Pela Rota da Educação Patrimonial: O contributo do projecto português do Românico.

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Pela Rota da Educação Patrimonial: O contributo do projeto português do Românico. MARIA JULIETA S. ALMEIDA Nos dias que correm, deparamo-nos cada vez mais com estudos sobre a noção de património e sobre a importância da sua preservação, mas se olharmos para o passado e fizermos uma breve abordagem histórica com base no desenvolvimento desta ideia, verificamos que uma das primeiras iniciativas de proteção do património português surge em Agosto de 17211 e passa por atribuir o papel de maior relevância na salvaguarda deste às autarquias locais, sendo ainda instituído um sistema de penalizações aos que, de algum modo, destruíssem tal legado (Pires, 2013: 251). Um século depois, Alexandre Herculano escreve quatro artigos para o jornal “O Panorama”2, onde destaca de forma clara a importância da salvaguarda do património, sensibilizando a opinião pública nacional para a conservação dos monumentos e denunciando o vandalismo, “os carros, as cavalgaduras e os vereadores [que] passam tranquilamente sobre os ossos do passado” (Bravo, 2012: 24). Anos antes da primeira república, em 1894, são introduzidos diplomas legais sobre o conceito de monumento, iniciam-se os trabalhos de inventariação e são feitos levantamentos científicos sobre edifícios e objetos com valor arqueológico, histórico e artístico. Porém, é com a Revolução de Abril que o conceito tradicional de património se estende, abrindo portas a novos entendimentos e tornando possível a aposta significativa em associações de preservação e de educação patrimonial, sendo esta última, uma parente direta das educações estética e artística. Posto isto, podemos, então, fazer aparecer a questão que queremos aqui tratar: o que é afinal património para nós, que importância tem a sua preservação e de que modo pode ser alcançada em pleno. Se formos audazes e estivermos dispostos a esmiuçar concretamente o problema, este irá revelar-se na interrogação: de que forma podemos consciencializar o cidadão comum e apelar ao seu sentido de interesse pelo que lhe foi deixado, de salvaguarda do mesmo, e de estima pelo que também ele deixa às gerações futuras? É certo que, aparentemente, existe um “prazo de validade” para tudo, e apesar dos esforços e manutenções, muitas vezes os fatores externos, corrosivos, naturais e ambientais do mundo em que vivemos, contribuem para a danificação de certos tipos de património edificado, mas até essas causas, por serem, de algum modo, naturais, poderão também constituir história e identidade. No fundo, e focando-nos no que queremos realmente trabalhar, como podemos evitar todas as notícias que surgem na teSuscitada pela fundação da Academia Real Portuguesa, no reinado de D. João V, e define-se em alvará que, para além dos edifícios, são igualmente alvo de salvaguarda, esculturas, mármores, cipos e lâminas com figuras ou inscrições, medalhas e moedas, bem como todos os artefactos encontrados desde os Fenícios ao reinado de D. Sebastião. 2 Nos números 69 e 70, de 1838, e nos números 93 e 94, de 1839. 1

levisão, na rádio e nas redes sociais, que sugerem autênticos exemplos de destruição propositada de monumentos e de peças únicas por atos de vandalismo e de inconsciência? De certeza que não se trata de as ignorar, mudando de canal ou fechando os olhos à situação, mas talvez de começar por sensibilizar, desde cedo, a comunidade, a fim de ficarem mais conscientes sobre a importância da salvaguarda daquilo que faz parte das suas identidades e heranças. Vendo bem, existe unicidade em cada país, cada aldeia, por mais pequena que seja, ou, se quisermos ir mais longe, existe até em cada um de nós. Dificilmente se encontrará um motivo razoável para não darmos valor e não estimarmos aquilo que nos distingue uns dos outros, enquanto sociedade, de diferentes e arbitrárias culturas. Salvaguardar a memória coletiva, seja esta material ou imaterial, contribui para construir o sentimento de pertença, dando sentido a tudo o que somos e adquirimos até então. Vários investigadores do nosso tempo assumem o património como um todo, e, segundo o autor José Bravo, património é tudo aquilo que sentimos como tal, podendo incluir até a fauna e a flora, sendo esse o motivo da alteração do conceito ao longo dos tempos (Bravo, 2012: 13). Com base nesta afirmação, que não está, de todo, errada, levanta-se outra questão: tudo aquilo que uma pessoa sente como património, outra poderá não sentir, e um monumento poderá estar a salvo na consciência de uma pessoa, enquanto pode nunca vir a estar, nas mãos de outra. Assim sendo, porque não definir esta ideia de sentir o património como tudo aquilo que constrói a nossa memória, aquilo que permite seguir um fio condutor de história? Neste contexto, poderão fazer parte desta equação as nossas memórias de infância e as fotografias que temos dela? Também, se as sentirmos como tal, e as quisermos guardar e recordar. Todavia, enquadramos neste grande registo de memória tudo aquilo que nos foi deixado de herança, todos os séculos de saberes e tradições, bem como os monumentos, que celebram determinadas ocasiões, em determinadas épocas, ou até os simples objetos e conhecimentos que passam de geração em geração, no seio de uma família. Considerar o conceito de património como verdadeiramente alargado, permite-nos, ainda, atribuir esse estatuto a tudo aquilo que construímos ou obtemos no presente de forma continuada, visto que isso irá também contribuir para a criação de identidade e memória futuras. Protegemos o nosso legado quando, por exemplo, conservamos e restauramos os edifícios históricos, dando-lhes funcionalidade e ampliando o turismo cultural, ramo que se liga espontaneamente à visitação de monumentos e lugares de interesse patrimonial, tanto quanto ao desenvolvimento da economia. Alcançamos a preservação do património quando identificamos, documentamos e damos a conhecer os saberes e tradições e quando concebemos várias estratégias de formação de laços com a nossa história, recriando-a, vivendo-a e estudando-a. Ninguém defende o que não conhece, e é conhecendo que aprendemos a interpretar e estimar o que vemos no nosso dia-a-dia, como tão bem defende o pedagogo Joaquim de Vasconcelos, em 1908, na sua publicação “O Ensino da História da Arte nos Lyceus e as Excursões Escolares”. Ora, se imaginarmos que todas as crianças e jovens, principalmente aqueles que vivem sem referências históricas, pudessem ter acesso ao estudo, mesmo que de uma forma ligeira, da nossa História

da Arte, fazendo-se acompanhar por pequenas visitas de estudo aos locais histórico-artísticos mais próximos das suas escolas, rapidamente verificamos que esta prática iria ser uma mais-valia para os alunos adquirirem consciência sobre o que os rodeia, tornando-se praticamente improvável a existência de desinteresse, ou pior, de desconsideração e vandalismo, futuros, por parte deles. Observando a situação atual do nosso país, apesar da educação patrimonial não chegar a todos os cantos, constatamos que há iniciativas para manter vivas as memórias materiais e incorpóreas da nação. Tratam-se de excelentes contributos para o desenvolvimento de comunidades conscientes quanto à importância da preservação do património, intencionando a sua proteção, e não a dissipação. Muitas vezes deparamo-nos com o conceito de “História Viva”, ferramenta lúdico-didática para divulgação do património em contexto escolar, museológico, autárquico e turístico, destacando-se por dar vida a certos acontecimentos do passado através de recriações dos mesmos, baseadas em documentação verídica (Coelho, 2009: 5). Olhando atentamente para esta estratégia, podemos aperceber-nos de que contribui para manter viva a memória de determinada época, em determinado contexto e de determinado local, recorrendo à expressão dramática, sem, no entanto, se tratar de teatro. Se estivermos atentos ao mundo da televisão, podemos observar que em alguns casos recorre-se a uma prática idêntica, sendo recriados determinados momentos da história, com base em investigações minuciosas, tornando-a mais acessível e compreensível aos olhos do espectador. Se quisermos, ainda, debruçar-nos sobre um outro exemplo de como viver o património histórico e artístico, podemos reparar nas atividades autárquicas anuais, como as feiras de época. Por vezes, muitos de nós olhamos para este tipo de eventos como formas primitivas e pouco credíveis de comemorar aniversários especiais de determinados acontecimentos passados, ou simplesmente como veículo para o desenvolvimento económico local, mas podem ser, para alguns, uma oportunidade de despertar o interesse pessoal em querer descobrir ou conhecer mais sobre as épocas, a sociedade e as artes, o que, na verdade, pode originar a abertura da porta para um profundo carinho e consciencialização de proteção pelo que foi deixado. Resta-nos entender como fazer nascer desde cedo, e de forma infalível, esse desejo de investigação e consideração. É pela visualização de notícias da atualidade, como a do Jornal de Notícias: “Vandalismo destruiu cruzeiro de Leça do Balio com 500 anos” (2015), que nos deparamos com a certeza de que a educação patrimonial é realmente necessária e não deve sustentar-se apenas na investigação e na consciencialização, mas deve incluir também a criação (PIRES, 2013: 252). Ao se interessar e investigar, o indivíduo conhecerá o património estudado e intenciona de forma direta a sua proteção, mas é criando estratégias de divulgação dessa herança que faz surgir a íntima relação com ela, convocando também a comunidade envolvente. Olhando para a criação de roteiros e para o desenvolvimento que estes têm tido, podemos reconhecê-los como programas que se relacionam com a educação patrimonial, trabalhando com diferentes faixas etárias, contribuindo para o surgimento de um espírito crítico e para

o respeito dos valores do passado e do presente. É neste contexto que nasce, em 1998, a “Rota do Românico”, um projeto realizado em terras dos vales do Sousa, do Douro e do Tâmega, concebido de modo a sensibilizar os cidadãos para a apreciação e salvaguarda do património histórico, artístico, cultural e paisagístico locais, através de elementos de integração, educação e formação. Entre atividades lúdicas e pedagógicas em contexto educativo, cultural e social, este projeto reforça o interesse da comunidade pelo seu património de origem românica, promovendo o orgulho pelo passado e contribuindo para o desenvolvimento de novos saberes e competências. Em cada ano letivo, a “Rota do Românico” lança um programa pedagógico que envolve, pelo menos, 72 turmas do 1.º Ciclo do Ensino Básico, dispersas pelos 12 concelhos portugueses que integram o percurso da rota, sendo os quais: Amarante, Baião, Castelo de Paiva, Celorico de Basto, Cinfães, Felgueiras, Lousada, Marco de Canaveses, Paços de Ferreira, Paredes, Penafiel e Resende. Pretendendo complementar o currículo escolar, este projeto pedagógico estabelece ligações entre os alunos e o património local, dando-lhes a conhecer o estilo românico, a sociedade e a cultura da época medieval no Tâmega e Sousa, passando pela abordagem à paisagem natural e aos saberes tradicionais. É através do contacto direto com os monumentos que os alunos poderão refletir sobre a sua história, a sua arte e os seus quase mil anos de heranças. Na realidade, a programação dos Serviços Educativos da “Rota do Românico” integra um conjunto de atividades para os diferentes níveis de ensino, desde o pré-escolar ao universitário e conta ainda com sete jogos pedagógicos que poderão ser dinamizados em contexto de sala de aula ou durante a visita às edificações. É através da visualização da página online desta iniciativa que reconhecemos os esforços e os méritos obtidos pela equipa. Para além de todas as informações disponibilizadas sobre a região, podemos encontrar também documentação variada e dividida por temas e em diferentes formatos, desde artigos, monografias, revistas, vídeos, documentários, a músicas e sons relacionados com os locais e com a época. Encontramos ainda um glossário de conceitos, uma bibliografia auxiliar e uma plataforma de visitas virtuais às construções pertencentes ao percurso. Porém, as atividades do site não se ficam por aqui, pois nele podemos criar rotas especiais a gosto e deixar sugestões ou comentários sobre a experiência pessoal de cada um, o que faz desta rota um projeto adaptado e atualizado segundo as necessidades e opiniões dos participantes. É notável a preocupação e consideração que têm pela comunidade, estabelecendo um sistema de acessibilidade nos edifícios históricos, para que as pessoas com dificuldades motoras também os possam visitar, promovendo a integração e levando o património a todos. Pensando nos mais pequenos, a “Rota do Românico” cria um “Canal Juvenil” online, destinado à aquisição de conhecimentos sobre a época românica e a Idade Média, em especial no norte do país. Contém a lista dos monumentos pertencentes à rota, acompanhada por ilustrações, fotografias, vídeos e visitas virtuais, bem como um glossário de conceitos e jogos de caráter lúdico que permitem uma experiência agradável, perdurando na memória dos indivíduos e fazendo do projeto algo prazeroso, caraterística importante para cativar as crianças e

fazê-las interessar-se pelos temas. Depois de tudo, é possível vermos ver claramente a importância da educação patrimonial e de projetos como este? Se assim for, concluímos que é necessário colaborar com estas iniciativas, nem que seja começando por educar os nossos pequenos e graúdos em ambiente familiar, para que todos, um dia, possamos olhar para as nossas heranças de igual forma: com reconhecimento, orgulho e estima. BIBLIOGRAFIA ALVES, Tiago R. (2015). “Vandalismo destruiu cruzeiro de Leça do Balio com 500 anos”. Jornal de Notícias. Disponível em:
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