Pelotas: 2500 anos de História indígena.

August 9, 2017 | Autor: R. Guedes Milheira | Categoria: History, Arqueología, Cerritos, Arqueología guaraní, Historia Indigena
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Secretaria de Estado da Cultura apresenta

Um povo que conhece sua história, compreende seu passado e trabalha com perseverança no presente é capaz de traçar com precisão o caminho para o futuro. A Josapar não só acredita como se identifica com Pelotas nesses aspectos. É por isso que, mais uma vez, está ao lado desta magnífica obra. No Volume 3 do Almanaque do Bicentenário de Pelotas, a Princesa do Sul é retratada em sua contemporaneidade. Assim como a Josapar, a cidade caminha na direção da originalidade e da descoberta. Orgulho, inovação e respeito são a essência que pauta nosso trabalho diário e da vida dessa cidade tão singular.

É uma honra para a Companytec fazer parte de uma iniciativa que tem por objetivo preservar e registrar a história de Pelotas. Um povo que procura resgatar seu passado sabe exatamente aonde quer chegar e se projeta melhor no futuro. Princesa do Sul! Por acreditar na sua potencialidade é que fazemos questão de manter aqui nossas raízes. Muito do nosso crescimento lhe é devido, pois forjou-nos com mão de obra moldada em toda sua cultura, educação e valores. Princípios estes que temos orgulho de levar para todas as regiões do Brasil. A tecnologia inovadora que desenvolvemos, graças aos profissionais qualificados no polo educacional da cidade, levou-nos à posição de liderança nacional e nos promete grandes oportunidades internacionais para onde levaremos o nome Pelotas. Sob os pilares social, ambiental e econômico, buscamos contribuir a cada dia com o progresso da nossa sociedade, perpetuando para o futuro tudo o que nos caracteriza como um povo próspero, honesto, feliz e receptivo. Este é nosso compromisso com Pelotas, que se traduz também no apoio a ações como esta, que são relevantes para a comunidade na qual estamos inseridos. A obra Almanaque do Bicentenário de Pelotas é de grande valia por si só, mas fica ainda mais grandiosa por gravar, indelevelmente, em nossa memória tão respeitada história.

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Pelotas tem na sua origem a miscigenação e o faro pelo trabalho árduo e digno. Amparados no apego religioso, este povo fez história. Nos tempos idos teve como principal imigração na região a vinda de portugueses, oriundos principalmente do arquipélago de Açores, que influenciaram na cultura do município, principalmente na arquitetura e na culinária. Formaram aqui as charqueadas que por muito tempo foram a atividade de destaque na região e no Estado. A grande expansão das charqueadas fez com que Pelotas fosse considerada a verdadeira capital econômica da província, vindo a se envolver em todas as grandes causas cívicas. Outros imigrantes importantes também vieram para a região. Os alemães, na maioria oriundos da Pomerânia, fixaram-se na zona rural do município, onde desenvolveram um trabalho com a terra, refletindo uma cultura forte do cultivo de pêssego e aspargo. Também são dignas de nota outras etnias que em Pelotas estabeleceram residência, como africanos, talianos, poloneses, franceses, judeus e árabes libaneses, estes com vocação para o comércio, tradicional até os dias de hoje. Com a mistura étnica que caracteriza Pelotas, não é surpreendente que seja um rico centro cultural e artístico, sendo conhecida como a Atenas Rio-Grandense. Tanto a zona urbana quanto a rural de Pelotas contam com monumentos, paisagens e belas vistas, que a tornaram conhecida na mídia nacional. Sua diversidade étnica também reflete no culto religioso da cidade, detentora de belíssimas igrejas e locais de culto. Berço e morada de inúmeras personalidades da cultura nacional, tem na arte e em seus teatros uma história riquíssima. Mas não só de arte se alimentava a população, tendo em sua terra grandes forças do futebol do Estado. Ora Brasil, ora Pelotas, outra grande parcela Farroupilha. A paixão do seu povo pelo esporte é marca de suas torcidas apaixonadas e leais, herança da cultura que forma esse torrão tão hospitaleiro e reconhecido. Pelotas, tua arte, arquitetura e esforço são reconhecidos na paixão do seu povo trabalhador e no orgulho de levar o seu nome aos mais distintos cantos, estampado na camisa e no coração.

Planejamento cultural: Gaia Cultura & Arte

Capa e projeto gráfico: Nativu Design

Produção executiva: Lua Nova Produção Cultural

Direção de arte: Valder Valeirão (Nativu Design)

Coordenação geral: Duda Keiber

Imagem da capa: Pescadores da Colônia Z3 recolhendo redes “aviãozinho”. Pelotas / Lagoa dos Patos, próximo à Ilha da Feitoria, 2006. Fotógrafo: Nauro Jr.

Coordenação editorial e organização: Luís Rubira Co-Produção: Beatriz Araújo Pesquisa e Seleção de Imagens: Guilherme P. de Almeida e Luís Rubira Seleção de fotografias do período 2000-2014: Alexandre Mattos, Duda Keiber e Guilherme P. de Almeida Acervos e fontes das Imagens: Alcir Nei Bach, Alexandre Luna, Aline Montagna, Arthur Victoria, Bibliotheca Pública Pelotense, Biblioteca Riograndense, Cíntia Wieth Piegas, Cleonice Gonçalves de Morais, Custódio Lopes Valente, Eduardo Arriada, Eduardo P. de Almeida, Emerson Ferreira, Fábio Zündler (Pretérita Urbe), Guilherme P. de Almeida, Hélio Freitag Jr., Igreja do Sagrado Coração de Jesus, Instituto Histórico e Geográfico de Capão do Leão, Janaína Vergas Rangel, Jonia Haag Tavares, Leni Dittgen de Oliveira, Lúcio Xavier, Luís Rubira, Memorial Theatro Sete de Abril, Museu e Espaço Cultural da Etnia Francesa (Fábio Cerqueira/Cristiano Gehrke), Núcleo de Estudos de Arquitetura Brasileira da UFPel, Osvaldo Andrade, Prefeitura Municipal de Pelotas, Sady Peters, Sérgio Osório, Simone Neutzling, UCPel (Laboratório de Acervo Digital/Pelotas Memória de Nelson Nobre Magalhães), Valquíria, Vinícius Centeno Araújo, Vinícius Porto, Vitor Ramil. Fotógrafos convidados: Alexandre Neutzling, Andressa Machado, Camila Hein, Chico Madrid (in memoriam), Cintia Langie, Daniel Giannechini, Eduardo Beleske, Fabiano da Silva Carvalho (Fly Camera Pelotas), Fábio Caetano, Fabrício Marcon, Felipe Campal, Giovana Kleinicke, Gustavo Fonseca (Rastro Imagem), Herbert Mereb, Ítalo Santana, Juliana Charnaud, Leandro Karam, Luiz Paiva Carapeto, Moizés Vasconcelos, Marcelo Freda Soares, Nauro Júnior, Pablo Ribeiro (Rastro Imagem), Paulo Rossi, Rael Castro, Rafael Marin Amaral, Raul Garré, Renata Freitas, Rodrigo Osório, Tiago Klug, Valder Valeirão, Vilmar Tavares (in memoriam). Ilustrações de abertura dos Cadernos do Bicentenário: James Duarte

Revisão: Duda Keiber e Mariana Heineck Impressão e acabamentos: Gráfica Editora Pallotti

Impresso no Brasil

Todos os direitos reservados 1a Edição: 2014 Tiragem: 1000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP __________________________________________________ R896a Rubira, Luís (Org.) Almanaque do Bicentenário de Pelotas. / Organizado por Luís Rubira (Projeto LIC: Gaia Cultura & Arte). v. 3: Economia, Educação e Turismo. Textos de Pesquisadores e Imagens da Cidade. – Pelotas/RS: PRÓ-CULTURA-RS / EDITORA JOÃO EDUARDO KEIBER ME, 2014. 640 p.:il. ISBN: 978-85-66303-03-2 1. Pelotas. 2. História de Pelotas – Rio Grande do Sul. I. Título. CDD 981.657 __________________________________________________ Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária Daiane Schramm – CRB 10/1881 Edição sem fins lucrativos, de caráter histórico, educativo e cultural.

www.almanaquedepelotas.com.br

Com amor, que rege as relações humanas, agradecemos à comunidade pelotense, história viva fora destas páginas, e dedicamos este volume às águas sagradas dos arroios Pelotas e Santa Bárbara, do canal São Gonçalo e da Lagoa dos Patos e pela sua importância na formação da cidade. Alexandre Mattos, Duda Keiber e Fernando Keiber, março de 2015.

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APRESENTAÇÃO ALMANAQUE DO BICENTENÁRIO DE PELOTAS (VOL. 3) Luís Rubira

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PELOTAS: 2.500 ANOS DE HISTÓRIA INDÍGENA Rafael Guedes Milheira

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AFRICANOS E AFRODESCENDENTES EM PELOTAS: EXPERIÊNCIAS DE SOCIABILIDADE E DE AFIRMAÇÃO POLÍTICA Caiuá Cardoso Al-Alam, Carla Silva de Avila e Fernanda Oliveira da Silva

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A FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA PELOTENSE (1880-1940) Beatriz Loner

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AS FÁBRICAS DE COMPOTAS DE PÊSSEGO NA ZONA RURAL DE PELOTAS (1950 A 1970) Alcir Nei Bach e Margareth Acosta Vieira

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O GOLPE CIVIL-MILITAR EM PELOTAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS A PARTIR DE 1964 Renato Della Vechia e Marília Brandão Amaro da Silveira

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TÃO DIFERENTES E SEMPRE IGUAIS: RESULTADOS E SIGNIFICADOS DAS ELEIÇÕES PARA PREFEITO DE PELOTAS (1968-2012) Álvaro Barreto

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NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA DOENÇA EM PELOTAS Lorena Almeida Gill

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CADERNOS DO BICENTENÁRIO

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7. NOTÍCIA DE ALBERTO COELHO DA CUNHA (1853-1939) Eduardo Arriada

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8. A SIGNIFICAÇÃO CULTURAL DE JANUÁRIO COELHO DA COSTA Luís Borges

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9. O TEATRO DE JOÃO SIMÕES LOPES NETO João Luis Pereira Ourique

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10. “NEM MESMO O PAPA PODE DISPOR DOS BENS DE SÃO FRANCISCO” Caio Ricardo Duarte Ribeiro (In Memoriam)

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11. AS RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA EM PELOTAS: NOTAS E IMAGENS ICONOGRÁFICAS Marília Floôr Kosby

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12. “COM PÉS DE LÔ: APONTAMENTOS SOBRE A INSERÇÃO E LEGITIMAÇÃO DO ESPIRITISMO EM PELOTAS Marcelo Freitas Gil

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13. A ETNIA ALEMÃ EM PELOTAS: UMA HISTÓRIA QUE PRECISA SER RECONTADA Sérgio Schwanz

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14. CARTÕES POSTAIS: IMAGENS QUE ENCANTAM, BELA MODA QUE SEDUZ Eduardo Arriada e Elomar Tambara

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ENTRE A OPULÊNCIA ARISTOCRÁTICA E O MARTÍRIO DOS ESCRAVOS: OS SETORES MÉDIOS URBANOS EM PELOTAS NO SÉCULO XIX Luciana da Silva Peixoto e Fábio Cerqueira

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O CULTIVO DO ARROZ: A IMPRENSA LOCAL E O DESENVOLVIMENTO DESTA CULTURA EM PELOTAS DO SÉCULO XIX AO XXI Gabriela Brum Rosselli

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O ENSINO PRIMÁRIO EM PELOTAS (1912-1980) Vanessa Teixeira Barrozo

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O ENSINO SECUNDÁRIO: FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO DAS ELITES (1912-1970) Eduardo Arriada

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O ENSINO SUPERIOR: DA FUNDAÇÃO DO LICEU DE AGRONOMIA E VETERINÁRIA (1883) À CRIAÇÃO DA UCPEL (1960) E DA UFPEL (1969) Elomar Tambara

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PELOTAS, “CENTRO DE OUTRA HISTÓRIA” DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (1960-2012) Diego Queijo

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ALGUMAS MEMÓRIAS DE PELOTAS: A HISTÓRIA CONTADA POR QUEM VIVEU Ana Isabel Pereira Corrêa

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FUTEBOL, UMA PAIXÃO: PELOTAS, FARROUPILHA, BRASIL DE PELOTAS (E ICONOGRAFIA DOS TIMES AMADORES). Duda Keiber, Fabrício Xavante, Paulo Gastal Neto e Ewaldo Poeta

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A PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL EM PELOTAS: UM OLHAR SOBRE A SUA TRAJETÓRIA (1955-2014) Ana Lúcia Costa de Oliveira e Aline Montagna da Silveira

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PELOTAS BICENTENÁRIA

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A CIDADE SEM FIOS Rafael Barros

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ALMANAQUE DO BICENTENÁRIO DE PELOTAS, UMA HISTÓRIA POR DETRÁS DA HISTÓRIA Duda Keiber

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NOTAS INTRODUTÓRIAS À ICONOGRAFIA DO ALMANAQUE DO BICENTENÁRIO DE PELOTAS (VOL. 3) Guilherme Pinto de Almeida

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PELOTAS: 2.500 ANOS DE HISTÓRIA INDÍGENA Rafael Guedes Milheira1

Introdução No censo realizado no ano de 2010 pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE), 317 pessoas, moradoras do município de Pelotas, declararam-se “indígenas”. O mesmo censo demonstra que a população de Pelotas, em 2010, era de 328.275 habitantes, mas aponta uma estimativa para 2013 - quando a população desse município deve ter chegado a aproximadamente 341.180 habitantes. Considerando os dados publicados pelo Censo de 2010, a quantidade de pessoas que se declarou indígena é de apenas 0,96% da população total do município de Pelotas. O estudo realizado pelo IBGE é amplamente generalista e superficial, porém, mesmo lacunar, ele aponta para uma certeza: os indivíduos indígenas que habitam o município (e, certamente esses dados refletem, pelo menos, a região sul do Estado do Rio Grande do Sul) são uma minoria absoluta, invisibilizada no tecido social. Os dados do Censo refletem o desrespeito histórico que alijou as populações indígenas a um papel secundário na historiografia regional. Com suas vozes silenciadas, os coletivos indígenas foram, forçosa e paulatinamente, sendo esquecidos pela História. De um ponto de vista histórico, as populações indígenas são pouco conhecidas e apenas tangenciam a historiografia tradicional, limitando-se, quando muito, às primeiras páginas dos livros de História regional. Atualmente, a presença indígena é limitada demográfica e espacialmente, bastante esquecida historicamente, estando circunscrita, em grande medida, à nomenclatura dos acidentes geográficos e em limitadas terras que acolhem pequenas famílias (LIEBGOTT, 2010). No passado, entretanto, a presença ameríndia foi massiva e bastante complexa em termos culturais. Através da Arqueologia vemos o levantamento de dados que denotam que o pampa gaúcho e, mais especificamente, o espaço geográfico que comporta o ambiente da laguna dos Patos e serra do Sudeste, no sul

1 Graduado em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel, 2005), Mestre em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP, 2008) e Doutor em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (2010). É Professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do PPG em Antropologia da UFPel. É organizador de Arqueologia Guarani do litoral Sul do Brasil (Curitiba: Appris, 2014) e autor de Arqueologia Guarani na laguna dos Patos e serra do Sudeste (Pelotas: UFPEL, 2014).

do Estado do Rio Grande do Sul, já era densamente ocupado por grupos indígenas desde, pelo menos, 2500 anos A.P. (Anos antes do Presente), o que aponta uma nova perspectiva histórica bastante distinta daquela amplamente divulgada pela historiografia tradicional.

A história lacunar e o presente indígena na região de Pelotas A paisagem do município de Pelotas é bastante representativa da presença indígena. A toponímia regional como “arroio Pelotas”, “Serra dos Tapes”, e “Laguna dos Patos” reforçam o quão significativa foi essa presença, o que se concretizou na nomeação das localidades e acidentes geográficos. O próprio termo “Patos” que dá nome à laguna que banha o município, possivelmente resulta da ocupação dos índios Patos, embora possa ter sido uma confusão terminológica, dada a grande presença de aves palmípedes, o Pato Real (Cairina moschata) (IHERING, 2003, [1907]). O “arroio Pelotas”, um dos principais corpos hídricos do município, também pode ter seu nome relacionado à presença dos grupos indígenas, visto que as “pelotas” eram embarcações feitas de couro usadas como transporte de carga e devem ter sido utilizadas pelos índios, sendo seu uso descrito no período escravista das charqueadas pelo francês Jean Baptiste Debret2 (Figura 1). A “Serra dos Tapes”, conhecida também como Serra do Sudeste, tem esse nome devido à presença dos índios “Tapes”, os quais, segundo Gutierrez (2001, p. 32), foram descritos em função das guerras travadas em defesa de suas terras ainda no século XVIII, quando se instalavam no litoral de Rio Grande as primeiras ocupações coordenadas pelo brigadeiro José da Silva Pais, que pretendia fundar o presídio Jesus-Maria-José, expulsar os espanhóis de Montevidéu e terminar com o bloqueio à Colônia do Sacramento. Só foi possível a fundação de Rio Grande em 1737, quando Silva Pais auxiliou na formação de duas defesas à margem do canal São Gonçalo: uma no passo da Mangueira e a outra no arroio. Na manutenção dessas defesas, Cristóvão Pereira envolveu-se em lutas contra os Tapes, conforme as crônicas de Simão Pereira de Sá: Os tapes mais escandalizados que temerosos entraram por vingança a afugentar e debandar o gado vacum, que cobria a fertilíssima campanha (...) e com tanta fortuna que cabendo mais de cem tapes a cada português (...). Abalizaram meia légua de terra a seu costume bárbaro para a escaramuça, e com todas as vantagens, brandindo as lanças, entraram na peleja, que não foi refutada dos nossos, por não perderem fugindo, o que haviam ganho pelejando. Depois de durar largas horas a batalha, perderam terreno e, feridos das nossa espadas, conheceram os perigos e se retiraram com tanto medo e confusão que nos deixaram com os mortos um importante despojo de cavalos, gado e bestas muares, o que tudo foi com muitos prisioneiros ao alojamento do Coronel, o qual honrou o valor com boas palavras e estimou a vitória por nos custar o excesso, e desigualdade, só sete feridos e um morto (PEREIRA DE SÁ, 1969, p. 101 apud GUTIERREZ, 2001).

Através das incursões, os índios Tapes eram capturados e escravizados e, conforme Gutierrez (2001), trabalhavam nas diversas construções que se executavam no canal de Rio Grande e no entorno. Foram usados na construção de dois núcleos populacionais distintos erguidos entre 1738 e 1749: o núcleo do Porto (atual cidade de Rio Grande), onde se situava o forte JesusMaria-José e algumas moradias; e o núcleo do Estreito. Em 1758, foi doado o rincão de Pelotas a Tomaz Luiz Osório, dada sua contribuição na guerra Guaranítica. Nesse espaço foram implantadas sete charqueadas, sendo seis na margem esquerda 38

do arroio Pelotas e uma na Laguna dos Patos. O rincão possuía os seguintes limites naturais: Laguna dos Patos; sangradouro da Mirim (atualmente chamado de canal São Gonçalo); arroio Pelotas e canal Correntes. Porém, a implantação do núcleo saladeril teria se dado somente a partir de 1780, após a expulsão dos espanhóis (1763-1776) e do tratado de Sto. Ildefonso (1777) (cf. GUTIERREZ, 2001, p. 41). Em 1780 a região de Pelotas foi cotada para receber a Real Fazenda, devido às suas qualidades em termos de recursos naturais e pela presença de índios que poderiam ser usados como mão-de-obra: sobre esta região, o secretário da junta da Fazenda do Rio Grande do Sul de 1775, Sebastião Francisco Bettamio, fez 29 observações: (...) entrando-se pelo sangradouro da Mirim, três ou quatro léguas [19,8km a 26,4km], há muitas e admiráveis rochas de boa pedra, havendo portos de mar que dão lugar à entrada de embarcações grandes, e chegam quase ao pé dos cerros; que ali se transporte a pedra para a vila, (...) uma companhia de cento e cinquenta ou duzentos índios trabalhadores, e que estes se empreguem de baixo da direção de pessoa inteligente em quebrar e arrancar pedras de toda a qualidade (...). 9ª - No mesmo sítio em que se corta pedra, há barro para telha e tijolo, e como na aldeia há índios que sabem fazer estes dois materiais, (...). 12ª - Nas mesmas margens do sangradouro da Mirim em pequena distância, consta-me haverem excelentes madeiras, em cujo corte se podem empregar alguns índios (BETTAMIO, 1980, p. 156 apud GUTIERREZ, 2001, p. 51).

Nota-se, com esse breve histórico dos séculos XVIII e XIX, que envolvem a formação de Pelotas e seu desenvolvimento urbano, que os grupos indígenas passaram por uma série de rupturas culturais, sendo forçados a abandonarem seus locais de moradia tradicional (mapeados arqueologicamente, como veremos adiante), para servirem de mão de obra nas estâncias de gado e na construção dos povoados formados a partir do século XVIII. Juntamente à perda territorial por parte dos grupos indígenas houve uma queda demográfica brutal na região registrada no início do século XIX. Um censo que demonstra o baixo número de indígenas na região foi apresentado por Saint Hilaire, quando de sua visita à Capitania do Rio Grande do Sul (atual município de Rio Grande). Informado pelo curador da paróquia de Rio Grande, esta capitania teria, em 1819: “5.125 indivíduos, a saber: 1.195 brancos, 1.388 brancas, 17 índios, 26 índias, 61 mulatos livres, 98 mulatas livres, 32 negras livres, 38 negros livres, 1.391 negros e mulatos escravos, 879 negras e mulatas escravas” (SAINT-HILAIRE, 2002 [1887], p. 77). Esses números podem ter sido limitados à contagem de pessoas na área limítrofe da zona urbana em formação, sendo as comunidades indígenas interioranas descartadas do censo. Escravizados, aprisionados, fugitivos e utilizados como mão-de-obra, os indígenas que sofreram a esse processo de violência étnica passaram a engrossar a massa de pobreza da cidade de Pelotas, somando-se a homens livres, negros fugidos e alforriados. É interessante notar que já no século XIX há um aumento considerável de investimentos da administração pública na cidade de Pelotas, quando esta ainda era a Vila de São Francisco de Paula, para a manutenção da ordem social e urbana e controle dos “criminosos” - categoria esta na qual muitos indígenas eram enquadrados. Um ofício da Câmara relata ao Presidente da Província que uma força de 457 soldados na ativa e 95 soldados na reserva formavam a Guarda Municipal (AL-ALAM, 2008, p. 65). Nota-se, com isso, um aumento no interesse em controlar os “criminosos”, que seriam, de acordo com a Câmara, “homens da fronteira, pessoas desconhecidas e escravos” (Idem, p. 66). O investimento só aumentou com o tempo. Em 1840-50 já haveria um corpo Policial, e não mais uma Guarda Municipal, que se soma à Santa Casa de Misericórdia de Pelotas como aparelhos de manutenção do poder e da ordem social, pois: “um dos maiores objetivos destas instituições seria o de tirar de circulação das ruas os indesejados, os desordeiros, os pobres” (Idem, p. 85).

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A Casa de Correção Pelotense localizava-se à beira do arroio Santa Bárbara, na zona da “Cerquinha”, assim como a forca que fora constituída na antiga Praça das Carretas (atual Praça Vinte de Setembro ou, como ela é conhecida popularmente: Praça dos Enforcados), estabelecida ali em 1850, próxima de onde foram registradas habitações indígenas ainda no século XIX. Esta região recebeu investimentos municipais, conforme Castro (1944): (...) num ato de reconhecimento e de justiça, a mandar levantar, alto aterro, em torno da área que ocupavam, a fim de que quando as águas do arroio ficassem cheias e transbordantes, não fosse prejudicar as habitações dos nativos (...) como esses acampamentos ficassem por de trás das “Cercas”, ficou por isso denominado “Cerquinhas”.

Com a implantação da Casa de Correção e da forca nesta região, e com o estabelecimento do aparato de controle social em seu entorno, a administração pública buscou ordenar e controlar essa zona marginal da cidade. Tal interpretação leva a crer que os indígenas remanescentes localizados naquela área estavam sujeitos ao mesmo tipo de preconceito social, sendo sua existência percebida pelos administradores como uma ameaça urbana. Porém, não estavam de todo isolados, pois segundo Al-Alam (2008), havia circulação rotineira de pessoas em embarcações e de comerciantes, sendo comum, também, a prática das lavadeiras na margem do arroio. Supõe-se, portanto, uma integração de indígenas à malha urbana em formação no século XIX, os quais, na mesma lógica de servirem como mão-de-obra, passaram a incorporar postos de trabalho “legalizado”, como mostra novamente Al-Alam (2008, p. 89), ao comentar que 11 índios policiais foram internados na Santa Casa de Misericórdia de Pelotas entre 1849-1855. Esta prática de incorporar indivíduos indígenas no corpo policial da cidade também foi relatada por Euclides Franco de Castro, em uma crônica sobre a História de Pelotas publicada no jornal Princesa do Sul (1944, p. 19): Ezequiel Franco possuía às suas custas 12 índios para o serviço policial da cidade e para capturar escravos foragidos. Naquela época, como o serviço de vigilância policial era determinado em lei e prestado gratuitamente por particulares, houve quem se aproveitasse dos seus índios para esse mister (...). Havia índios pagos por particulares para esse serviço (...).

O contrário também ocorria. Comumente, indígenas se tornaram “criminosos”, pois o registro de entrada e saída de presos internados na mesma instituição hospitalar, entre os anos de 1848 e 1853, indica que 2 (6,9%) eram índios (AL-ALAM 2008). Atualmente na Serra dos Tapes, na localidade da Colônia Santa Helena, Rincão da Cruz, 8º Distrito do município de Pelotas, localiza-se a terra indígena, não homologada, denominada na língua Mbyá-Guarani de Kapi’i Ovy (Capim Verde). A área possui aproximadamente 23 hectares, distando cerca de três quilômetros da região central da Colônia Maciel e oito quilômetros da BR 392. O terreno ocupado pela família incluindo casas e roça tem menos de um hectare, na encosta de um morro. Segundo informações orais dispersas, o local é habitado com regularidade há cerca de 30 anos e a atual parentela está no local há 4 anos. Este grupo vive em condições de infraestrutura limitada, sem comprometimento por parte dos órgãos governamentais responsáveis e por parte da sociedade em geral, mantendo-se apenas do sustendo de sua pequena roça e de seu artesanato, assim como da solidariedade de alguns poucos vizinhos. Esta terra é formalmente um parque ambiental (Parque Farroupilha), sob responsabilidade do governo municipal, sem que, até o presente momento, seja feito qualquer tipo de investimento que auxilie as famílias que ali habitam.

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Os cerritos: registros arqueológicos das ocupações Charrua e Minuano Se os dados históricos são lacunares e raros, arqueologicamente pode-se dizer que há uma massa de informações que apontam uma forte presença indígena na região. Nas margens da laguna dos Patos e ao longo da várzea do canal São Gonçalo ocorrem sítios arqueológicos que se configuram por serem aterros construídos predominantemente com terra e diferentes tipos de vestígios de cultura material: restos de fauna, instrumentos líticos e fragmentos de cerâmicos, estruturas de fogueiras, enterramentos humanos. Além de serem encontrados na bacia hidrográfica da laguna dos Patos, os cerritos se encontram no Sul da América do Sul distribuídos nas porções Leste e Norte do Uruguai, Sul do Brasil (Rio Grande do Sul) e na porção Nordeste da Argentina, ocorrendo, predominantemente, no bioma Pampa, em ambientes alagadiços com datações que oscilam entre 4500 anos A.P. e 200 anos A.P.3 (Figura 2). Sinteticamente, pode-se dizer que os cerritos são pensados como áreas de sepultamentos, demarcadores territoriais, áreas de descarte de refugo, praças centrais de aldeias, acampamentos de pesca e plataformas arquitetônicas erguidas para a habitação em áreas alagadiças. Além disso, os aterros são vistos como monumentos que remontam à memória histórica e à identidade social contemporânea dos índios pampeanos, cujas interpretações mais recorrentes correlacionam a construção e uso dos cerritos às ocupações dos índios Charrua-Minuano4 (Figuras 3 e 4). Entre os municípios de Pelotas e Capão do Leão, até o momento, foram mapeados 26 cerritos. Um deles, o cerrito PT-02-Soteia, pode ser interpretado como um acampamento de pesca lacustre, visto que é abundante a presença de vestígios faunísticos oriundos da laguna dos Patos, sobretudo peixes (ULGUIM, 2010). Porém, este mesmo aterro e suas áreas adjacentes devem ter sido utilizados também como área de descarte de materiais de uma pequena aldeia (LOUREIRO, 2008), configurando, assim, um espaço multifuncional de moradia, pesca e processamento de recursos lacustres (GARCIA e MILHEIRA, 2013)5. Na região do banhado do Pontal da Barra houve um investimento maior de pesquisa. Desde o ano de 2006 foram identificados 18 cerritos, dentre os quais seis foram foco de escavações arqueológicas. As datações radiocarbônicas apontam que a ocupação do Pontal da Barra começou a ocorrer desde aproximadamente 2500 anos A.P., até, pelo menos, 1200 anos A.P., sugerindo ser uma ocupação indígena bastante antiga, e permanente, que perdurou por aproximadamente 1300 anos (MILHEIRA, 2013). As escavações arqueológicas no entorno dos cerritos e as análises de vestígios botânicos provenientes do sedimento de um deles, denominado PSG-01, revelaram que o ambiente no período de ocupação deveria ser mais úmido, o que sugere que o banhado seria mais denso do que na atualidade (SOARES, 2014). Isso leva a crer que os ocupantes dos cerritos teriam um ambiente mais encharcado configurando vias de acesso entre os diferentes nichos ecológicos que compõem a várzea do canal São Gonçalo, possibilitando a mobilidade dos cerriteiros (Figuras 5 e 6). Os cerritos do Pontal da Barra parecem ter sido construídos como plataformas elevadas para a moradia em ambientes alagados, visto que os mesmos se localizam em áreas topograficamente mais elevadas. Porém, a função dessas estruturas de aterro não se limitava apenas a moradias. A Análise química do sedimento de um dos cerritos, denominado de PSG-02, apontou um grande potencial agrícola do montículo, e estudos iniciais de arqueobotânica já realizados permitiram a identificação de plantas que poderiam ter sido cultivadas para alimentação, como o milho e a abóbora (SOARES 2014, MÜHLEN 2014)6. Os indícios de caça e pesca, por outro lado, nos permitem ter mais clareza da importância dos animais na dieta alimentar. São muito frequentes, em primeiro lugar, vestígios ósseos de peixes da laguna dos Patos, como Corvina (Micropogonias furnieri) e Bagre (família Ariidae) e, até mesmo, a Miraguaia (Pogonias cromis), 41

cuja espécie era comumente encontrada na laguna até 40 ou 50 anos atrás, sendo rara sua presença na atualidade. São normalmente localizados também ossos humanos que remetem a sepultamentos. Esses sepultamentos humanos denotam um aspecto simbólico, portanto, dos montículos de terra, que reforçam a ideia de que esses aterros não são apenas moradias, nem tampouco somente acampamentos de pesca lacustre. Em nosso entendimento, é possível apontar que esses cerritos seriam multifuncionais, sendo usados como áreas de moradia, túmulos, acampamentos de pesca e, possivelmente, como lugares de plantio, interpretação essa que ainda carece de mais dados empíricos verificados nos contextos arqueológicos. Considerando a riqueza histórica que compõe o contexto arqueológico do Pontal da Barra, com a presença de 18 cerritos de mais de 2 mil anos de existência, cujos dados de pesquisas indicam uma grande complexidade de questões importantes para o entendimento da História indígena regional, o banhado do Pontal da Barra deve ser pensado como uma Paisagem Cultural, um espaço ambiental socializado desde o período pré-colonial. O Pontal da Barra deve ser encarado como um sítio arqueológico de ampla escala, que integra patrimônio cultural e ambiental de maneira holística, devendo, sem sombra de dúvidas, ser preservado em sua integridade pela sua singularidade histórica (Figura 7).

Os Guarani: passado e presente No período que antecede à ocupação europeia na região pampeana, além da ocupação dos grupos construtores de cerritos, são conhecidos também 22 sítios arqueológicos que se referem às antigas aldeias e acampamentos dos grupos Guarani, localizados na serra dos Tapes e no litoral, às margens da laguna dos Patos. Nas praias do município de Pelotas foram identificados sete sítios, entre os quais foram escavados os sítios denominados PS-02-Camping, PT-01-Soteia, PT-03-Lagoinha e PS-03-Totó (MILHEIRA, 2014). Os sítios Soteia e Lagoinha se localizam na Ilha da Feitoria e foram entendidos como acampamentos destinado à coleta de recursos lacustres. Entre os acampamentos estudados, destaca-se o sítio Camping, que recebeu esse nome por se localizar no espaço do Camping Municipal de Pelotas. Esse sítio se extende numa área de aproximadamente 50m de raio, onde foi identificada uma estrutura de deposição de refugos e uma estrutura de fogueira, composta por uma vasilha de cerâmica (ñaetá com decoração escovada), em que, no seu interior, se encontravam dezenas de fragmentos de cerâmica de outras vasilhas. Essa estrutura de fogueira foi datada em 380 ± 50 A.P., apontando uma ocupação Guarani no período colonial (Figura 8). O sítio Totó, localizado na margem do arroio Totó, na praia do Totó, tem uma área de aproximadamente 200m de raio e foi interpretado como uma aldeia. Nesse sitío foi identificada uma urna funerária na barranca do arroio Totó e uma estrutura de terra preta que remete ao piso abandonado de uma casa Guarani (datada em 510 ± 40 A.P.), articulado a uma área lixeira (datada em 530 ± 40 AP) também à beira do arroio Totó7 (Figura 9). Na região da Serra dos Tapes, por sua vez, foi localizada uma série de antigas aldeias Guarani ao longo da bacia hidrográfica do arroio Pelotas. Os sítios arqueológicos apresentam uma ampla dispersão de fragmentos de cerâmica associados a manchas de terra preta que remetem a pisos de habitação do espaço das aldeias. O sítio PSGPA-04-Ribes destaca-se nesse contexto, extendendo-se por uma área de meia encosta, alcançando aproximadamente um raio de 250m, onde se apresentam três manchas de terra preta, comumente definidas pela literatura especializada como pisos de 42

habitação (NOELLI, 1993). No sítio Ribes foi identificada uma urna funerária, uma vasilha do tipo cambuchí guaçú (datada em 510 ± 70 A.P.), contendo um pote do tipo cambuchí guaçú emborcado como tampa. Fazendo parte do contexto funerário ainda havia uma vasilha do tipo ñaetá acima da urna, provavelmente depositada ali como oferenda no ritual de sepultamento8 (Figura 10). Nesse contexto é interessante notar que as datações dos sítios Guarani da serra e do litoral são contemporâneas, sugerindo algum tipo de interação entre as aldeias de ambas as regiões. Esta interação sugere que havia um sistema de assentamento Guarani articulado, de um lado, entre as aldeias serranas, provavelmente ocupadas tradicionalmente pelas chefias mais reconhecidas e, de outro, pelas aldeias do litoral, que podem ser entendidas como indicadoras do processo de anexação territorial em operação pelos Guarani, em torno do século XVI, configurando o que na língua Guarani é definido como um teko’á, ou seja, um território de domínio Guarani articulado entre as terras altas da serra dos Tapes e as terras baixas do litoral lagunar. O processo de expansão do território de domínio Guarani iniciado por volta do século XII, conforme as datações radiocarbônicas, e que se intensifica ao redor dos séculos XV e XVI, partindo do interior serrano em direção ao litoral, teria sido “barrado” pela chegada das populações do velho mundo, ainda no século XVI e, mais fortemente, a partir do século XVII. As práticas belicosas e violentas, historicamente conhecidas, que foram desenvolvidas pelos europeus para a captura de escravos e para o domínio territorial geraram um ambiente de terror e genocídio na região, não fugindo à regra geral, conhecida em todo litoral brasileiro.

Conclusão Como dito na primeira parte do texto, os livros de História regional quando se referem às populações indígenas, apresentam-nas de uma forma extremamente sintética e lacunar, raramente ultrapassando as duas ou três primeiras páginas introdutórias9. O índio é tratado nestes textos como o habitante original da terra, o selvagem, o bravio. Romanceado, o índio se torna um personagem que atua apenas no primeiro ato de uma imaginária peça histórica, cuja participação consiste em arrumar o palco e abrir as cortinas para o teatro da civilização - que tem início no segundo ato. Basta um breve olhar sobre livros bastante conhecidos que reforçam a historiografia tradicional para vermos trechos que reforçam nossa argumentação, que relega o elemento indígena a um segundo plano no processo histórico pampeano. Em seu livro intitulado Sociogênese da Pampa Brasileira, datado de 1927, o historiador renomado Fernando Osório escreveu o que podemos chamar de um tratado sociológico que narra a epopeia da formação da “raça” gaúcha, a qual se fundamenta, sobremaneira, nos atos heroicos de indivíduos europeizados, cuja força e bravura teriam sua origem na capacidade belicosa dos portugueses e espanhóis. Aos indígenas, na narrativa do autor, coube apenas sua função em servir de mão de obra e de peão de guerra: (...) em nenhum outro território americano teve o índio, como no Rio Grande, incorporado espontaneamente a função social que exerceu, ao cabo de decênios nas milícias e no cenário das estâncias (OSÓRIO, 1927, p. 41-42).

Após servir “espontaneamente” em sua função social em “defesa da Pátria Brasileira”, como quer o autor, o indígena lentamente deixa a cena social em prol da arianização da “raça gaúcha”: Proclama-se, ainda hoje, que nenhum desequilíbrio étnico apresenta o Rio Grande, cujos habitantes são os mais arianizados do Brasil, bem como o fato, aqui insofismável, 43

da tendência, para a homogeneidade, com o predomínio das características nacionais, brasileiras, nos grandes grupos que representam oitenta por cento, talvez, da nossa população de origem estrangeira (OSÓRIO, 1927, p. 42-43)10.

A massiva presença indígena arqueologicamente detectada (que ultrapassa em mais de dois milênios a data de surgimento de Pelotas - datada de 7 de Julho de 1812, como apontam todos os livros da História oficial), mas historicamente esquecida, sugere que a História da cidade de Pelotas é multicultural e multiétnica e não deve ser limitada aos seus 200 anos, mas ampliada aos seus 2500 anos, envolvendo organicamente a historicidade indígena, algo que a historiografia tradicional teima em esquecer.

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MÜHLEN, C. Humanos, plantas e paisagem: a Arqueopalinologia como ferramenta para análise dos processos formativos do Cerrito PSG-02 Valverde, Pelotas, RS. Monografia. Pelotas: UFPel, 2014. NOELLI, F. Sem Tekohá não há Tekó (Em busca de um modelo etnoarqueológico da subsistência e da aldeia Guarani aplicada a uma área de domínio no Delta do Jacuí-RS). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1993. OSÓRIO, F. A cidade de Pelotas. 3ª ed. rev. Pelotas: Armazém Literário, 1997 (vol. 1). _____. Sociogênese da Pampa Brasileira. Pelotas: Livraria Commercial, 1927. SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1987 [1887]. SCHMITZ, P. Sítios de pesca lacustre em Rio Grande, RS, Brasil. Tese de Livre Docência. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 1976. SOARES, G. Análise de palinomorfos de 3 níveis estratigráficos do cerrito PSG – 01, Pelotas, RS – Brasil. Monografia. Rio Grande: FURG, 2014. ULGUIM, P. Zooarqueologia e o estudo dos grupos construtores de cerritos: um estudo de caso no litoral da laguna dos Patos-RS, sítio PT-02 cerrito da Soteia. Monografia. Pelotas: UFPel, 2010. VON IHERING, H. “Os índios patos e o nome da lagoa dos Patos”. In: ODEBRECHT, C. (comp.). A Lagoa dos Patos no século XIX na visão do naturalista Hermann Von Ihering. Rio Grande: Ecoscientia, 2003 [1907], p. 47-59.

Notas do Pesquisador 2

Cf. OSÓRIO 1997, p. 54.

3

Cf. LOPEZ MAZZ e BRACCO, 2010.

4 Cf. SCHMITZ, 1976; BASILE-BECKER, 1992; LOPEZ MAZZ e BRACCO, 2010. No entanto, essa correlação não é consenso entre os pesquisadores, já que os cerritos têm uma profundidade temporal de até 4500 anos A.P., enquanto que os grupos Charrua e Minuano foram relatados pelos cronistas e viajantes, a partir do início da colonização europeia. Nesse sentido, há uma crítica consistente que aponta um desconforto em se fazer essa correlação tão clara entre a cultura material dos grupos construtores de cerritos e as etnias indígenas historicamente conhecidas. Além disso, Lopez Mazz e Bracco (2010) consideram que não se pode atribuir a existência dos cerritos aos grupos Charrua e Minuano, pois, apenas os Minuano teriam suas áreas de ocupação coincidentes com a área de ocorrência dos cerritos, logo, a construção e ocupação dos montículos, se atribuída a umas das etnias pampeanas historicamente conhecidas, seria, portanto, a dos Minuano.

Outra área onde foram encontrados cerritos na porção meridional da laguna dos Patos é a várzea do canal São Gonçalo, mais especificamente na margem da lagoa do Fragata, localizada entre os municípios de Pelotas e Capão do Leão. Na lagoa do Fragata foram identificados, até o momento, sete cerritos, cujos trabalhos arqueológicos se limitaram apenas ao mapeamento dos sítios e um balanço sobre a sua situação de preservação (MILHEIRA, PEÇANHA e MÜHLEN, 2014).

5

Ainda não está claro em nossas pesquisas se os vestígios botânicos de alimentação seriam de plantas cultivadas pelos construtores de cerritos na área do Pontal da Barra ou se esses teriam sido apenas consumidos no local, tendo sido manejados, cultivados e adquiridos em outras localidades ainda não conhecidas na região. 6

7

Cf. MILHEIRA, 2014; ALVES 2012.

8

Cf. MILHEIRA, 2014.

Por exemplo: ver os títulos que versam sobre a formação da cidade de Pelotas, cujas obras são frequentemente citadas na historiografia tradicional: Magalhães (1993; 2000) e De León (2011 [1993]). 9

É ainda interessante destacar uma nota colocada em sua obra, que remete ao trabalho de Oliveira Vianna, intitulado Evolução do Povo Brasileiro, de 1923. Nesta nota consta que: “É rápida, no extremo-sul, a destruição da população negra. Em menos de um vintênio (quadro do recenseamento de 1872 a 1890) o seu coeficiente, que é de 18,3 cai a 8,7, com uma grande redução, portanto, de 9,6%. Por sua vez, o elemento indígena conserva-se, por assim dizer, estacionário, apresentando mesmo uma pequena redução de 0,5. Ao passo que é magnífico o movimento ascensional do tipo ariano, que, em 1872, representa quase 60% da população e que, em menos de vinte anos, em 1890, passa a representar os seus 70%. Mais 26%, portanto, do que a média geral do país” (OSÓRIO, 1927, p. 42).

10

45

Figura 1

Figura 2

Figura 3

Figura 7

Figura 8

Figura 10

Figura 4

Figura 5

Figura 6

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Figura 9

Pesquisa, seleção de imagens e notas: Rafael Guedes Milheira. Figura 1: Ilustração de uma “pelota”. Fonte: Osório (1997). Figura 2: Mapa do município de Pelotas com a localização dos sítios arqueológicos Guarani (pontos em vermelho) e dos cerritos (pontos em verde). Figura 3: Remanescentes Charruas. Século XIX, Uruguai. Fonte: Acervo do autor. Figura 4: Cavaleiro Charrua representado em xilogravura de Jean Baptiste Debret. Século XIX. Fonte: Acervo do autor. Figuras 5 e 6: Respectivamente, imagem aérea e vista panorâmica do Pontal da Barra em épocas de cheia, onde se observa a mata na qual se localizam os cerritos, ficando evidente a importância da área alagada no entorno destes, o que permitiria a mobilidade e circulação das pessoas pelo ambiente lagunar. Fonte: SOARES (2014); Fotografia do autor. Figura 7: Banhado do Pontal da Barra, com capão de mato típico de onde se localizam os cerritos (detalhe 01); Perfil estratigráfico retificado no cerrito PSG-02 (det. 02); Escavação arqueológica no topo do cerrito PSG-02 (det. 03); Osso de peixe identificado no cerrito PSG-04 (det. 04); Fragmento de cerâmica com decoração escovada identificada no cerrito PSG-04 (det. 05); Instrumento lítico polido identificado no cerrito PSG-02 (det. 06); Mandíbula humana associada a pingente em dente de golfinho no cerrito PSG-02 (det. 07). Figura 8: Contexto da estrutura de combustão escavada no sítio acampamento Guarani denominado PS-02-Camping, datada de 380 ± 50 A.P. Foto: Rafael Milheira. Figura 9: Contexto de escavação do piso de habitação da aldeia Guarani do sítio PS-03-Totó, datado de 510 ± 40 A.P (detalhe a); artefato lítico e fragmentos de vasilhas cerâmicas de uso quotidiano (detalhes b, c, d); contexto da estrutura de lixeira, datada de 530 ± 40 A.P., localizada à beira do arroio Totó, lindeira à habitação (detalhes e, f, g). Fonte: Fotografias de Aluisio Gomes Alves. Figura 10: Contexto da estrutura funerária escavada no sítio aldeia Guarani denominado PSGPA-04-Ribes, datada de 510 ± 70 A.P. Fonte: Fotografia de Rafael Milheira.

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