Pedra Negra: a ficção do menos

June 4, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Brazilian Literature
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Pedra Negra: a ficção do menos


Cunha e Silva Filho



A ler Pedra Negra [i] de Halan Silva, a segunda incursão
que ele faz no gênero ficcional, agora, um romance, e no ano passado, um
coletânea de contos de título Cambacica, publicada pela mesma editora, e
que, infelizmente ainda não li, me surpreendi com a rapidez com que as
peripécias da fabulação imprimiram à minha leitura. Tal rapidez tem muito
a ver, suponho, com a arquitetura da obra que lhe deu o autor, ficção
elaborada sem os habituais capítulos numerados ou com outros recursos
paratextuais.
Narrativa curta, meio novela, meio romance, sem, contudo, cair
numa estrutura de contos reunidos sobre o mesmo tema como se fossem
uma novela ou romance. Em Pedra Negra há inegavelmente mais elementos
para classificá-la como novela. O que importa, afinal, é que é uma obra de
ficção.
Quando falo em rapidez do tempo de leitura, subentendo não só
a ideia de extensão das partes ou capítulos, mas também o próprio evolver
da diegese e sua maneira aliciante de narrar, impulsionando o leitor à
curiosidade de continuar o processo de leitura. Isso já é uma qualidade
para qualquer autor.É claro que no dinamismo provavelmente está
embutida uma estratégia intencional do narrador/autor, que buscou
selecionar – e toda ficção pressupõe seleção de temas ou eventos, de
formas, de visões e de ideologia -, sua história num espaço gráfico
nítido, preciso, no qual enunciado e enunciação seguem o mesmo espírito do
contar menos para implicitamente contar mais. Por isso, a chamo de ficção
do menos[ii]
Não sei que instrumentos ou técnicas narrativas foram
empregadas pelo autor, que também é ensaísta e pesquisador e tem um livro
de contos, Cambacica, vindo a lume, em 2011, pela mesma editora e que,
infelizmente, ainda não li. Sou informado, pela segunda orelha do Pedra
Negra, que o Halan Silva estreou como poeta, com o livro 16 poemas.[iii]
Desconheço, assim, se o autor trilhou os mesmos caminhos e os mesmos
recursos ficcionais no mencionado livro de contos, o que seguramente me
daria algum aporte para tirar ilações acerca de seus processos e modos de
narrar comparando-os com os utilizados em Pedra Negra.Só o confronto me
permitiria falar de progresso ou retrocesso ainda que a obra anterior
tenha sido no gênero do conto.
Contudo, pela leitura de Pedra Negra posso adiantar algumas
particularidades favoráveis ao escritor: o domínio pleno do ofício de
conduzir uma narrativa, especialmente a sua maneira de equacionar
história, temas e linguagem literária, além de dominar bem o uso
complexo no domínio da narratividade, que é o tempo. A categoria do tempo
neste romance tem o sopro de modernidade, da ousadia. Posto que utilize
um narrador na terceira pessoa, narrador onisciente, a manipulação do
tempo é habilmente trabalhada por prolepses seguidas de analepses i.e., o
incípit é o explicit[iv] que se completa e se funde no último capítulo.
As ações da história são, pois, regidas pelo tempo retroativamente.
Daí que o primeiro capítulo relata o acontecimento da morte,
sepultamento e velório do Major, um dos principais personagens do
romance, e ao mesmo tempo põe em cena seu protagonista central, o padre
Hermínio, a quem coube celebrar a missa de corpo presente do major num
velório bizarro e carnavalizado, pois o morto se exibia nu no
féretro.Tal tipo de cenário se parece com alguma coisa do humor e do
espírito carnavalizado de passagens da obra de Jorge Amado (1912-
2001).Padre Hemínio é um sacerdote em luta íntima contra a sua ausência de
vocação para o celibato e é um homem sem as mínimas condições de crença e
fé nos valores da Igreja Católica. Ou seja, a força-motriz da obra
reside neste comportamento do padre atingindo os alicerces daquela
instituição: a não obediência aos votos de castidade e, no caso dele, o
desregramento sexual profanando os recintos sagrados do cristianismo,
como o coro da paróquia, uma capelinha de um cemitério, a sacristia.O seu
alvo, a Mocinha, vítima da lascívia do pare que tudo fez para que ela
abortasse o fruto do pecado.
Padre Hermínio, àquela altura, dos acontecimentos, ou seja,
após o sepultamento do Major, já estava dando adeus à vida religiosa,
por não ter-se conduzido como um sacerdote digno. Sobre ela recaía o peso
de ter engravidado uma jovem, ultrajado os recintos da igreja. Só um
gesto corajoso e determinado teve para com a comunidade: confessara
publicamente o seu crime nefando se considerado pelas circunstâncias e
lugar em que ocorreu e pela sua condição de religioso que perdera a fé e
todos os valores prezados pela Igreja católica.


Paralelo a este tema de ordem religiosa, a narrativa põe em
foco a questão do coronelismo, com toda a sequela que o acompanha: modos
de vida sem contestação, obediência cega aos patrões fazendeiros,
tragédias com culpados não identificados, enfim, o império do que já se
denominou mandonismo.
Essa dimensão social e hierarquizada, quer no campo, quer na
cidade do interior, Campo Maior para ser mais claro, é uma das linha de
força da fabulação e mantém pontos comuns com outros romances
brasileiros, especialmente com a ficção dos anos 30. As relações de poder
se mantêm verticalmente como rochas indestrutíveis. Relações do tipo
mercantilista, nas quais os sentimentos se mostram geralmente destituídos
de emoção, dos grande casos de amor entre protagonistas, o que nos faz
recordar traços gerais do São Bernardo (1934) de Graciliano Ramos (1892-
1953).
Logo no início do texto de Halan Silva, o narrador alude a
encontros de senhores influentes do lugar na Zona Planetária,[v] zona de
prostituição local. Nestes encontros, muitas vezes os interlocutores
descambavam para discutir ou resolver questões de negócios envolvendo o
mundo da produção da carnaúba e até de inovações de ordem tecnológica a
serem realizadas para a melhoria da cidade.
A visão que se tem tanto do Major quanto do coronel
Clemente, para ficarmos em dois exemplos, na maior parte tange aos
meios de produção, venda, compra, andamento do engenho, enfim, a
produção principal, a carnaúba. Essas referências situam o romance na
sua dimensão impessoal, objetiva, num ambiente em que o homem é visto
pelo peso do que possui e pela influência política local de que
desfruta. A questão moral, aos valores éticos se subordinam aos agentes
propulsores da dinâmica do capital, assemelhando-se um tanto ao conceito
de reificação ou coisificação utilizado por Luís Costa Lima num antigo
estudo primacial do romance São Bernardo.[vi]
Daí se compreende que em Pedra Negra o amor, a amizade sofrem
um processo de transformação em que no casamento, ou mesmo
amancebamento, o amor se apóia mais nos interesses, quer como forma de
ganho financeiro ou troca de mercadoria, nos chamados casamentos sem
amor, casamento por conveniência, quer .porque a mulher se torna um
objeto meramente sexual. Daí também que grande parte dos homens casados
por vezes têm sua "rapariga" muitas vezes mantida sob a vigilância
cerrada dos senhores de engenho, como no exemplo de Jerusa, a
preferida e protegida pelo Major. O amor romântico, ou platônico, ali
estão ausentes. No entanto, sobram os instintos, o sexo comprado, o
domínio da luxúria, da falência do credo religioso (caso do padre
Hermínio). Enfim, sobram os frutos da produção carnaubeira, dos engenhos,
dos vaqueiros. Não há, pois, no romance lances de alta emoção, seja
sentimental, seja amorosa, seja de uma ação ou atitude altruística.
Estamos em pleno imaginário das frustrações implícitas ou explícitas (caso
também do padre Hermínio), do vazio do prisma humano. Narrativa algo
seca, mesmo nas descrições da paisagem física.
O primeiro capítulo e o último se completam como fecho da
narrativa. A cena toda gira em torno das consequências dos pecados do
padre Hermínio. Era um ser a quem a cidade havia condenado, seria um
desterrado daquele meio acanhado e mecânico. Sua partida é o seu próprio
"enterro" para a comunidade de fiéis. Até os sinos para ele anunciavam-lhe
a "morte" em vida. Estava determinado a sair dali.Auto-julgado e julgado
pela comunidade após suas declarações sacrílegas, padre Hemínio
arrancara do seu espírito a liturgia católica. Suas invectivas contra o
comportamento ético do Major, seu costume bizarro de andar nu em casa e
possivelmente por ser maçom (p.12), verberando-lhe a vida dissoluta, o
apoio dado à Zona Planetária, não passavam de verbosidade oca de um
religioso hipócrita e carreirista. Lembram-se de que, ao saber da
gravidez de Mocinha, e no caso de ela vir a público, veio-lhe ao
espírito logo a ideia de que suas possibilidade de alcançar a mitra
estavam perdidas?
Releva assinalar quanto ao uso do tempo neste romance o fato
de que o desenrolar das ações e dos acontecimentos quebra a sua linearidade
e a narrativa, em toda a sua extensão, se forma de relatos que se
comportam num vaivém bem articulado com a totalidade das partes ou
capítulos. Este expediente narrativo tem uma vantagem: cada relato, cada
personagem vai se compondo psicologicamente no decorrer das páginas
seguintes. A descrição física dos personagens principais, casos de padre
Hermínio, Major, coronel Clemente, Mocinha, entre outros, é praticamente
nula, o que faria com que as designássemos como tipos.
Os aspectos atinentes a descrições de paisagem são comedidos.
Entretanto, contrastivamente, o romance é riquíssimo em citações de
topônimos, nomes personativos, termos da vegetação rural, i.e., seu o
espaço geográfico específico é a cidade de piauiense de Campo Maior.
O tempo da narração no romance [vii] data aproximadamente dos
anos de 1920 à primeira metade dos anos de 1940. O romance, aqui e ali,
sinaliza para índices indicativos do tempo da história, o que lhe daria
leves traços de roman à clef. Além disso, o romance inclui, dentro da
narrativa principal, um encaixe, quando faz o resumo do relato da
conhecida Batalha do Jenipapo que lhe toma quase sete páginas. Da mesma
maneira, não deixa, contudo, de funcionar aqueles índices temporais
como pano de fundo para contextualizar historicamente o espaço e tempo
romanescos, tais como as referências à Quinta Coluna (Coluna Prestes),
a figuras reais da história política brasileira, a nomes de partidos
políticos vigorantes em determina do período do largo espaço de
tempo mencionado.
Não sei se tal inserção de natureza histórica seria essencial
à parte ficcional da história, ao não ser que se tome esse encaixe como
parte de um veio da narrativa contemporânea que atribui grande
importância ao tópico do memorialismo. E, de alguma maneira, pode-se
avocar aqui a circunstância de que este romance opera a dimensão
histórica sem ser um romance histórico no sentido moderno com que se
caracteriza a narrativa histórica. O que me cabe assinalar é o fato de
que, nesta obra,, a parte de maior relevância estética é a ficcional. A
digressão é secundária.
Pedra Negra, conforme as circunstâncias espaçais forjadas pela
narrativa, prioriza certos ambientes que se tornaram populares em Campo
Maior – espaço , segundo já referi, da zona dos prostíbulos que, na
história, está associado à vida do Major, já que ele não somente apoiou
financeiramente a "reconstrução" das casas do entorno, como também
sugeriu como deveria ser a fachada dos "casebres" dos lupanares da Rua
Santo Antônio, os quais para ele teriam que ter inscritos "do lado
esquerdo" da rua "o nome dos planetas" (p.21) e do lado direito, "o nome
das "virtudes". Num contraste verdadeiramente humorístico. Essa ação do
personagem custou-lhe a inimizade do padre Hermínio nas suas homilias e
ofensas, no fundo sob o manto da fantasia" e da hipocrisia.
No tocante à composição dos personagens, o narrador economiza
muito na real caracterização física e mesmo psicológica conforme já
acentuei anteriormente. Curioso é notar que alguns personagens que
partilham do enredo são apenas indicados por um nome só ou pela sua
condição de status sócia: Major, Jerusa, Mocinha, padre Hermínio, coronel
Clementino, vaqueiro, Mira etc. Não há aquela preocupação de nomeá-las
pelo sobrenome. Não haveria nisso alguma influência do ficcionista
Graciliano Ramos, com o exemplo de Vidas secas( 1938)?
No terceiro capítulo (p.25-28) não entendi a referência à velha
alcoviteira que, no discurso narrativo, caiu em estado deplorável, a ponto
de se agarrar ao excesso etílicos. Por que aqui o narrador, primeiro, não
a nomeou como Joró para em seguida identificar quem ela era? Por excesso
de economia da narrativa, é bem provável que o narrador tenha cometido
alguma confusão quando da entrada em cena de um personagem. Ou então
poderia ser por motivos de tom das de cenas, de cortes espácio-temporais
influenciado pela linguagem cinematográfica ou de telenovelas?
Em linhas gerais, o arcabouço romanesco saiu-se bem, numa
narrativa que, embora reduzida, mostra as virtudes de Halan Silva no seu
trabalho de composição ficcional, notadamente se levamos em conta a sua
destreza de usar de forma moderna e criativa recursos narrativos sem cair
no anacronismo de repetidas obras publicadas pondo em foco o ambiente
regional, mesmo de autores consagrados nacionalmente.
Pedra Negra não é obra de estreante inexperiente, mas um
trabalho literário feito com conhecimento, pesquisa e recurso
indispensáveis utilizados por escritores contemporâneos. Por esses e
outros motivos, saímos de sua leitura com a convicção de que o autor
congrega a capacidade de imaginação com a experiência de, pela linguagem
despojada, clara, e domínio perfeito do vocabulário adequado à natureza da
narrativa e também ajustado ao temo da narração como se aspirasse a
realizar uma ampla pesquisa das inúmeras referencialidades da época da
história, assim como fazem no teatro, no cinema, na televisão os inúmeros
profissionais que escolhem os cenários, a indumentária, o mobiliário,
a paisagem, as modas os objetos, os costumes, o folclore, os meios de
transporte, enfim, todo um arsenal cultural sintonizado com o corpus da
narrativa, em tudo obedecendo às exigências do tempo e do espaço
ficcionais.
Ao recorrer a tudo isso, o ficcionista propicia ao leitor
aquela visão possível de imprimir autenticidade e verossimilhança de
representação dramática, de tom enunciativo, de passagens de humor negro,
de cenas mágicas, de assombrações, de práticas incompatíveis de quem
que se entregou à vida religiosa, cujo pior exemplo é o padre Hermínio
invocando a "cobra negra" a fim de colimar suas ações pecaminosas. Da
mesma sorte, diria das situações de flagrantes humorismo em face de
práticas sociais, de meios de vida e de diversidade de encontros e
desencontros do homem na sociedade patriarcal e do homem venal diante de
seus chagas morais.
Fé, credo, respeito aos dogmas católicos não tinha para padre
Hermínio utilidade alguma. De resto, esta é uma linhagem da ficção cujo
modelo de tema do mau uso do celibato vem a ser o romance O crime do
padre Amaro (1875) de Eça de Queirós (1845-1900). Ao responder com esforço
à ultima pergunta de frei Heliodoro, que consistia em saber se ele havia se
arrependido de seus atos, se não "temia os horrores do inferno," (p. 100)
o padre Hermínio, ele apenas deixou escapar esta frase, entre irônica e
dolorosa, proclamada no latinório: "Infra equinoxialem non peccatur". Sim,
não pecaria debaixo do Equador. Sabe-se que no Equinócio, "ponto da órbita
da Terra que registra igual duração do dia e da noite."[viii] Se não havia
igualdade entre os seres humanos ou os seres do mundo, e em muitos
ângulos da vida, de que modo seria ele diferente dos outros? Só fora da
linha do Equador essa possibilidade do pecado talvez pudesse ser
diferente ou acenasse para um horizonte incerto.
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NOTAS


[i] SILVA, Halan. Pedra Negra. Teresina: Editora Nova Aliança, 2012.
[ii] Ao dar este título ao meu estudo, me inspirei no título de um
ensaio conhecido de Antônio Carlos Secchim, um estudo sobre a poesia de
João Cabral de Melo Neto, A poesia do menos. São Paulo: Editora Duas
Cidades, 1985.
[iii] SILVA, Halan. 16 poemas. Teresina: Edições des Livres, 1995.
[iv] Sobre estes conceitos, ver REIS, Carlos. O conhecimento da
literatura. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999, principalmente p.205-212
[v] Convém relembrar que esta área de prostituição já inspirou um
belo poema do escritor piauiense e natural de Campo Maior, Elmar
Carvalho. O poema de título homônimo se encontra no livro desse poeta com
o título Rosa dos Ventos gerais. 2 ed. Teresina: SEGRAJUS, 2002.,p. .163-
172.
[vi] COSTA LIMA, Luiz. A reificação de Paulo Honório. In: -- Por que
literatura. Petrópolis: Vozes, 1969, p. 49-70.
[vii] SCHÜLLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Editora Ática,
1989, p. 58.
[viii] HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 544.
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