício de linhas contemporâneas, onde imperam elementos como o aço e o vidro. Trata-se, porém de um edif ício recente, que simboliza a criatividade e o empreendedorismo estereotipado dos norte-americanos.

Como observámos, todos estes exemplares museológicos possuem em comum a sua monumentalidade. Esta imponência não tem passado despercebida aos olhos de arquitectos, de cujas mãos saíram muitos desses projectos, sendo o exterior arquitectónico museológico de tal forma cultivado, que tem conduzido à afirmação crescente do valor exterior do museu, muitas vezes em contraste com o seu conteúdo.

Em conclusão O museu não pode ser visto como um todo composto por três partes distintas, detentoras de valores desiguais: um edifício, um objecto e uma colecção. São 3 partes diferentes, contudo complementares e se é verdade que a monumentalidade do museu fala por si, seja no contexto regional, nacional, ou internacional, não é menos verdade que um museu só tem sentido se tiver um papel social a desempenhar, que é feito por intermédio do seu conteúdo: objectos e colecções. Neste contexto, devemos observar o edifício, os objectos de museu e as suas colecções como um todo, complementar. Só assim poderemos compreender como é que as sociedades, como é que as comunidades actuais se pensam e se projectam perante si e perante os outros.

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Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

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PATRIMÓNIO CULTURAL: A TERRA, O MAR CAMPONESES E PESCADORES

Entre a Terra e o Mar Apontamentos fotográficos

Foto 1 Traje rico do homem e da mulher da Nazaré

Foto 2 Traje de luto do homem e da mulher da Nazaré

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 3 Pescador da arte xávega

Foto 4 Mulher que vem do rio

Foto 5 Mulher que vai para o rio

Foto 6 Pescador da pesca do alto (anzol)

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 7 Avante, N 1686 C – bote a motor e a vela da pesca do alto

Foto 8 Digna flor, N 1918 C – traineira da pesca do alto

Fonte: CIID

Fonte: CIID

Foto 9 Materiais usados na pesca do anzol Fonte: CIID

Foto 10 Jogos tradicionais dos rapazes da Nazaré Fonte: CIID

Foto 11 Bóias utilizadas na pesca Fonte: CIID

Foto 12 Cabazes utilizados para transportar o pescado do barco até à lota Fonte: CIID

Foto 13 Trouxa de roupa Fonte: CIID

A Terra e o Mar - Os Camponeses Ricardo Vieira Antropólogo – CIID - IPLeiria

Há, pelo menos, três posições onde nos podemos situar quando falamos de identidade, para não dizer duas, que é a tipologia e o modelo mais pobre, o do preto e branco. Eu acho que, de um lado, podemos ver algumas pessoas que são muito essencialistas e que estão à procura de caracterizar o campo, os campos, a aldeia, as aldeias, a cidade, os ribatejanos, os alentejanos, os estremenhos, etc.. Estão à procura de marcas muito próprias, muito específicas, que nunca aparecem nos outros, e, portanto, haverá alguma dose de essencialismo cultural nalguns desses discursos, nalguns trabalhos. No extremo oposto, nós poderíamos dizer que há aqueles que dizem que hoje não podemos falar de identidade. Ou que é preferível falar de processos de identificação. Assim, podemos dizer que neste ponto extremo há pessoas que dizem bastas vezes que “alguém ou alguma comunidade perdeu a identidade”. Isto como se a identidade fosse uma coisa que se comprasse, vendesse, cultivasse e perdesse. Aqui citava mesmo aquela célebre frase de Lavoisier, para quem “ nada se perde, tudo se transforma”. Pessoalmente, quero dizer que me situo algures num ponto epistémico, oscilante entre esses dois pólos extremos. Quando o Sr. Travassos dizia: “europeus, nós somos para aí meio europeus”, eu até escrevi aqui no meu apontamento, em termos consanguíneos e sanguíneos, saibam que um trabalho de antropologia biológica, (e já não estamos a falar de cultura, antes de antropologia biológica), para aí de há meia dúzia de anos, do Instituto de Antropologia de Coimbra, mostra como os portugueses são 99,8% berberes. Portanto, o sangue português, neste momento, é essencialmente africano. Claro que a história constrói, claro que as pessoas constroem a ideia de que somos lusitanos, de que somos celtas, que somos ibéricos, que somos romanos, somos árabes, 76

somos muçulmanos, somos africanos e somos, de facto, isso tudo, em termos culturais. Nós somos mesmo isso tudo. Portanto, eu assumo a minha ideia de que não há ninguém que não seja mestiço. Somos todos mestiços culturalmente. E o meu meio-termo é: como é que as pessoas usam esse bricolage identitário, de que fala Claude Lévi-Strauss, retomado pelos cientistas da educação, mais tarde, para marcar a distinção em relação aos outros. É evidente que nós podemos encontrar, podemos procurar semelhanças. Acreditem, qualquer historiador, qualquer investigador, qualquer cientista social que for para o campo procurar semelhanças encontra semelhanças entre o camponês X da aldeia Y. Mas se o objecto de estudo for procurar diferenças, acreditem que encontrará diferenças. E a minha ideia é, em primeiro lugar, dizer que felizmente que há trabalhos sérios de museus, de grupos folclóricos, de etnografia. Eu próprio, fiz tanta etnografia, que hoje penso: caramba, hoje sou mesmo diferente. Portanto, tenho consciência de que me transformei e, portanto, esse trabalho sério, é muito importante, desde que devidamente contextualizado no tempo e no espaço e não se torne anacrónico. Quer dizer, que não abula a história, que não abula o dinamismo, a dinâmica, o eixo diacrónico de todos os fenómenos em todos os espaços. E isso significa que, de alguma forma, a história é também construída. A história não é uma essência, não é um destino. A história é construída pelos líderes, pelas pessoas, pelo povo. Oiçam, se D. Afonso Henriques não se tivesse zangado com a mãe nós éramos hoje espanhóis, não é? Portanto, quando eu estou a falar do bricolage identitário, é efectivamente para recordar aquela definição, que é importante dizer, que a Antropologia desde há 50 anos para cá tem vindo a mostrar, e que às vezes é mal entendida, quando se fala da identidade. Nós não falamos de uma coisa, não falamos de uma essência identitária. Falamos de um processo de identificação, sendo que as pessoas podem ter cada vez mais isso. Mas acontece que podem ter identidades múltiplas. Podem identificar-se com o Benfica, com o Sporting hoje à noite, e não deixarem de ser benfiquistas, entendem a questão? E, portanto, de alguma forma, a história fez a colonização, a descolonização. Esse problema de ser português, que tipo de português, que tipo de europeu, não é um problema naturalista, não é um problema genuíno. É sempre híbrido e é sempre manipulado e

A Terra e o Mar - Os Camponeses

manipulável pelas elites e por aqueles que os podem manipular. Este é o meu ponto zero. O ponto seguinte, ainda, também, em termos de tentar algum diálogo com os meus colegas anteriores era dizer ao Dr. Acácio de Sousa que é evidente que estou de acordo, eu próprio sou mesmo muito camponês! Nasci no campo, durmo lá muitas vezes, agora um pouquinho menos, porque a minha profissão já não me deixa ser tão mestiço. Mas sinto-me perfeitamente bem como camponês, e quando estou no meio do campo e com os meus amigos de infância tenho outro estilo de vida e procuro fazer uma hermenêutica diatópica (Santos, 1997). É um conceito interessante para jogar nestes dois pólos: quem sou eu aqui, quem sou eu acolá. A minha conversa é outra, os meus temas são outros. E, às vezes, é mesmo um esforço incrível, porque, de facto, estamos sempre a falar do tema do outro, e o outro tem, às vezes, dificuldade em falar dos outros temas, que são os meus interesses, da minha identificação no contexto urbano, universitário e de ensino superior. Mas é cada vez mais assim. Nós não somos apenas uma pessoa. Podem habitar em nós várias pessoas, várias linguagens, vários pensamentos, várias religiões (que é mais dif ícil), vários clubes de futebol (que é também mais dif ícil). O meu puto1, está ali atrás sentado, tem sete anos. Quando lhe faço a pergunta de que clube é (agora já não sei qual é a resposta, porque ele também é produto da história, também pode ter mudado um pouco), ele dizia que era da selecção nacional, era do Benfica, era da União de Leiria, era do Arcuda, que é o clube da nossa terra natal, que eu ajudei a fundar, onde joguei futebol, etc. Pode mesmo ser-se várias coisas, como as bonecas russas que encaixam umas dentro das outras. Este é o ponto primeiro. Portanto, nós nascemos num sítio, mas será que quando pensamos: Eu? Quem sou eu? Nós somos só aquilo que éramos com zero anos de idade? Somos só aquilo que éramos com um ano de idade? Nós não crescemos? Nós não interagimos com os outros? Nós não nos identificamos com novas coisas e novas pessoas? Nós não fomos, de alguma forma, modelados, às vezes como o oleiro modela o barro, outras vezes escolhemos 1

Conceito social para designar petiz, uma criança. Neste caso o meu próprio filho.

e construímo-nos a nós próprios? Nós somos isso tudo, somos aquilo que éramos em criança, às vezes escondida, porque a sociedade, economicocêntrica, a sociedade adultocêntrica e economicista, não nos deixa ser crianças. Mas há uma criança que vive em nós, e nós todos éramos capazes de jogar aqui ao berlinde, se calhar… Agora, uso aqui as minhas notas para eu tentar alguma economia de tempo e dar o meu contributo para, enfim, alertar para o excesso de certezas, que eu próprio estou cheio de dúvidas e se conseguir alertar-vos para algumas dúvidas fico contente. Quando falamos de uma aldeia hoje, se é que não foi sempre, nós temos de falar da aldeia, mas não só isolada, como se fosse uma ilha que não tem ligação com o Estado-Nação, com a Administração Central. Não é só o Conselho de Anciães, como em Rio de Onor, em Vilarinho das Furnas. Efectivamente, eles ignoravam tantas vezes o próprio Estado no caso de Rio de Onor. O Estado Português e, do outro lado do rio, o Estado Espanhol, mas, para todos os efeitos, eles são, uns portugueses, outros espanhóis; e eram, em termos de identidade, autoconstruída e também heteroconstruída, pelo próprio Jorge Dias e outros que passaram por lá, uma identidade muito una. Mas se nós formos à procura dos conflitos, que era o meu ponto um, de início, nós encontraremos os conflitos dentro dessa aldeia que muitas vezes foi veiculada para fora como uma comunidade em termos monoculturais. Essa definição do modelo de algumas enciclopédias, do que é uma comunidade, que é um povo com os mesmos valores, com a mesma história, com os mesmos ideais, que partilha da mesma memória, etc., e habita um mesmo território… Esta é uma definição muito bonita, mesmo bonita mas cada vez mais dif ícil de encontrar num espaço empírico próprio. Portanto, não há hoje facilidade em encontrar o real significado com este ideal do modelo de definição de comunidade. Portanto, as comunidades aldeãs, falando assim, porque temos que usar a palavra, apesar dela ter de ser também reconstruída, elas têm tradição e têm mudança e a minha ideia é aqui mostra-vos que nós conseguimos encontrar a tradição. Mas também encontraremos a mudança se o quisermos, se for esse o nosso objecto de estudo. A propósito de Leiria ter sido essa ilha ideológica, a propósito das últimas eleições, um jornalista do Público perguntou-me 77

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

qual era a minha opinião: Então mas aqui há camponeses na região de Leiria? É que eu andei por aí a passear e a perguntar e inquiri presidentes de junta e tal, e eu só vi casarões e não vi aldeias por aqui. Portanto, há esta concepção dos urbanos, de que a aldeia tem de ser mesmo a terra, a aldeia do telejornal na Serra da Lousã, ou de Arganil, ou não sei quê. Portanto, as aldeias, elas são hoje, também, produtos da história e a aldeia não é mais aquilo que ensinamos como modelo dicotómico na escola primária aos nossos alunos e filhos. Não há essa separação dualista entre aldeia e campo. As aldeias são elas próprias habitadas por várias comunidades, como as cidades são elas próprias habitadas por várias comunidades. Temos comunidades dentro das comunidades e temos aldeias também, cada vez mais heterogéneas, hoje em dia. Portanto, continuamos às vezes a reproduzir uma ideia falsa de harmonia identitária da aldeia X ou Y, que é, de alguma forma, aquilo que nós vemos nas monografias lá fora expostas. Aquele retrato único, pintado, muitas vezes, por um indígena local, que quer fazer mostrar ao mundo como a sua aldeia é mesmo diferente das outras. Se dermos uma olhada por aquelas monografias encontraremos na maior parte essa característica de querer dar essa dimensão holística, global, total, funcionalista, onde tudo está equilibrado e tudo depende de tudo, umas coisas das outras. Os vizinhos não são pagos com moeda, vão ao “dia fora” e pagam em género, pagam com troca recíproca de trabalho. Tudo isso também já se foi transformando e, portanto, nós encontramos essa fixação da história em cada momento que um autor constrói uma monografia. Mas são raras, do meu ponto de vista, as monografias que estão lá fora expostas, que tenham essa dimensão de estudo de caso, mais sociológico, antropológico, como é a minha esfera e de outras pessoas cá inscritas. E estou-me a lembrar (pode ficar mal falar dos nossos trabalhos), há um trabalho meu que se chama justamente Albergaria dos Doze, As Partes e o Todo – Um Estudo sobre a Identidade Cultural (Vieira, 1999), onde eu falo desse dualismo identitário que existe em todas as aldeias do mediterrâneo, e mais do mundo, mas as do mediterrâneo estão muito estudadas, que é, para além dessa dimensão da homogeneidade, de nós sermos todos capazes de dar a mão e bater na outra aldeia ao lado, depois, noutros momentos, nós cá dentro, não somos tão unidos como essa imagem 78

que damos para o exterior. E, muitas vezes, a maior parte das aldeias está bipartida. Isto não é bom nem é mau, é um facto! E, é preciso ver com olhos de ver, para detectarmos isso. Nesta aldeia, eu encontro vários exemplos desse fenómeno que não é novo, mas que está pouco descrito na nossa região. Um livro que está ausente lá fora da exposição, porque a exposição teve algumas dificuldades em encontrar os livros todos, é um livro de um nosso professor, Moisés Espírito Santo, hoje jubilado, Comunidade Rural a Norte do Tejo (Santo, 1980). Ele fala bem desta bipartição no Reguengo do Fetal. Se nós pensarmos, por exemplo, na monografia que o José Trindade traduziu e trabalhou com um norueguês, na Nazaré, há anos atrás (Brogger, 1992), nós encontramos esta análise, socioantropológica da bipartição dessa comunidade que, de fora, é vista como toda igual e tem tanta desigualdade lá dentro, também. Bom, mas também podemos falar da tradição, obviamente. Nós encontramos nestas aldeias todas, ainda, quer esteja expresso nas monografias, quer seja, enfim, objecto da nossa observação quotidiana, nós encontramos a continuidade. Pelo lado da continuidade, nós encontramos nas aldeias o ritmo festivo do calendário agrícola. Eu vou usar agora uma linguagem mais sintética e, enfim, eventualmente, mais hermética para falar disso, ao nível da religiosidade, ao nível da crença, ao nível do trabalho da igreja. A igreja marca um calendário para a maior parte dos camponeses mas nem todos aqueles que vivem no campo são camponeses, aqui é a questão, não é? Nem todos os que vivem na aldeia são aldeões ou aldeãos (existem mesmo as duas palavras). Claro que nós podemos falar da cultura rural. Mas a cultura rural vai-se também modificando ao longo do tempo porque há imigrações, os meninos, filhos dos camponeses, vão à escola e, portanto, há uma dinâmica que transforma as maneiras de falar, de pensar, os hábitos. As aldeias estão também em transformação. É a história e, claro, que nós podemos tentar preservar e, portanto, datar para que não seja anacrónico o álbum de fotografias. Estou a falar metaforicamente que as várias associações culturais, às vezes, preservam de uma forma anacrónica. Os camponeses falam alto, às vezes aos gritos. Eu faço trabalho de campo, às vezes estou no café e começo a ver que está tudo aos gritos e ninguém pensa que está aos gritos, ninguém reflecte sobre a maneira como está a falar, há muito

A Terra e o Mar - Os Camponeses

pouca contenção na linguagem corporal, enquanto a nobreza do Estado-Nação, a cultura elitista, cultiva a voz, cultiva como eu estou a cultivar agora, privilegia-se o silêncio, etc.. É uma educação urbana. A própria educação dos camponeses é aos gritos, ralha-se com as crianças e bate-se nas crianças. Isto é ainda de hoje, não é bom, nem é mau, é um costume, como os tipos de interesse de tempos livres. Eu estou a falar daquelas coisas menos românticas. Existem, hoje em dia, ainda as tabernas, têm uma nova roupagem, está lá outro disco, dos Pink Floyd, ou outro, a tocar e a taberna desapareceu, mas estão lá, encostados ao balcão, homens, três horas seguidas, a beber quase uma grade de cerveja antes da mulher acabar o jantar. Isto existe nas aldeias hoje. O ritmo de trabalho, o tempo sagrado, diferente do tempo profano, o corpo e a indumentária que o corpo transporta é ainda diferente nas aldeias em relação às cidades. Se vocês se puserem a pensar sobre isso (eu não estou a dizer nada doutro mundo), poderão produzir semelhante reflexão sobre o nosso quotidiano. Na cidade, é usual vermos, ao sábado e ao domingo, os letrados de fato de treino e outra coisa qualquer e com a barba por fazer. É justamente o contrário do que acontece no campo. É seis dias da semana sem fazer a barba, alguns camponeses, e a barba faz-se ao Domingo para ir à missa e o traje de Domingo é para ir à missa. Se nós procurarmos esta dimensão da continuidade, este padrão cultural, estatisticamente falando, encontra-se, como distinção, muita coisa. Claro que, talvez mais nas aldeias do que nas cidades, esse calendário que celebra a vida e a morte está bem marcante ainda hoje. As aldeias enchem-se com pessoas que saíram nas migrações para os centros maiores, enchem-se no culto aos mortos, no dia de todos os santos e finados, com as campas enfeitadas. É, possivelmente, nas aldeias portuguesas, o dia que tem mais gente a habitar a aldeia e também nas festas da padroeira, etc.. São estes dias que reúnem mais esta família heterogénea, que continua a ter essa memória da identidade semelhante, mas que, às vezes, é, de facto, cultivada e celebrada. Portanto, faz-nos bem rever essas pessoas e rever esses amigos. Mas nós já somos outras pessoas, não só aquilo que está ali, aquela pessoa que está ali a celebrar essa festa da padroeira. Bom, é importante pensar no código linguístico local, que também tem sido estudado por outras pessoas, e na reconstru-

ção de palavras. Apesar de nós irmos à escola, cada vez mais, apesar da Lei portuguesa ter tornado obrigatório a ida à escola, essa lógica da escrita ainda não faz parte de todo o património de todos os jovens. Alguns jovens de vinte anos e trinta anos já saíram da escola e falam mal português do ponto de vista letrado! Fazem híbridos de palavras e transformam a linguagem. Isso significa que as pessoas não integraram uma outra identidade, a identidade da cultura letrada e viveram momentos, possivelmente, de corte, entre quem ser, quem eu era, quem eu quero ser e, muitas vezes, nós encontramos pessoas de quem esperávamos que falassem bem e falam mesmo muito mal. E têm “a escola toda”. Isto é importante. Ao nível dos tempos verbais, o camponês continuar a usar, basicamente, três tempos verbais: o passado, o presente e o futuro. Não tem uma linguagem composta. Muitas vezes, o próprio futuro é um presente futuro. Eu agora vou ali, acolá, etc., não é? Essa ideia da agricultura que o Acácio falava, que todas as monografias acabam por falar nisso, de repente, é uma agricultura que já não é só de subsistência. Claro que a monografia pode dizê-lo, não é? Muitas vezes ela começa a ser mais um complemento no quintal, com as hortas, com a fruta, o vinho, as flores, o jardim e surge a indústria e o turismo nas aldeias. Não nos podemos esquecer disto! Portanto, digamos agora, numa linguagem ainda mais europeia, o sector terciário está mesmo nas aldeias, não é só o sector primário. Claro que há vestígios de muitas práticas comunitárias em muitas aldeias, mesmo aqui nesta zona; a questão das práticas comunitárias, a gestão das águas está presente nas zonas de Ourém: a troca de mão-de-obra, ainda se consegue encontrar, na cultura do milho, das batatas… Em síntese, aquilo que vos queria dizer é: a mestiçagem é mesmo um facto social há muitos anos. O Homem, culturalmente, não é genuíno. Portanto, nós podemos privilegiar a genuinidade do assunto, mas há outras partes, que vão interagindo com outras, e a tradição, de alguma forma, “já não é o que era”, como se diz. Há uma construção, uma reconstrução da tradição e quando o senhor Fernando está a mostrar, e está interessado no rancho da Nazaré, ou no outro, ele está a apelar ao rigor da época e muitas vezes é isto que falta na contextualização de quem dança, de quem canta, de quem mostra o património e que deixa de o enquadrar nessa dimensão histórica, nessa rede 79

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

histórica. Bom, por que é que as aldeias mudam? Enfim, porque há uma história, porque há educação, porque há migrações, interacções sociais várias. O sucesso escolar, na nossa escola elitista, que pouco sabe do campo, agora vou dizer ao contrário, agora vou-me tornar camponês, usando a linguagem erudita... O sucesso escolar, da escola laica, elitista, racionalista, de Descartes, positivista, de Durkheim, Auguste Comte, etc., afasta as crianças do meio rural. O sucesso escolar aumenta o êxodo rural. Isto é um facto. E as pessoas quando não têm sucesso escolar e vão para a aldeia outra vez, dizem: olha pai, tinhas razão, sou tão burro a matemática como tu eras. Portanto, isto é mesmo como se fosse genético, “os camponeses não sabem matemática”. Mas, pronto, vamos continuar a medir o vinho em almudes ou noutra coisa qualquer, que é a matemática oral, a etnomatemática que os letrados não conhecem. Ou, então, quando têm sucesso, das duas uma: vivem nesse go between entre o campo e a cidade (e fazem do campo uma zona de habitação, ainda que essa sua casa passe um dia a ter piscina e o campo transformou-se), ou fogem mesmo e vão só no dia de todos os santos e no dia do padroeiro à terra que os viu nascer, e onde esperam voltar depois de morrer.

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A Terra e o Mar – Os Pescadores1 Fernando Barqueiro Etnógrafo

O tema proposto neste ciclo de Conferências “ Património Cultural “A Terra e o Mar – Os Pescadores”, realizado no âmbito do Projecto Identidade(s) & Diversidade(s) permite-me, pela primeira vez, num colóquio, expressar o meu modo de pensar e sentir os pescadores da minha terra, a Nazaré. Neste vasto tema pegarei numa parte da vivência da vida dos pescadores da Nazaré, trazendo-a para o presente mostrando, ao fim e ao cabo, aquilo que a Nazaré foi num determinado espaço temporal. Se considerarmos que a vida é feita, entre outras coisas, de trabalho e festa, poderemos considerar o povo da Nazaré como o que melhor sabe conjugar estes dois aspectos da vida. Começaram os antepassados dos nazarenos, antigos pescadores que habitavam a vila da Pederneira, (outrora sede de concelho, a quem o rei D. Manuel I atribuiu foral em 1514), com o assoreamento da lagoa da Pederneira, a deslocarem-se para a parte mais baixa, que com o recuo do mar deixou a descoberto a enseada da Nazaré, começando aí a sua actividade piscatória. Foi, no entanto, com a vinda dos habitantes de Ílhavo e das Paredes da Vitória, cujo porto assoreou depois de várias tempestades de areia, que a Nazaré começou a ver desenvolvida a indústria da pesca. As primeiras referências sobre a pesca na Nazaré remontam ao ano de 1643. Mas foi por volta de 1870 que a Nazaré começou a adquirir um desenvolvimento considerável, sabendo-se que já naquela altura existiam na praia cerca de 58 cabanas para arrecadação de aparelhos de pesca. Através dos quadros abaixo apresentados, relativos à evolução do valor do pescado, podemos ter conhecimento do desenvolvimento da pesca na Nazaré, cujas condições precárias, devido à ausência de um porto de abrigo, não a impediam de ombrear com as terras do litoral já apetrechadas com aquela infra-estrutura. 1

Comunicação apresentada a 4 de Maio de 2005, no Auditório I da Escola Superior de Educação de Leiria.

Quadro 1 – Quadro da Pesca no Porto da Nazaré no ano de 1886 N.º Barcos 65

N.º Pescadores 539

Valor do pescado (em escudos) 80.000

Passados cerca de 41 anos, ou seja no ano de 1927, os números apresentavam valores mais elevados, como se constata no quadro seguinte: Quadro 2 – Quadro da Pesca no Porto da Nazaré no ano de 1927 N.º Barcos 425

N.º Pescadores 2089

Valor do pescado (em escudos) 5.064.000

Poderemos considerar que o cerca de meio século que separam estes dois quadros, permite-me concluir que, sendo as condições da enseada da Nazaré as mesmas, alterando-se somente o tamanho das embarcações e o seu equipamento, os pescadores da Nazaré souberam muito bem honrar as gloriosas tradições piscatórias dos seus antepassados, aumentando o seu activo, anualmente, em 9 barcos e 45 pescadores, o que colocava a Nazaré em 5º lugar, numa escala com duas variáveis, pescadores e número de barcos. Os portos que a antecediam eram, Lisboa, Setúbal, Aveiro e Porto. Não eram as estatísticas como as que acima referimos que permitiam aos pescadores da Nazaré sonhar com o tão almejado Porto de Abrigo. O Decreto-Lei 33 922 de 5 de Setembro de 1944, que regulamentava a 2ª Fase do Plano Portuário, atribuía verbas para Sesimbra, Peniche, Aveiro e Póvoa do Varzim, sendo a Nazaré, uma vez mais, esquecida. Justifica o organismo que procedeu à escolha das localidades a serem beneficiadas, que o Porto de Peniche é em valor de pescado e barcos muito superior à Nazaré. Se o termo de comparação peca por regionalizar a questão, melhor seria que atentassem nos valores do pescado, pescadores e número de barcos da Póvoa do Varzim. Assim, comparemos os valores do quadro seguinte, tendo como incidência os anos de 1886 e 1934: Quadro 3 – Quadro da Pesca nos Portos da Póvoa do Varzim e da Nazaré no ano de 1886 Portos Póvoa do Varzim Nazaré

Barcos 699 65

Pescadores 4500 539

Pescado (em escudos) 115.613 86.000

81

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Quadro 4 – Quadro da Pesca nos Portos da Póvoa do Varzim e da Nazaré no ano de 1934 Portos

Barcos

Pescadores

Pescado (em escudos)

Póvoa do Varzim

363

1544

1.231.350

Nazaré

534

2866

3.638.924

A análise do quadro mostra que o número de barcos e pescadores, na Póvoa do Varzim, baixou em relação à Nazaré, e sendo assim, não foi certamente por isso que a Nazaré foi ultrapassada na sua mais desejada ambição: a construção de um Porto de Abrigo. Passo agora à comparação do pescado efectuado nos portos da Nazaré e Peniche, entre os anos de 1900 e 1913, antes da pesca da sardinha ser explorada por meio de traineiras: Quadro 5 – Quadro da Pesca nos Portos da Nazaré e de Peniche no período 1900-1913 1900

1905

1910

1913

Nazaré (valores em escudos)

Portos

21.896

210.423

252.223

241.210

Peniche (valores em escudos)

69.885

127.032

167.017

218.303

Pela análise do quadro, conclui-se que a costa da Nazaré era muito mais rica em peixe e que, os pescadores da Nazaré, pescavam mais em menos dias de faina. A existência de um porto de abrigo em Peniche é a justificação lógica. Os quadros seguintes dão-nos os valores entre os anos de 1914 e 1944 depois da indústria da pesca da sardinha ser explorada por meio de traineiras: Quadro 6 – Quadro da Pesca nos Portos da Nazaré e de Peniche no período 1914-1944 Portos

1914

Nazaré (valores em escudos)

1920

1925

1930

1935

1940

1944

213.980

1.262.208 5.395.246 5.773.470 3.475.697 5.681.200 14.325.800

Peniche (valores em escudos)

349.081

1.776.250 7.832.640 12.635.101 12.960.673 10.411.800 25.774.009

A primeira parte desta comunicação serviu para proporcionar um conhecimento mais profundo da vida árdua do pescador da Nazaré. Passemos então à festa… 82

A exposição montada no átrio permite uma viagem no tempo, à Nazaré dos anos 20 a 40, através dos trajes, dos usos, dos costumes, dos jogos tradicionais, tanto dos rapazes como das raparigas e nas miniaturas de alguns barcos da costa da Nazaré. Os trajes expostos são cópias, o mais fiéis possível, dos originais, alguns que ainda chegaram até nós, e outros feitos através de fotografias e da memória de algumas mulheres da Praia. Comparativamente, a exposição de fotografias do João Delgado, que pertencem ao seu livro “O Outro Lado”, editado em 2003, permite ter a noção da mudança radical do traje do pescador da Nazaré; para não falar nas embarcações, apetrechadas com os meios mais sofisticados, consoante as possibilidades de cada um. O livro “Traje da Nazaré”, de Abílio Matos Silva, publicado em 1970, permite-nos tirar algumas conclusões e confrontá-las com algumas das pesquisas que efectuámos. Diz-nos o autor: “É dia de festa e de tradição. Tempo de chegada de círios. Passa a procissão: a imagem da Virgem volta-se para o mar e simbolicamente o abençoa. Pagam-se promessas. Ora-se por intenção dos vivos e dos mortos. Depois há foguetório, alegres filarmónicas com os seus bailaricos improvisados. É dia de festa. Dia de alegria e esquecimento. Dia pagão, e ao mesmo tempo sagrado, de reconciliação com as coisas, com os homens, com o sofrimento e com o trabalho, com as lutas e com as derrotas, com a vida quotidiana, com o mistério, com a fatalidade e com o Destino”. Este encontro com a fatalidade e com o destino, leva a pensar que o pescador, profissão que começa a ser rara na Nazaré, deixará no futuro de o viver, pois a descaracterização que esta vila piscatória tem vindo a sofrer, através dos tempos, leva-me a pensar que mais duas ou três décadas, certamente deixaremos de reconhecer no homem e na mulher da Nazaré, aqueles traços tão definidos que os caracterizaram. Para este facto, contribui certamente o casamento fora da linha tradicional, o que leva seguramente ao afastamento das tradições e, consequentemente, ao desapego às suas origens e ao afastamento do mar que sustentava a família. O aparecimento dos Grupos de cariz etnográfico é certamente em determinadas circunstâncias um garante da continuidade, através da representação, das vivências dos nossos antepassa-

A Terra e o Mar – Os Pescadores

dos; mas as suas representações feitas em contexto diferente do original, levam-nos a concluir, e citamos Salva Castelo Branco, em Vozes do Povo: “A cultura em todas as suas vertentes é um processo dinâmico e não estático, estando-lhe implícito um processo permanente de renovação. Nesta ordem de ideias, não tem sentido classificar as tradições de falsas ou verdadeiras. Se a tradição genuína é a que nos foi transmitida do passado sem ser alterada, então todas as tradições são falsas. Se por outro lado afirmarmos que as tradições são sempre definidas no presente, então, todas as tradições são verdadeiras”. Depois de muitas pesquisas, trabalho assaz difícil à época em que foi feito, chego a uma conclusão: o povo da Nazaré esqueceu quase todo o seu passado. A dificuldade de recolha é tal, que me leva a ter que repensar se vale ou não a pena considerar certas recolhas, que podem enfermar de pouco verdadeiras. A cantiga do remar, uma recolha do Grupo Etnográfico Danças e Cantares da Nazaré, aqui apresentada (filmagem de uma actuação na RTP – programa “Praça da Alegria”), dá a noção da vida dura do pescador da Nazaré nos anos vinte do século passado. Esta lenga-lenga dita por um pescador, tinha como efeito o cadenciar da remada, permitindo que o barco chegasse ao local de pesca e depois no regresso, em menos tempo e com menos esforço dos pescadores. No entanto, à memória do homem e da mulher da Nazaré, vem somente o sofrimento, a fome e as mortes no mar. Não era seguramente esse tipo de memória que pretendíamos, apesar de importante. Houve assim, necessidade de enveredar por outro tipo de pesquisa. O traje, os usos e os costumes. É neste aspecto que a Etnografia ocupa um lugar importante no quadro das ciências antropológicas, visto que a ela compete o estudo do modo de viver e de sentir do povo, ou seja a sua análise biológica e psíquica, daquilo que, como disse o Prof. Leite de Vasconcelos, “dá índole e coesão a um povo e o distingue dos outros”. Ficarão portanto fora deste contexto as cantigas e as danças populares. Se analisarmos o cancioneiro da Nazaré ele não é certamente de raiz popular; no entanto popularizou-se e ele é hoje seguramente o nosso cancioneiro. Foi neste contexto, o esquecimento do passado, que em 25 de Julho de 1997 apareceu o Grupo Etnográfico de Danças e Cantares da Nazaré. Privilegiando sobretudo a parte etnográ-

fica, que mostramos através de representações e exposições, teremos a garantia, partindo do pressuposto acima citado, que estamos a mostrar um pouco do que foi a nossa terra, nas suas vivências do dia a dia. No entanto, para que todos possamos ter a noção deste fenómeno, permitam-me que cite José Trindade, que num apontamento para um livro de um dos festivais por nós organizado, escrevia: “(…) Muito se tem questionado sobre o valor cultural e a representatividade dos Grupos Folclóricos da Nazaré. Embora se reconheça beleza nas coreografias e exotismo no traje, duvida-se da sua autenticidade enquanto manifestação cultural, criticando-se a sua adesão fácil a um certo mercantilismo e espectacularidade para vender a turista (…) “. Este fenómeno chegou à Nazaré no tempo do Estado Novo, mais precisamente por volta dos anos 50, que com a criação do SNI e do concurso lançado por António Ferro, “A Aldeia mais Portuguesa de Portugal”, motivou por obrigação, que determinadas zonas do país teriam mais hipóteses de ser promovidas, Minho, Estremadura (Nazaré), Ribatejo e Algarve, e para tal havia que criar o tipo de traje para o homem e para a mulher que servisse da melhor maneira a promoção turística que se avizinhava. A Nazaré começou a ser invadida por turistas … Passou a ser pintada, fotografada e cantada em poema e prosa. François Mauriac, prémio Nobel da Literatura em 1950 escreveu na sua passagem pela Nazaré, o seguinte: “A Nazaré parece-se com o seu nome, e o mar que a banha é um lago por onde Cristo passou. Este povo de pescadores, vestido de polícronos tecidos de lã, impele os seus barcos para as ondas, lança as suas redes, como sob a ordem de um mestre invisível. Eu não creio que se possa sofrer na Europa uma impressão de desnorteamento tão viva como a que se sente nesta vila queimada pelo sol. Entre este povo bíblico, encontrei-me fora do tempo. Há outras maravilhas em Portugal, mas a Nazaré é a minha mais estranha recordação”. Começa aqui a descaracterização de uma terra e dos hábitos do seu povo O aparecimento do SNI nos anos 50 originou a mudança no traje da Nazaré. O surgimento do Grupo Etnográfico Danças e Cantares da Nazaré, em 1997, foi seguramente uma pedrada no charco, que veio para acabar com vícios adquiridos ao longo de algumas décadas. Mas esses vícios são muito dif íceis de anular 83

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

enquanto a entidade que regulamenta o folclore, a Federação do Folclore Português, por um lado, e a autarquia nazarena, por outro, continuarem a dar guarida à falta de representatividade etnofolclórica. Se o respeito pela nossa identidade cultural passa necessariamente pela verdade etnográfica, a preservação do folclore é de interesse fundamental para o desenvolvimento da Cultura da nossa terra. Há por isso, neste sentido, que sensibilizar a Federação, autarquia e a população, não ignorando que o amanhã reside na criança e no jovem de hoje, sendo importante eles aprenderem a amar essa mesma verdade etnográfica. Este é um papel que cabe não só aos agentes do folclore, mas também às autarquias e às escolas. E hoje, temos a prova provada do que afirmamos, com a presença neste auditório de alunos, elementos da Federação, professores e autarcas. O respeito e a defesa do património cultural da nossa terra, a preservação da “Memória de um Povo”, que é afinal a nossa origem e da qual não devemos abdicar, passa por estas iniciativas. A imagem da Nazaré que trazemos aos vossos olhos já faz parte das nossas recordações. O progresso e a modernidade deramnos um futuro melhor, esperemos. O passado dá-nos a história de que nos orgulhamos.

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Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória José Maria Trindade Antropólogo – CIID - IPLeiria

miu no país com a protecção régia, que o Santuário se tornou um centro religioso de grande importância, só vindo a perder essa dimensão com as aparições de Fátima2. Continua porém a ser um lugar de peregrinação para muitos milhares de fiéis que todas as semanas chegam ao santuário, num itinerário religioso que passa pelo santuário de Fátima. Isto é especialmente notado nos dias 12 e 13 dos meses de Maio a Outubro, em que grande número de excursões vindas de todo o país chegam à Nazaré, depois das cerimónias religiosas em Fátima.

1. Apresentação da comunidade piscatória A Nazaré é uma povoação de 9109 habitantes, situada na costa atlântica a cerca de cem quilómetros a norte de Lisboa e sede de um pequeno concelho com 15060 habitantes, encravado no concelho de Alcobaça. O concelho é constituído por três freguesias: a freguesia da Nazaré, com 10223 habitantes, cuja economia assenta no turismo e numa actividade piscatória cada vez mais residual, a freguesia do Valado dos Frades, de 3306 habitantes, de tradição rural, e com uma importante indústria cerâmica, e a freguesia de Famalicão, com 1646 habitantes, onde uma unidade fabril de aglomerados de madeira complementa há largos anos a actividade agrícola. A freguesia da Nazaré inclui, além da vila, uma pequena povoação, de 505 habitantes, Fanhais, também ligada à actividade agrícola1. A vila é formada por um núcleo central, a Praia, que se estende pela enseada limitada a norte por um imponente promontório, o Suberco, onde fica o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, e em torno do qual se expandiu o lugar do Sítio da Nazaré; a sul pela serra da Pescaria, e a oriente pela serra da Pederneira, sobre o qual se situa o lugar do mesmo nome. A Pederneira é o lugar de povoamento mais antigo, do século XII, e até ao fim século XIX era lá que se situava o centro político e administrativo do concelho. Ainda hoje a Nazaré está integrada na paróquia da Pederneira. O Sítio, até ao século XVI, era um lugar ermo, onde apenas existia a capela de Nossa Senhora da Nazaré. Foi apenas no século XVII, com o grande incremento do culto mariano, e o lugar relevante que o culto a Nossa Senhora da Nazaré assu-

Foto 1 – Vista panorâmica da Praia da Nazaré Fonte: CIID 2

1

Dados relativos a 2001.

Os nazarenos costumam ironizar com este facto, dizendo que a Nossa Senhora de Fátima tirou o lugar à Nossa Senhora da Nazaré. 85

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

O lugar do Sítio, que cresceu em torno do Santuário, vive sobretudo do comércio que cresceu com o turismo religioso e balnear. Contudo o Sítio é também terra de pescadores. Há uma grande identificação entre o Sítio e a Praia, quer do ponto de vista objectivo, pelo modo de vida assente no turismo e na pesca, na maneira de falar e de vestir, e mesmo nas relações de parentesco, quer do ponto de vista subjectivo. A Pederneira, de tradição rural, representa um caso especial entre a pertença objectiva à Nazaré, e uma maior proximidade no modo de vida com as populações das outras freguesias. Embora tenha sido durante séculos terra de pescadores, que terão conhecido grande aumento com a chegada, no século XVI3, dos pescadores de Paredes – cerca de 11 kms a norte da Nazaré na sequência de assoreamento do seu porto –, a Pederneira acabou por ficar reduzida durante o êxodo que a partir do século XVII marcou o seu declínio e a ascensão da Praia, às famílias que viviam exclusivamente do campo. Para os siteiros e os praieiros, não há dúvida nenhuma de que os pederneiros são rurais, e falam e agem como os habitantes do Valado e de Famalicão. Porém, hoje em dia, devido à expansão urbana, à facilidade de deslocação, ao êxodo da população do centro para a periferia devido à procura dos espaços centrais pelo comércio e serviços, que leva a população a abandonar a Praia e a residir no Sítio e na Pederneira, esta separação entre siteiros, praieiros e pederneiros tende a tornar-se menos nítida. E sobretudo entre as novas gerações, com o alargamento da escolaridade, os jovens dos três lugares passaram a conviver e a partilhar espaços, ao ponto de se tornar irrelevante a sua origem. O conhecimento do passado mais remoto da região dos coutos de Alcobaça, que corresponde aproximadamente ao que é hoje o território dos concelhos de Alcobaça e Nazaré deve-se sobretudo aos estudos arqueológicos de Vieira Natividade (1960). É este autor que nos revela o contorno do litoral e o perímetro da extinta lagoa da Pederneira, e dos vestígios da presença humana em torno dela. «Foi desta forma que se rodeou de população todo o circuito da grande baía que se alargava desde além 3

Ainda hoje os nazarenos se deslocam no princípio de Maio até esta pequena povoação em romaria à Senhora da Vitória.

86

de Alfeizerão até topejar em Cós. Foi em volta dela que os casais romanos, ou luso-romanos, formaram pequenas povoações em Alfeizerão, Cela, encostas do Bárrio, Famalicão, Casal do Mota, Valado, Fervença, Maiorga, Cós, etc., […]» (idem: 21-22). «A grande lagoa, livre do perigo das marés e da fúria dos temporais, constituía inesgotável fonte da mais rica e variada pescaria, sem a necessidade do recurso a grandes barcos ou a complicados aparelhos. Os planaltos adjacentes, compostos de extensos e férteis terrenos, forneceriam, sem grande trabalho, os produtos agrícolas destinados à alimentação, desde os de mais fácil granjeio aos da mais esmerada e complicada cultura» (idem: 100).

Figura 1 – Mapa da extinta Lagoa da Pederneira Fonte: Vieira Natividade, op. cit.

Nestas duas passagens pode perceber-se como se formou desde remota antiguidade o quadro ecológico sobre o qual se constituiu a vida destas populações, numa simbiose entre a actividade marítima e a agricultura. Ainda há poucas décadas muitos pescadores da Nazaré cultivavam pequenas parcelas de terra para a produção de milho, que levavam depois até ao Valado para trocar por farinha com a qual faziam as broas. As relações entre os monges de Cister, senhores dos coutos, que tiveram um papel de grandes arroteadores e civilizadores destas terras, e os povos que as habitavam, foram marcadas por períodos de grande tensão, que ajudam a esclarecer o profundo anticlericalismo que caracteriza os habitantes da região,

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

e especialmente dos pescadores da Nazaré. Contra os abusos do mosteiro, as populações locais procuravam a protecção do rei. Os conflitos entre os notáveis da Pederneira e os monges de Cister em torno da definição de direitos senhoriais sobre as terras dos coutos de Alcobaça e sobre o santuário de Nossa Senhora da Nazaré que ao longo de séculos marcaram a relação entre os dois concelhos, está na origem da imagem que os nazarenos ainda hoje têm de Alcobaça e vice-versa, marcada por um discurso etnocêntrico exacerbado. O passado de tensão relatado por Vieira Natividade tinha origem na cobiça dos monges, particularmente a partir do século XVII, com o desenvolvimento do Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, sobre o qual o Mosteiro reclamava direitos, contra a pretensão dos notáveis da Pederneira, responsáveis pelo culto à Senhora. Foi na sequência destes desentendimentos que os naturais da Pederneira invocaram a protecção régia do Santuário, o que muito contribuiu para o seu engrandecimento. «Surgem questões cada vez mais violentas entre o Mosteiro e os povos dos Coutos que novamente se unem contra deliberações e sentenças que vinham alterar os forais com interpretações estudadas de acordo com as conveniências da Abadia. Não é so, porém, com o povo que se sucedem intermináveis demandas: é com os procuradores da Rainha sobre os direitos do porto de S. Martinho e Salir; é com a colegiada de Porto de Mós sobre a posse dos terrenos onde hoje se encontram os olivais da Ataija; é com a Casa da Nazaré sobre posses e direitos que mùtuamente julgavam usurpados; é com a câmara de Aljubarrota sobre o artigo do foral: Fogaças e Casaria. O poder do Mosteiro, ampliado e fortalecido pela doação de D. João IV, impunha terror aos pobres vassalos» (Vieira Natividade, 1960: 51). Em 1736, os responsáveis da Casa da Nazaré denunciam os monges que acusam de «empregar processos ardilosos», como no testemunho por eles apresentado: «... em todo o caso se advirta que se o Mosteiro se defender, e tudo quanto allegar e articular há de provar,

porque sempre para isso tem testemunhas de viveiro, como são criados, officiaes de justiça, que são ou forão, e os rendeiros das suas rendas...”» (cit. in Vieira Natividade, op. cit.: 52). E em 1714, «De muita parte destas terras se tem apoderado os padres Bernardos porque o seu poder, a sua riqueza e a sua grande authoridade junta com a pobreza e miseria e rusticidade dos moradores do sitio e daquelas vizinhanças tem sempre em grandissima dependência sua, aquelles pobres vassalos todos de V. Magestade» (ibidem); e até denúncias de suborno são feitas: «Nas eleições da Camara da Pederneira, de 1767, foram praticadas violências por parte dos monges e influentes da Pederneira. Foram os religiosos acusados de suborno (para poderem pôr vereadores que quisessem e governassem à sua vontade) suborno foi demonstrado por diversas formas, e onde era especial agente o chronista Fr. Manoel de Figueiredo, e demonstrado a El-Rei em larga exposição» (ibidem). Os trabalhos arqueológicos de Vieira Natividade (op. cit.) apontam para a existência de uma localização mais antiga da Pederneira, a sudeste da actual, nas margens da antiga lagoa do mesmo nome. Com a saída dos pescadores, a partir do século XVII para a Praia, na sequência do assoreamento da Lagoa da Pederneira, a população que permaneceu, foi sobretudo gente ligada à agricultura. As referências à ocupação humana da Praia só surgem a partir da segunda metade do século XVI, quando os pescadores, construtores navais e gente ligada ao comércio marítimo iniciou a ocupação do espaço deixado pelo mar, na sequência do assoreamento da entrada da lagoa. Na memória colectiva dos pescadores nazarenos subsiste a ideia de que são descendentes dos pescadores de Ílhavo que em meados do século XVIII ali se vieram estabelecer. Sabe-se que durante o século XVIII a Ria de Aveiro esteve sujeita a grande 87

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

assoreamento, que trouxe grandes dificuldades à actividade piscatória. Por outro lado, os pescadores de Ílhavo gozam da fama de povoadores em toda a costa portuguesa. Embora existam referências à presença de uma comunidade de pescadores de Ílhavo no século XVIII na Praia da Pederneira – como era na altura designada a Praia da Nazaré – pouco se sabe sobre a dimensão da mesma. Um historiador local, José Pedro defende a tese de que os ilheos4 foram os primeiros ocupantes da Praia. «“humildes pescadores vindos da costa de Ílhavo” que para ali se deslocaram cerca de 1765, pertencendo-lhes, em 1780, “um número razoável de cabanas de madeira [...] construídas sobre estacas5 – à moda do norte – e localizadas em fileiras, à frente, desde a quina sul da Praça Sousa Oliveira para o lado Sul, e pouco mais de meia dúzia de casas térreas [...] situadas ao norte, no interior encostadas à ladeira do “sítio”», (1943: 122-123). Investigação histórica mais recente (Trindade e Penteado, 2001) põe em causa a tese do ermamento e primeira ocupação pelos pescadores do norte defendida por José Pedro (cf. Trindade e Penteado, op. cit.). José d’Almeida Salazar escreveu a partir de testemunhos orais em 1842 que na primeira metade do século XVIII, a construção que mais se destacava na Praia «era uma espécie de arcenal, armazém, ou grande quintal murado [...] com telheiros e acomodações, que servia para nelles se recolherem as ferramentas [e] madeiras para embarque [para a Ribeira das Naus, em Lisboa]; e outros mais trens pertencentes ao Estado, e proprias para a feitura das náos e serviço dos Arcenais Reaes» (Salazar, 1842-2: 529-530). O mesmo autor refere que na primeira metade de setecentos existiam na Praia

E, em 1760, «apenas haveria na dita Praia quando muito quinze propriedades de casas de pedra e cal, e poucas barracas de madeira, inclusive umas grandes casas de residência dos Religiosos Bernardos, que tinham uma pequena capella, aonde celebravam as suas missas quando estavam a banhos na Praia» (ibidem: 533-534). O relato enviado ao rei após o terramoto de 1755 refere a existência de cerca de meia centena de casas e cabanas. Certo é que as estatísticas relativas à pesca indicam um grande incremento da actividade piscatória a partir desta altura, facto que Almeida Salazar atribui «à grande actividade dos senhorios ou donos dos barcos e redes, que nesses felizes e venturosos tempos as principais pessoas destas duas terras, (a villa da Pederneira, e o [Sítio da] Nazareth6), junto com o grande respeito que lhes tinham os seus súbditos» (ibidem). Enquanto os primeiro usavam redes pequenas, os chinchorros, com os quais «pescavam muita quantidade de peixe» (ibidem), os ilhéos trouxeram com eles uma técnica de pesca nova, a arte xávega, a que chamavam artes, que consistiam em grandes redes, com as quais pescavam «tanta abundância de peixe» na parte sul da praia, no lugar onde hoje está situada a entrada do porto-de-abrigo (ibidem). Cruzando informações produzidas pela pesquisa documental com as informações obtidas no terreno a partir da tradição oral, é possível encontrar aqui a referência a duas comunidades que nem sempre conviveram pacificamente: a dos ilhéos e a dos pescadores locais. «Em 8 de Julho de 1780, a campanha de José Almeida Salazar arrancou as redes dos pescadores de Ílhavo e de outras localidades, entre as quais a Ericeira, “e ainda espancaram alguns delles, e o mesmo praticou no dia dês a campanha de Joaquim Bello» (ibidem).

«quando muito dez ou quinze barracas de madeira, aonde os pescadores recolhiam as suas redes, e aparelhos. 4

5

Designação dada pelos naturais da Pederneira aos pescadores de Ílhavo. Obtive um testemunho oral em 1979 de uma mulher da Nazaré que me falou deste tipo de habitação na Nazaré. Segundo ela, quando o mar ameaçava as habitações, era possível deslocá-las das estacas para lugar mais seguro. Mas ainda hoje podem ser observadas na Vieira de Leiria.

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6

A designação Nazareth torna-se corrente após a dinastia filipina.

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

No início do século XIX ainda eram muitos os homens ligados à vida do mar que continuavam a viver na Pederneira. Após a regularização da foz do rio Alcoa, e a reconstrução das casas que tinham sido destruídas na sequência de represálias contra a população local por parte das tropas napoleónicas, com a queima das cabanas, dos barcos e de apetrechos de pesca (Mesquita, 1913), Salazar relata que «poucos annos depois da dita invasão não só se reedificaram [na Praia] as suas extraordinárias ruinas, ou todas as suas queimadas, mas até mesmo tem sido tão grande e tão continuado o seu extraordinário augmento, que hoje [1842] tem mais de duas terças partes de prédios do que aquelles que tinha antes da dita invasão, e se lhe contam 265 fogos habitados, e mais de 12 desabitados» (Salazar, 1842-2: 529-530). Durante os século XIX, a descoberta de novos pesqueiros e importantes inovações nas técnicas de pesca, a maior das quais a divisão das velhas artes demasiado grandes e pesadas em redes mais pequenas a que chamaram as netas, e «novos aparelhos, por cuja causa vai em grande augmento o commercio da pescaria neste nosso porto, e a elle vem almocreves de todas as terras circumvisinhas, e mesmo do Alem-Tejo e Beira Baixa, comprar peixe para a suas terras» (ibidem).

Foto 2 – Arte Xávega – Puxando as redes (Foto de Artur Pastor)

Com o aumento do comércio do peixe, liberto dos antigos impostos senhoriais e eclesiásticos, e o surgimento da tradição dos banhos de mar, que passaram a trazer à Praia da Nazaré grande afluência de banhistas «muitos habitantes da Pederneira abandonaram aquella villa e vieram estabelecer-se na praia», passando a viver «dos grandes interesses do pescado e alugueis de suas casa às gentes que vem a banhos do mar, e dos imensos lucros que tem tido nas salgas e secas do peixe», havendo junto ao mar uma quantidade imensa de casas e armazéns «para depósitos de pescarias para negocio» (ibidem).

2. Um século entre a pesca e o turismo A partir de finais de século XIX a Praia da Nazaré vai conhecer um crescimento notável, apoiado no turismo e na pesca. Se na pesca chega a atingir valores que a colocarão em quarto lugar no conjunto dos portos nacionais, o turismo provocará o aparecimento de um conjunto importante de infraestruturas desde hotéis a obras de grande dimensão para a época, como o ascensor que vai unir a Praia e o Sítio. Esta dualidade vai marcar não só a economia, mas também a sociedade nazarenas. Os ritmos de vida da comunidade passam a ser determinados pelo forte contraste entre a azáfama do Verão, com a actividade da pesca, que mantinha as famílias dos pescadores ocupadas noite e dia, dando à praia um colorido e uma agitação permanentes, com barcos que varavam ao mar e outros que encalhavam, com mulheres carregando à cabeça os cabazes de sardinha, ou pescadores remendando as redes ou iscando os anzóis sentados entre os barcos na praia. À agitação normal da actividade piscatória durante o Verão juntava-se a confusão que a chegada de milhares de turistas sempre trazia. Chegado o fim do Verão, partiam os turistas, e as saídas para o mar tornavam-se mais irregulares. Os barcos eram arrastados para o largo principal da Nazaré, a Praça Sousa Oliveira, para não serem levados pelo mar. A azáfama do Verão na Praia dava lugar à tranquilidade do Inverno. Alguns pescadores contratados pelos banhistas seguiam para o trabalho nas vindimas. Durante praticamente todo o século XX, a partir de Junho, os pescadores eram obrigados a deslocar os seus barcos para a parte sul da praia, para deixar aos turistas a parte norte, abri89

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

gada pelo promontório. Com a inauguração do porto de abrigo no início da década de oitenta, numa fase em que já era evidente o declínio da pesca na Nazaré, os barcos deixaram de encalhar na praia. Cada família e cada empresa, vivem desde o fim do século XIX a sua vida em função dos rendimentos do Verão, quer obtidos na pesca, quer obtidos na actividade turística, com o aluguer das casas, das barracas, ou qualquer negócio. As famílias dos pescadores alugam as suas casas de forma a compensarem os fracos ganhos da pesca, vivendo durante os meses de Verão em cabanas. Para qualquer mulher da Nazaré, um dos objectivos mais importantes era, por essa razão, conseguir alugar uma casa ao ano, não para se libertar dos incómodos das mudanças em cada mês de Maio e de Outubro, mas para poder ser ela a ganhar algum dinheiro com o subaluguer aos turistas. As rendas pagas ao senhorio diferem consoante a casa é alugada ao ano, ou apenas de Outubro a Maio: quando a casa é alugada ao ano a renda é muito mais cara. Esta prática é de tal ordem que as próprias filhas tinham e têm que sair mesmo quando os senhorios são os próprios pais – na verdade na Nazaré, nunca se fala da casa dos pais, mas da casa da mãe. Só muito recentemente, com a descida das taxas de juro, e com a maior facilidade de aquisição de habitação, associada a um certo aburguesamento, os casais mais jovens passaram a recusar esta solução. Hoje os seus rendimentos como operários, ou como empregados no comércio e serviços não estão dependentes dos caprichos do mar nem da irregularidade da pesca. Durante o século XX, a vida da Nazaré foi marcada por esta dicotomia entre o Verão e o Inverno – o tempo da fartura e o tempo

da fome. Na Nazaré dizia-se que “até ao Natal qualquer homem alimenta a mulher, depois do Natal alimente-a quem quiser”. Cabe à mulher do pescador gerir os proventos do Verão para suportar o melhor possível o Inverno. Uma das soluções mais correntes era o investimento em ouro, que era rapidamente convertível em dinheiro em caso de necessidade pelo recurso à penhora*. Outra solução sempre foi o recurso ao crédito na mercearia. Nos anos mais dif íceis, as famílias mais pobres embrenhavam-se pela terra adentro e iam pedir às populações de agricultores do interior; chegando a ir até ao Ribatejo, junto daqueles que ficavam nas suas casas durante o Verão. A sua imagem de pexins7, pés-descalços e de pézudos entre estas populações, vem destes tempos de miséria. Ainda hoje os nazarenos os ouvem dizer com frequência que “se não fossem eles, morriam à fome”. O que naturalmente não gostam de ouvir. A Confraria de Nossa Senhora da Nazaré também acudia nos momentos mais críticos com a sopa dos pobres. Contudo a verdadeira capacidade de resistência das famílias piscatórias para suportar muitos meses sem qualquer rendimento assentava na sua organização social. Até ao fim dos anos setenta, a vida económica da Nazaré assentava num equilíbrio entre a pesca e o turismo. O discurso sobre a pesca na Nazaré é desde os anos cinquenta um discurso de crise: Crise por falta de segurança e pela irregularidade dos ganhos. A causa destes dois males que marcavam a vida dos pescadores da Nazaré, e a representação que fazem do seu modo de vida, como sendo de sofrimento e de miséria8, se tem evidentemente causas reais que o suportam, deve ser contudo olhado à luz de um discurso produzido por uma elite local, que praticamente durante um século reivindicou para a Nazaré a construção de um porto-deabrigo. A ausência do porto-de-abrigo impediu o desenvolvimento Em Sesimbra, o termo pelo qual os camponeses designam os pescadores é de pexitos. 8 José Soares (1998) fez uma recolha de relatos, notícias e memórias, nalguns casos sob forma de poemas, dos naufrágios ocorridos ao largo da Nazaré desde o século XVII até ao último que ocorreu em 1979, quatro anos antes da inauguração do porto de abrigo. * Esta prática ainda hoje bem viva entre as mulheres da Nazaré leva a que as populações das regiões rurais envolventes atribuíssem aos nazarenos uma origem cigana. 7

Foto 3 – Varando barcos ao mar (Foto de Artur Pastor)

90

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

de uma verdadeira indústria de pesca na Nazaré. Ao contrário de outros portos, como Peniche e Matosinhos, onde o investimento na pesca levou a um grande desenvolvimento, a Nazaré, a partir dos anos cinquenta iniciou uma fase de declínio, quer no número de pescadores, quer no número de barcos. A solução para os barcos de maior tonelagem, os botes da pesca do alto, que não podiam encalhar na praia, foi durante as décadas de sessenta e setenta usarem como porto a concha de São Martinho. A perigosidade da barra de São Martinho levava muitas vezes a que os barcos tivessem que procurar refúgio em Peniche. A pesca na Nazaré foi, por isso, para a grande maioria dos pescadores, uma vida de grande risco e poucos ganhos. E foi esta a imagem que as famílias dos pescadores transmitiram aos filhos. Hoje, muitos desses filhos contestam o destino que os pais lhes deram.

porque é que uma pessoa é criada à beira-mar, andava com o avô nas tabernas, com o avô a falar de mar, eu tinha gosto de saber já entralhar11 anzóis, eu adorava tar nas lanchas e ver as lanchas, eu sentia já aquele orgulho de saber meter aparelho e pensava: daqui amanhã vou ser, se calhar, pescador, e quero ser um bom pescador. [...] O avô transmite uma ideia diferente.O mê avô gostava. Ensinava-me a fazer barquinhos. O mê avô dava-me pas mãos, se eu na sabia fazer bem o aparelho12, se eu na sabia entralhar um anzol como deve ser. De repente, virou-se a mentalidade, os próprios pescadores de idade deixaram de acreditar na Nazaré, e então quiseram um futuro melhor prós filhos, porque em Peniche foi diferente. Nós já falamos, vamos muitas vezes a Peniche, falamos com rapazes que conhecemos de Peniche, os pais em Peniche tentaram melhorar a situação da pesca para dar um futuro melhor aos filhos na pesca. É raro ver um penicheiro embarcado, nunca se viu nenhum, vais lá e eles andam todos na pesca [...]” “Na queiras mar, que o mar na interessa a ninguém”, e eu fiquei baralhado. Eu também na tinha a ideia de ir estudar porque os meus pais também na tinham posses. Mas eu tinha a ideia – hoje em dia, até digo, eu sou um pescador frustrado – é um bocado aquela alma, aquela coisa que eu ainda tinha de ser pescador. Mesmo ontem tive na praia de Norte a pescar ó releto à noite sozinho; anteontem fui pá lula com o Afonso, na lancha do pai dele e fomos... Távamos a falar isso lá. Ele anda embarcado na marinha mercante. Ele é mais novo que eu. Foi a pesca não evoluir deu cabo de uma geração inteira.”.

“Vivemos a nossa infância toda à espera da nossa hora de ir pó mar, à espera da nossa vez. [...] Eu queria ser mesmo pescador. É o meu imaginário, é aquilo que eu gosto, eu sinto-me bem é no mar. O mê pai dizia-me que eu não podia ir, mas eu arranjava sempre maneira de ir. Algumas vezes fui com ele praí já com os meus 17-18 anos. Antes também já ia numa lanchinha pescar ao dedo. Desde sempre o meu sonho era o mar. Era o meu sonho”. Jaime, 34 anos, empregado de escritório “Era eu pequenino ia às costa do mê avô pá Foz, ia pescar com o mê avô, ia às redes do arrasto com o mê avô, com o João da Vidinha, ajudava a meter aparelho9 ao mê pai, e de repente uma pessoa começa a ir pó Ciclo10. Eu e muitos rapazes da nossa geração, começamos a ouvir os nossos pais a dizer “na queiras mar, na queiras mar”, mas também na nos deram outra alternativa. Na queira mar, na queira mar, mas eu achava aquilo estranho pra mim. Eu, como muitos rapazes, já falámos sobre isso e isso foi sempre uma coisa que nos baralhou muito a cabeça. Mas 9

10

Desemaranhar os fios de pesca e voltar a acomodá-los enrolados dentro de uma gamela de madeira, cravando os anzóis nos rebordos de cortiça, prontos a receber a isca. Refere-se à escola, onde se fazia o 2º ciclo ou ciclo preparatório.

César, 33 anos, embarcado Com o desenvolvimento económico que o país conheceu a partir da entrada na Comunidade Económica Europeia, muitos filhos de pescadores passaram a ter possibilidade de fugir à vida do mar, realizando finalmente aquilo que sempre tinha sido tentado 11 12

Entralhar os anzóis consiste em fixar os anzóis ao fio. O fio guarnecido de anzóis. 91

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

sem sucesso: O emprego em terra. Era bastante comum entre as famílias piscatórias procurar para os filhos, mal estes cumpriam a escolaridade obrigatória, um lugar numa oficina onde pudessem aprender um of ício, ou no comércio. A escolaridade alargada, o desenvolvimento económico e a política seguida pelo governo português para o sector das pescas na segunda metade da década de oitenta tornaram o desejo uma inevitabilidade. Quadro 1 – Evolução do número de pescadores e sua distribuição por tipo de arte Anos Anzol Arrastões Rede Rede Cerco Emalhar 1975 325 – 25 – 1980 53 – 117 88 1985 33 – 169 55 1989 27 29 141 82 2002 28 12 80 70

Candil – – 24 60 –

Xávega Outras Total Artes 97 308 755 165 674 1097 136 273 829 18 283 640 47 184 421

Fonte: Capitania do Porto da Nazaré

Os dados relativos ao número de pescadores matriculados na Capitania do porto da Nazaré embora dêem uma boa ideia da diminuição que efectivamente se tem registado devem ser objecto de correcção. Este número não inclui muitos pescadores reformados efectivamente em actividade, e sem os quais muitas embarcações não poderiam funcionar; e inclui por outro lado muitos outros que não são pescadores e que estão inscritos na capitania pelas mais diversas razões: desde os emigrantes que querem manter esse vínculo com a comunidade e acalentam o sonho de um dia ter um pequeno barco para trabalhar na Nazaré, os que estão inscritos para garantir a reforma, e muitos outros que trabalham na marinha mercante. A frota pesqueira da Nazaré em Julho de 2003 era constituída por 21 embarcações: 4 botes do alto, os últimos da velha frota da pesca do anzol dos anos sessenta, com cerca de 18 metros, e companhas de cinco homens; 5 barcos de cerco, com dimensões entre 18 e 21 metros e companhas de 12 homens; 20 embarcações pequenas, as lanchas, na sua maioria já em fibra de vidro, que trabalham irregularmente, com um ou dois homens; e cerca de 20 pequenas lanchas registadas na capitania como sendo de recreio, e que só saem para o mar quando há sinal de peixe e pertencem na sua grande maioria a embarcadiços reformados. A cédula marítima sempre representou para os pescadores mais do que uma mera licença para trabalhar na pesca. Tirar a 92

cédula tinha algo de um ritual de transição para os filhos dos pescadores, incluindo a ansiedade provocada pela obrigatoriedade de ultrapassar uma prova física. Por volta dos catorze anos, após uma prova de natação, testemunhada por um cabo-de-mar13, eralhes atribuída a cédula marítima. E a importância deste acto era sentida por toda a família e pela comunidade, que se interessava por saber se determinado rapaz já tinha tirado a cédula e dessa forma ganho o acesso ao exercício de um modo de vida. Ainda há poucos anos, e embora os filhos já estudassem, muitos pais faziam questão que os filhos tirassem a cédula. Com a criação do Forpescas, deixou de ser a Capitania a controlar este processo, retirando-lhe grande parte da carga simbólica que este ritual possuía. A cédula marítima passou a ser meramente uma carteira profissional que é concedida como parte de um processo escolar, juntamente com o diploma do 6º ou do 9º ano de escolaridade. Os saberes técnicos da pesca eram tacitamente admitidos como adquiridos, dado que os filhos dos pescadores conviviam desde muito cedo com a actividade piscatória, ainda que não fossem ao mar14, ou atestados por diploma da escola de pesca, para onde eram encaminhados nos anos setenta os filhos dos pescadores após o ensino primário. Em Maio de 2003, o número de pescadores que viviam efectivamente da pesca numa base regular era apenas de 142; destes, apenas 28 tinham quarenta anos ou menos. A estes pescadores, que já incluem os reformados da pesca, devemos adicionar cerca de cinquenta que vão à pesca com menor regularidade. A partir da década de oitenta, na sequência dos estudos feitos na costa portuguesa, que revelam uma situação alarmante de quase esgotamento de recursos pesqueiros, a política de pescas adoptada por indicação da Comunidade Europeia foi no sentido de reduzir o esforço de pesca, quer recorrendo ao abate de embarcações, quer diminuindo o número de pescadores. Este processo é acompanhado por iniciativas que visam a modernização do sector, pelo apoio à aquisição de unidades de maior dimensão, apetrechadas com os equipamentos mais avançados 13 14

A autoridade marítima. Os pescadores mais velhos, hoje com mais de sessenta anos, contam que muito antes da idade legal, iam ao mar, com nove, dez anos, iludindo a vigilância do cabo-de-mar.

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

de detecção e captura. O objectivo confesso por parte do governo português é o de reduzir para um quinto o número de pescadores. É neste sentido que surge a reforma antecipada para os pescadores, acompanhada da proibição de a acumularem com o exercício da actividade.15 Se a modernização foi efectivamente conseguida nos portos onde já havia grande dinamismo empresarial, na Nazaré esta política significou o abate das embarcações de maior tonelagem e a sua substituição por barcos de menor dimensão, capazes de funcionar com companhas reduzidas. Os companheiros16 que, ao contrário do armador, não recebiam qualquer indemnização com o abate do barco, viram a sua situação tornar-se ainda mais precária. A análise do quadro abaixo, relativo ao número de embarcações registadas na Nazaré, desde a integração de Portugal na Comunidade Económica Europeia até 2001 ilustram este processo gradual de redução da frota pesqueira. Quadro 2 – Evolução do n.º de embarcações Ano

Local

Costeira

1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

318 314 292 254 227 224 217 203 197 185 182 167 156 153

34 30 26 27 27 23 24 22 22 25 25 25 25 23

Legenda: Pesca local: Inclui pequenas embarcações como lanchas, candis e botes de pequena dimensão, até 8 metros, que operam dentro da baía. Pesca costeira: Barcos de maior dimensão, como barcos do cerco e os botes do alto. Fonte: Direcção Geral das Pescas e Aquicultura do Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

15

16

O que representa actualmente uma das situações mais bizarras e injustas, dado ser a única profissão – além de algumas profissões artísticas – abrangida por este decreto. Como há uma grande falta de pescadores jovens, muitas empresas laboram actualmente com pescadores reformados, o que lhes traz problemas legais frequentes. Membro da tripulação.

A modernização da frota pesqueira implicou, por outro lado, a necessidade de investir na formação dos jovens pescadores. A instituição nacional criada para o efeito, o Forpescas, escola de formação dos profissionais da pesca, tem desde então desempenhado em todo o país esse papel, cabendo-lhe a ela formar pescadores, arrais de pesca, marinheiros pescadores, e outros profissionais, como motoristas, técnicos de frio, técnicos de gestão de pescas. Para os filhos dos pescadores, para quem a posse da cédula de pescador era até muito recentemente uma obrigação ou uma segurança, muitos jovens sem a escolaridade mínima obrigatória, devido ao abandono precoce ou à desistência na sequência de reprovações sucessivas, viram em alguns destes cursos, que além de uma bolsa de formação e da atribuição da cédula profissional de pescador garantiam a equivalência ao sexto ou ao nono anos, uma saída. Entre 1989 e 2000 entre pescadores, arrais de pesca e marinheiros pescadores, 874 formandos foram certificados pelo Núcleo do Forpescas da Nazaré. Muitos destes jovens nunca vieram a exercer a profissão de pescador, trabalhando hoje como operários nas fábricas da região, nos barcos da marinha mercante, ou nos ferry boats no Mar do Norte. Nos últimos três anos a procura da formação nas pescas tornou-se irrisória: Em 2000, não foi feita qualquer formação por falta de procura; em 2001, dos quinze formandos, eram onze nazarenos, tendo desistido cinco; em 2002, numa turma de quinze, havia apenas seis nazarenos, tendo desistido dois17. O que estes dados nos dizem é que a pesca deixou de ser atractiva para os filhos dos pescadores, e que à primeira oportunidade, quer se trate de um emprego temporário proporcionado pela autarquia a guardar um parque de estacionamento, quer se trate da possibilidade de um emprego numa fábrica, tudo é preferível à vida na pesca local. Por outro lado, esta incapacidade de disciplina tendo em vista uma gratificação futura marca profundamente a atitude destes jovens e o ethos dos pescadores. A estrutura familiar marcada por um pai que é na verdade um presente ausente, e uma mãe omnipresente que adia o desejo de independência e autonomia dos filhos, torna muito dif ícil e por vezes dolorosa a adaptação à nova realidade da Nazaré. 17

Dados fornecidos pelo Núcleo do Forpescas da Nazaré. 93

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Há cerca de quinze ou vinte anos atrás eram muito raros os nazarenos que procuravam emprego nas fábricas. Um empresário de uma fábrica da região comparou os nazarenos aos ciganos: «Não se adaptavam». Quando andava na escola primária, teve um colega cigano. Este colega apareceu-lhe um dia, já adulto, para trabalhar na fábrica. Ele deu-lhe emprego. Este cigano não chegou a completar um dia no emprego. A família chegou a convocar familiares do norte do país para o convencerem a abandonar a fábrica, porque aquilo não era vida digna de um cigano. Um dos jovens entrevistados, filho de um pescador, e ele próprio pescador até há cerca de um ano atrás, a trabalhar como servente na construção civil, confessou-me o seu desejo de voltar para o mar. A razão que os filhos dos pescadores habitualmente referem é a rigidez de horários, e o estar tantas horas fechado. Hoje são muitos os filhos dos pescadores que trabalham nas fábricas de Alcobaça, Marinha Grande, Pataias e de Valado dos Frades, a outra vila do concelho, situada a seis quilómetros da Nazaré. Mas os testemunhos, tantas vezes angustiados, destes jovens operários, sobretudo dos filhos de pescadores, quando falam da sua insatisfação com a profissão e o desejo de voltar ao mar, dão razão àquele empresário.

voltava pó mar. A malta que trabalhava em fábricas, deixava as fábricas e voltava pó mar”. César, 33 anos, embarcadiço Certo é que os jovens nazarenos gozam de uma reputação pouco recomendável entre os empresários da região, de faltarem excessivamente, sobretudo no Carnaval e no Verão. Para estes operários, o ideal é conseguir um emprego que lhes garanta a liberdade que a pesca permite, de trabalho em espaço aberto e sem horário fixo. Muitos conseguem fazê-lo, trocando o emprego na fábrica ou na construção civil por um lugar a bordo de um navio ou de um ferry-boat. Estes realizam o velho sonho de uma vida bonita, na linguagem das mulheres da Nazaré. “Era essa elite, “uma vida linda”, pra já eram pessoas que podiam contar com um salário fixo. A gente dizia que o embarcadiço era um pescador que teve visão, que conseguiu sair daqui. A nha mãe fala do embarque – o mê irmão também anda no embarque – a nha mãe considera-me um gajo muito mais esperto, a mim e ao mê irmão, e tá sempre a dizer “oh não foi o tê pai. Nunca teve serventia pra nada”. Porque o mê pai chegou a andar lá fora mas nunca se adaptou. Nunca se conseguiu adaptar, aprender uma língua, eu com esta idade consegui adaptar-me, aprender a língua e a nha mãe sempre puxou isso e diz agora que eu e o mê irmão fomos umas pessoas espertas e que o mê pai foi aquela pessoa que na se conseguiu adaptar”.

“A minha vida, se calhar, como qualquer uma não era aquilo, que eu queria ser . Tenho a certeza que a vida que levo agora não é a que gostava de levar! Não tem nada a ver comigo como pessoa, e é uma coisa que na me diz nada. Eu ali sou como uma máquina: Chego ali, faço e venho-me embora. [...]” 18 Carlos, 33 anos, operário “Os rapazes acamados19, mais novos que eu, vêm perguntar, querem ir pra fora20 à mesma: eles querem ganhar dinheiro, querem ter uma vida, mas querem tar ligados ao mar. Se o mar aqui na Nazaré um dia evoluísse, se houvesse condições, havia muita malta nova que 18

19 20

Alguns meses depois o operário que fez este depoimento voltou para o mar para trabalhar nos ferry boats, onde já tinha andado alguns anos antes. Em grande número. Querem embarcar na Marinha Mercante.

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César, 33 anos, embarcadiço Hoje é o comércio, a hotelaria e restauração, bem como o emprego na função pública que absorvem a grande parte da mão-de-obra local. São muitos os filhos de pescadores que hoje são proprietários de bares e restaurantes, no próprio espaço que há poucos anos era a casa de habitação21. O crescimento 21

A exiguidade das casas marítimas, que habitualmente consistia em apenas duas divisões, uma cozinha e um quarto, obrigava a encontrar soluções que afastassem as filhas da casa logo que estas atingiam a puberdade, quer

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

exponencial deste tipo de estabelecimentos é objecto de debate intenso na Nazaré22. Muitos destes novos empresários são pessoas de baixo nível de escolaridade, sem tradição empresarial, e que aproveitaram a velha casa de família, situada no centro da vila, para criar um negócio. Porém muitos destes bares e restaurantes são geridos por uma geração entre os vinte e cinco e os quarenta anos, que já teve uma escolaridade mais prolongada, e que cresceu com a modernização da Nazaré. Filhos de pescadores, manipulam bem o código de conduta da classe média, quando estão atrás do balcão, ou a servir à mesa. O excesso de maneirismos com que por vezes querem afirmar o domínio desse código de conduta mais refinado leva a que os colegas que estão de parte a observar trocem imitando o empregado do café ou do restaurante. Carlos descreveu uma destas situações, o que levou o Rui a reagir, depois de ter servido os clientes: “Para vocês a pessoa nunca está bem! Se não sabe falar, gozam; se a pessoa tem gosto em atender os clientes como deve ser gozam na mesma!”. Embora convivam de perto com gente vinda de todo o mundo, gostam de afirmar a sua pertença local de forma enfática. Às vezes referem-se aos seus bares como barcos, no sentido em que o bar representa para eles o seu meio de sobrevivência, tal como o barco garantia a sobrevivência dos seus antepassados. São uma geração de bilingues culturais, que vivem e se sentem bem nos dois mundos. A plasticidade identitária destes indivíduos só se compreende porque cresceram com os dois mundos. A sua história de vida é a viagem entre a tradição e a modernidade; e este processo de aculturação que lhes trouxe a modernidade foi sendo feito a par de um discurso valorizador da sua identidade local.

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mandando-as para casa de outro familiar, quer indo servir nas casas da pequena burguesia local. Frequentemente, estas moças saíam destas casas apenas quando casavam. Pelo contrário, os embarcadiços e os mestres usufruíam de um nível de vida que lhes permitia ter uma casa grande e manter as filhas em casa. Em Maio de 2003 existiam na Nazaré 95 restaurantes, 109 cafés, 40 lojas de artigos regionais, 23 supermercados e 8 imobiliárias. Existiam ainda 3 hotéis de 3 estrelas, 2 albergues de 4 estrelas, 16 outros estabelecimentos considerados como pensão ou residencial.

3. A organização social e a estrutura familiar Uma das características mais notáveis da Nazaré aos olhos de quem vem de fora, é a forte personalidade das mulheres nazarenas, e sobretudo a sua visibilidade na vida da comunidade. São de facto as mulheres dos pescadores quem assume a condução das suas famílias, a resolução dos seus problemas, quer se trate de questões legais e patrimoniais, quer se trate das questões tradicionalmente atribuídas às mulheres, como o tratar da casa e dos filhos. Os pescadores, pouco mais fazem que tratar dos assuntos da pesca. Este tipo de organização familiar, em que a mulher assume o papel de chefe de família designa-se por matrifoca. Não significa isto contudo que não se deva respeito ao pai. Mas este pai sempre invocado em caso de necessidade de repreensão dos filhos é bem aquilo que Lacan designa por o Nome do Pai. «É no Nome-do-Pai que temos de reconhecer o suporte da função simbólica que, desde as margens dos tempos históricos, identifica a sua pessoa com a figura da Lei...» (David, 1977: 105). É o pai simbólico e não o pai real. Porque este é de facto um presente ausente. Isto mesmo é especialmente evidente nas respostas dadas pelos jovens entrevistados a propósito da figura do pai, quando os interroguei sobre o acompanhamento escolar. A importância da mulher da Nazaré na vida social e familiar e a sua exuberância contrastante com a postura mais discreta do pescador em terra, servem às populações rurais, neste jogo de espelhos que é o processo de identificação e de identização (Tap, 1986) para afirmar a sua diferença em relação à Nazaré. Sally Cole descreve algo de semelhante a respeito da opinião dos agricultores sobre as mulheres dos pescadores de Vila-Chã. «A relativa evidência e autonomia das mulheres do mar contribuíram para a estigmatização das famílias dos pescadores, bem como para o desenvolvimento de diferentes padrões ligados ao casamento que afastaram ainda mais os pescadores dos lavradores. As mulheres das casas marítimas dirigiam a economia doméstica e eram vistas na freguesia quando iam trabalhar na apanha das algas ou na venda do peixe. Em contrapartida, as mulheres das casas de agricultores abastados só 95

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Foto 4 – Mulheres da Nazaré (Foto de Artur Pastor)

raramente eram vistas; permaneciam isoladas em casa enquanto os seus maridos supervisionavam a produção agrícola familiar» (Cole, 1994: 62-63). Até aos anos oitenta, eram frequentes entre os filhos dos pescadores os casamentos por fuga. Esta fuga era geralmente feita para uma povoação próxima, onde o jovem casal ficava por dois ou três dias; ao fim desse tempo regressava à terra, onde era acolhido pela família do rapaz. Iniciava-se então um processo de negociação entre as famílias, de forma a que o casal fosse aceite pela mãe da rapariga. Quando isto acontecia, o casal passava a residir em casa dos pais da rapariga. Este tipo de residência uxorilocal mantinha-se por vezes durante alguns meses até se arranjar uma casa pequena na vizinhança, juntando-se então o novo agregado a um grupo de agregados todos relacionados por via materna, vivendo na proximidade uns dos outros. Desta forma, o sistema de residência uxorilocal acabava por promover uma maior proximidade e solidariedade entre parentes maternos, e o afastamento dos parentes paternos. Não se podendo falar de linhagens, pode contudo dizer-se que na Nazaré os pescadores têm uma relação muito mais próxima 96

com os parentes maternos do que com os paternos, chegando mesmo a desconhecer muitos dos seus parentes próximos por via paterna. Actualmente, o êxodo das famílias nazarenas para as novas urbanizações que vão crescendo nos subúrbios não impede que as mães e filhas mantenham o mesmo elo, deslocando-se ora as mães para junto das filhas, ora ambas para os novos apartamentos. Em consequência deste processo, as velhas casas dos pescadores na zona baixa da vila, junto à praia, têm vindo a ser ocupadas pelo comércio. Na sociedade tradicional dos pescadores, que sobreviveu praticamente até ao fim dos anos setenta, mal o rapaz começava a trabalhar e a ganhar algum dinheiro, começava o namoro que pouco tempo depois terminava no casamento por fuga. Por vezes, era preciso esperar que a rapariga, já grávida, completasse os dezasseis anos para poderem casar. O rapaz abandonava a família materna mas era imediatamente absorvido pela família da esposa. A sogra substituía a mãe, e era mais tarde substituída pela própria esposa. É muito frequente a sogra elogiar e dar maior atenção e apoio ao genro do que ao filho. Nesta constelação familiar, a imagem masculina que servia de referência ao rapaz era a imagem do avô. Como podemos confirmar pelos testemunhos dos entrevistados, na ausência dos pais, devido à pesca ou à emigração, as crianças ficavam ao cuidado dos avós. Mesmo entre aqueles que não tiveram que se ausentar, os avós – especialmente os maternos – tinham uma influência muito grande junto dos netos, quer em virtude da tendência matrilinear do parentesco entre as famílias piscatórias e do sistema de residência uxorivicinal23, quer mais tarde pela circulação dos pais, quando ficavam viúvos, pelas casas dos filhos. Sobre o avô contam-se histórias de coragem, de autoridade, de sentido de justiça, de generosidade. O avô chega a confundir-se com uma figura lendária nas memórias dos pais que são contadas aos filhos. E para estes, ele acaba por assumir uma dimensão mítica. O pescador da Nazaré sente-se literalmente como peixe fora de água nas questões que não tenham a ver com a actividade da pesca; pelo que deposita na esposa todas as responsabilidades que envolvem a vida em terra, ao ponto de não ser capaz de ir por si resolver as coisas mínimas. Quer se trate de uma ida 23

A residência próximo da família da esposa.

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória

ao médico, ao banco, ou para comprar uma peça de roupa, é a mulher que trata de tudo. O pescador é «uma criança»24. É ela que compra o apartamento ou faz a casa, sem o conhecimento do marido, quando ele anda embarcado. O que provoca o espanto e a troça dos outros membros da tripulação de outros lugares, mesmo quando se trata de gente do litoral. Até à década de setenta, era a própria mãe que procurava uma profissão para o filho, ou interferia a favor do marido. Os filhos são objecto de um investimento afectivo muito forte por parte das mães. Muitas das dificuldades sentidas pelos jovens nazarenos actualmente, quando têm que se afastar da Nazaré para trabalhar ou estudar, resultam deste ambiente familiar marcado pela ausência do pai, associado a uma presença excessiva da mãe. Os filhos dos pescadores nazarenos não gostam de se afastar por muito tempo da Nazaré. Um estudante que viveu durante alguns meses numa cidade do interior referiu que sofreu muito enquanto lá viveu. Sentia uma espécie de claustrofobia naquela terra. Ele acha que a Nazaré é como um “berço”. Esta imagem condensa bem a necessidade que os nazarenos sentem do lugar securizante que representa para si a Nazaré, mas também a evocação da protecção materna. Outros atribuem ao mar e à imponência da paisagem a incapacidade para se libertarem da Nazaré. Há quem se fique por explicações um tanto ou quanto vagas, «não sabem porque sentem essa dificuldade de adaptação». Moisés Espírito Santo recorre a uma abordagem etnopsicanalítica para interpretar esta dependência e nostalgia da Mãe nas comunidades piscatórias, a partir da religião dos pescadores: «A Senhora dos pescadores representa tanto a terra segurizante como a mãe carnal ou a esposa que fica em terra, enquanto os homens se aventuram sobre as ondas. É uma mulher e uma mãe atormentada.[...] A presença exclusiva desta personagem feminina na religião dos pescadores está ligada à cultura específica deste meio, de 24

Pedro, José (1944) «A Nazaré (Excertos). Origem do seu nome e fundação»”. In Livro do I Congresso das Actividades do Distrito de Leiria, 23 a 26 de Setembro de 1943 . Lisboa: Instituto para a Alta Cultura, , p. 126: “os homens são dotados de uma serenidade absoluta, conservando um olhar simples, quási infantil. Bravos no mar, homens a valer, são na terra bondosos, tímidos, ingénuos, dominados completamente pelas mulheres”.

tendência ginocrátrica. [...] Estando o pai ausente e constantemente ameaçado, as crianças fazem incidir a sua atenção exclusivamente sobre a mãe» (1984: 104-105). Esta incapacidade de libertação do meio da infância, securizante e maternal leva à incapacidade de adaptação e ao desejo permanente de voltar por parte daqueles que estão fora. Muitos dos entrevistados declararam que quando saem em viagem, ao fim de pouco tempo já estão ansiosos por voltar para a Nazaré. Nem chegam a tirar o devido prazer dela. Outros falaram da dificuldade que é abandonar de vez Nazaré, referindo os casos daqueles que depois de terem feito os seus cursos superiores optaram por uma vida obscura e sem grandes possibilidades de promoção, a ter de viver noutro lugar. O mesmo estudante falou-me do seu sofrimento quando teve que viver longe da Nazaré, que o levou a um estado de depressão: “[...]Eu vivia perto do castelo, e aquilo fica assim no alto, [...] tinha uma vista privilegiada sobre a cidade, e aquilo de Inverno é muito nevoeiro só se vê ao longe uns montes e quando eu saía lá de casa e olhava, de repente parecia que tava a ver o mar. A névoa dava-me essa ilusão, e eu fiquei cada vez mais deprimido, mais deprimido, mais deprimido com aquilo, porque tinha essa fobia de não vir à frente do mar dar aquela volta e ficar limitado pelos prédios e pelos montes. Sentia uma fobia, sentia uma inquietação. É a questão de viveres uma vida inteira, ou vinte anos, com o mar e teres esta liberdade toda, uma liberdade de visão, chegas aqui e vês tudo: não há limites. Ali parece que tudo converge para ti, reduz-te o espaço, ficas ali. Faz, eu vim pra cá com uma depressão.[...] E outra coisa, há pessoal que já acabou os cursos, que admite deixar de viver na Nazaré para ir viver noutro lugar que não da Nazaré, mas diz: “‘Tou lá mas ao fim de semana venho cá.” Não conseguem. Isto parece um berço de aconchegue, é um recanto, eu acho que é um magnetismo qualquer que há aqui,[...]”. Nélson, 28 anos, pescador e estudante 97

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

Outro nazareno falou da sua experiência enquanto viveu fora da Nazaré: “[...] Sentia a falta porque aqui na Nazaré sempre se dava umas voltas à noite, bebia-se um copo. É verdade, também se tem isso em Lisboa. Em Lisboa também se podia sair à noite, tinha amigos, tinha um rol de amigos e amigas com quem me divertia. Aquela coisa, aquela atracção, não sei se era a possibilidade de quebrar com o quotidiano, tava ali uma semana de trabalho, estudo, autocarros, e tudo o mais... Se havia necessidade de quebrar aquela rotina e vir para a paz de espírito, talvez seja isso, mas eu não sou capaz de explicar, o que era um facto é que era uma necessidade curiosa. Se eu podia vir à quinta, não vinha à sexta. Se pudesse vir à hora do almoço, não vinha à hora do jantar, era logo. [...] A malta de lá já sabia:“então como é que é, à tarde a gente encontra-se? Tu na vais?”. [...] Ainda agora tive com uma garota que era de Campomaior, e que não ia a Campomaior desde que começaram as aulas. Pra mim era inconcebível! Ela diz que é muito longe. Claro que é muito longe, mas há lugares onde é mais longe pra ir. Isso tem a ver com o gosto; eu vinha quase todos os dias, todos os fins-de-semana. [...] Fiquei uma vezinha, porque foi assim, tínhamos trabalho, fomos para Sesimbra, era trabalho subaquático, e tínhamos que no dia seguinte ir à lota...Biologia Marítima, no curso de Biologia. [...] Não fui capaz, aí pra terça ou quarta as coisas arrebentaram e... Era curioso, parecia que vinha recarregar baterias pra semana seguinte, é engraçado que ainda hoje sinto isso quando vou de férias. As férias dão-me muito prazer, tou lá muito bem, mas é muito bom voltar à Nazaré. [...]” Orlando, 46 anos, professor Os testemunhos atrás apresentados são também reveladores de uma das características mais vincadas da personalidade dos nazarenos. A dependência excessiva do lugar securizante, da protecção materna, transfigurada nos discursos pela nostalgia 98

que sentem quando estão afastados da Nazaré, e a incapacidade de partir para trabalhar ou estudar, ao ponto de gerar sofrimento f ísico, é reveladora de uma personalidade caracterizada por um eu frágil. Essa fragilidade do eu encontra confirmação na crença dos nazarenos – e não são apenas os mais velhos – de que tudo o que acontece, quer se trate de questões de saúde, dos resultados na pesca, ou qualquer incidente, é consequência do mal de inveja ou do mau-olhado. A crença de que qualquer um pode ser tão fortemente afectado pelo simples olhar ou por uma palavra de outro membro da comunidade é reveladora da força dos laços comunitários, e explica a dependência psicológica que os nazarenos experimentam quando se afastam da Nazaré.

Bibliografia BROGGER, J. (1992) Pescadores e Pés-calçados, Nazaré: Livraria Susy. COLE, Sally (1994) Mulheres da Praia, Lisboa: Dom Quixote. DAVID, Pierre (1977) Psicanálise e Família, Lisboa: Moraes Editores. DE VOS, George (1986) «L’identité ethnique et le statut de minorité» in TAP, Pierre (dir.) Identités Collectives et Changements Sociaux, Toulouse: Ed. Privat. DEVEREUX, Georges (1972) «L’identité ethnique : ses bases logiques et ses dysfonctions», in ID., Ethnopsychanalyse complémentariste, Paris : Flammarion, pp. 131 – 168. DIET, Emmanuel (1986) « Je et l’autre» :perspectives psychanalytiques», in A.N.P.A.S.E. (1986). Enfances et Cultures – problématiques de la différence et pratiques de l’interculturel, Toulouse: Ed. Privat. GILMORE, David D. (1990) Manhood in the Making, New Haven and London: Yale University Press. MESQUITA, Marcelino (1913) A Nazareth: Sítio e Praia. Lenda Histórica. Casos. Lisboa: Edição do Autor. NATIVIDADE, M. Vieira (1960) Mosteiro e Contos de Alcobaça, alguns capítulos extraídos dos manuscritos do autor e publicados no centenário do seu nascimento, Alcobaça: Edição de Joaquim Vieira Natividade. PEDRO,José (1944) «A Nazaré (excertos). Origem do seu nome e fundação», in Livro do I Congresso de Actividades do Distrito de Leiria, pp. 122-127. SALAZAR, José d’Almeida (1842) Memórias da Real Casa de N. Senhora da Nazareth. Sítio, Confraria de N. S.ra Nazaré – Arquivo Histórico. SANTO, Moisés Espírito (1984) A Religião Popular Portuguesa, Lisboa: Regra do Jogo. SOARES, José (1998) 100 Anos de Naufrágios na Costa da Nazaré (de 1860 a 1979), Nazaré: Edição da Câmara Municipal da Nazaré). TAP, Pierre (dir.) (1986) Identités Collectives et Changements Sociaux, Toulouse : Ed. Privat.

Património, Identidade e os Registos escritos Acácio de Sousa Historiador

Património Em termos lineares, sabemos que Património, dentro das suas mais diversas tipologias, é o testemunho da relação dos homens com o meio. Assim sendo, dentro dessa relação, é igualmente o testemunho da cultura e das identidades de cada momento, um elo de continuidade entre as gerações/comunidades que ao longo dos tempos ocupam um território e também o elo de continuidade na relação entre uma comunidade e as outras vizinhas, amigas ou adversas; Portanto, esta continuidade é Memória e, logo, uma Identidade. Contudo, sendo composta por diversos momentos, são diversas e evolutivas as identidades de qualquer comunidade. Desta forma, os valores patrimoniais, não sendo comerciais, reconhecem-se pelos afectos e mais se valorizam quando à transmissão dos saberes que está implícita à transmissão dos afectos, forem reconhecidos um recurso pedagógico e económico. Só quando é entendido como recurso, se pode falar em vitalidade do Património. Esta é, aliás, a grande diferença em relação ao Património resguardado apenas como memória. Aqui, fica-se pelo Saudosismo não cooperante, ou mesmo isolacionista. Os esforços para a sua manutenção acabam, mais tarde ou mais cedo, por se revelarem um investimento artificial, com a criação de alguns mitos e custos sem retorno continuado. Isto acontece quando se tratam de elementos patrimoniais não funcionais, não adaptados ou entendidos pelas comunidades cuja modernização é permanente, acabando por satisfazer, momentaneamente, apenas pequenos nichos de nostálgicos. Quer isto dizer que quando se estabelece uma caracterização activa dos recursos pedagógico e económico nos elementos patrimoniais, estes tornam-se geradores de mais-valias, devi-

damente adequados à modernidade, alargando-lhes os afectos com o reconhecimento do contributo no enriquecimento das comunidades. Por outro lado, se a Memória se mantiver como um registo passivo, estático, por vezes mesmo intocável na preocupação absoluta da preservação, tenderá para a decrepitude e para a dificuldade de percepção nas gerações vindouras, não contribuindo para o bem-estar geral, para a sociabilidade e para o reconhecimento de símbolo identitário. Não cumpre o sentido de cooperação e de complementaridade com outras comunidades porque não sendo um registo activo, o Património deixa rapidamente de ser um factor de coesão social. Dizia o Prof. Leonel Fadigas nas últimas Jornadas do CepaeCentro do Património da Estremadura (2003) que, sendo um recurso, o Património é reutilizável, mas não reciclável e sendo uma fonte de produção de riqueza intelectual e económica é, de facto, um bem económico, mas não de troca. Esta é a razão da necessidade de se alargarem os afectos, tornando úteis, perceptíveis e dinamizadores de economias, os elementos patrimoniais que se querem preservar.

Dos conceitos extremos aos conceitos elementares Actualmente, tem-se vindo a acentuar uma perspectiva relativista sobre o quotidiano, percebendo toda a produção como transitória, perecível e “descartável”. Isto leva a um olhar de desconfiança sobre as as fontes de informação que passarão a merecer apenas, um olhar céptico ou imediatista. Já a outra face da mesma extremada moeda, tende para o exagero conservacionista e para a associação entre conceitos identitários e o estaticismo do património. O limiar do Bom Senso, esse será sempre uma preocupação ad eternum. Levi Strauss afirmava que “nenhuma sociedade tem uma identidade substancial, ela apenas se constrói a partir de elementos dispersos” e Karl Popper entendia que “(no que toca a tradição)...a perda de referências faria com que estivéssemos sempre a partir do nada e nada se constrói a partir de nada”. Isto leva-nos àquilo que parece ser um Paradoxo Identitário. De facto, ao longo da História, as diversas Identidades são as coe99

Património e Identidade (Ciclo de Conferências)

sões que estimulam as diferenças. Contudo, são historicamente momentâneas e, depois, evoluem. Os símbolos patrimoniais são polarizadores de vontades e de esforços, ora mais ora menos relevantes, conforme os protagonistas e os momentos. O que vemos, ao longo do tempo histórico, é o alargamento de fronteiras identitárias alternado com períodos de isolamento, o que bem se pode ver, mesmo em tempos não beligerantes, na Europa de hoje, no confronto entre o apelo à bondade de criação de espaços transnacionais e os apelos à defesa de identidades, por vezes micro-regionais. As razões económicas e sociais serão diversas e conhecidas mas, estranho é encontrar os mesmos protagonistas, por vezes, a defender ambas as situações. Todavia, parece isto confirmar que estas coesões identitárias são pertenças flutuantes no tempo e complementares entre si. Serão estes os pressupostos pedagógicos sobre a(s) identidade(s) patrimonial(ais). Este é o quadro no qual a escola deve promover uma nova atitude que descortine os Símbolos de continuidade através dos tempos sem, no entanto e acima de tudo, perder a noção do contributo dado e recebido na relação com as comunidades vizinhas.

Estudos para o Reconhecimento Patrimonial: Monografias No que toca ao estudo para o reconhecimento do Património, para além dos trabalhos académicos, com estrutura científica, entre os quais também podemos encontrar monografias, não podemos ignorar trabalhos produzidos por inúmeros autodidactas que, podendo não seguir os parâmetros cientificamente mais correctos, não deixam de levantar inúmeras pistas e de dar a conhecer inúmeras situações às quais outros teriam muita dificuldade em chegar. Assim, e pelo conhecimento de alguns acervos locais, poderemos caracterizar três tipos de trabalhos monográficos: – Monografias Urbanas, que são predominantemente temáticas; – Monografias Rurais, que são predominantemente ecléticas; 100

– Monografias Mistas, que sendo geralmente concelhias ou regionais, seguem a estrutura mais comum numa monografia rural. Para além destes tipos de trabalho, outros existem com incidência em temas mais específicos, como: História; Personalidades; Etnografia (Trabalho / Economia; Música/Cantares; Tradições Lúdicas; Medicinas Tradicionais; Manifestações Religiosas e Profanas; Lendas; Trajes; Arquitectura). No caso dos trabalhos de características etnográficas, não deixa de ser um indicador interpretativo o facto da sua incidência cronológica recair nos finais do séc. XIX até aos inícios do séc. XX. Todavia, sendo pontos de referência para trabalhos de iniciação aos estudos locais e apoios basilares para a sistematização de trabalhos de investigação avançada, depois de ultrapassadas as dúvidas sobre as limitações cronológicas da caracterização etnográfica e confirmados os dados históricos, muitas vezes assentes na tradição oral, deve ser ainda superado o limiar entre a emulação descrita como motor do desenvolvimento em contraponto com o “orgulho bairrista”, de tendência isolacionista e de menor abertura à cidadania. A identidade pedagógica estará sempre na ideia de complementaridade entre os tempos e as comunidades e na fruição comum dos símbolos patrimoniais.

À volta do folclore da Batalha e da Alta Estremadura José Travaços Santos Etnógrafo

Numa expressiva realização do Rancho Folclórico Rosas do Lena, pudemos assistir no dia 14 de Agosto de 2005 à manifestação etnográfica “A Batalha a Cantar e a Dançar da Quaresma a Santo António”, criada há cerca de 25 anos e já apresentada em Lisboa, no Palácio das Galveias, e na antiga sede do Orfeão de Leiria e, agora integrada na XIX Gala Internacional de Folclore da Batalha. Trata-se da revivência de algumas tradições da nossa paróquia e, como não podia deixar de ser, da região em que estamos inseridos: a Alta Estremadura, parte norte da nossa província natal, a Estremadura. A propósito deste acontecimento etnográfico, em que se revelaram curiosos aspectos distintivos do nosso povo, nomeadamente relacionados com a Quaresma, a Santíssima Trindade, a “Encamisada” (deitar as loas a Santo António) e o casamento, vamos dar uma vista de olhos pela etnografia e pelo folclore alto estremenhos, indo o mais longe no tempo que nos for possível. Em 1602 foi uma “chacota” de Leiria bailar e cantar nas procissões da Companhia de Jesus, em Lisboa. “Chacota” designava tanto a dança como o grupo que a bailava e que a teria como moda principal. Segundo alguns autores, o vocábulo talvez derive do hebraico “schichhoth” que quererá significar dichotes ou palavras mentirosas (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira). Quem sabe se a moda não se filiava também numa dança judia? Embora, creio eu, hoje se desconheça como se bailava, a mesma Enciclopédia informa-nos de que “sobre a música bordou-se cantiga vilancica que os rústicos cantavam, a solo ou em coro, com toques e alusões de carácter satírico, acompanhada de movimentos coreográficos que assim geraram a dança do mesmo nome”. Parece que nos séculos XVII e XVIII teve grande voga, mas é muito antiga pois, em 1391, já a Rainha D. Filipa de Lencastre, que fora parir o seu filho Duarte a Viseu,

era presenteada, no meio de grande regozijo popular, com as “chacotas” que, não obstante do seu possível carácter satírico, se usavam nas procissões e nas recepções reais. Faltam elementos para descortinar as razões da deslocação à capital do Reino, da “chacota” leiriense. As “chacotas” bailavamse em todo o País, segundo parece, e, grupos do género, que deveriam ter sucedido aos “profissionais” mouros e judeus até ao reinado de D. Manuel I animavam as festas da Corte, haveria por todo o lado. Então, por que motivo esta viagem a Lisboa da “chacota” leiriense? Viagem dum conjunto de pessoas, quantas é impossível precisar, ao saber das dificuldades de transporte do século XVII, não seria coisa comum e habitual. Teria a nossa “chacota” alguma particularidade? Mais qualidade artística? Não consigo saber. Pela mesma época não se bailariam também, na nossa região, as “mouriscas” e os “lunduns” que foi feito de todo este passado musical do povo, a maior parte herdado ou profundamente influenciado pelas culturas islâmica e hebraica? Sabe-se que no século XIX, muito principalmente, se deu uma transformação enorme nos hábitos artísticos populares em Portugal, quer pela influência dos invasores franceses (que acho não ter sido tanta e tão determinante como se diz), quer pela, com certeza muito maior, dos nossos aliados ingleses que nos vieram ajudar a expulsar os napoleónicos (e que, depois, também quiseram ficar por cá a dar ordens), quer pela dos salões das casas fidalgas provincianas e da burguesia, desnacionalizantes nos dois casos, quer ainda pela introdução de instrumentos importados como é o caso das gaitas-de-beiço, dos harmónicos e das concertinas. As “danças de quatro passos” (pás-de-quatre, transformado em passecatre), as xotiças (schotish ou dança escocesa, muito provavelmente deixada pelos nossos aliados) e todas as danças valseadas ou rodopiadas são exemplo dessa transformação que, não obstante as adaptações feitas ao gosto regional, apagou tradições musicais, poéticas e coreográficas que teriam raízes peninsulares de antes da nossa Nacionalidade ou fincadas em culturas mediterrânicas veiculadas por árabes e judeus ou com íntima relação com os passos da nossa Expansão. Julgo que deste valioso espólio nos sobram alguns resquícios e duas ou três danças marcantes: o “fandango” nas suas múlti101

Figura 1 Mosteiro da Batalha Fonte: Raízes do Povo

Figura 2 Mulher de Leiria vendendo pinhões em Lisboa – séc. XIX Fonte: Raízes do Povo

Figura 3 Camponeses em dia festivo junto à porta lateral do Mosteiro da Batalha – princípios do séc. XX Fonte: Raízes do Povo

À volta do folclore da Batalha e da Alta Estremadura

plas variantes de que são elucidativos exemplos os fandangos de pares recolhidos pelo Rosas do Lena, e ensinados pelo mestre António Marques, e o recolhido pelo Rancho Folclórico de Arrimal, os quatro fandangos registados por Michael Giacometti e recolhidos em Aljubarrota e a “escovinha”que ainda tive a oportunidade de ver bailar, nos finais da década de 30, numa adiafa batalhense, a mulher madura que para o efeito se serviu, como palco, e caixa de ressonância do seu sapateado, do tampo de uma mesa, como poderia ter sido dum alqueire virado ao contrário (seria um destes fandangos que o grande etnomusicólogo Professor Armando Leça viu, em 1916, em Alcobaça, acompanhado por uma gaita-de-foles?), os tacõese-bico, os viras e pouco mais. Que se fez à gaita-de-foles que nesta Estremadura se usava sem percussão, e que acompanhava fandangos, como o documenta Armando Leça, ou certas cerimónias religiosas como era o caso dos círios à Senhora da Nazaré? Aos pífaros e flautas de cana e de sabugo, ou inclusivamente de barro? Às guitarras? Às violas de doze cordas, com certeza na nossa região as toeiras, pela proximidade relativa de Coimbra? Felizmente que, na Batalha, por acção do Professor Mário Neto e do grupo Gaitilena, ressurgiu a gaita-de-foles em toda a sua beleza e significado. Substituídos, primeiro pelos harmónios (os “pianos de cavalariça”, conforme a saborosa expressão estremenha) e depois pelas concertinas e acordeões cada vez mais sofisticados, perderam-se os seus tons singulares e seculares e com eles as vozes, os gestos e as coreografias que lhe estavam associados. Talvez do traje se pudesse pensar coisa semelhante. Mas, verifico curiosamente que este aspecto da etnografia foi um pouco mais resistente às alterações do século XIX, só vindo a submeter-se inteiramente às modas urbanas e importadas a partir do terceiro decénio do século XX. Com certeza que houve em todos os tempos influências, a que nenhuma classe ficaria indiferente, tanto no que respeita aos figurinos como aos tecidos usados, sobretudo espalhados pela burguesia descaracterizada e sempre receptiva às novidades estrangeiras, mas ao longo do século XIX e ao contrário do que sucedeu na música, nas coreografias e nos instrumentos, o povo, quer por razões do clima e de natureza das suas

ocupações, quer por outras ainda por averiguar, foi mantendo inúmeros aspectos distintivos na maneira de trajar que são, sem dúvida, um dos mais fiéis retratos do gosto e do carácter das populações. Alguns desses trajes estremenhos, como quem diz da Batalha e de Leiria, ainda seriam contemporâneos das “chacotas” e de todas as outras danças antigas e da funda expressão regional e nacional, talvez os mais significativos testemunhos de que ainda dispomos para entender que povo éramos quando ainda possuíamos uma certa pureza e bastante originalidade.

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001 002 003 004 005 006 007 008 009 010 011 012 013 014 015 016 017 018 019 020 021 022 023 024 025 026 027 028 029 030 031 032 033

– Em mortalidades – Óscar Gonçalves. 1992 (esgotado) – Escolas Superiores de Educação e Ensino Politécnico – Luís Souta. 1995 – A escola da nossa saudade – Luís Souta. 1995 – Princípios e orientações para a administração da escola secundária – Eurico Pina Cabral. 1996 (esgotado) – Multiculturalidade e Educação – Luís Souta. 1997 (esgotado) – A paixão segundo José Saramago – Conceição Madruga. 1998 (esgotado) – Como era quando não era o que sou: o crescimento das crianças – Raúl Iturra. 1998 – Carta de chamada: depoimento da última emigrante portuguesa em Habana – Aurélio Franco Loredo. 1999 (esgotado) – Fiat Lux: regime disciplinar dos alunos e regime de autonomia das escolas – Manuel Reis. 1998 – Orgulhosamente filhos de Rousseau – António Magalhães e Stephen Stoer. 1998 (esgotado) – Pedagogia para a igualdade, uma escola não sexista – Iracema Santos Clara, Maria Manuela Silva e Ariana Cosme. 1999 (esgotado) – Educação intercultural: utopia ou realidade – Américo Nunes Peres. 2000 (2.ª edição) – Quando eu for grande quero ir à Primavera e outras histórias – José Pacheco. 2000 (1.ª ed.) 2001 (2.ª ed.) (esgotado) – Pensar o ensino básico – vários. 2001 – Por falar em formação centrada na escola – Manuel Matos. 2002 – A escola para todos e a excelência académica – António Magalhães e Stephen Stoer. 2002 (esgotado) – Cartas da periferia – Fernando Bessa. 2003 – Da Cadeira Inquieta – Iracema Santos Clara. 2003 – Etnografia e educação: reflexões a propósito de uma pesquisa sociológica – Pedro Silva. 2003 – Sozinhos na escola – José Pacheco. 2003 (esgotado) – Ser igual ser diferente, encruzilhadas da identidade – Ricardo Vieira. 2003 – E agora professor? – Ricardo Vieira (org.). 2004 – Escola da Ponte: em defesa da escola pública – Rui Canário, Filomena Matos, Rui Trindade (orgs.). 2004 (esgotado) – A escola, os livros e os afectos: apontamentos da vida de um estudante – Diana Medeiros. 2005 – A Declaração de Bolonha e a Formação dos Educadores e Professores Portugueses – José Paulo Serralheiro (org.). 2005 – Ética e profissão docente – Isabel Baptista. 2005 – Museus, Património e Identidade: Ritualidade, Educação, Conservação, Pesquisa, Exposição – Fernando Paulo Oliveira Magalhães. 2005 – A Escola é o Melhor do Povo: Relatório de revisão institucional do projecto das escolas rurais – Manuel Jacinto Sarmento, Joaquim Marques de Oliveira. 2005 – Afinal onde está a Escola? – Regina leite Garcia, José Paulo Serralheiro. 2005 – Arca de Gutenberg – ensaios breves – Serafim Ferreira. 2005 – Reconfigurações – Educação, Estado e Cultura numa época de globalização – vários. 2006 – Sociedade e Território – Desenvolvimento Ecologicamente Sustentado – Jacinto Rodrigues. 2006 – A Política «Educativa» do Colonialismo Português em África – Da I Repúbiica ao Estado Novo (1910 – 1974) – José Marques Guimarães. 2006

034 – Uma revolução na formação inicial de Professores – Amélia Lopes, Cristina Sousa, Fátima Pereira, Rafael Tormenta e Rosália Rocha. Junho 2006 035 – A escola faz-se com pessoas. Undi N ta Bai? – Pascal Paulus. Junho 2006 036 – A dimensão Pedagógica e Cultural de Agostinho da Silva – Amélia Claudina dos Santos Lopes. Julho 2006 037 – Professores, para quê? mudanças e desafios na profissão docente – António Teodoro. Julho 2006 038 – Concepções Pedagógicas na Obra de Irene Lisboa – Luís Cardoso Teixeira. Setembro 2006 039 – Agostinho e Vieira – Mestres de sujeitos! – João Barcellos e Manuel Reis. Outubro 2006 040 – Os Direitos das Crianças da Participação à Responsabilidade. O Sistema de Protecção e Educação das Crianças e Jovens – Paulo Delgado. Outubro 2006 041 – Ciberleitura – O contributo das tic para a leitura no 1.º ciclo do ensino básico – Betina Astride Santos. Outubro 2006 042 – Marxismo e Educação, Volume I – João M. Paraskeva, E. Wayne Ross e David Hursh (orgs.). Dezembro 2006 043 – [email protected] – Peças breves de uma reportagem sobre o conhecimento e o saber na época actual – Francisco Silva. Dezembro 2006 044 – Os Professores em Contexto de Diversidade – Carlos Manuel Neves Cardoso. Dezembro 2006 045 – Desconstruindo o Discurso Académico do Papa – Manuel Reis. Janeiro 2007 046 – O Mundo Maravilhoso das Adivinhas Moçambicanas – Américo Correia de Oliveira. Janeiro 2007 047 – MUROS e REDES: conversas sobre escola e cultura – Nilda Alves, Inês Barbosa de Oliveira, Maja Vargas e Glaucia Guimarães, Raquel Goulart Barreto, Valter Filé, Maria de Lourdes Rangel Tura, Rita Marisa Ribes Pereira e Sonia Maria David Marrafa, Dirceu Castilho Pacheco, Mailsa Carla Pinto Passos, Neila Guimarães Alves, Maria Luiza Oswald, Paulo Sgarbi. Dezembro 2006 048 – A Fábula em Portugal – Contributos para a história e caracterização da fábula literária – Luciano José dos Santos Baptista Pereira. Março 2007 049 – Da democratização à democracia cultural – Uma reflexão sobre políticas culturais e espaço público – João Teixeira Lopes. Abril 2007 050 – Acolhimento Familiar – Conceitos, práticas e (in)definições – Paulo Delgado. Abril 2007 051 – Educação e Cinema: Novos olhares na produção do saber – José de Sousa Miguel Lopes. Junho 2007 052 – Os Portugueses: Portugal a Descoberto – Leonel Cosme. Julho 2007 053 – Crianças de meio rural: as mãos na terra e os olhos no futuro – Rui Pedro Rodrigues Palma da Silva. Agosto 2007 054 – Escritas do Maio – escrever com José Afonso – Miguel Gouveia. Maio 2007 055 – Escolas, Famílias e Lares – Um caleidoscópio de olhares – Pedro Silva (org.). Agosto 2007 056 – Pedagogia da Convivência – Xesús R. Jares. Outubro 2007 057 – Educação e Desenvolvimento Comunitário Local – Perspectivas pedagógicas e sociais da sustentabilidade – José António Caride Gómez, Orlando Manuel Pereira de Freitas, Germán Vargas Callejas. Outubro 2007 058 – Escola a Tempo Inteiro – Escola para que te quero? – Ariana Cosme e Rui Trindade. Outubro 2007 059 – Escritas de Fonte Boa – Joana Abranches Portela. Novembro 2007 060 – Educador de Infância: Teorias e práticas – Cristina Mesquita-Pires. Novembro 2007 061 – Actividades Lúdicas na Área dos Comportamentos Alimentares – Rui Tinoco; Débora Cláudio; Nuno Pereira de Sousa. Janeiro 2008 062 – F.P.A. A Fábrica Leccionada – Aventura dos Tecnocatólicos no Ministério das Corporações – Albérico Afonso Costa Alho. Maio 2008 063 – O Tempo na Escola – Rogério Fernandes, Ana Chrystina Venancio Mignot (orgs.). Maio 2008 064 – Multiculturalismo Anti-Racista – Jurjo Torres Santomé. Maio 2008 065 – Políticas de currículo no Brasil e em Portugal – Alice Casimiro Lopes, Elisabeth Macedo (orgs.). Maio 2008 066 – Documentira - A Construção do Real – Saguenail e Regina Guimarães, Organizadores. Maio 2008

Índice

Introdução ................................................................................... Ricardo Vieira e Fernando Magalhães

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FOTOGRAFIA, CINEMA E TEATRO EM LEIRIA Teatro e Cinema em Leiria ..................................................... 10 Luís Mourão

O Teatro em Leiria e na Região............................................. 13 Carlos Alberto Silva

PATRIMÓNIO MONUMENTAL Património Monumental da Região de Leiria ................. 44 Apontamentos fotográficos

Património Monumental, Identidade e História da Região de Leiria .................................................................... 45 Saul António Gomes

Identidade e Patrimrinio: Um percurso por Óbidos Monumental.............................. 58 Dina Alves

VIDRO E IDENTIDADE DA REGIÃO DE LEIRIA O Vidro na Região de Leiria ................................................... 16 Apontamentos fotográficos

Identidades vidreiras: da Marinha à região? .................... 17 Emília Margarida Marques

O Vidro na Região de Leiria: Entre o uso quotidiano e o simbolismo cultural ............. 21 Fernando Magalhães

O Museu: da sumptuosidade do edif ício arquitectónico ao seu conteúdo............................................ 68 Fernando Magalhães

PATRIMÓNIO CULTURAL: A TERRA, O MAR, CAMPONESES E PESCADORES Entre a Terra e o Mar................................................................ 74 Apontamentos fotográficos

A Terra e o Mar: Os camponeses.......................................... 76 TRAJECTORIAS SOCIAlS E IDENTIDADES PESSOAIS Condições sociais objectivas e subjectivas na construção da(s) identidade(s) ........................................ 28 Cristovão Margarido

Partir, Chegar, Voltar: Imigrantes brasileiros em Portugal ..................................... 30 Ricardo Vieira e José Trindade

Ricardo Vieira

A Terra e o Mar, Os pescadores ............................................ 81 Fernando Barqueiro

Nazaré: A metamorfose de uma comunidade piscatória ............. 85 José Trindade

Património, Identidade e os Registos escritos ................. 99 Acácio de Sousa

Avolta do Folclore da Batalha e da Alta Estremadura... 101 José Travaços Santos

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