Pedro Félix Machado: intertextualizações e biografia

Share Embed


Descrição do Produto

Pedro Félix Machado e a literatura do século XIX

Durante muitos anos, a obra e a figura de Pedro Félix Machado foram caindo no esquecimento, muito poucas vezes interrompido. O Angolense lembrou-o no princípio do século XX, Júlio de Castro Lopo um bocado mais tarde, Carlos Ervedosa refere-o, Mário António estudou-o e, mais recentemente, Nelson Pestana, para além de mim próprio. A isto se resume, tanto quanto saiba, a sua fortuna crítica em Angola. Em boa parte, ficou a dever-se este geral esquecimento à raridade das suas obras. A republicação, pela IN-CM, dos Sorrisos e desalentos e de Cenas d’África – ? – romance íntimo, tornou-se fundamental neste contexto. Os prefácios trazem novas informações sobre a biografia e a cultura literária ou humanística do escritor. As obras, no entanto, falam por si, revelando-nos um talento raro e atualizado, capaz de ombrear com os do seu tempo no espaço lusófono. Como poeta ele terá sido menos prolixo, mas mais rigoroso (por influência também de escolas literárias diferentes) e atualizado que J. D. Cordeiro da Matta; como prosador foi mais prolixo e mais complexo que Alfredo Troni. De um momento para o outro, a sua figura avulta na história literária do país e da época de uma forma que o leitor comum não podia supor há uns anos atrás. De facto, não sabíamos muito sobre este poeta. Carlos Ervedosa, que foi pioneiro da história da literatura angolana com o seu Roteiro, escrevia só que, “segundo consta”, Pedro Félix Machado era o autor do livro Sorrisos e desalentos (Ervedosa, [1979]). Segundo M. Ferreira e G.

Moser, na sua Bibliografia1, o editor teria sido a Gazeta de Portugal (Ferreira, et al., 1980 p. 97). Verifica-se agora que foram os “Editores, Ferin & Cª”, que já tinham publicado a sua ficção (Oliveira, 1997 p. 113; Lopo, 1963 p. 30). A Gazeta de Portugal cedera apenas a tipografia, instalada em Lisboa na Rua da “Atalaya”, nº 42. Como diz Ervedosa, essa Gazeta divulgou, sim, enquanto periódico, os folhetins do que veio a ser o romance (Ervedosa, [1979] p. 33). A Bibliografia daqueles autores é importante porque regista a existência do exemplar da livraria do Congresso, o que sem dúvida constituiu uma pista decisiva, que me levou aos intermináveis índices dessa livraria, existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa, para adquirir as necessárias cópias do livro – antes ainda de descobrir que havia um segundo exemplar na Fac. Letras da Univ. do Porto, resultante de uma doação recente. Júlio de Castro Lopo informou-nos que Pedro Machado foi advogado provisionário durante vários anos em Luanda, e que advogou também em Benguela (pelo menos em 1880), onde, em 1893, exerceu interinamente funções como delegado do Ministério Público. Deve ter havido várias estadas ou estadias do poeta em Benguela (Machado, 2004 p. 9ss), visto que aí data um soneto, ou em 1870, ou em Março de 1880 (Pestana, 2012; Machado, 2000 p. 14). A segunda referência coincide com as informações extraídas a uma crónica cheia de ironia, subtileza e urbanidade que foi publicada no Jornal de Loanda, de Alfredo Troni, em 8-12-1880 (R, 1880 p. 2). As informações aí recolhidas acrescentam novos dados, que já listei no prefácio aos Sorrisos e desalentos e que repito aqui: 1) Satirizando sobre a Philarmonica da polícia local, desafinada e ensurdecedora, diz-se que “o nosso amigo Félix Machado foi dormir para a Catumbella, visto ter consumido durante os ultimos ensaios [da Filarmónica] todo o papel sellado de 60 reis, que tinha o Zé dos Bois”. Isto não só prova a sua presença ali, como também sugere que deve ter sido o nosso autor um prolífico “requerimentista”. 2) A segunda é também escrita com ironia: “Benguella já se vae emancipando da rotina, e isto é uma prova. / E querem mais? Então a graxa do lustro que se vende em toda a parte, os annuncios de livros instructivos como o Almanach de Lembranças, as peças archeologicas ambulantes, como o cavallo de Félix Machado, os projectos de carreira de omnibus para a Catumbella, não são verdadeiras manifestações de progresso?”. 3) A terceira vem da assinatura: “S y R”, ou seja, “Sabino & Romano”, imitando siglas comerciais. O duplo pseudónimo não se deslindava, porque o autor confessava ter medo das reacções de alguns benguelenses. Porém, no periódico benguelense A semana, quando era seu editor e redactor assumido Pedro Machado, há um 1

Bibliografia das literaturas africanas de expressão portuguesa, p. 97.

“Romano”, que assina crónicas ou polémicas com o mesmo pitoresco e a mesma ironia que estas, profusamente ilustradas e onde o desenho de figuras é usado analogicamente, como se fossem hieróglifos, suportando uma informação narrativa que dispensa, naquele momento, a escrita2. É curiosa esta ligação da crónica à imagem visual, inovadora também e recorda-nos o parentesco de Pedro Félix Machado com Julião (Félix) Machado, para além de sugerir que, se não era o próprio redactor que se escondia sob pseudónimo, era alguém muito próximo dele3. Sabino tem, aliás, a mesma inicial que o nome de um seu sócio de escritório em Lisboa a que me vou referir ainda. A sua presença em Benguela, em 1893, é posterior ao regresso de Portugal e Espanha, países por onde passou entre Dezembro de 1890 4 e Abril de 1892. Escrevo isso porque, entre as duas balizas cronológicas, surge a maioria dos poemas datados (e são-no quase todos). É natural que tenha estado antes em Lisboa, pois localiza aí dois outros sonetos: um de Novembro de 1881 e o segundo de Dezembro de 1889 (Machado, 2004 p. 10). Se não houve gralhas nem disfarces, então esteve três vezes em Portugal até 1892 (Machado, 2004 pp. 13-14). Qualquer delas depois da composição das primeiras peças, que já se podem considerar parnasianas — o que demonstra que, ao optarem pelo ultrarromantismo, os seus companheiros de geração não desconheciam as alternativas. Quanto à estadia mais prolongada, é de se notar o dado coincidente de Julião Machado iniciar a sua carreira, segundo Julieta Ferrão, em Lisboa, em 1890, pela co-fundação da Comédia portugueza. De se notar porque a vinda do poeta, nos fins de 1890, coincide com a consolidação da carreira artística do irmão caçule. A fundação da revista, segundo estudo recente, deve-se à herança paterna e, portanto, é de calcular que ambos os irmãos tenham nessa altura desfrutado da herança e que Pedro Félix Machado aproveitasse, não só para acompanhar Julião, mas também para conviver em Lisboa no círculo boémio e artístico dele (o do «Leão d’Ouro», dos Bordalo Pinheiro e de Fialho de Almeida), para firmar escritório de advogado, para viajar por Espanha e, eventualmente, resto da Europa (pelo menos o seu irmão, Julião, terá morado em França entre 1892 e 1894). O regresso de Pedro F. Machado a Angola e a sua presença em Benguela dão-se pouco depois de Abril de 1892, não em 1893, visto que a 20 de Novembro de 92 inicia, na velha cidade crioula, o periódico A Semana. Para além da subscrição das crónicas de “Romano”, há muitas informações interessantes a recolher nessas páginas, no primeiro número reservadas quase unicamente a anúncios, por opção própria. Mais uma vez repito-as do prefácio aos Sorrisos e desalentos: 1) As que se extraem do anúncio, logo no n.º 1 (na última página), da firma de solicitadores de Pedro Machado e Sertorio S. 2

V. o parentesco com o título completo de Scenas de África / ? / romance íntimo. V. A semana, nºs 8 e 10. 4 Na p. 36 há uma data (“Lisboa, novembro, 81”) que deve ser gralha (por 1891). 3

Corte Real, sediada na Travessa da Assumpção, nº 40, 2º, em Lisboa. Este anúncio mostra que, ao vir para Benguela, o autor deixara sociedade constituída na capital portuguesa, mantendo portanto interesses que lhe proporcionavam mais um canal de comunicação (pelo menos de sustentação financeira) com a sociedade lisboeta. O nome de Sertório deve-lhe ter sugerido o pseudónimo jornalístico ‘Romano’. 2) As que se extraem do anúncio de um opúsculo de Eduardo Braga sobre a injustiça da sua prisão. Este anúncio recorda a Minuta do Agravo do Despacho de Pronúncia de Eduardo Braga, assinada e editada pelo próprio P. Félix Machado, que a imprimiu na tipografia de A Semana (no n.º 1 do jornal essa era a tipografia Progresso, de Benguela também). Por este anúncio, é de supor que a Minuta, que não vem datada, saísse a público em 1892 ou 1893. Tal opúsculo, típico da tradição cronística e da polemística angolanas do fim do século passado, mostra ainda mais uma vez a atualização literária do seu autor e a sua excelente oratória. 3) As que se extraem do anúncio, logo no número dois, das Scenas d’Africa / ? / Romance Íntimo e dos Sorrisos e Desalentos, chamando-se a atenção do leitor para a prestigiada casa editora. É a partir deste segundo número que Pedro Machado, que assinara o editorial anterior, aparece como editor e redator. 4) Ainda ao nível das relações literárias, o autor mantinha-se informado sobre a vida artística portuguesa, como era de esperar, dada a carreira de sucesso do irmão e as suas próprias ligações empresariais. Mas não só com a literatura portuguesa: no nº 14, o folhetim é um extrato de O bufarinheiro, de Guy de Maupassant (1850-1893; começa a publicar em 1875). 5) Os vários números demonstram que o escritor se mantinha informado sobre a Alemanha também. No nº 8 do periódico, na última página, há curiosas notícias sobre actividades dos “deputados socialistas alemães” e de uma “associação de socialistas patriotas e anti-semitas” da mesma nacionalidade. Quem estudar as origens do nazismo, encontrará aqui um dos episódios mais recuados da fusão do conceito de proletariado com a ideia de povo alemão e do conceito de burguesia com a de judeu e estrangeiro. Já no n.º 10, noticia-se o falecimento de um antropólogo germânico em Bona (p. 3). Em parte as informações lhe viriam da “distincta escriptora e inspirada / poetisa allemã / M.me Hedovig Wiger Barsh” (houve gralha, trata-se de Hedvig Wigger Barsh), a quem os Sorrisos e desalentos são dedicados, “como homenagem / ao seu bello talento critico”. 6) O autor continuou a escrever folhetins após as Cenas d’África, pois publicou-os, sob a sigla PM, nos nºs 2, 8, 10 e 251. Só 5

Na BNL há só os números 1, 2, 8, 10, 14 e 21. Neste último número (de 24-7-1893) aparece como editor e redactor Paulo Cardozo. O nº 2 indica tratar-se de uma “folha hebdomadária”.

no primeiro número o folhetim vem na segunda página: nos outros faz o fundo da inaugural. O terceiro folhetim passa-se no Dombe Grande e o seu narrador é autobiográfico (talvez também o seja no segundo), tratando-se de uma estória muito próxima do que hoje classificamos como fantástico. Os nomes destes folhetins são: «Livre» (nº 2), «Em Flagrante» (nº 8), «Ossos do Ofício» (nº 10) e «Realismos» (nº 21). A sequência de folhetins publicados pode ter contribuído para que mais tarde Augusto Bastos (com cerca de 20 anos nesta altura) se interessasse por essa espécie, folhetinesca, praticando-a várias vezes até chegar ao “romance policial” do repórter Zimbro. Na p. 2 anuncia-se que abrirá, “logo que haja o número sufficiente de alumnos”, uma “aula nocturna” com “as seguintes disciplinas”: Francês, Inglês, Caligrafia e Taquigrafia, Esgrima (florete) e “Lições Praticas” de Direito Cambial e Jurisprudência. Provavelmente era o próprio redactor quem leccionava as matérias, razão pela qual afirmei que o poeta foi professor também na cidade de Benguela. Hoje, podemos acrescentar alguns dados mais. Pedro Félix Machado nasceu em Luanda cerca de 1860 (Pestana, 2012 p. 8). Dos seus progenitores, o pai português oriundo do Recife e a mãe luandense, falarei em outro lugar. Segundo Nelson Pestana, ele terá estudado em Portugal na década de 70 do século XIX. Ao contrário do irmão (Julião Machado), não terá vivido no Brasil (Pestana, 2012 p. 9) – ou, pelo menos, não terá conhecido Olinda, cidade na qual imaginou uma Faculdade de Medicina muitos anos antes de ela ter sido criada ali, melhor dito, no Recife (a criação da Faculdade de Medicina de Olinda foi aprovada em …2013, a do Recife em 1915). Uma vez que lá imaginou a Faculdade no seu romance, tratando-se de uma obra de arte isso não implica, necessariamente, ignorância, desconhecimento, mas deixa-nos a desconfiar de que podia não conhecer realmente a realidade daquela zona, de que apenas terá ouvido o pai falar. Foi professor em Luanda, na Escola principal e, gratuitamente, na ilha de Luanda, em sua casa (Pestana, 2012 pp. 9, 12), bem como em Benguela, a julgar por um anúncio de A semana que já referi. O Governador Ferreira do Amaral nomeou-o, a 28-7-1884, “vogal do conselho inspector de instrução pública” (Pestana, 2012 p. 11). No seio do grupo que publicava no Jornal de Loanda (praticamente os escritores todos daquele pequeno burgo) a figura de Pedro Félix Machado, quase da mesma idade de Cordeiro da Matta, constitui uma extraordinária exceção. E se, no que diz respeito à narrativa, ombreou com o mentor Alfredo Troni, no que diz respeito à lírica manteve-se único até hoje. O seu campo de leituras foi mais diversificado que o da maioria dos seus colegas, incluindo eventualmente Alfredo Troni, que também foi um grande leitor. Pela Minuta do Agravo do Despacho de Pronúncia de Eduardo Braga, percebemos que leu as estórias fantásticas de Edgar Allan Poe, sendo o único a mencioná-las na sua geração. Não somente,

aliás, as menciona como também compõe uma estória que se aproxima do género (fantástico) e publica-a em A semana de Benguela. Cenas d’África, que li por parcelas na BNL, foi já tratada competentemente por Nelson Pestana e tinha sido antes abordada, parcialmente, por M. António. As leituras de Eça de Queirós (1845-1900) tornam-se evidentes na sua narrativa, que as terá partilhado com Troni. O livro Sorrisos e desalentos ajuda-nos a completar o seu quadro de leituras. A obra é sintomática, entre outros motivos, porque esclarece com precisão relações literárias de que não havia conhecimento seguro até hoje, para além de meras coincidências anotadas em estudo anterior (Soares, 2012); além disso, o livro obriga-nos a rever o quadro e as datas do advento de uma lírica não-romântica no país. A sua atualidade confirma-se por um erotismo palpável, que se tateia na sugestão visual de corpos, excitando os sentidos, em particular o da visão. Isso, na época, era característico do parnasianismo (não falo só de sensualidade no sentido hoje comum, também no sentido pleno da palavra, relativo ao que vem pelos sentidos. Vários versos também dão visibilidade a relações e aspetos sociais locais, a partir das quais ridiculariza vários tipos de pessoas (Machado, 2000 p. 8), ironiza sobre a política (Machado, 2000 pp. 16, 33), certas práticas religiosas (Machado, 2000 p. 18), as dos usurários6, a da “nephelebatofobia”7 (Machado, 2000 p. 13), etc.. Acompanha essa atualidade uma pena de cronista notável (Machado, 2004 p. 12), o mesmo que reportava a vida social de Benguela para o Jornal de Luanda em Dezembro de 1880 e seguramente o mesmo que escreve também as Cenas d’África. A vivacidade da obra vibra no seu vocabulário, que é variado, por vezes elegante e atento aos novos termos, outras coloquial, como convém à linguagem de um cronista e de uma pessoa convivente, conversável, advogado e comerciante para mais. Recordo alguns versos, ilustrativos também da sua ironia: “Mauricio do high-life”, “roer a corda n’um contrato” (Machado, 2000 p. 7), “Um dia Satanaz arma-lhe a rede, / E arranja no menage [...]” (Machado, 2000 p. 9), “e tem massa encefálica tão fraca / Que nem caldo daria, suculento: / —Diverso é o pé-de-boi, da mão de vaca!...” (Machado, 2000 p. 8), “meteu dedos á bocca, n’um cantinho, / A vêr se punha a máquina mais sã” (Machado, 2000 p. 12), “Tal como da platina a breve trama / Se abrasa na corrente que transmite, / Minha alma s’encandesce, e a dinamite / Do cérebro em delírio, me inflama!” (Machado, 2000 p. 20), “Pois falta-lhe o pendant... perde o valor!” (Machado, 2000 p. 21), “E o homem tenta, os sofrimentos seus / Vencer, adormecendo a consciência, / Buscando os anestésicos nos Céus” (Machado, 2000 p. 34). 6

O autor era ateu, mas de um ateísmo paradoxalmente místico, semelhante ao de Antero de Quental na poesia portuguesa (cf. sonetos das pp. 34 e 37 da ed. original). 7 O motivo estava muito em voga entre os ultrarromânticos angolenses, mas já era ironizado muitas vezes.

Esta linguagem reúne traços típicos da mais saborosa crónica polémica da época em Angola, que refletia acutilante os tiques sociais da urbanidade angolense junto com a de outras pelo poeta visitadas. Há sinais localizadores que remetem para crenças, por exemplo, ou mesmo para uma sintaxe diferenciada e a composição dos tipos, por seu turno, recorre a traços universais. Remetem para crenças quando nos falam, por exemplo, no medo que tem a moça de lhe dar um retrato, com “receio que ele me enfeitice” (Machado, 2000 p. 50). Seguindo a crença, a reprodução da imagem da pessoa leva consigo a pessoa e, por esse motivo, através de um retrato se pode jogar feitiço sobre a pessoa. Quer seja partilhada com outros povos ou não, temos aqui uma suposição local. Outro exemplo nos mostra como, apesar do rigor com que escrevia, até a sintaxe podia alertar-nos para uma diferença local, embora com raridade. Em «Retrato à pena», de que falo adiante outra vez, ele vê que “a boca faz sonhar no Paraíso...”. Se lermos o poema, não é “no Paraíso”, mas na terra, que a boca faz sonhar. O verso, no contexto, parece pedir outra leitura: “a boca faz sonhar com o Paraíso”, ou “faz pensar no Paraíso”. Se agora nos lembrarmos da sintaxe do pombeiro Pedro João Baptista, ou do cabíri João Vêncio, percebemos que se trata aqui do português de Angola, praticado em vários quotidianos do que veio a ser Angola mais tarde. A inserção de Pedro Félix Machado no mundo literário corresponde a estes traços estilísticos de forma geral, ora locais ora, sobretudo, cosmopolitas. Para a considerarmos ainda mais em pormenor, o melhor é partirmos do levantamento das suas relações nesse campo. Elas tinham sido já consideradas por Mário António, que refere o Realismo e o Naturalismo, quer por convívio com Alfredo Troni, quer diretamente, uma vez que o seu atraso em relação “aos centros de produção de que se dependia” era inexistente ou quase (Oliveira, 1997 pp. 112-113, 117). Nelson Pestana confirma isso mesmo. No que diz respeito ao convívio com Troni, quando reporta o poeta e romancista na “tertúlia literária que gravita em torno do Jornal de Loanda”, dirigido por Alfredo Troni (Machado, 2004 p. 9), jornal onde colabora. No que diz respeito à sua atualização literária, o prefácio de Bonavena em grande parte a comprova. E logo explicitamente quando sublinha que, nos seus artigos, o autor se mostrava “um homem informado sobre o mundo em transformação que já era o seu e procura respigar para o meio africano as grandes polémicas da época” (Machado, 2004 pp. 9, 17ss) – o que pude comprovar ainda nas páginas de A semana e, claro, nos Sorrisos e desalentos. Esse é o retrato geral da posição intermédia que viveu Pedro Félix Machado. O “quase inexistente” a que se refere Mário António não é de todo injusto, é impreciso. A retórica do ensaísta vinha “colocar em relevo o talento do poeta”, como percebe Nelson Pestana (Machado, 2004 p. 17). Concordo com o prefaciador em que Pedro F. Machado está ao nível do que melhor se fazia na altura “na sua escola literária” (Machado, 2004 p. 17). Se nos lembrarmos de outras escolas e experiências do século XIX,

tornadas muito mais significativas depois do Modernismo, é claro que se justifica o “quase”. Só que não relativo a um “atraso”, mas à diversidade disponível. Pedro Machado mostra ser informado e participa da criação da própria escola no que diz respeito à lusofonia. Não revela aí leituras artisticamente mais revolucionárias, apreciadas posteriormente pelos modernismos – a do simbolismo, por exemplo. E a referência a elas, aliás, vem tarde para Angola. De maneira que o “quase” de Mário António pode aplicar-se à incompletude, inevitável, da tradução para o meio das notícias globais. Não é um quase no atraso mas no alcance, na extensão. A leitura dos Sorrisos e desalentos completa as considerações anteriores, na medida em que nos permite estabelecer pontes com uma escola coetânea da realista, a dos parnasianos, e muito em particular a de Olavo Bilac e de João Penha. Uma breve leitura da biografia do irmão do poeta confirma-nos essas ligações. Socorro-me, para a fazer, das resumidas biografias que lhe dedicaram Júlio de Castro Lopo e Julieta Ferrão. As informações biográficas citadas por Mário António (Oliveira, 1997 p. 112) são as que Júlio de Castro Lopo forneceu, como o próprio Mário António indica nas notas bibliográficas. Havia poucas informações aproveitadas: a leitura do ensaísta de Luanda, «ilha» crioula incidiu mais sobre o texto, percebido nas suas relações com as problemáticas da época, do que sobre a personagem pública do autor. Não era um ensaio biográfico, nem tinha de ser. Não dá por isso atenção ao parentesco de Pedro Félix Machado com Julião (Félix) Machado (Machado, 2000 p. 17), laço decisivo para compreendermos a formação literária do sonetista angolano. Julião Machado, como ficou para a História o seu nome, foi humorista considerado, ilustrador famoso, co-fundador (com Marcelino Mesquita) da Comédia Portuguesa, colaborador em muitas revistas e jornais portugueses e brasileiros (neste país se destaca a sua colaboração no Jornal do Brasil). Foi também autor de várias peças de teatro: Primo Álvaro, Influência atávica (representada em italiano e português), O Suicídio de Juventino e Modêlo (1918). Castro Lopo, em obra citada por Mário António (Lopo, 1963) e Carlos Ervedosa (Ervedosa, [1979] p. 30), chama a atenção para o facto de Pedro Félix Machado ser irmão do famoso caricaturista. Ele havia igualmente nascido em Luanda, calculava-se que no ano de 1862. A data deve-se corrigir para 19-6-1863, de acordo com tese de doutoramento recente, apresentada na PUC do Rio de Janeiro por Letícia Pedruzzi Fonseca. Faleceu em Lisboa em Setembro de 1930 (Ferrão, 1930). Dedica-lhe o irmão poeta «Um soneto» dos Sorrisos e desalentos (Machado, 2000 p. 44). O soneto foi escrito em Lisboa em Novembro de 1891, sob sugestão do caricaturista para que se escrevesse começando por chave de prata e fechando com chave de ouro. Um exercício bizantino mas que, tomado pelo sentido humorístico, se aliviou de malabarices bacocas.

O humorismo que o caracterizava era um traço de personalidade comum aos dois irmãos, pois os sonetos de Pedro Félix Machado estão cheios de caricaturas e de ironias, bem como as suas crónicas, quer para A semana, quer para o Jornal de Loanda. Julião Machado foi amigo e protegido de Rafael Bordalo Pinheiro, “sob cujas asas [...] se iniciára na publicidade” e que lhe desenhou o retrato no seu jornal. Estas informações as trago do artigo citado de Julieta Ferrão, que remete, quanto à “iniciação”, para o periódico Pontos nos ii (ano 6, Lisboa, 1890). Coincidência, Pedro Félix Machado fala, em A semana (nº 10, p. 3), de Rafael Bordalo Pinheiro como “o nosso grande artista”. Julião Machado foi conviva de Columbano e estudou com José Malhoa, pintor que ficou famoso pelo quadro «O Fado». Outra ligação importante o levou a ilustrar O país das uvas (1895), de Fialho de Almeida (que fez estudos colegiais em Lisboa de 1866 a 1872), igualmente companheiro de tertúlia e de Realismo. O nome, não sendo necessário à compreensão do conhecimento poético do autor dos Sorrisos e desalentos, não deixará de indiciar afinidades na comunidade literária portuguesa da época. Segundo Nelson Pestana, essas afinidades, em termos de narrativa literária, são com o Realismo e o Naturalismo (Machado, 2004 p. 15ss). Pelo que vimos, do círculo boémio e artístico do irmão, quanto ao Realismo não pode haver lugar a dúvidas e também sabemos que o Naturalismo teve a sua defesa a circular por Angola nesse tempo. É sintomático ter alcançado Fialho de Almeida grande sucesso com Os gatos, panfleto mensal (e logo semanal) que inicia a convite do editor de As farpas de Ramalho Ortigão, em 1889, publicando-os até 1894 e reunindo depois tudo em 6 volumes. Note-se a coincidência do período de publicação com A semana de Pedro Félix Machado, igualmente bem carregada de farpas, e com a maioria da produção literária do autor. Isto nos mostra, mais uma vez, a atualidade do nosso poeta no cenário lusógrafo da época. Julião Machado viveu no Rio de Janeiro, tendo colaborado durante 25 anos com a imprensa carioca, onde se tornou tão conhecido e respeitado quanto em Lisboa. Tese recente apresentada à PUC do Rio de Janeiro, atribui-lhe uma participação decisiva na mudança do padrão gráfico das revistas ilustradas brasileiras. Tendo-o conhecido na sua estadia carioca, o escritor e jornalista luso-brasileiro João Luso retrata-o passando dias inteiros deitado, fumando e a ler até que muito tarde se punha a desenhar furiosamente. O que interessa para o caso agora é o que leria ele, uma vez que daria notícia de, pelo menos, algumas leituras ao irmão, podendo mesmo enviar-lhe alguns livros. Segundo João Luso, passava horas a reler “páginas dos Goncourt, de Flaubert, de Eça de Queiroz ou de Machado de Assis”. Trata-se de cânones literários essencialmente ligados ao Realismo, ou entre Romantismo e Realismo, que foram publicando ao longo da segunda metade do século XIX. Sem dúvida que a ficção de

Pedro Félix Machado está próxima deles – com a já assinalada fuga tímida para o fantástico na estória do Dombe Grande. Quando Julião Machado pensou retirar-se do Rio definitivamente, compareceram muitos intelectuais, jornalistas e escritores brasileiros ao almoço de homenagem e despedida que lhe foi dedicado no «Club dos Diários». Entre muitos outros nomes, encontrava-se lá um poeta que se torna significativo para nos esclarecer sobre as relações literárias do irmão de Pedro Félix Machado: Olavo Bilac, o grande parnasiano brasileiro, autor de alguns dos mais belos sonetos da língua portuguesa, senhor de uma lírica sensual e bem humorada como a de Pedro Félix Machado, e que tinha nascido três anos depois do caricaturista angolano seu irmão. Julião Machado emparceirou com Olavo Bilac na imprensa carioca, nomeadamente produzindo, segundo Letícia Pedruzzi Fonseca, dois periódicos famosos: A cigarra, criada em 9-5-1895 (ou seja, no ano a seguir ao da sua chegada ao Rio) e publicada até 16-1-1896; A bruxa, que saiu de 7-2-1896 a 30-6-1897. Esta ligação brasileira marca a obra do irmão também, como facilmente se verá lendo-a. Félix Machado partilha com Bilac “a correcção e o casticismo da língua”, elevadas à condição de “virtudes básicas” na composição das peças e garantes da mais importante função social do poeta, “a guarnição das fronteiras da nossa literatura, que é toda a nossa civilização” (Franchetti, 2007 p. 34). Pedro Félix Machado acrescenta-lhe o uso de termos vincadamente modernos, em convívio natural (até parece espontâneo) com o restante léxico. Partilham também os dois poetas o rigor no ritmo, a clareza do escrito em definido contraste com as sombras românticas, os oiros simbolistas, ou o preciosismo esporádico de alguns intelectualistas. A maioria dos Sorrisos e desalentos não atinge, no entanto, a profundidade que, em princípio, todo o poeta almeja. Fica-se principalmente pelo retrato satírico de personagens da época – penso que todas de Luanda e Benguela – descrevendo-as envolvidas por uma estória grotesca, ou pelo menos cómica. Talvez isso não lhe venha de Bilac, nem mesmo de João Penha, de quem falarei ainda. Há uma poesia parecida nesse aspeto, que é a de um brasileiro (mestiço, caso vos interesse), nascido pobre e no meio rural, hoje desconhecido mas no seu tempo muito popular. Trata-se de Bernardino Lopes (1859-1916), “ou B. Lopes, como assinava os livros”. Ele publicou em 1886 um volume chamado Pizzicatos, em que fazia praticamente o mesmo com relação à “vida elegante da nobreza e da alta burguesia” (Franchetti, 2007 p. 37). Antes, tinha-se tornado famoso com Cromos, que saiu em 1881, contendo 48 poemas e depois foi reeditado em 1896 com “o dobro dos poemas, divididos em duas seções: uma com o mesmo nome do volume e outra intitulada «Figuras», que são retratos femininos” (Franchetti, 2007 p. 37). Não tenho como saber se o nosso poeta leu B. Lopes, mas este me parece um paralelo interessante a explorar em futuras investigações. As semelhanças entre as duas obras são muitas, de facto são obras gémeas,

cada uma de um dos lados do Atlântico-sul. As diferenças, para além de alguns aspetos formais, prendem-se mais com a diferença entre as pequenas sociedades das urbes coloniais angolanas e aquela do Rio de Janeiro já em finais do século XIX. Em Angola não havia Viscondessas, Ministros, etc., como B. Lopes podia encontrar no Rio. Também Pedro Félix Machado não se centra tanto em relações ilícitas de mulheres casadas, embora várias vezes aborde o motivo e o tema. Bernardino Lopes conta estórias em que ele é o protagonista-galã, que tem os casos com as senhoras bem colocadas na alta sociedade carioca. Pedro Félix Machado privilegia a terceira pessoa, numa focalização de quem assistiu ao episódio não fazendo parte dele. Mas a linguagem usada, o tipo de retrato e de humor com que se retrata, as pinceladas rápidas e certeiras das descrições são partilhadas. E isso é estruturante. As relações parnasianas do poeta, nem que fosse apenas por via da leitura, estendiam-se também a João Penha, o parnasiano português que mais afinidades apresenta com os irónicos sonetos de Pedro Félix Machado. Como veremos adiante, as opções estróficas dos dois apresentam uma coincidência quase absoluta. Vindo à luz pública dez anos após a saída em Lisboa da segunda edição das Rimas e contendo uma clara maioria de poemas escritos em Portugal, era natural que Sorrisos e desalentos fosse marcado por aquela obra. Há de facto notórias semelhanças técnicas entre os dois livros: o predomínio reverencial do soneto (comum a Bilac), o respeito vigiado pela uniformização ao nível das distribuições estróficas e rimáticas (ainda comum a Bilac), traços aliás parnasianos. No que diz respeito à distribuição das rimas, a esmagadora maioria das composições do angolano (com um “quase” de apenas 3 peças) é igual à que João Penha usa no seu livro (ABBA / CDCDCD). Ao nível da motivação e das temáticas, a lírica de Pedro Félix Machado anda igualmente perto da de João Penha. Ambas recorriam à ironia e à sátira (no sentido contemporâneo desta palavra), praticadas pelos ultrarromânticos locais, quer em crónicas, quer em polémicas, quer em poemas. Ambas aparecem também numa obra que deve ter sido lida pela sua geração em Luanda, Paquita, de Bulhão Pato (colaborador, como Félix Machado, da Gazeta de Portugal). Ligando o legado anterior ao Parnasianismo, o lírico atualizava a literatura angolana do seu tempo. A atualização explica por que não são muitas as afinidades entre esta obra e a lírica publicada em Angola, ou a partir de Angola, na época – ultrarromântica, lamurienta, mas camiliana, mordaz e feroz na crítica, na sátira, na resposta. Se tomarmos como exemplo a lírica escrita em Angola e publicada no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, no século XIX, os sonetos aparecem exclusivamente a partir de 1882 (data da republicação do livro de João Penha). Segundo Nelson Pestana, o primeiro soneto escrito por Cordeiro da Matta terá sido composto em 1877. Em Portugal, a escola ultrarromântica, na qual se filiaram Cordeiro da Matta e Eduardo Neves, tinha visto suceder isso com Faustino Xavier de Novaes, poeta que marcou Eduardo Neves; daí virá talvez o culto do

soneto por alguns membros da geração de 1878, que não foi prolífico, exceptuando-se precisamente o caso de Eduardo Neves. Ora Faustino Xavier de Novaes escrevia sonetos satíricos, irónicos, caricaturais, e os de Eduardo Neves eram carregados de alegria e de ironia. O soneto publicado no Almanach por Cordeiro da Matta é satírico também (intitula-se «Messalina»). Os de mais típica motivação romântica publicados nesse periódico da família Castilho, afetadamente exaltados, tecnicamente frouxos e de psicologia triste, pobre, previsível, eram escritos por pessoas menos inseridas nas comunidades locais, pelo que dá para ver das suas biografias e dos poucos escritos que nos deixaram. Não são comparáveis aos sonetos de Pedro Félix Machado, exceto por essa componente caricatural. Confirma-nos isso o facto de a distribuição rimática dominante nas composições do Almanach de Lembranças não coincidir com a que o é em Pedro Félix Machado (Soares, 2012 pp. 9091), como disse próxima de João Penha. Ainda por cima, nenhuma das três ocorrências dessa distribuição no Almanach é importante para descrevermos o corpus poético onde as inserimos. É certo que o autor nos informa ter escrito determinado soneto em 1870, pelo que teria optado por tal esquema estrófico desde muito cedo. Mas a publicação do referido soneto, sob pseudónimo, n’O imparcial, “que em 1887 para 88 se publicava em Loanda”, deu lugar a “que se me imputasse uma allusão que não estava no meu animo fazer”8. Pelo que a indicação de 1870 podia apenas ter servido para despistar suspeitas, ou foi mesmo gralh. Note-se que, apesar da nota, o poema vem datado de “Benguella, março, 80”, a pp. 15 da edição original. Tirando esta, a data mais antiga nos sonetos é a de 1878, que é a de início da fase sistemática de publicação de poemas líricos e diferenciados em Angola. Já não é muito distante em relação a 1882, mas é de qualquer modo anterior à dos outros membros da geração de 1878, ou de 1880. Quer isso dizer que, com o advento da geração do Jornal de Loanda, em 1878, já Pedro Félix Machado tinha definido as escolhas técnicas que levariam aos Sorrisos e desalentos. Na composição de 1878, provavelmente a mais antiga do livro, há o tom irónico ou satírico dominante nos outros textos seus, e a distribuição rimática é igual à de João Penha. Ora, no corpus estudado anteriormente, os primeiros sonetos publicam-se em 1882, e o primeiro significativo em relação à prática lírica dos angolenses sai em 1884. Não virá, portanto, da comunidade literária local a sua preferência, tendo sido provavelmente marcada antes por João Penha e pelo parnasianismo em geral, então emergente no espaço lusógrafo. Pode-se aliás dizer que, de Luanda e Benguela, Pedro Félix Machado contribuía também para o aparecimento dessa corrente literária. Não se limitou a importá-la, participou da sua criação na língua portuguesa.

8

Segundo a nota que o poeta faz ao referido soneto.

A primeira estrofe do soneto «Efeitos de Calor», escrito em Madrid em Agosto de 1891, reúne as principais características deste parnasianismo angolano. Cito-a: Eu sinto devorar-me íntima chama; Não tenho fibra em mim que não palpite; Nem célula que a chama não excite, E sofro como sofre quem muito ama. (Machado, 2000 p. 47)

Qualquer ultrarromântico de 1878 escreveria o primeiro verso, por exemplo Cordeiro da Matta. É bocagiano também esse ultrarromantismo, como se pode ler na «Epístola I: Olinda e Alzira»: […]e viva chama no íntimo, Das entranhas ardente me devora

Recorde o leitor que Bocage constituía, precisamente, uma das grandes referências de Olavo Bilac e de Guimarães Passos, logo, do parnasianismo brasileiro. Quanto aos restantes versos, os melhores de entre os nossos ultrarromânticos escreveriam talvez o quarto. Mas a chama de Pedro Félix Machado faz palpitar as “fibras” do seu corpo, excita as “células” do seu corpo. É física e socorre-se de termos técnicos, num procedimento que veio a tornar-se parte fundamental da arte poética de Augusto dos Anjos. A estrofe seguinte é quase o relato de uma alucinação tecnológica: Tal como da platina a breve trama Se abrasa na corrente que transmite, Minha alma s’encandesce, e a dinamite Do cérebro em delírio, me inflama!

Essa transfiguração da linguagem poética é o seu maior contributo para a literatura angolana. A um outro nível de leitura, o das interpretações e valorações feitas sobre a lírica do século passado em Angola, um verso nos ajuda a compreender melhor uma passagem de Maia Ferreira. No poema em que elogia a sua terra, o poeta das Espontaneidades fala em “donzelas de planta mui breve”. Isso deu azo a que alguns críticos despromovessem a passagem, acusando o seu autor de nada mais ter para notar além da pequenez dos pés. A “planta mui breve” descreve, no entanto, um aspeto, o da leveza, que é um tópico do paradigma feminino da época e desde os tempos do Império romano (pelo menos). Vamos encontrar esse mesmo tópico no «Retrato á Penna» (Machado, 2000 p. 19), feito na cidade de Toledo, em Agosto de 1891. O poema é um feixe denso de relações intertextuais, estabelecidas em particular (e na sequência de vários

outros) com o soneto de amor camoniano, e diz a dado momento: “Os pés em que é milagre se sustente”. A ideia de leveza da “planta mui breve” de Maia Ferreira foi reescrita assim — com mais requinte artístico, de resto. Ainda a esse nível, é interessante ver como trata Félix Machado outro tópico ligado na época à beleza feminina. A alvura dos dentes, imagem recorrente nos poemas do século XIX, em que escritores portugueses e brasileiros retratam elogiosamente a mulher negra, também não surge, como em dado momento se pensou, por não verem esses poetas nada mais interessante nelas. A alvura dos dentes era uma parte do mesmo paradigma feminino, que tanto se aplicava à mulher negra quanto à que Pedro Félix Machado vislumbrou em Toledo nesse mês quente de 1891. A menos que (hipótese igualmente estimulante) o escritor visse numa morena espanhola os atributos que brasileiros e portugueses viam só na mulher negra — a menos, portanto, que ele a visse com olhos africanos. E daí que repare no “lábio quente”, na “pétala vermelha” da boca, nos “relâmpagos” do “seu olhar”… A figura de Pedro Félix Machado e a sua obra não se esgotam nestas linhas. Elas suscitarão muito mais desenvolvimentos e é para isso que existem. As que deixo aqui são somente um pequeno contributo para a espiral da quinda, ou da cesta.

Obras Citadas Ervedosa, Carlos. [1979]. Roteiro da literatura angolana. 2.ª rev., act. pelo autor. Luanda : UEA, [1979]. - data da impressão. Ferrão, Julieta. 1930. In memoriam: Julião Machado. Portucale : revista ilustrada de cultura literária, scientífica e artística. Set-Out de 1930, Vols. III, n.º 17. Ferreira, Manuel e Moser, Gerald. 1980. Bibliografia das literaturas africanas de língua portuguesa. Lisboa : IN-CM, 1980. Franchetti, Paulo. 2007. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. SP : Ateliê, 2007. Lopo, Júlio de Castro. 1963. Recordações da capital de Angola de outros tempos. Luanda : CITA, 1963. pp. 30-39. Machado, Pedro Félix. 2004. Scenas d'Africa - ? - romance íntimo. 2.ª. Lisboa : IN-CM, 2004. - Escritores dos países de língua portuguesa, 34. —. 2000. Sorrisos e desalentos. Lisboa : IN-CM, 2000. Oliveira, Mário António Fernandes de. 1997. A formação da literatura angolana (1851-1950). Lisboa : IN-CM, 1997.

Pestana, Nelson. 2012. Pedro Félix Machado. Luanda : CEICUCAN, 2012. R, S &. 1880. Chronica - Benguella. Jornal de Loanda. 8 de 12 de 1880, p. 2. - n. 85, ano II. Soares, Francisco. 2012. Kicôla: estudos sobre a literatura angolana do século XIX. Luanda : Mayamba, 2012. Vol. I.

Francisco Soares Jardins do Éden, Camama, Luanda, 5-7-2016

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.