Pauliceia Devastada: O uso de fontes iconográficas para análise da Revolução Paulista de 1924

October 11, 2017 | Autor: Renan Oliveira | Categoria: História do Brasil, Iconografia, Revolucao de 1924, Tenentismo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

RENAN TEIXEIRA DE OLIVEIRA

PAULICEIA DEVASTADA: O USO DE FONTES ICONOGRÁFICAS PARA ANÁLISE DA REVOLUÇÃO PAULISTA DE 1924

GUARULHOS 2014

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RENAN TEIXEIRA DE OLIVEIRA

PAULICEIA DEVASTADA: O USO DE FONTES ICONOGRÁFICAS PARA ANÁLISE DA REVOLUÇÃO PAULISTA DE 1924

Monografia de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel e Licenciado em História Orientação: Profa. Dra. Edilene Teresinha Toledo

GUARULHOS 2014 2

OLIVEIRA, Renan Teixeira de. Pauliceia Devastada: o uso de fontes iconográficas para análise da Revolução Paulista de 1924. – Guarulhos, 2014. 50 p. Monografia de conclusão de curso (Bacharelado/Licenciatura em História) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Guarulhos, 2014 Orientação: Profa. Dra. Edilene Teresinha Toledo 1.

História do Brasil. 2. Revolução de 1924. 3. Fontes Iconográficas

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RENAN TEIXEIRA DE OLIVEIRA PAULICEIA DEVASTADA: O USO DE FONTES ICONOGRÁFICAS PARA ANÁLISE DA REVOLUÇÃO PAULISTA DE 1924

Monografia de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel e Licenciado em História Orientação: Profa. Dra. Edilene Teresinha Toledo

Aprovado em: ____/____/________

______________________________________________________________________ Prfa. Dra. Orientadora Edilene Teresinha Toledo Universidade Federal de São Paulo

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Instituição

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Instituição 4

AGRADECIMENTOS

Sou grato primeiramente a José Gabriel da Costa, Mestre Gabriel, o mestre da burracheira e meu mestre, pela oportunidade que me foi concedida neste destacamento de, através do Vegetal, despertar a clarividência e clariaudiência na busca incessante pelo equilíbrio e pela conscientização. Sem seus preciosos ensinamentos, jamais teria mantido a calma e a tranquilidade em tempos tão turbulentos. Grato também ao Núcleo Espiritual Rosa de Luz, que me auxilia a crescer em grupo. Agradeço aos meus pais, meus avós e meu irmão pelos esforços desmedidos na minha criação e pela paciência no convívio. Não tenho palavras para expressar o amor que tenho por cada um, em especial ao meu avô José Napoleão Teixeira (in memoriam) que, apesar ter sido um cearense fugido das adversidades em que vivia e pelo pouco estudo, me transmitiu riquíssimos ensinamentos que carregarei comigo eternamente, com todo amor que houver nessa vida. Agradeço a todo o corpo docente da UNIFESP pelo conhecimento transmitido e os desafios impostos. Cada um teve sua parcela de contribuição no amadurecimento deste historiador. De modo que todas as horas de sono perdidas para as leituras e manufatura de provas, fichamentos e trabalhos tenham ficado para trás, permanece o respeito e a gratidão. Agradeço, por fim, aos amigos que estiveram presentes nessa jornada, começando pela Priscila Mimoto que me acompanha desde os tempos de cursinho, a todos com quem pude compartilhar momentos de alegria ou tristeza, nas aulas ou nas greves, no bandejão ou na ocupação, a todos os presentes do saudoso e querido Campus Pimentas, a Thais Botelho pelo período que me foi estendida a mão e que me lembrarei com imenso carinho, aos novos amigos do Torricelli e, em especial, aqueles que tive o privilégio de conhecer, conviver e dividir o mesmo teto, aprendendo uma das mais preciosa lições que a vida pode ensinar, transformar amigos em irmãos, eterna gratidão a Renato Muller Pinto, Caio Vinícius Rosa, João Campos Nunes, Jaime Rodrigues, Carlos Norberto Schmatz, Vinícius Luciano de Souza e Vinícius Corrêa.

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RESUMO A Revolução Paulista de 1924 foi um levante militar tenentista que tinha como objetivo a derrubada do presidente Arthur Bernardes. A estratégia dos revoltosos era tomar os pontos estratégicos da cidade para partir em direção ao Rio de Janeiro e depor o presidente da República. A estratégia não foi efetuada com sucesso e os militares ficaram sitiados na cidade por vinte e três dias. Intensa artilharia e armamentos pesados não foram poupados para suprimir o levante que, devido à marginalização que o evento teve na historiografia, ficou conhecido como a “Revolução Esquecida”. Com o propósito de trazer um estudo que traga novas informações para a compreensão da dinâmica da Revolução, este trabalho usa como fontes principais um conjunto de 152 fotografias localizadas no acervo da Fundação de Energia e Saneamento. Através de um estudo minucioso nas fontes iconográficas, este trabalho tem o singelo objetivo de somar esforços à escassa produção acadêmica da área de História que utiliza a fotografia como fonte principal. Palavras-chave: História do Brasil, Revolução de 1924, Fontes iconográficas

ABSTRACT The Paulista Revolution of 1924 was a lieutenant military lift that aimed tooverthrow President ArthurBernardes. The strategy of the rebelswas to take the main points of the cityto go toward Rio de Janeiro and depose the president. This strategy hasn't been successfully executedand the military were besieged in the city for twentythree days. Intenseartillery

and heavy

weapons were

used to

suppress the

lift,

considering the marginalization that the event had on the historiography, became known as the "Forgotten Revolution". Withthe purpose of bringing a study that presents new information forunderstanding the dynamics of the revolution, this work uses as main source a set of 152 photographs, locatedin the Energy ans Sanitation Fundation collection. Through adetailed study in iconographic sources, this work has the simplegoal of adding to the meageracademic research some efforts in the area of history that uses photography as a main source. Keywords: History of Brazil, Revolution on 1924, Iconographic Source 6

SUMÁRIO

Introdução ____________________________________________________________ 8 Por trás da foto _______________________________________________________ 14 Por trás da lente ______________________________________________________ 26 Conclusão ___________________________________________________________ 43 Referências __________________________________________________________ 48

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INTRODUÇÃO

A cidade de São Paulo é uma metrópole global de relevante destaque. É o maior centro financeiro não só do Brasil como da América do Sul, correspondendo seu PIB isolado a cerca de 12% do PIB nacional. É também a sexta cidade mais populosa do mundo, quarta maior aglomeração mundial e a quantidade de habitantes que nela vivem (ou sobrevivem) se aproximam dos doze milhões. O crescimento vertiginoso ao qual foi submetida a “locomotiva do país” teve suas consequências na urbanização paulista. Nas palavras de Benedito Lima de Toledo, “São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral1”. Por conta dessa metamorfose ocorrida no cenário urbano, se torna praticamente impossível identificar que nesta mesma cidade que hoje constitui uma megalópole ocorreu uma revolta tenentista que foi severamente reprimida. A Revolta Paulista de 1924 que transformou a cidade em uma praça de guerra civil entre rebeldes e legalistas se iniciou no dia 5 de julho de 1924, exatamente dois anos após a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana. O número de mortos nessa revolta varia de acordo com a fonte, porém os números revezam entre setecentas e mil pessoas entre oficiais e civis2, números que revelam a violência com que foi combatida tal revolta que durou apenas vinte e três dias de pavor. Esforços não foram medidos para reprimir e extinguir tal revolta. Tiros de canhões, bombardeio aéreo, balas e granadas foram usadas pelas tropas legalistas de Arthur Bernardes, que impôs não outra condição para o cessar fogo além da total rendição dos militares revoltosos. As palavras de Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra elucidam bem a postura do governo federal com a revolta: ”os danos materiais

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TOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: Três cidades em um século, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1981, p. 77. 2 Para ver a fonte que diz terem sido cerca de 700 mortos: COHEN, Ilka Stern. Vida política paulista nas décadas de 1920 e 1930: as revoluções de 1924 e 1932. IN: ODALIA, Nilo; CALDEIRA, João Ricaro de Castro (orgs). História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista. São Paulo, Editora UNESP; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado, 2010, p. 263. Para ver a fonte que diz terem sido 1.000 mortos: National Archives Washington, roll 5, p. 371, Arquivo Edgard Leuenroth, AEL/Unicamp. “Acredita-se que 1.000 civis estejam mortos, estimativas fornecidas em S. Paulo chegam de 1.000 a 4.000 mortos e feridos”.

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de um bombardeio podem ser facilmente reparados (...) mas os prejuízos morais, esses não são suscetíveis de reparação3”. Deve-se levar em conta que tanto a paralisação nacional da indústria e do comércio e a Revolução Russa haviam ocorrido em 1917, ou seja, o medo oriundo do fantasma da revolução pairava sobre as mentes dos representantes do governo federal por conta da proximidade desses dois eventos. Longe de comparar um levante militar com a greve geral e a Revolução Russa. Tais movimentos surgiram do âmago do proletariado, que se encontrava em uma fase de consolidação conforme a metrópole industrial foi se desenvolvendo. Sem nos determos em uma análise tão profunda por não ser o foco desta monografia, nem fazer qualquer afirmação que contenha em si potencial para ser generalizante, o medo de uma revolução fomentou a ação belicista contra os revolucionários. Canudos é um exemplo de rebelião que foi belicamente reprimido pelo governo, mas seu extermínio teve sucesso após um período considerado de sobrevivência do movimento popular de fundo sócio-religioso. Porém um levante militar era, como já foi dito na citação de Setembrino de Carvalho, um prejuízo moral, fazendo com que a atitude a se tomar diante de tal rebelião fosse a mais rápida e repressiva possível. Trincheiras foram espalhadas pelas ruas do centro da cidade e as marcas dos combates eram notáveis nos destroços das explosões e incêndios. A revolta mobilizou militares, comerciantes, estrangeiros, estudantes, ou seja, o cotidiano dos cidadãos foi drasticamente alterado devido aos bombardeios que ocorriam na até então pacata cidade. Portanto, a proposta deste trabalho é compreender a dinâmica da revolta, as variações no cenário urbano, as ressignificações necessárias para se adaptar uma cidade urbanizada em um palco de guerra civil, os impactos sobre a população da cidade e a acomodação destes para se adequarem ao novo panorama social. Será o objetivo principal deste trabalho desenvolver uma perspectiva analítica que considere a importância dos processos de reconfiguração social e cultural tomados em sua dinâmica. Para isso, pretendo me pautar principalmente em fontes iconográficas. A escolha da fotografia como fonte para a realização desta monografia tem um caráter bem pessoal. Em meados de 2012, transferi o meu tardio interesse pelo cinema

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COSTA, Cyro; GÓES, Eurico de. Sob a metralha... História da revolta de São Paulo: São Paulo, Monteiro Lobato, 1924, p. 92.

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para a fotografia, área em que, até então, era leigo. Com os avanços dos estudos, tomando conhecimento do trabalho de ilustres fotógrafos que hoje são referência para mim, como Robert Capa, Robert Frank, James Nachtwey, Elliott Erwitt e Fan Ho, resolvi me arriscar nesta área comprando minha primeira câmera digital. Já no ano de 2013, dominava questões de fotometria, enquadramento, foco e tantos outros detalhes técnicas que o manuseio constante da câmera possibilita, criando um portfólio carregado de linguagem fotográfica pessoal. O teste que seria o divisor de águas na minha profissionalização foram as Manifestações de Junho de 2013. Sem medir esforços ou grau de periculosidade e sem qualquer proteção efetiva, me expus em busca de registros que contemplassem meu anseio pela fotografia que descrevesse as cenas que presenciei. No início foi estranho estar do lado de fora de uma manifestação da qual era a favor, chegando a ficar junto ou ao lado da Tropa de Choque na busca do ângulo ideal. Mas cada escolha é uma renúncia, e eu tive que fazer a minha. Como diz Susan Sontag, “fotografar é, em essência, um ato de não intervenção. (...) a pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir”4. Conforme as fotos iam saindo e a habilidade de se locomover em meio a tanto alvoroço se aprimorava, o manuseio da câmera se tornou automático e o diferencial entre tantos fotógrafos era saber o lugar e a hora certa para fazer o registro perfeito. E esta foto veio na quarta manifestação, no dia treze de junho, no cruzamento da Av. Consolação com a Maria Antônia. Neste dia, a manifestação contava com mais manifestantes do que nas manifestações anteriores. Logo na concentração, o clima entre os fotógrafos era de tensão. Todos com capacetes e máscaras, bem equipados para as eventuais balas de borrachas que fossem disparadas sem destino e contra as corriqueiras bombas de gás lacrimogêneo. Eu, apenas com uma camiseta em volta do pescoço para cobrir o nariz contra o gás que provoca uma irritação sem descrições. Quando a manifestação entrou na Consolação, fiz algo que não tinha feito até então, permaneci no fim do amotinado, enquanto a maioria dos fotógrafos se fixava em tirar as fotos clichês de faixas de protesto e de mascarados gritando palavras de ordem. Foi quando vi as duas blazers da Tropa de Choque, estacionando quase que em frente ao Edifício Copan, e os policiais brutalmente preparados correndo, passando pelo lado direito da manifestação para fechar aquela legítima demonstração de passeata (até então) pacífica. Corri junto com os Policiais e me posicionei atrás deles, enquanto a população gritava as palavras de ordem “SEM-VIOLÊNCIA”. De nada adiantou o 4

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004, p. 22.

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incessante pedido. Daí surgiu a fotografia abaixo que me rendeu uma premiação, ficando em exposição por mais de um mês no Centro Cultural da Juventude, em uma exposição sobre mídia independente e as manifestações de junho daquele ano. Ter uma fotografia exposta ao lado de tantos outros fotógrafos experientes, com tão pouco tempo de atividade nessa aspirante carreira provocou um sentimento instigante que não só fomentou meus interesses pela fotografia, mas também pela cidade de São Paulo, lugar que tanto amo e odeio. Com minha graduação pelo fim, não tive como fugir do tema de estudar aquela Revolução que tantos danos causaram à cidade de São Paulo e que, por mais impactante que tenha sido, não teve seu lugar de destaque na historiografia. Estava definido o tema.

Resta agora explicar a escolha do corpus documental. Nas pesquisas sobre as fotografias do recorte escolhidos, o corpus documental do acervo da Fundação de Energia e Saneamento se destoou por dois motivos. Primeiro, me foi solicitado que desse preferência às imagens que se encontravam digitalizadas no banco de dados da Fundação, pois o álbum de fotografias não estava em seus melhores dias de conservação. Para preservar a integridade documental das fotografias, eu poderia acessar as imagens via on-line. Por mais atípico que seja, o pedido este que foi aceito, mas insisti em, ao menos, ter um contato com as fotografias. Foi quando me foi apresentado o álbum onde elas se encontram. Um álbum preto, em um acondicionamento nada adequado se comparada às experiências que tive enquanto estagiei no Arquivo Público do Estado de São Paulo, com destaque para as fotografias coladas no álbum. Praticamente, a documentação em um estado bruto, difícil de se 11

encontrar em acervos tão bem organizados como o da Fundação de Energia e Saneamento. Nem parecia que eu escolhia um tema e um corpus documental, mas sim que um tema e um corpus documental me escolhiam. Aquele álbum pitoresco me chamou atenção suficiente a ponto de despertar meu interesse de estuda-lo nesta monografia. No início da pesquisa, constatei que havia escolhido o caminho das pedras para trilhar na reta final de minha graduação. Os poucos trabalhos que utilizam a fotografia como fonte principal e a minha falta de experiência com esse tipo de documentação não deixavam o quadro animador. Mas pela dinâmica que se estruturou a opção pelo tema, não vi possibilidade de mudar o tema já que era irredutível optar por outra fonte principal que não fosse a fotografia e o resultado deste experimento se encontra dividido em dois capítulos. O primeiro capítulo é uma análise técnica do corpus documental, que tem como objetivo ilustrar que tipo de informação pode ser extraído das fotografias sem ainda se valer da cena fotografada. Detalhes minuciosos das fotografias e suas legendas foram cuidadosamente analisados para que se pudesse identificar quem ou quais seriam os fotógrafos responsáveis por tais registros. No segundo capítulo, o objeto de análise é a cena fotografada propriamente dita. O que as fotografias mostram e o que escondem, o que predomina na visão do fotógrafo e o que foi excluído do registro e de que maneira elas podem trazer informações para a compreensão do cotidiano da Revolução são alguns pontos abordados nesse capítulo. Mas antes de tudo, este trabalho pretende somar à escassa produção acadêmica na área de História que se atreve a usar a imagem fotográfica para além da mera ilustração. Apesar da escassa produção historiográfica para se basear como referência, este trabalho também tem a sincera pretensão de ser uma entre tantas outras monografias, artigos e teses que se permitam usar a fotografia como fonte documental principal, para que se possa extrair a maior quantidade de informações disponíveis. Definitivamente, fotografias para análise não faltam. Nas palavras de Kossoy: De uma forma, nos modelos dominantes, as imagens são tratadas como ilustrações “inocentes” desvinculadas dos fatos históricos, esvaziadas em seus conteúdos, descontextualizadas da trama sociocultural, pretensamente desideologizadas. É necessário, pois, que o fenômeno das origens e desenvolvimento 12

da fotografia na América Latina ganhe novos estudos e interpretações nascidas na própria região5.

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KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007, p. 64.

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POR TRÁS DA FOTO

O presente capítulo tem por finalidade fazer uma análise técnica do corpus documental que será usado para esta monografia. Basicamente, serão detalhadas as características das fotografias presentes no álbum para que se possa exaurir qualquer tipo de informação que elas possam oferecer, sem que nos foquemos totalmente na cena fotografada. Ou seja, nesse capítulo usaremos basicamente, além de informações técnicas, as informações contidas no verso da fotografia, que são as legendas escritas pelos autores das fotografias. Através de uma observação perspicaz e atenta nas legendas das fotografias e com auxílio de técnicas paleográficas, será possível atribuir autoria as fotografias, ou seja, diagnosticar se todas as 152 fotografias são de um mesmo fotógrafo ou não e deixando para o capítulo posterior a análise iconográfica. Por mais que estas duas vias de análise caminhem juntos, para efeito didático, foi optado por separar as informações obtidas nesses dois procedimentos, tanto pela falta de experiência deste pesquisador em sua convivência e manuseio de fontes iconográficas como também pelo caráter experimental que tem esta monografia. Pelo raso conteúdo de trabalhos na área de História que considerem a fotografia como fonte primordial de pesquisa, esta monografia serve-me de laboratório onde as conquistas adquiridas se fizeram praticamente no escuro. Algum leitor poderia duvidar desta metodologia, indagando que as legendas poderiam ser escritas posteriormente pela pessoa que reuniu as fotografias no álbum antes de ser doado para a Fundação Energia e Saneamento, o que provaria a ineficiência desta metodologia aplicada para a finalidade deste capítulo. Porém reforço minha hipótese de as legendas serem escritas pelos próprios fotógrafos tanto pela particularidade encontrada nelas como pelas suas descrições. Uma parcela destas fotos nos apresentam os estragos causados pelos tiroteios e bombardeios nas casas, ruas, postes e o que mais pudesse ser atingido sem que seja possível identificar onde essas fotos teriam sido feitas, caso não contivessem suas devidas legendas. Portanto, logo se presume que apenas o próprio fotógrafo podia incluir uma legenda na foto apontando o lugar onde ela foi feita.

O primeiro conjunto de fotos que se pode distinguir com

certeza são três fotografias que estão no fim do álbum, pois são as maiores fotografias do álbum, com dimensão de 18x24cm. Outra particularidade destas fotos é que elas 14

apresentam suas legendas na frente da fotografia, o que difere de praticamente todo o restante das fotos, com exceção de uma foto que será analisada adiante. Duas delas contém a legenda “S. PAULO . REVOLUÇÃO 1924 . LARGO OSWALDO CRUZ Nº4.”, enquanto uma terceira apresenta a legenda “S. PAULO . REVOLUÇÃO 1924 . TYPOGRAPHIA DUPRAT”. Estas três fotos exemplificam perfeitamente a questão da legenda ser colocada pelo autor da fotografia. Estas legendas em questão foram incluídas nas fotografias não com qualquer tipo de marcador após o processo de revelação, mas sim, durante o processo de revelação, como pode ser observado nas fotos em anexo. É perceptível que a legenda é de cor branca porque justamente neste espaço foi retirada a porção química que daria cor à fotografia, deixando a parte vazada com as letras da legenda. Portanto, as legendas destas fotos só poderiam ser incluídas pelo próprio fotógrafo após o manuseio de seus negativos e em seu laboratório de revelação. Por questões de pesquisa, essas fotos foram nomeadas de tipo “A”.

Esta particularidade da legenda escrita na frente da fotografia não é uma prática corriqueira neste corpus documental. Essa técnica é usada em outra fotografia que faz parte de outro conjunto documental, conjunto este composto por duas fotografias e que chamaremos de conjunto “D”. Estas duas fotografias, com dimensões de 13,6 x 9,6cm e de 14 x 8,8 cm, podem ser distinguidas do restante das fotografias não apenas pela legenda escrita na frente da fotografia de uma delas, como também pela impressão feita, visto que elas são as únicas fotos do álbum onde o papel não é espelhado, e sim fosco. Estas duas fotografias são bem semelhantes ao conteúdo fotografado, pois ambas retratam os destroços em casas ocasionados por granadas na Rua Caetano Pinto. A primeira foto, tirada em retrato, mostra a frente de uma casa de dois andares destruída por uma explosão e sua legenda na frente da fotografia diz “Rua Caetano Pinto” e no seu verso consta a legenda “Rua Caetano Pinto. Efeito de Granada”. A segunda 15

fotografia, também tirada em retrato, mostra outra casa destruída por uma granada, porém esta não contém a legenda na frente, como a outra fotografia do mesmo conjunto. O que nos permite concluir que sejam de mesma autoria é a legenda no verso, onde esta segunda foto também apresenta a legenda “Rua Caetano Pinto. Efeito de Granada”. Infelizmente, estas fotos estão parcialmente coladas no álbum, como acontece com tantas outras fotos deste álbum, o que impossibilita o registro dessas legendas no verso, já que descolar estas fotos sem os aparatos de restauro necessários poderiam trazer prejuízos graves a estas fotografias que possuem em torno de oitenta anos. Mas é perceptível que a legenda na frente da fotografia deste conjunto “D” é diferente daquelas do conjunto “A”, tanto pela letra como pelo estilo de legenda. Nas fotos do conjunto “A”, é especificada a conjuntura da situação com os dizeres “S. PAULO . REVOLUÇÃO 1924”, enquanto na foto do conjunto “D”, a legenda se limita a dizer o nome da rua onde ocorreu o estrago causado pela granada.

As fotos que compõem o conjunto “B”, diferentemente dos conjuntos anteriores e de acordo com as fotografias seguintes deste álbum, possuem sua legenda escrita a lápis no verso da fotografia. Porém, uma particularidade neste conjunto chama atenção do observador, visto que se espera que um conjunto de fotos de um autor apresente uma regularidade referente às técnicas empregadas no processo de revelação e assim, elas possam ser conjecturadas. Mas um pesquisador atento não pode se basear nesta premissa quando se analisa um conjunto de fotografias, ainda mais quando uma suposta divisão é ameaçada por uma particularidade tão latente que são as suas resoluções. Todas estas dezesseis fotos foram reveladas em papel 16,5cm x 11,5cm, porém suas resoluções variam consideravelmente, tendo quatro fotos com resolução de 10,6cm x 7,8cm, duas com 11,5cm x 8,5cm e cada uma das outras dez fotografias apresentando 16

resoluções diferentes umas das outras. Melhor ilustrando estes dados, suas margens variam entre três e cinco centímetros, um padrão considerado grande se comparado às restantes fotografias analisadas neste álbum, deixando estas fotos tomadas por uma faixa branca espessa ao redor de suas cenas registradas. Apesar de este estilo de margem utilizado pelo fotógrafo nos indagar o porquê desta escolha ou limitação tecnológica que não permitiu ao fotógrafo usar todo o espaço do papel para a resolução da imagem fotografada, ela nos dá clara pista de estas fotos se enquadrarem previamente em um grupo de fotografias isoladas das já analisadas e suas legendas aparecem para confirmar esta divisão. Suas legendar são sucintas quanto à discrição da cena fotografada e sua maioria apresenta um padrão com o nome da rua ou local e o que o fotógrafo intentava registrar, onde encontramos exemplos como “Rua Conselheiro Furtado, casa attingida” ou “Abrigo Mosteiro São Bento”. Dentre estas fotos, apenas duas não possuem legenda que indique o local onde elas foram fotografadas. Uma que diz “Cruz Vermelha”, onde foram registrados quatro homens de terno e gravata com sinalizações da Cruz Vermelha nos braços e nos chapéus e outra foto com a legenda “Em caminho ao êxodo”, onde mostra em primeiro plano uma mulher com uma mala e em segundo plano, uma série de pessoas carregando trouxas de roupas ou pertences e como sugere a legenda, saindo de São Paulo. Este detalhe das margens neste conjunto de fotografias facilita sua distinção de outras fotografias do corpus, porém não contamos com esse agente facilitador nas outras fotografias. Além do mais, se compararmos as fotografias restantes, é possível que se encontrem mais semelhanças do que distinções. O conjunto intitulado “C” é composto por trinta e cinco fotografias e com o papel espelhado em dimensões 14.3cm x 8,5cm e suas margens medem 0,3cm, porém, algumas fotos possuem dimensão reduzida no papel e na margem, variando entre 0,1 e 0,2cm para menos. Dentre estas fotos, oito delas não possuem informações sobre o local de onde foi tirada a fotografia e duas delas não contém legendas no álbum e não foi possível ver o verso destas fotos por conta de elas estarem, assim como algumas fotografias, coladas no álbum. Apesar deste entrave na pesquisa que são as fotos coladas no álbum impossibilitando o seu manuseio e a verificação de que tipo de informação poderia constar naquela fotografia, visto que qualquer manejo poderia prejudicar e danificar a integridade da fotografia, a pesquisa se desenvolveu sem que estas fotos fossem analisadas no verso. Prosseguindo com as divisões, um outro conjunto de fotografias foi intitulado de “F” e é composta por 17

noventa e quatro fotografias também em papel espelhado com dimensão na sua maioria de 17cm x 11,4cm com 0,2 de margem. Dentre estas fotografias, algumas fogem deste padrão com pequenas variações nos seus tamanhos e uma foto está sem margem. Com estas informações prévias, seria impreciso afirmar esta distinção destes dois grupos de fotografias, vista a proximidade entre seus tamanhos, as exceções de fotografias que fogem do padrão diagnosticado e suas semelhanças quanto ao conteúdo. No entanto, como foi dito no começo deste capítulo, me baseio na premissa de os próprios autores terem escritos as respectivas legendas pelas razões já explicitadas. Portanto, a paleografia é a metodologia adequada para distinguir com precisão este conjunto de fotografias.

A fotografia acima é de duas legendas de duas fotografias encontradas neste álbum, a de cima do conjunto “C” e a debaixo do conjunto “F”. A primeira legenda apresenta a descrição “Sentinella em frente ao Palacio Campos Elyseos” e a segunda apresenta a descrição “Trincheira Campos Elyseos”. Estas duas legendas foram escolhidas pela presença de duas palavras semelhantes que nos permitem comparar com precisão a escrita de cada autor. Comparando as legendas, a palavra “Campos” apresenta diferenças notórias primeiramente no “C”, pois na primeira legenda o autor faz uma letra mais reta do que a segunda legenda, na qual o “C” está mais inclinado para a direita. A letra “o” também apresenta diferenças, pois na primeira legenda, ela aparece de maneira mais discreta, quase que imperceptível e a letra “s” aparece em seguida com um tamanho padrão para as outras letras da palavra. Já na segunda legenda, a letra “o” é mais perceptível, onde é possível verificar sua abertura na volta que ela faz 18

para emendar na letra “s”, onde também se nota uma diferença com a mesma letra da legenda anterior, visto que este “s” é mais alongado, assim como todas as outras letras da palavra. Na palavra “Elyseos” também encontramos diferenças entre suas grafias. A começar do “E”, na primeira legenda, ela apresenta duas voltas (uma em cima e outra na base) que não encontramos na segunda legenda. A inclinação da segunda legenda também é perceptível na letra “y”, o que não ocorre na primeira legenda. A letra “o” da primeira legenda também se faz discreto como o “o” da palavra “Campos” da mesma fotografia e a letra “s” é igualmente semelhante. Já na segunda legenda, apesar da letra “o” estar acobertada por um resquício de cola oriundo da má preservação do álbum, o “s” também se faz alongado, equivalente ao “s” da palavra “Campos” da mesma fotografia. Prosseguindo com a análise paleográfica, observemos outro exemplo.

A legenda de cima, do conjunto “F” apresenta a legenda “Rua Florencio de Abreu” e a legenda debaixo, pertencente ao conjunto “C” apresenta uma legenda semelhante, com os dizeres “Rua Florencio de Abreu Effeito de tiroteio”. Como feito anteriormente, nos focaremos nas palavras semelhantes entre as legendas para facilitar a verificação. De início, vemos que a legenda de cima apresenta uma inclinação para a direita enquanto que não é perceptível este estilo de grafia na segunda legenda. A começar da palavra “Rua”, o que mais se difere nas duas legendas é a letra “a” visto que na primeira legenda, ela está descolada do restante da palavra e o autor se preocupou em fechá-lo, o que não acontece na segunda legenda, onde o autor mantém a letra junta do restante da palavra e deixa a letra “a” em aberto, fazendo com que ela tenha uma aparência de uma letra “c”. Na palavra “Florencio”, também são notórias duas distinções entre as legendas, que são a letra “F” e a última letra “o”. Na primeira 19

legenda, se nota uma volta que a o corte superior da letra “F” faz, parecendo um 6 de lado, enquanto que na segunda legenda, esse floreio não é constado. Já na letra “o”, se repete o que ocorre com a palavra “Rua”, pois a última letra fica distante do restante da legenda de cima enquanto que na legenda de baixo, a letra “o” está aglutinada. Duas letras nos possibilitam uma precisa distinção na palavra “Abreu”, que são a letra “A” e a letra “b”. Uma volta que é visível na letra “A” da primeira legenda não aparece na segunda legenda, visto que a letra “A” desta segunda legenda, além de não ter esta volta, permanece aberta. Na letra “b” da primeira legenda, também há uma volta na subida da letra, o que não é visível na segunda legenda já que este traço se parece mais com um bastão reto e sem curva.

Por fim, um último exemplo paleográfico para distinguir a autoria destes conjuntos fotográficos. A primeira legenda contém os dizeres “Jockey Club Parte attingida” enquanto que na segunda legenda, seu conteúdo é o seguinte, “Jockey Club de S. Paulo Uma das victimas da Revolta”. Na palavra “Jockey”, elas possuem uma semelhança que é a separação silábica feita após o “Jo”, o que poderia levar a uma conclusão precipitada se atribuindo a mesma autoria as duas fotografias. Contudo, está é a única semelhança que estas letras apresentam e suas discrepâncias podem ser atentamente observadas. De início, se nota a já observada caída para a direita que a primeira legenda, pertencente ao conjunto “F” apresenta, o que não ocorre na segunda legenda, pertencente ao conjunto “C”. As letra “J” também são diferentes, pois enquanto na primeira legenda, suas voltas são bem sutis e ela se inicia com um traço

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que sobe e finaliza para então, descer e fazer uma volta, na segunda legenda as voltas são mais perceptíveis e inexiste esse traço que há no início da construção da letra. Portanto, apontando essas diferenças entre as ortografias dos fotógrafos no manuscrito das legendas, apesar da proximidade no tamanho e nas margens das fotografias, é falso presumir que elas tenham sido tiradas por um mesmo fotógrafo. As diferenças paleográficas apontadas nas legendas certificam que elas não poderiam ter sido tiradas pelo mesmo fotógrafo, além da particularidade de suas legendas quando referidas a cenários semelhantes, como no caso do Jockey Club. Este apontamento referente à particularidade das legendas pode parecer um argumento falho, caso não houvesse a análise paleográfica para certificar as divisões das fotografias. Mas se atentarmos ao conjunto “F” com o conjunto “B”, essa proposta toma força.

Apesar de estes conjuntos de fotografias serem um tanto diferentes no que diz respeito ao espaço usado no papel fotográfico para mostrar a cena fotografada (como foi dito, as fotos do conjunto “F” possuem uma margem de aproximadamente 0,2 cm enquanto as fotos do conjunto “B” possuem uma variação entre 3 e 5 cm), não é seguro presumir esta distinção sem antes analisar suas legendas, uma vez que a leitura paleográfica se mostrou eficaz para o exame minucioso na distinção autoral das fotografias. A legenda de cima é de uma fotografia pertencente ao grupo “F” enquanto a de baixo é oriunda do grupo “B”. A análise paleográfica nos assegura suas mesmas autorias, se observarmos as mesmas palavras repetidas nas duas legendas, “Rua” e “Casa bombardeada”. Talvez a palavra “Rua” seja a que menos se pareça, mas a descrição “Casa bombardeada” nos assegura tal concordância e o detalhe que sugere 21

esta hipótese a princípio é a separação silábica, tanto na separação do último “a” da palavra “Casa” como nas últimas três sílabas da palavra “bombardeada”. E além desta evidência, suas descrições semelhantes quanto à cena fotografada, apenas invertendo a ordem do local da fotografia e do objeto fotografado nos confirma o que não parecia óbvio, ou seja, que as fotos do conjunto “B” e do conjunto “F” foram tiradas pelo mesmo autor. Como são perceptíveis outras concomitâncias comparando outras legendas destes conjuntos mencionados, observemos outro exemplo.

Na primeira legenda, observada no verso de uma fotografia do conjunto “F” consta “Secretaria do C. G. da F. P o dia antes do incêndio”, enquanto que na segunda fotografia, pertencente ao conjunto “B” encontramos uma legenda deveras semelhante, que diz “Secretaria do Com. Geral da F. Publica após o incêndio”. As legendas possuem duas diferenças em termos paleográficos. Uma que são as palavras em que o autor das fotografias optou pela abreviação nas palavras compostas “Comando Geral” e “Força Pública”. Na primeira legenda, o autor optou por colocar apenas as iniciais das palavras que nomeiam o edifício vítima de um incêndio, enquanto que na segunda, o autor se dá ao capricho de melhor explicitar seu objeto fotografado, escrevendo as palavras “Geral” e “Pública” por extenso. A segunda diferença está na palavra “Secretaria”, especificamente na legra “c” que é trocada por uma letra “g” na segunda legenda. Todavia, além destas duas distinções, as legendas estão repletas de semelhanças, a observar as letras maiúsculas “F” e “P” e a separação silábica na palavra “incêndio”. Proveniente desta comprovação autoral surge a pergunta do por que desta 22

distinção tão latente das fotografias de mesma autoria. Talvez a resposta seja proveniente de limitações técnicas do que uma opção do fotógrafo. As duas fotografias abaixo pertencem a grupos diferentes, a primeira do grupo “F” e a segunda do grupo “B” e retratam o mesmo ocorrido, o incêndio na Fábrica Nazareth Teixeira e Cia. Enquanto que na primeira fotografia a margem ocupa um espaço mínimo no papel e a imagem revela a posição do fotógrafo quanto ao seu objeto fotografado, a segunda foto apresenta uma margem considerada grande para o padrão e há uma aproximação da fumaça do incêndio. Estas fotos sugerem que este autor se utilizou de duas lentes para fazer tal registro, usando uma grande angular na primeira fotografia e denunciando sua real distância da fábrica em chamas enquanto na segunda fotografia, ele usou uma tele objetiva que lhe permitiu uma imagem aproximada do incêndio, porém reduziu a qualidade da imagem.

Uma observação curiosa sobre este álbum fotográfico da Revolução de 1924 que sustenta esta hipótese das diferentes autorias das fotografias de acordo com a subdivisão proposta neste capítulo é a ordem que as fotografias se encontram no álbum. As cento e nove primeiras fotografias são apenas dos grupos “F” e “B”, atestadas aqui serem do mesmo fotógrafo. As próximas trinta e seis fotos são as fotos do grupo “C” com a exceção de uma fotografia do grupo “F”. Posteriormente, são as duas fotografias do grupo “D” que ocupam uma página no álbum precedida pelas três fotografias do grupo “A”, cada uma ocupando uma página e, por fim, as duas fotos que compõe o grupo “E” finalizam o álbum fotográfico. Este arranjo nos sugere que o autor do álbum, ou organizou as fotografias ciente de suas diferentes autorias e as dispôs obedecendo esta ordem e a fotografia do grupo “F” que se encontra na sessão de fotografias do grupo “C” teria sido um deslize nessa organicidade, ou ele adquiriu tais fotografias em tempos 23

diferentes, acrescentando as fotos conforme as coletava. Uma legenda que nos sugere tal hipótese é apresentada abaixo.

Esta legenda foi observada no verso de uma das fotografias do conjunto “A” e é a única no álbum todo que faz referência ao doador destas fontes. O nome contido neste verso não nos permite presumir quem tenha sido o fotógrafo autor deste conjunto, mas como essa informação é observada apenas em uma fotografia, logo sugere que as outras fotografias tiveram origens distintas das fotografias do conjunto “A”. Talvez para corrigir uma falha que tenha passado despercebido, optou por creditar o doador da fotografia que consta no fim do álbum e deixando de incluir esta informação nas fotografias já coletadas e arranjadas no álbum. Por qualquer que tenha sido as nuanças que permearam a feitura deste álbum em questão, tanto pelos indícios apresentados e pela leitura paleográfica, é seguro afirmar que este álbum é composto por fotografias de, no mínimo, cinco autores diferentes. No mínimo por conta da falta de informações que se pode extrair das duas últimas fotografias do álbum, pertencentes ao grupo “E”. São duas fotografias em paisagem, uma com dimensão de 17,3cm x 11,7cm e com 0,3cm de margem enquanto a outra fotografia tem as proporção de 18,1cm x 12cm com 0,5cm de margem. As duas fotografias estão em papel espelhado e registram praticamente o mesmo conteúdo, pois são fotos tiradas no interior de grandes instalações totalmente prejudicadas por algo que seria uma explosão por granada ou por incêndio. O que se vê são praticamente metais retorcidos e as paredes das instalações que restaram de pé, claros e visíveis pela luz do dia que adentra a cena fotografada pela falta do telhado em ambas as fotografias. Por mais que na linguagem fotográfica estas fotos se assemelhem, é incerto atribuir uma autoria concomitante a elas, além de elas estarem em papeis diferentes no que diz respeito ao tamanho e à textura, elas estão totalmente coladas no álbum, 24

impossibilitando que se possa averiguar alguma informação que possa estar no verso de tais fotografias e devido ao estado de conservação delicado que elas se encontram, foi optado por deixa-las da maneira em que estão e assim, permanece a incerteza se este álbum foi composto por fotografias coletadas de seis ou talvez sete autores diferentes.

25

POR TRÁS DA LENTE

Por mais que os esforços empregados no capítulo anterior nos tenham permitido distinguir as diferentes autorias das fotografias que compõem o álbum aqui analisado, não foram encontradas informações suficientes para poder apontar com precisão o nome de algum destes fotógrafos, que era o objetivo do capítulo. Boris Kossoy salienta que “uma das tarefas mais importantes, provavelmente a fundamental para a futura elaboração do trabalho histórico, é o rastreamento do fotógrafo”6, uma tarefa na qual a paleografia se mostrou como a ferramenta mais eficaz para extrair alguma informação que estivesse contida na própria fotografia e que nos levasse ao nome do anônimo fotógrafo. Porém, foi comprovado que não se trata de um fotógrafo anônimo, mas sim de, no mínimo, cinco “fotógrafos anônimos” que são os responsáveis pelos registros presentes no álbum. Apesar do sucesso parcial desta metodologia aplicada, deixo registrado que essa busca não deve ser cessada nesta monografia, vista a importância que há na total recuperação de informações que pode haver por trás de uma singela fotografia, especialmente o nome do fotógrafo que, por direito, detêm os direitos de imagem da fotografia. Quando se fala em utilizar a fotografia como fonte principal em um trabalho historiográfico, acredito que a recuperação do nome do fotógrafo seja a tarefa principal, pois são estes os responsáveis pelos inúmeros acervos fotográficos públicos e privados que o historiador tem à disposição, e “estes representam a massa dos artesãos da imagem, jamais mencionados por qualquer história”7. Além do nome do fotógrafo e de outras informações pessoais como o endereço de estúdios, outras informações ficam obscurecidas nesta pesquisa justificados, além da falta de conhecimentos referentes à tecnologia que poderia nos dizer mais sobre o equipamento empregado pelo fotógrafo como câmeras, lentes ou suporte da superfície fotossensível, o confesso amadorismo com este tipo de trabalho também corrobora para estas lacunas que ficam por serem preenchidas. Portanto, se não nós, historiadores que nos dedicamos a transpassar o uso da fotografia para além da mera ilustração para fazer esse resgate, ninguém mais o fará.

6 7

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 62. KOSSOY, Boris. Os tempos da fotografia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007, p. 66.

26

Uma vez dito isso e reconhecidos os esforços para recuperar os nomes daqueles que se dedicaram a registrar os vinte e três dias de guerra civil que se sucederam na cidade de São Paulo, nos cabe agora reconstruir a trajetória que aquele material fotográfico teve até chegar ao estado em que se encontra à disposição no Núcleo de Documentação e Pesquisa da Fundação Energia e Saneamento. Quanto à disposição deste álbum, poucas informações puderam enriquecer o caminho que ele percorreu até chegar ao acervo onde se encontra. Sabe-se, através de funcionários da Fundação, que o álbum em questão, assim como outros documentos do acervo, foram doados por funcionários da empresa de energia elétrica São Paulo Light S/A para o órgão que custodiava a documentação desta empresa, o Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo (DPH). Com o fim deste departamento, todo o acervo foi transferido para a custódia da fundação de direitos privados, sem fins lucrativos e com autonomia jurídica, administrativa e financeira denominada Fundação Patrimônio Histórico da Energia e Saneamento, ou simplesmente Fundação Energia e Saneamento. Portanto, mais uma etapa da pesquisa, que seria identificar quem seria o doador do álbum e como ele haveria coletado as fotografias, ficará por fazer. Mas Boris Kossoy ilumina nossos caminhos ao citar as trajetórias que uma fotografia pode percorrer: Em primeiro lugar houve uma intenção para que ela existisse; ela pode ter partido do próprio fotógrafo que se viu motivado a registrar determinado tema do real ou de um terceiro que o incumbiu para a tarefa. Em decorrência desta intenção teve lugar o segundo estágio: o ato do registro que deu origem à materialização da fotografia. Finalmente, o terceiro estágio: os caminhos percorridos por esta fotografia, as vicissitudes por que passou, as mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que despertou, os porta-retratos que a emolduraram, os álbuns que a guardaram, os porões e sótãos que a enterraram, as mãos que a salvaram.8 Kossoy apresenta um roteiro para trabalharmos com as fotografias enumerando seus estágios. Porém, de maneira involuntária, este trabalho fará o caminho inverso. A pesquisa se iniciou pelo terceiro estágio, o de recuperar o histórico das fotografias e do 8

KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012, p. 47.

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álbum. Por mais que fique em branco o intervalo da aquisição das fotografias pelo colecionador que organizou o álbum até a sua doação, ficou comprovado que antes deste estágio, as fotografias foram tiradas por fotógrafos diferentes. Continuando no roteiro traçado por Kossoy, nos atentaremos ao segundo estágio, o ato do registro, o que as fotografias possuem em comum, suas similaridades e de que maneira elas dialogam, para que assim se possa ter indícios do primeiro estágio, ou seja, da intenção que levou os fotógrafos a fazerem tais registros. Mas antes, é de suma importância uma reflexão sobre o papel que o fotógrafo possui na constituição do corpus documental. Quando um fotógrafo se dispõe a registrar um determinado evento ou ocorrido, muitas questões estão além do mero pressionar do botão que resulta na abertura do obturador e a captação de luz para dentro da lente. O fotógrafo tem ao alcance de sua visão, de seu aparato mecânico, uma infinidade de cenas para registrar e perpetuar em um registro fotográfico que representará uma interrupção no tempo. Diante de tantas possibilidades, o fotógrafo faz a sua escolha e registra aquele fragmento da realidade que, naquele momento, ele achou que valeria a pena ser registrado. Portanto há uma relação muito mais intrínseca entre o fotógrafo e a sua obra do que se imagina, pois a fotografia “é uma elaboração do vivido, o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda uma leitura do real”9. O fotógrafo, quando registra uma determinada cena ou ocorrido, se coloca na posição de testemunha daquilo que ele pretende fotografar, e esta relação fotógrafo-objeto é permeada por uma série de meandros construídos culturalmente ou historicamente. A mensagem que a fotografia passa através dos anos carrega uma bagagem cultural que é transmitida pelo fotógrafo e este, por sua vez, reproduz em suas obras. Toda obra fotográfica é uma visão de mundo, particular a cada fotógrafo em seu devido tempo, e sua produção “é interpretada como resultado de um trabalho social de produção de sentido, pautado sobre códigos convencionalizados culturalmente”10. O que se pretende deixar claro é que o fotógrafo, sejam os das fotografias trabalhadas nesta monografia ou de outro corpus documental, é um agente cultural e que sua fotografia não é a pura realidade de um passado materializada na forma de papel, mas sim um fragmento de realidade que passou pelo crivo de um fotógrafo que, em outras palavras, é um filtro cultural. O que deve se 9

ANDRADE, Ana Maria Mauad de S. Através da imagem: fotografia e história interfaces. Revista Tempo, Rio de Janeiro: UFF, v. 1, n. 2, 1996, p. 3. 10 Idem, p. 7.

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buscar nesta produção fotográfica são os signos presentes neste conjunto de fotografias, pois “a fotografia deve ser considerada como produto cultural, fruto de trabalho social e de produção sígnica11”, e atribuir um significado à presença destes signos de maneira que o estudo apresente um sentido social às fotografias é o desafio proposto neste capítulo. Trocando em miúdos, “fotografar é atribuir importância”12 e o que este capítulo se propõe a investigar é por que os fotógrafos atribuíram importância para as fotografias que fizeram e, para isso, será preciso identificar os signos presentes nas fotos e situá-los no âmbito histórico e cultural no momento em que foram feitas. Em um diagnóstico parcial que o álbum fotográfico nos apresenta, destoa a quantidade de imagens que registram os danos causados pelo intenso bombardeio que tomou a cidade de São Paulo naqueles vinte e três dias de Revolução. As duas fotos que compõem o conjunto “E” registram os ferros retorcidos que sobraram de um incêndio causado por bombardeio. As duas fotos do conjunto “D” possuem a mesma composição, transeuntes entre as ruínas de edificações totalmente danificadas na rua Caetano Pinto. No conjunto “A”, o cenário da destruição é presente nas três fotografias, uma da entrada da Tipografia Duprat e as outras duas do interior de residências destruídas por bombardeio. A preferência por registrar os efeitos da Revolução na paisagem paulista também foi a preferência do fotógrafo responsável pelo conjunto “C”, pois das trinta e cinco fotografias que compõem este conjunto, trinta e uma registram os danos causados por granadas, obuses, tiroteios ou incêndios. As exceções desse conjunto são uma fotografia de uma trincheira, uma fotografia de soldados revolucionários posando para o fotógrafo, uma fotografia do Quartel General localizado na rua João Theodoro, e outra fotografia da entrada do Palácio Campos Elyseos. As fotos dos conjuntos “B” e “F” mantém esse mesmo ritmo, mas apresentam uma maior variação das cenas fotografadas. Nas dezesseis fotos que compõem o conjunto “B” há um registro que sugere o êxodo, com paulistas carregando seus pertences em malas e trouxas improvisadas, uma fotografia de voluntários da Cruz Vermelha posando para o fotógrafo, duas fotografias do Mosteiro São Bento que serviu de abrigo durante a Revolução, uma fotografia de uma trincheira e duas fotografias tiradas nas dependências do Armazém Puglisi, durantes os saques que sucederam após o 11 12

Idem, p. 11. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004, p. 41.

29

dia 9 de julho, com o abandono do presidente do Estado, Carlos de Campos. As outras nove fotografias registram algum dano material ocorrido no transcurso dos embates da Revolução, sejam por bombardeio ou incêndio. Para melhor visualizar o arranjo das noventa e quatro fotografias do conjunto “F”, a tabela a seguir faz a distinção entre o conteúdo das cenas fotografadas: Nº de Cenas sem destruição

Nº de fotos

Cenas com destruição

fotos

Danos causados por Tropas legalistas posando

9

Pátio do Quartel General em poder dos

incêndio

13

Incêndio na Fábrica

revoltosos

5

Crespi

10

Tenentes revoltosos posando

5

Marcas de tiroteio

10

Estrago provocado por Trincheiras

4

granada

8

Edifício atingido por Saques

4

Corpo de bombeiros em poder dos

bombardeio

6

Estrago provocado por

revoltosos

2

Oficiais da Marinha

2

Carro de assalto legalista

2

Abrigo para civis

2

População nas ruas

2

Sepultura

1

Tropas legalistas sem posar

1

obus

3

Total

50

Autoridades assistindo ao desfile dos Marinheiros

1

Carro de assalto dos revoltosos

1

Revoltosos trocando tiros

1

Canhões

1

4º Batalhão antes de se renderem aos revoltosos

1

Total

44

30

Neste conjunto também salta à vista a predominância do registro dos vestígios que testemunharam o intenso e desmedido bombardeio que tanto medo trouxe aos moradores que ficaram reféns da Revolução. Ou seja, o que se pode constatar através desses números é que a intenção dos fotógrafos era captar as marcas de destruição que a Revolução deixou pela cidade. Mas o que poderia estar por trás de tantas marcas de balas e obuses que estiveram presentes na Revolução e predominam na visão dos fotógrafos analisados? Minha hipótese é de que estas fotos registram não somente uma cidade em ruínas, mas a cidade de São Paulo em ruínas, principal polo econômico do país, destacada por seus avanços industriais, metrópole proveniente das riquezas proporcionadas pelo café e pelas ferrovias, ou seja, o símbolo da modernidade em frangalhos. Esta suposição pode ser confirmada se analisarmos os registros e suas simbologias presentes. Para efeito de exemplo, observemos o anúncio a seguir.

Esta propaganda do Ford T foi encontrada nas folhas do jornal O Estado de São Paulo na edição de sábado de seis de julho de 1924, no segundo dia do início da Revolução. O automobilismo teve seu auge na década de 1920 após o fim da Primeira Guerra Mundial e o carro detêm um simbolismo da modernidade e da tecnologia revolucionária que se introduzia cada vez mais rápido no cotidiano paulista. O anúncio não só instiga o leitor a adquirir o seu veículo e experimentar a formidável sensação de pilotar a sua própria máquina, mas também indica o lugar para fazer isso, na Avenida Paulista, uma das poucas ruas pavimentadas na época e que serviu de pista para várias 31

corridas. Seu preço não era acessível, por isso o automóvel também está vinculado às elites que tivessem condições financeiras para adquirir um veículo, visto que os motoristas “ou eram, ou estavam a serviço dos ricos”13. Seu uso desenfreado na cosmopolita cidade, com seus motoristas perseguindo pedestres resultaram em inúmeros acidentes que não tiveram na mesma proporção as devidas punições para os sádicos condutores, que no máximo, ganhavam uma multa e serviam de exemplo para ilustrar a nítida relação de poder que havia entre os que conduziam uma máquina envolta de status e os que fugiam destes. Nas palavras de Sevcenko, “o automóvel passou a ser usado de forma a acentuar a sua mística e se impor como uma moldura mecânica sofisticada do poder. O equipamento sucumbia ao símbolo”14. Decerto que este símbolo foi desconstruído durante a Revolução. As ruas já não eram ocupadas por automóveis, mas sim por trincheiras que eram produzidas no improviso com todo tipo de material de que os soldados dispunham, mas na sua maioria, pelo que se pode observar nas fotografias, de paralelepípedos. Os automóveis praticamente não tiveram espaço nas fotografias do álbum, suas aparições são raras e quando notados, é mais provável que tenham servido de abrigo no fogo cruzado entre legalistas e revolucionários. No diário produzido por Henrique Geenen, pode se ter uma dimensão da inversão de espaço destinado ao automóvel: A uma hora da tarde saio por desenfado e assisto, por acaso, à um espectaculo que nunca tinha visto o que certamente nunca tornarei a ver. Passava, pela Avenida Paulista, um carro de defuntos. O sargento fez parar o carro e examinou cuidadosamente os caixões para verificar si continham vivos ou mortos Propalara-se o boato de que, em taes caixões, se fizeram transporte de armas, munições e até de militares vivos!

13

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 74. 14 Idem.

32

A grande guerra européa ensinara taes ardis. Nos caixões havia os cadáveres de dois soldados e de uma mulher: tiveram alta para ir descançar no Araçá.15 As próprias palavras de Greenen revelam o quão pitoresca essa cena se mostrava para os olhos de um morador das proximidades, “um espectaculo que nunca tinha visto o que certamente nunca tornarei a ver”. O símbolo do domínio tecnológico em poder das elites durante os anos 1920 em São Paulo que, durante a Revolução, servira de carro fúnebre, não tinha mais permissão para circular livremente na própria avenida em que o anúncio sugeria a sua circulação. Dentre as fotografias presentes no álbum, apenas uma faz referência direta ao automóvel, que é a foto a seguir, identificada como pertencente ao conjunto “C” com a legenda “Auto que serviu de trincheira aos revoltosos Rua Florêncio de Abreu”. Os automóveis não ocupavam mais sua posição de destaque nas ruas de São Paulo, assim como tiveram seu espaço de publicidade nos jornais usurpado pelas notícias da Revolução.

A aviação era outro símbolo de modernidade que teve sua condição alterada pelas nuanças da Revolta. Grande sensação dos anos 1920, o avião aguçava os sentidos dos paulistas com as inúmeras quebras de recordes e todas as efemérides proporcionadas por suas proezas, mas a sensação de regozijo que este veículo proporcionava aos paulistas se transformou em preocupação. Embora a Força Aérea

15

GREENEN, Henrique. Aventuras de uma família de São Paulo durante a Revolução de 1924. São Paulo: O Estado de São Paulo, 1925, p. 99.

33

Brasileira só tenha sido criada em 1941, o avião teve sua participação na Revolução como arma de guerra e propaganda. Seu uso da parte dos revoltosos iniciou no dia 13 com um voo frustrado de reconhecimento pelos bairros da Penha, Vila Mariana e Ipiranga que teve dificuldades no decorrer do percurso e ocasionou danos ao avião em sua aterrisagem no Campo de Marte. Uma tentativa mais ousada foi feita no dia 23, que tinha por objetivo, além de reverter a situação a seu favor, incitar novos levantes e comover a opinião pública no Rio de Janeiro. O plano era equipar um avião modelo Niewport Oriole para que ele fizesse um audacioso voo de ida e volta até o Rio de Janeiro para distribuir panfletos sobre a cidade e presentear o Palácio do Catete com uma bomba de dinamite de aproximados três quilos16. Essa investida também foi frustrada devido à falta de água no carburador. Os legalistas tiveram mais sucesso no uso deste veículo logo em sua primeira investida no dia 11. Até essa data, a cidade se encontrava bem guarnecida pelos revoltosos e os legalistas encontravam dificuldades para avançar por terra. O general Sócrates ilustra suas dificuldades no ataque: Nossa tropa sentiu o efeito dessa resistência, que não poderíamos vencer ao simples emprego da artilharia e consequente avanço da infantaria. Era um reduto de ruas com edifícios de larga amplitude que mesmo destruídos ofereciam margem à defesa, organizada nos escombros.17 Um esquema de ataque em conjunto que contasse com a presença de todo tipo de artilharia bélica disponível era necessário para penetrar pelas ruas de São Paulo e calcar aquele levante militar. Por isso os legalistas criam que, para suprimir a Revolução, “só pelo arrasamento inicial de grande parte da cidade, com a ação conjunta de aviões e artilharia, seguido do ataque às trincheiras pelos carros de assalto, completado pela baioneta, na luta corpo a corpo”18. O bombardeio pela aviação legalista teve início na manhã do dia 11 nos bairros operários do Brás, Belenzinho e Mooca e se mantiveram constantes nos restantes dias

16

PEREIRA, Duarte Pacheco, 1924 O diário da Revolução – Os 23 dias que abalaram São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Fundação Energia e Saneamento, 2010, p. 131. 17 CORRÊA, Anna Maria Martinez. A rebelião de 1924 em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 119. 18 LEITE, Aureliano. Dias de pavor – Figuras e cenas da revolução de São Paulo. 2º edição revista e aumentada. São Paulo: Monteiro Lobato, 1924, p. 112.

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da Revolta, tendo como destaque uma intentada sobre o bairro da Luz no dia 2219. Contudo, os legalistas também se utilizaram do avião para fins panfletários no dia 26, disseminando na região paulista milhares de folhetins assinados pelo então Ministro da Guerra, marechal Setembrino de Carvalho, aconselhando os moradores de São Paulo para que abandonassem a cidade para que um maciço bombardeio pudesse sucumbir os revoltosos. Por mais que, desta vez, os aviões tenham poupado a cidade de mais um bombardeio aéreo, o conteúdo dos folhetos tiveram efeitos significativos nos remanescentes paulistas que ainda permaneciam sobre o fogo cruzado. As 14 horas appareceram dois aeroplanos que despertam a curiosidade de todos. Não lançam bombas explosivas, mas papeis cujo conteúdo se me afigura peior do que todas as bombas do mundo E’ o manifesto do general Setembrino, avisando que máo grado seu, será obrigado de bombardear a capital do Estado de São Paulo. Pede à população que se retire. Este boletim teve por efeito uma recrudencia na emigração da população. (...) A’ fuzilaria cerrada de frente à casa pela qual os revoltosos querem derribar os aeroplanos, fechamos janelas e venezianas. (...) Os tiros se dirigiam para o ar. Dois majestoso aeroplanos pairam lá no alto e deixam cair os papeis inoffensivos. (...) O vôo dos aviões durou das quatorze às dezessete horas.20 O avião é outro exemplo do moderníssimo maquinário presente no novo cotidiano da industrializada metrópole paulista que, dotado de simbolismo que fomentava as aspirações de superioridade da capital, aterrorizou a vida dos civis e dos revoltosos ilhados na Revolução. Infelizmente, é inviável apontar nas fotografias os 19

TÁVORA, Juarez. À guisa de depoimento sobre a revolução brasileira. São Paulo: O Combate, 1927, p. 268. 20 GREENEN, Henrique. ob. cit. p. 229-231.

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estragos causados especificamente pelas bombas lançadas pelos aviões. Mas se não há precisão em apontar quais foram os alvos, observemos agora um modelo de alvo de toda a artilharia legalista, inclusive dos aviões, que depois do café, era o principal propulsor da cidade de São Paulo: a indústria. O fenômeno da industrialização na cidade de São Paulo está intrinsecamente ligado à cultura do café. Os cafezais se estenderam ao Oeste Paulista, o fim da escravidão ntensificou o uso da mão-de-obra imigrante assalariada e o porto de Santos dobrava os embarques de café após 1870. Essa maior circulação monetária na cidade facilitava o crédito bancário e o surgimento das indústrias. A cidade foi se adaptando a estas mudanças, exemplo das estradas de ferro construídas para ecoar os estoques de café para o litoral21. O surto industrial veio no final da década de 1880 e durante a década de 189022 e já nos anos 1920, São Paulo despontava em números das outras capitais brasileiras e “substituíra a área do Rio de Janeiro e da capital federal como o centro industrial mais importante do Brasil”23. De modo que estão interligadas a cultura do café paulista e a vertiginosa industrialização e urbanização, a fábrica é a primordial pilastra de sustentação do simbolismo da modernidade, pois é responsável pelas mudanças no cenário com o surgimento dos bairros e vilas operárias como também pelas mudanças no cotidiano dos paulistas na virada do século. As indústrias que, por vezes, chegavam a ocupar um quarteirão inteiro, tiveram seu viés durante a Revolução, uma vez que suas torres serviam perfeitamente como postos estratégicos de observação.

21

DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo (1880-1945). Trad. Octavio Mendes Cajado, 2º ed. São Paulo: DIFEL, s. d., p. 14. 22 SIMONSEN, Roberto C. A evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973, p. 16. 23 DEAN, Warren. op. cit. p. 20.

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As duas fotografias acimas são de autores diferentes, sendo a primeira, em paisagem, pertencente ao conjunto “E” e a segunda, pertencente ao conjunto “A”. Enquanto que na segunda fotografia, a legenda no canto superior esquerdo acusa que a cena registrada é dos restos da Tipografia Duprat, na primeira fotografia não há qualquer legenda que se possa presumir o local onde ela foi feita. Por mais que as imagens de baixa resolução aqui dispostas não nos permitam assegurar com precisão, ainda é possível identificar a primeira foto como sendo também um registro da Tipografia Duprat, porém com o fotógrafo fazendo o registro de dentro da fábrica. Ou seja, Os danos causados na fábrica adquirida em 1902 pelo segundo prefeito da cidade de São Paulo, Raymundo Duprat, ou também conhecido como Barão de Duprat, chamou a atenção de dois fotógrafos que se dispuseram a efetuar tais registros. Certamente não foi uma coincidência. O Cotonifício Rodolfo Crespi já teve mais destaque no corpus documental. Localizada no bairro da Mooca, a fábrica que foi construído inicialmente em 1897 e passou por ampliações nos anos de 1910 e 192024 chegou a ser incendiada cinco vezes durante a Revolução25. Nas fotografias, seu espaço é garantido, estando presente em uma fotografia do tipo “C” e em dez fotografias do tipo “F” como aponta a tabela presente neste capítulo. E dentre dez fotografias registrando os mesmos escombros e destroços, uma legenda chama a atenção: “Crespi o que resta do formidável stock de tecidos”.

24

KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de restauro. Cotia (SP): Ateliê/Fapesp, 2009, p 198. 25 GREENEN, Henrique. ob. cit. p. 191.

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O estarrecimento ocasionado pela fábrica que foi tomada por chamas e que nada tinha a ver com os motivos da Revolta é notório tanto na quantidade de registros que o fotógrafo dedica a ela como na singela palavra “formidável” em uma única legenda que foge do padrão. Talvez faltassem palavras para descrever melhor a sensação de destruição que tomou conta da área industrial de aproximados 50.000m². Greene também não se delonga na descrição do que viu com os próprios olhos. No primeiro dia após o fim da revolta, Greene foi pessoalmente constatar o estrago, narrando que “um senhor, conhecido do dr. E, nos arrasta até a Fabrica Crespi, ou antes até aquillo que foi a Fabrica Crespi. Nunca vi nada mais impressionante”26. Símbolo da metrópole moderna, urbanizada e industrializada, principal fábrica de um bairro que se construiu ao seu redor, localizada na principal capital industrial da América do Sul foi, em vinte e três dias, transformada em ruínas. Acredito que por trás de tantas fotografias de desolação, há uma crítica ao enredo em que os fotógrafos se viam inclusos, já que para fazerem tais registros, foram testemunhas durante os vinte e três pavorosos dias de Revolução. Essa constatação surge como um insight no meio de tantas fotografias em preto e branco graças a certo tom irônico de algumas legendas.

26

GREENEN, Henrique. op. cit. p. 242.

38

As duas fotos acima pertencem ao conjunto “F” e registram os danos na paisagem provocados pela artilharia. A primeira fotografia mostra a lateral da Igreja da Glória localizada no bairro do Cambuci, danificada por granadas arremessadas. Na legenda, além de citar o nome da igreja, o autor faz uma singela crítica à eficácia do bombardeio intenso, escrevendo no verso “uma dúzia de granadas bem aproveitadas”. Já a segunda fotografia foi tirada no bairro da Mooca e mostra uma casa totalmente alvejada por balas. O fotógrafo, dessa vez, se mostra mais sarcástico e apresenta a legenda “casa com varíola”. Por fim, uma análise sobre a parcela que a população paulista ocupa nas fotografias da Revolução se faz mais do que merecida. Os civis que permaneceram em São Paulo durante os vinte e três dias, assim como foram na Revolução, são um elemento secundário nas fotografias. Decerto que uma parcelas da população, que por se encontrarem com recursos escassos ou terem alguma afinidade com os ideais e propósitos dos militares, se deixaram envolver na Revolução e se alistaram e “tomaram a Revolução como sua, atribuindo a ela, de certa maneira, um caráter popular”27. Porém, isso não é suficiente para açambarcar toda a população paulista remanescente na cidade, já que a grande maioria optou pelo exílio. Assim como na Revolução, os civis reféns das bombas ficaram marginalizados nas fotografias, exemplo das fotografias onde os transeuntes observam atônitos os tantos estragos causados pelo bombardeio. Apenas em três tipos de fotografias a população é o centro da cena e consequentemente, objeto da intenção do fotógrafo. Uma delas é única fotografia do álbum que sugere o exílio, com homens e mulheres carregando suas trouxas e malas de pertences em busca de abrigo na casa de amigos que morassem em bairros onde não havia intensa artilharia ou, como 27

CASTRO, Maria Clara Spada. Tenentismo em 1924: a participação civil na Revolução Paulista. Guarulho, 2013.

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optou a maioria, distância daquela guerra civil. Outra aparição são nas seis fotografias dos saques ao Armazém Puglisi, com duas fotografias do conjunto “D” e quatro do conjunto “F”. Por último, a população tem destaque na fotografia abaixo.

A fotografia acima faz parte do conjunto “F” e sua legenda aponta o lugar da manifestação popular, Campos Elíseos. É notada a presença de destaque de apenas um militar fardado, ao centro da fotografia e a população, como observando algum fato que se passa no centro da manifestação, se divide em duas alas, uma à esquerda e outra à direita. Por mais que a legenda não aponte a data em que este registro foi feito, podemos concluir que ela foi feita no domingo do dia 27, o dia em que os revoltosos desertaram a cidade a caminho do sul. Um indício é a quantidade de civis na rua, já que a população não ocupava as ruas de maneira maciça como a fotografia aponta e os próprios tenentes aconselhavam a população a evitarem praças e outros lugares abertos. Outro indício é um cidadão no primeiro plano do lado inferior esquerdo da fotografia. Sua atitude se destoa do restante dos presentes, visto seu rosto esboçando um sorriso e sua mão para o alto erguendo seu chapéu, um claro sinal de comemoração. Desacredito que houvesse qualquer motivo que levasse um cidadão a expressar sua felicidade com tanto entusiasmo para o fotógrafo durante os dias de Revolução. A não ser que fosse o fim da Revolução e, consequentemente, o fim dos dias de tormenta. Greenen ilustra seu ponto de vista no momento em que soube da notícia: As oito e vinte chega aqui o nosso hospede, o barão austríaco de quem falei longamente a dias. De longe elle nos 40

grita: PAZ!!! PAZ!!! E’ incrível! Elle não sabe quem ganhou, não sabem quem se retirou, os revoltosos ou os governistas. A nossa alegria egoísta é tão grande que, por emquanto isto pouco nos preocupa. O que queremos saber é, si o horrível pesadelo acabou, si a nuvem preta se rasgou deixando vêr o céo claro e limpo, si a espada de Damocles que não feriu ninguém de nós, foi afastada de decima das nossas cabeças28. Estou certo de que encontrei outro cidadão na fotografia que se manifesta com semelhante regozijo erguendo seu chapéu, porém este ficou oculto pela marca d’água. De qualquer forma, considero mais que verossímil tais apontamentos, tanto sobre esta fotografia como na conjuntura dos cidadãos no restante do álbum. Mas como já foi dito, o fotógrafo mostra uma cena, mas também esconde outras, o que não quer dizer que essas cenas não mereçam relevância, ainda mais quando nessas cenas preteridas poderia haver a participação da população. Dentre as cento e cinquenta e duas fotografias do álbum, apenas duas fazem menção aos civis vítimas da artilharia intensamente difundida durante os vinte e três dias. Uma fotografia onde um civil ferido é carregado para o interior do Quartel General das Forças Revolucionárias e outra onde retrata, singelamente, uma cruz de madeira fincada na terra, indicando o lugar onde teria sido sepultado um revoltoso morto em combate. Por mais mínimo o registro destas cenas, elas faziam parte da composição do cenário paulista durante a Revolução e as vítimas, em sua maioria, eram civis. Nos depoimentos de Paulo Duarte, constatamos essa afirmação: As anotações da Cruz Vermelha e da Santa Casa salientavam que os feridos e mortos em sua grande maioria os civis, principalmente a população mais carente da cidade, e a porcentagem de militares vitimados na cidade, não atingia cinco por cento [...]29. Greenen é menos otimista quanto aos números de militares feridos durante a Revolução: 28 29

GREENEN, Henrique. op. cit. p. 235. DUARTE, Paulo. Agora nós! Crônicas da Revolução Paulista. São Paulo, 1927, p. 150-155.

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E’ o que acontece desde o começo da revolta e, num dos primeiros dias, o ex-discipulo a que aludi sob o substitulo: “Oculos para cegos vêrem” me disse um dia que no hospital encontrara cento por cento de civis e x porcento de militares! – Aqui o único valor do x podia ser zero! Não ouvi bem quanto por cento de civis, tanto estranhei já o começo do calculo30. A população que optou por permanecer na cidade foi a principal vítima das investidas militares contra os revoltosos. A cidade não mais pertencia a eles, tampouco eles pertenciam àquela guerra civil. Desconexos do evento que permeava as ruas e trincheiras, pressionados pelo medo, mal ocuparam espaço nas fotografias analisadas neste trabalho. Talvez deixassem para os ilustradores essa tarefa mais árdua de captar por onde andava a pobre população que padecera sob fogo cruzado, como fez o ilustrador das Crônicas narradas por Greenen na gravura abaixo. O simbolismo carregado pelo fim que tomou a população pode ser diretamente relacionado às fábricas destruídas. As indústrias que tanta riqueza trouxeram para São Paulo, transformando a cidade no principal polo econômico do Brasil estavam em ruínas, e também aqueles que lhes serviam de força de trabalho, sem restrição para homens, mulheres ou crianças, labutando com jornadas de trabalho de até quatorze horas diárias, sem qualquer direito garantido em decorrência de afastamento por acidentes de trabalho que não eram raros, submetidos a invasivas avaliações para terem lugar nas residências das vilas operárias. Com certeza, os mais atingidos pela Revolução não tinham motivos para se lembrarem dos dias de guerra civil que tiveram que testemunhar.

30

GREENEN, Henrique. op. cit. p. 145

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CONCLUSÃO

Esta monografia surgiu do desejo primitivo de utilizar a fotografia como fonte documental principal para a pesquisa. A primeira dificuldade foi encontrar trabalhos que também se valessem da fotografia para analisar o mesmo período ou outros recortes temporais para que se traçasse um caminho a percorrer ou no mínimo, um direcionamento. O cenário encontrado não foi animador, já que infelizmente a disciplina de História “continua à margem dos esforços realizados no campo das demais ciências humanas e sociais, no que se refere não só a fontes visuais, como à problemática básica da visualidade”31. Felizmente este panorama não foi suficiente para desencorajar este historiador e tampouco prejudicar os esforços necessários para o andamento desta empreitada chamada monografia. Pelo contrário, a pequena quantidade de trabalhos que servissem como referência mostra que há um caminho livre para se percorrer e ousar quando falamos de usar fotografias como fontes principais de pesquisas. Mais do que um leque de possibilidades, um rico material documental praticamente em estado bruto se considerar o álbum trabalhado que, pelo fatídico estado de conservação em que se encontra, nos deu pistas importantes para diagnosticar a conjuntura do corpus documental. Por sorte, podemos contar com referências nesta área como Boris Kossoy e Ilka Stern Cohen que, graças aos seus estudos e de outros autores, alguns percursos puderam ser iluminados e esta monografia foi eficaz em obter conclusões substanciais. Primeiramente, a insistente pesquisa nas fotografias nos mostrou curiosas e reveladoras legendas que, graças à utilização da paleografia, tornou possível identificar, no mínimo, cinco autores diferentes naquele corpus documental. Para o observador perspicaz, as fotografias mostram ligeiras diferenças como dimensão do papel, margem, espessura, se a fotografia foi revelada em papel fosco ou não e uma série de micro detalhes que induzem o pesquisador à premissa de que tais fotografias tivessem origens diferentes. Mas foi graças à paleografia que esta suspeita se confirmou. As semelhanças, diferenças e particularidades das legendas constatam as procedências e autorias distintas que as próprias legendas não revelaram a olho nu. Por mais que o objetivo deste capítulo fosse rastrear as fotografias para o que o mistério do nome dos fotógrafos 31

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares. São Paulo: Revista Brasileira de História v. 23, nº 45, p. 20.

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pudesse ser solucionado, não podemos descartar as conclusões encontradas e muito menos as ferramentas utilizadas, já que agora elas podem servir de exemplo para outros pesquisadores que queiram se aventurar no uso da fotografia como documento histórico e rastrear as fotografias esquecidas em acervos privados e públicos e os seus autores que permanecem anônimos. No segundo capítulo, foi proposto fazer uma reflexão sobre as fotografias no contexto da Revolução, as cenas fotografadas e a intenção dos fotógrafos, visto que o objetivo de usar a fotografia com fonte é para que “se consiga um entendimento maior da sociedade, na sua transformação”32. Em outras palavras: Estudar exclusivamente ou preponderantemente fontes visuais corre sempre o risco de alimentar uma “História Iconográfica”, de fôlego curto e de interesse antes de mais nada documental. Não são pois documentos os objetos da pesquisa, mas instrumentos dela: o objeto é sempre a sociedade33. Esclarecido o papel que o fotógrafo possui como um agente cultural é possível identificar, através dos signos presentes nas fotografias e o simbolismo que carregam, a escolha dos autores em realizarem seus cortes de cena e enquadramento da maneira que fizeram. A destruição maciça da cidade de São Paulo corroeu todos os signos da modernidade, que dominavam o cotidiano paulista e já se encontravam enraizados no subconsciente dos moradores da cidade, inclusive os fotógrafos. O carro, símbolo de status que a elite ostentava e desfilava pelas ruas quase que sem restrições teve seu uso limitado, controlado e sua finalidade alterada. O avião, que ornamentava os céus e entretinha a população com inúmeros recordes paulistas não trouxe boas notícias para os paulistas, sendo usado como arma de guerra e para fins panfletários de alerta aos remanescentes da cidade. As fotografias de fábricas destruídas por bombardeios e incêndios saltam as vistas no corpus documental em questão. Creio que para ilustrar o seu simbolismo e importância na metrópole industrial paulista, os comentários de Greenen são ilustrativos. Quando soube da notícia do incêndio que tomou conta do Cotonifício Crespi, Greenen lamenta este ocorrido, exclamando “que perda

32 33

MENESES, Ulpiano T. op. cit. p. 26. MENESES, Ulpiano T. op. cit. p. 28.

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incalculável! Quanta riqueza acumulada em anos de paz destruída em uma hora”34. Não é difícil fazer um paralelo com a primorosa cidade de São Paulo. Se tomarmos por partida os anos de 1850 como gênese da industrialização paulista, quanta riqueza acumulada em 74 anos de paz destruída em vinte e três dias de guerra civil. Os comentários irônicos dos fotógrafos ridicularizam a eficácia dos bombardeios que atingiam mais civis do que militares, mostrando a posição destes autores que discordavam das cenas que registravam. O papel secundário que a população tem nas fotografias é paralelamente semelhante ao que tiveram na Revolução. Por mais que houvesse adesão de civis à causa Revolucionária e sejam civis os próprios tenentes revoltosos, os que mais sofreram na Revolução foram os moradores rodeados pelas balas, bombas e trincheiras e que, efetivamente, não tinham nada teve a ver com aquela guerra civil que se arrastou por vinte e três dias. Citando Cohen: (...) as imagens denunciam a dimensão de destruição da cidade, percebida sobretudo pela composição da cena. Trata-se de uma guerra civil, evento excepcional que se impõe no palco da vida cotidiana, resultando em um encontro entre a anomalia e a normalidade. Assim, escombros, incêndios e destroços são pano de fundo de uma cena em que não raro emerge a sugestão do cotidiano: ruína e figura humana formam um contraponto, remetendo ao excepcional tornado rotina35. Por fim, nos resta levantar uma questão que deva aparecer para todos os estudiosos deste período como o ponto de interrogação inicial da pesquisa: o porquê do esquecimento desta Revolução. Apesar de o assunto ser frequentemente levantado por estudos acadêmicos, o levante militar paulista de 1924, em toda sua modesta pretensão, foi praticamente apagado da memória oficial. Um breve levantamento bibliográfico aponta para uma predominância em estudar o início do movimento Tenentista dentro de uma conjectura que culminaria com a “Revolução de 1930”, que simboliza o fim à República Velha. O próprio termo “Tenentismo” irá aparecer pela primeira vez na obra O Sentido do Tenentismo, trabalho pioneiro de estudo dos movimentos de levantes militares de autoria de Virgílio Santa Rosa em 1933. Pelo enquadramento dos levantes 34

GREENEN, Henrique. op. cit. p. 189. COHEN, Ilka Stern. Bombas sobre São Paulo: A Revolução de 1924. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 102. 35

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militares tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, num contexto de pré articulação de movimentos de cunho contestador da política oligárquica vigente e pela grandiosa empreitada da Coluna Prestes e da “vitoriosa” Revolução Constitucionalista de 1932, o lugar na memória a que foi reservado a Revolta Paulista de 1924 não é um dos mais notáveis. Um trecho da matéria “Quem conhece a Revolução de 1924?” presente no Jornal da Tarde em 23 de setembro de 1987 nos ilustra esta afirmação: A Revolução de 1924 foi obscurecida na historiografia pela de 1932. Mas foi a de 1924 que teve âmbito nacional, reunindo militares de outros estados, que apenas escolheram São Paulo como ponto de partida para uma ação contra a oligarquia nacional. E foi, portanto, contra a elite paulista. Foi como cutucar a onça com vara curta, e a historiografia a esqueceu, passou por cima de sua importância como movimento (...) Foi a partir de 1924 que se começou a minar a oligarquia nacional36. Carlo Romani compartilha desta opinião, ao dizer que foi dada à Revolução a devida obscuridade “por não ter sido protagonizada pela elite política e econômica [paulista] como aquela de 193237”. Cohen ilumina nossa compreensão ao dizer que não há motivos para se lembrar ou comemorar a Revolução. Em suas palavras: A revolução de 1924 foi um desastre que afetou seus promotores, seus oponentes e, em especial, os habitantes da cidade de São Paulo, que invariavelmente relembram, quando inquiridos

ou

relidos,

a

dimensão

da

tragédia:

vidas

interrompidas, milhares de feridos, privações, mortes, fome e frio38. Corroborando este panorama, a destruição generalizada na cidade não afetava apenas os edifícios, fábricas e todos os outros signos da modernidade apontados no 36

COHEN, Ilka Stern. Vida política paulista nas décadas de 1920 e 1930: as revoluções de 1924 e 1932. IN: ODALIA, Nilo & CALDEIRA, João Ricardo de Castro (orgs.). História do estado de São Paulo: a formação da unidade paulista, 1º ed. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado, 2010, p. 257. 37 ROMANI, Carlos. A revolução dos tenentes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Revista Histórica, n. 13, jan.-mar. 2004, p. 19-26. 38 COHEN, Ilka Stern. op. cit. p. 98.

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segundo capítulo, mas também atacavam o orgulho paulista. A ideia de superioridade paulista, da superioridade política, racial, geográfica e econômica pairava na cidade deste o período colonial e se manteve presente e robustecida na Primeira República. Só que o orgulho de ser paulista era blindado por todos os signos da modernidade que foram avassalados e invertidos pela Revolução. Relembrar ou comemorar a Revolução de 1924 representa um atentado ao ideário que sustenta a superioridade da cidade de São Paulo frente às outras cidades brasileiras. Para finalizar, concluo esta monografia deixando em aberto esta pesquisa para futuras informações que possam somar na compreensão deste tema, não pelo fraquejar de alguma hipótese que possa ter ficado mal esclarecida, mas pela tantas vertentes que o uso da fotografia como fonte principal nos possibilita. Acredito que um conhecimento técnico mais aprimorado poderia ter levado a conclusões mais assertivas quanto à constituição do corpus documental e às autorias e até ao tipo de câmera usado pelos fotógrafos. Mas esta auto-crítica se faz necessária pelo caráter experimental que este trabalho possui. A metodologia e técnicas aplicadas nesta monografia não foram as optadas entre uma série de meios conhecidos, mas sim as descobertas em um tatear no escuro. Dentre as outras maneiras que se poderia ter trabalhado estas fotografias, uma pesquisa mais aplicada nos jornais do período poderia nos revelar algum autor que permanece desconhecido, ou uma investida maior para revelar quem teria colecionado as fotografias e manufaturado o álbum. Um caminho interessante que poderia ter sido percorrido é a presença de algumas destas fotografias em outros acervos, como constatei no fim da pesquisa a presença de três imagens idênticas no acervo do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís. Além destas possibilidades, uma pesquisa sobre a cultura visual que permeia os anos 1920 também seria válida. Em outras palavras, meios para se trabalhar a fotografia na área da História não são escassos. Escassos são os estudos na área da História que trabalham com fotografia. Anseio que este trabalho possa fomentar futuras pesquisas e que esta fonte riquíssima de informação, que é a fotografia, tenha seus dias de penumbra contados nos trabalhos de História.

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