Pedro Henrique Labaig - \"Estado e saúde\": sobre a politização da medicina

June 13, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Totalitarismo, Nosopolítica, Políticas médicas, Politização da vida
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“Estado e saúde”:

sobre a politização da medicina

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Resumo: o artigo, baseado essencialmente na leitura das obras de Michel Foucault e Giorgio Agamben, trata do surgimento das “políticas médicas” como evidência de uma virada crucial da política no Ocidente, a saber, a politização da vida biológica. O dado biológico que, na Antiguidade era separado da vida política, torna-se no período moderno o núcleo em torno do qual se erguem os novos paradigmas políticos. A invenção da sociedade de massas, a politização e a socialização – ao invés de uma elitização ou individualização – da medicina representam uma resposta a uma demanda político-econômica exclusivamente moderna. O trabalho visa vincular esta politização da vida natural à politização da medicina no século XVIII, e apresentar os regimes totalitários aparecidos no século XX como fruto e possibilidade mais radical desta biopolítica. Palavras-chave: nosopolítica; políticas médicas; politização da vida; totalitarismo.

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Pedro Henrique Labaig é bacharelando em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás

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Uma manchete do tipo “gripe suína derruba bolsas mundo afora”, como tantas outras que povoaram os jornais em 2009, traz implícito um pressuposto que merece ser examinado com atenção. Afinal, que economia é essa cuja relação direta com a saúde da população parece tão óbvia, dada, mas que é ao mesmo tempo obscura e procura esconder-se em meio a humanitarismos? A “síntese lógica da biologia e da economia” (Verschuer, 1942, p.48, apud Agamben, 2002, p. 152) tão cobiçada pelas políticas nacional-socialistas da primeira metade do século XX parece finalmente ter se tornado realidade, de tal modo que a própria existência de uma Organização Mundial da Saúde só é compreensível, de fato, no contexto de uma economia mundial globalizada. O “surgimento da saúde e do bem-estar físico da população em geral como um dos objetivos essenciais do poder político” (Foucault, 1979, p. 196) pode ser claramente visualizado, segundo Michel Foucault, no século XVIII, com a criação da “polícia” do corpo social. As funções desta polícia no Antigo Regime não são somente aquelas que, comumente, se entende por polícia, isto é, a vigilância e o combate à criminalidade, mas também a garantia do respeito às regras de mercado e de higiene. Na história dos governos, desde a queda do Império Romano, as funções atribuídas principalmente ao poder soberano se acumularam e desenvolveram basicamente da seguinte forma: a questão central de um governo, na Idade Média, era a da ordem política ou a da manutenção da paz e do empreendimento da guerra quando necessária. Aproximadamente entre os séculos XIV e XVII, em toda a Europa, o problema já era também o de uma organização interna da nação que pudesse assegurar o enriquecimento. No século XVIII, emerge o problema da saúde da população como problema político-econômico, de modo que a saúde que é posta em questão é, primeiramente, a saúde da população em geral (problema político), enquanto constituinte do estado e de sua força e, especialmente, a saúde da “força de trabalho” (problema econômico). As iniciativas difusas e desorganizadas de assistência aos “pobres doentes” motivadas em grande parte pela piedade cristã tornamInquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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se agora objeto de regulamentação, no momento em que se evidencia o caráter econômico destas pequenas intervenções. Doravante, “a saúde e o bem-estar físico das populações aparecem como objetivo político que a ‘polícia’ do corpo social deve assegurar ao lado das regulações econômicas e obrigações da ordem” (Foucault, 1979, p. 197). Ocorre a confiscação de um assistencialismo cristão, sem qualquer preocupação econômica, por um assistencialismo estatal, muito mais amplo, que coloca para si a obrigação de elevar o nível de saúde dos indivíduos, educando-os e obrigando-os, se preciso, a cuidar de si mesmos. Foucault observa que toda sociedade pratica algum tipo de “noso- política”, isto é, uma política que se propõe a cuidar de alguma maneira do corpo doente. Ocorre, porém, que a modernidade problematiza e transforma essa nosopolítica a tal ponto que ela chega a se confundir com a própria política. Mas os investimentos do poder nos indivíduos procuram dar resposta a um problema ainda maior e mais urgente que o econômico: o problema da grande aglomeração populacional que, desde o século XVIII até hoje, apenas agravou-se. O grande crescimento demográfico do ocidente europeu durante o século XVIII, a necessidade de coordená-lo por mecanismos de poder mais adequados e mais rigorosos fazem aparecer a “população” – com suas variáveis de números, de repartição espacial ou cronológica, de longevidade e de saúde – não somente como problema teórico mas como objeto de vigilância, análise, intervenções, operações transformadoras, etc (Foucault, 1979, p. 198).

Contudo, ainda no período marcado pelo mercantilismo, que antecede estas intervenções estatais, já existe um clima absolutamente favorável ao desenvolvimento de uma medicina social. A política mercantilista consiste essencialmente em majorar a produção da população, a quantidade de população ativa, a produção de cada indivíduo ativo e, a partir daí, estabelecer fluxos comerciais que possibilitem a entrada no Estado da maior quantidade possível de moeda, graças a que se poderá pagar os exércitos e tudo o que assegure a força real de um www.inquietude.org

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Estado em relação aos outros (Foucault, 1979, p. 82).

A diferença em relação ao século XVIII é que os Estados não tomaram medidas para elevar de fato o nível de saúde da população, limitando-se apenas aos cálculos de taxas de mortalidade e natalidade – o que já é, sem dúvida, um primeiro passo. Para ser mais preciso, “o mercantilismo é de fato a primeira racionalização do exercício do poder como prática do governo” (Foucault, 2008, p. 136). Contudo, o Estado ainda agia de maneira demasiadamente direta, mediante o eixo formado pelo soberano e seus súditos – o que impossibilitava o florescimento de uma verdadeira arte de governar, pautada não na opressão e no controle do território, mas no fomento à vida e na domesticação da população. O que há no fim do Antigo Regime é o início da consolidação definitiva de um modelo de política inédito na história. Modelo este que teria encontrado no totalitarismo sua possibilidade mais radical. Algumas diferenças fundamentais entre a política, digamos, “à moda antiga” e a sua configuração moderna encontram-se nas condições necessárias para a atividade política. Na modernidade, por exemplo, “economia” não mais significa gestão familiar, mas gestão populacional; não diz mais respeito a um pré-requisito para a política, mas a um campo de intervenção política – só então, pode-se falar em “economia política”. A palavra “vida”, por sua vez, possuía no grego antigo duas formas distintas: zoé, referente à vida biológica, comum a todos os seres animados, e bíos, referente a uma vida politicamente qualificada, a um modo de viver. Aristóteles separava “viver” e “bem viver” e considerava essa distinção, fundamental à constituição e à perpetuação da pólis. Assim, a política dita clássica decidiria sobre a bíos, sobre a maneira de viver, e, como bem o observa Agamben, “falar de uma zoé politiké [ao invés de bíos politicós] dos cidadãos de Atenas não teria feito sentido” (Agamben, 2002, p. 9). Na modernidade o poder político toma para si a tarefa de zelar pela zoé, incluindo assim aquilo que outrora era mantido fora do domínio da política. Essa mudança é acompanhada pelo processo em que a soberania Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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estatal deixa de ser exercida sobre um território e sobre os súditos nele contidos e passa a fundamentar a si mesma na sequência biológica anônima denominada “população” ou ainda na nação. Em outras palavras, o “Estado territorial” transforma-se em “Estado de população” e “o princípio de toda soberania”, como o diz a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, “reside [então] essencialmente na nação”. Ademais, estas declarações representam, para Agamben, aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bíos), entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade e de sua soberania (2002, p. 134).

A política, tal como era praticada na polis, é então relegada a um segundo plano, na medida em que o dado biológico, que antes era separado da vida política, torna-se o núcleo em torno do qual se erguem os novos paradigmas políticos. O discurso político moderno defende o direito universal à saúde e à felicidade e, assim, o problema da doença dos pobres e dos trabalhadores passa a ser um problema coletivo. “O estado de saúde de uma população [aparece] como objetivo geral” (Foucault, 1979, p. 195). Esta politização da vida biológica acarreta a politização da medicina. O nascimento do Estado-nação marca, portanto, a derrocada da política no Ocidente, na medida em que ele inaugura uma nova forma de governo, na qual a medicina é sempre portadora de um alto status político. Derrocada da política, pois a política, no sentido mais remoto ou no sentido clássico, se identifica com a cultura. Assim, a capacidade de existência política no sentido de bíos politicós (e não no sentido de politikòn zôon) só pode ser concebida separada da natureza e, precisamente por isso, pode definir e singularizar o homem. Poderíamos dizer, com Nietzsche, que esse novo estado é profundamente incompatível com o estado grego, pois inviabiliza sorrateiramente a possibilidade de produção de cultura e, por conseguinte, a do exercício genuíno da política. O espírito utilitário www.inquietude.org

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e racional e o nivelamento social necessários à manutenção deste Estado burguês chegam a produzir o que Nietzsche chama de “alucinações conceituais” (Nietzsche, 2005, p. 40), como “dignidade do homem” ou “dignidade do trabalho”, que acabam camuflando (e por isso são necessárias) o fato de que a escravidão é generalizada. O homem secular põe em questão em sua política a sua mera condição de vivente; é escravo da preocupação com a vida biológica, pois almeja felicidade apenas no consumo e no bem-estar físico. O exercício da política tal como aparece na Antiguidade clássica perde seu sentido e cede seu lugar ao que antes era destinado a um segundo plano: o mero estar vivo, cuja problematização no centro da discussão política é incompatível, para Nietzsche, com a condição básica para a produção de cultura. Esta nova forma de política – que objetiva a simples condição de vivo do homem e que se dá como tarefa lhe proporcionar saúde e bem-estar físico – não pode mais ser identificada com a política no sentido mais propriamente humano (oposto ao natural) do termo; trata-se agora de uma “biopolítica”. Em uma passagem que já se tornou célebre, Foucault (1976, p. 127) afirma que, “por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”. E é por isso que a virada política na modernidade consiste exatamente no tornar-se obsoleto da política e na emergência da biopolítica, enquanto nova e, doravante, única forma de política. Aquela nova noso-política que surge no século XVIII constitui, grosso modo, uma biopolítica em germe, que só assumirá sua forma consumada no nacionalsocialismo do século XX. A novidade que representa a eugenética no século XX, no fundo, é apenas um reflexo, na pesquisa científica, das transformações políticas geradas pelo desenvolvimento das sociedades capitalistas. Para a nosopolítica moderna (já no século XVIII), como assinala Foucault, “os traços Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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biológicos de uma população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário organizar em volta deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição, mas o aumento constante de sua utilidade” (Foucault, 1979, p. 198). Não há nada de novo, portanto, na pretensa originalidade de uma publicação do Institut Allemand de Paris de cunho nacional-socialista, intitulada Etat et Santé, que diz que “é indispensável que o médico colabore para uma economia humana racionalizada, que vê no nível de saúde do povo a condição de rendimento econômico” (Verschuer apud Agamben, 2002, p. 152). O fato é que o Reich nacional-socialista assinala o momento em que a integração entre medicina e política, que é uma das características essenciais da biopolítica moderna, começa a assumir sua forma consumada (Agamben, 2002, p. 150).

A aceitação geral e até mesmo a reivindicação de uma política de saúde, que pressupõe alta integração entre medicina e política, assim como a concepção tornada popular de que a política se resume à gestão da vida natural, constituem uma peça fundamental na ascensão de regimes totalitários. Esta política médica não faz sentido para a política clássica, pois constitui uma característica exclusiva da biopolítica. No tempo em que a cena política é dominada por debates sobre economia e saúde e que os direitos humanos representam a inscrição da vida biológica na ordem estatal, é perfeitamente natural que se leia uma manchete do tipo “gripe suína derruba bolsas mundo afora” como se fosse óbvia e corriqueira. Mas o fundamento secreto de uma afirmação como esta é justamente o que permite visualizar a “contiguidade entre democracias de massa e Estados totalitários” (Agamben, 2002, p. 127). Tanto em nossas democracias como nos totalitarismos o que está em jogo nos cálculos do poder é a mera condição de vivente do homem. E apenas tendo-se em vista o horizonte biopolítico dos atuais governos é que se pode alertar para suas tentações totalitárias.

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Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer – o poder soberano e a vida nua. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979. _________. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução Maria Thereza C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2005. _________. Segurança, território, população. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. “O estado grego”. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2005.

Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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