Pensamento Polifônico: Clínica e Poesia

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O pensamento clínico é polifônico, polissêmico, concertante, exatamente como certo gênero de poesia. O tipo de poesia que eu faço. Como há quem considere a poesia deste gênero desconcertante [a poesia que trabalha com cantos e contracantos, como a música], escolhi trabalhar uma dessas poesias aqui e mostrar a ligação da mesma com o estilo de pensamento clínico que se processa em meu estilo de trabalho. Escolhi o poema Mel, que é para "adoçar a boca logo de cara". Uma amiga terapeuta o nomeou como difícil, daí a minha escolha. Se bem "decupado", ver-se-á que tudo faz sentido. O poema é orgânico, jamais arbitrário. Assim como a música. Para quem sabe o que está fazendo.


Mel
Olha, no início eu até te achei
meio xiita, embora hoje isso nem
seja o mais extremo [siga em frente
e finque o passo ao pé da vírgula]:
essa coisa de definir sem admitir
ser definida.
Tua pegada filosófico-inominada,
inintitulável [ouça o que eu tenho a
te dizer a respeito: não creio no teu tempo
de pisar o tempo]: no fundo, mesmo, aquela
velha pegada oriental, mal orientada.
Realize o feito: Kwai Chang Caine
em moldura de jornal. [Ficionalize ou
caia na Real].
Inverta o eixo [vértico-horizontal],
ajuste o ângulo [sai de fre(n)te e põe
o pé no fr(e)io], devolva o céu a seu limite.
[Parece até pedir ajuda, mas não].
Esquece atrás de si o mel ou
algo semelhante [os registros
paquidérmico-taquigráficos da
televisão]: embarque no falecido
seriado do Dr. Smith! Desta vez,
não grite. Deixe o teu estrilo anão
[o pé seguro, no estrib(ilh)o] na Terra
de Gigantes.
A marcha que se fez até aqui
[gangorra em ponto neutro ou morto]
justifica o título: zero zero zero.
[QSL, QSL... inoperante.
Câmbio.]
Marcelo Novaes


Quando temos qualquer texto polifônico [e o mesmo se dá na música, como no Campo Simbólico que constitui um Encontro Analítico], devemos, em primeiro lugar, separar as assertivas. Isso seria uma "decupagem" do texto, como faríamos definindo as cenas de uma peça teatral ou num roteiro cinematográfico. Take One... Vamos definir a primeira assertiva deste poema, para apreendermos o ponto de partida do que, a princípio, soa inapreensível para alguns.
Olha, no início eu até te achei
meio xiita, embora hoje isso nem
seja o mais extremo:
essa coisa de definir sem admitir
ser definida.


Aqui, temos a primeira unidade semântica do texto, bastante simples e bastante clara. O poeta diz que, a princípio, sua interlocutora [pessoa, mulher?] lhe pareceu "meio xiita" num aspecto bastante claro: no aspecto de querer definir outrem [outros, em geral], sem admitir que lhe definam. Essa situação genérica [e clara] pode ser apreendida por qualquer leitor, porque qualquer um pode imaginar/conceber o que seja uma situação assim: aquele que define sem conceber que lhe imputem qualquer definição. Há um adendo nessa estrofe, que tem a ver com os dias de hoje: ser "xiita" não é mais a forma mais extrema de se conceber um "extremado defensor de um ponto de vista", em tempos de Estado Islâmico e coisa e tal. Sr um "wahabista", por exemplo, seria algo bem mais extremo do que ser um "xiita". Ocorre que o termo "xiita" se tornou um designativo popular em nosso uso linguístico para pessoas "fervorosas" em qualquer causa, da religião à alimentação. O poema se vale desse uso popular da palavra, fazendo a ressalva de que "o xiismo não é o extremo mais extremo do espectro do fervor fanático", em qualquer setor que seja. Isso fica bastante claro desde o início do poema. Aliás, tudo começa no início e isso não é um pleonasmo.

Olha, no início eu até te achei
meio xiita, embora hoje isso nem
seja o mais extremo:
essa coisa de definir sem admitir
ser definida.


Olha, no ínício eu até te achei meio xiita, embora isso nem seja o mais extremo: essa coisa de definir sem admitir ser definida. Ou seja: a primeira impressão causada pela pessoa narrada foi a de ser "um tanto xiita", com a ressalva de que há sujeitos ainda mais extremados em suas firmes posições. E o narrador poético pontua especificamente em que aspecto achou a personagem narrada "extremada", ou "um tanto extremada": não aceitar ser definida por ninguém, embora disposta a definir outrem [e/ou as coisas em geral]. Simples e claro.

Nessa estrofe, há uma observação entre colchetes, o que é característico da minha poesia e de todo subtexto no teatro: aquilo que está pressuposto no que é dito, e que pode ser entredito ou ter sido dito antes ou ao pé do ouvido do interlocutor. Em minha poesia ou raciocínio "concertante" [em mais de uma voz], essa observação reforça algum aspecto da assertiva principal, como um contracanto realça a melodia principal num concerto. O que está dito entre parênteses [ou entre colchetes] para o leitor [ou para a personagem, e eis a primeira questão polissêmico-polifônica] é o seguinte: siga em frente/
e finque o passo ao pé da vírgula.

Enfim, um "xiita da sintaxe", no conselho dado. Você que não quer ser definida [ou você, leitor, que pode ou não se identificar com a personagem "meio xiita", a princípio] siga em frente e finque o passo ao pé da vírgula. Ou seja: não perca o ritmo do poema. Não se perca nos cantos e contracantos. Não perca nada de vista, para bem apreendê-lo. Esse é um conselho "meio" irônico [como é "meio" xiita a personagem narrada...], uma vez que, aqui, se trata de "definir como o leitor deve seguir o passo do poema: fincando seu passo firmemente no ritmo dado, pari passu [em passo equivalente e simultâneo] à própria partitura do poema que, como na música, define como ele deve ser lido". Assim, temos a leitura dessa primeira estrofe concluída, em seu canto e contracanto:

Olha, no início eu até te achei
meio xiita, embora hoje isso nem
seja o mais extremo [siga em frente
e finque o passo ao pé da vírgula]:
essa coisa de definir sem admitir
ser definida.


Passemos à segunda estrofe do poema que, como a primeira, pode ser "decupada" [ou decomposta para ulterior recomposição] em assertivas [ou "cenas"] simples. Comecemos, como o fizemos antes, pelo que está fora dos colchetes. Ou seja, pela melodia ou canto principal. Pela assertiva a ser "realçada" [e/ou contrastada] pelo contracanto posto entre parênteses/colchetes. A assertiva dessa segunda estrofe é a seguinte:

Tua pegada filosófico-inominada,
inintitulável : no fundo, mesmo, aquela
velha pegada oriental, mal orientada.

Pois bem, aqui o narrador suspeita da "base filosófica" ou da "palpabilidade" das convicções de seu interlocutor [ou da personagem interlocutora]: diz que sua pegada filosófica [seu rastro filosófico] não pode ser nomeada nem receber um título, assim como ela mesma não admite ser nomeada! Sua filosofia [a da personagem narrada] é difusa, como a pegada que não se imprime direito. Pode até soar místico-fervorosa [no fundo, aquela velha pegada oriental...], mas carece de orientação [no fundo, mesmo, aquela velha pegada oriental, mal orientada]. Aqui há um questionamento da palpabilidade das convicções dessa personagem que, no início do poema, surgiu como aquela que "define sem admitir ser definida". Pois bem: sua "filosofia-de-base" parece equivalente à sua pretensão designativo-nominativa: pretender definir sem estar ainda definida, ou sendo, na melhor das hipóteses, "mal-orientada". A sequência do poema será eloquente em nos dar um "ideograma" dessa "falta de definição" [ou "ausência de rastro"] na pegada filosófica que-não-se-pode-nomear-com-precisão da personagem aludida. Haverá a menção a um personagem de seriado de televisão dos anos setenta: Kwai Chang Caine, o personagem central da séria "Kung Fu", aquele que andava sobre papel de arroz sem deixar rastros! Mas prossigamos, ainda, nessa estrofe, acompanhando o contracanto dessa narrativa polifônica, a observação entre colchetes/parênteses. Temos um acréscimo semântico aqui, e isso se dá para qualquer partitura plifônica, seja literária ou musical: o contracanto dialogará tanto com a melodia principal [o texto posto nessa estrofe], quanto com o contracanto [o que "fazia contraste com" e/ou "realçava" o canto] da primeira estrofe. Vamos, então, ao contracanto dessa estrofe: ouça o que eu tenho a
te dizer a respeito: não creio no teu tempo
de pisar o tempo.


Interessante. O que dizia o contracanto da primeira estrofe? Siga em frente/
e finque o passo ao pé da vírgula. O que diz o contracanto dessa? Ouça o que eu tenho a/
te dizer a respeito: não creio no teu tempo/
de pisar o tempo.
O narrador não crê que o interlocutor possa acompanhar o texto em seu próprio [=do texto!] compasso, sem falseá-lo! Como sua pegada [inclusive sua "pegada filosófica"] é mal orientada, ele [o personagem "meio xiita"] não conseguirá acompanhar a métrica ou a partitura do próprio texto, porque quererá lhe impor sua própria definição! Não deixará que o texto a si mesmo se defina. Tal se dá com todo o fanático ou com todo aquele que não segue, pari passu, o que lhe é apresentado, sem lhe impor definições extrínsecas. A definição da personagem é extrínseca ao texto que a tem como personagem! Isso é óbvio.

Ouça o que eu tenho a te dizer sobre fincar o pé ao pé da vírgula: não creio no teu tempo de marcar o tempo, extrínseco ao tempo da partitura do texto/poema sinfônico!


Pois bem: o contracanto na só dialoga com o contracanto da estrofe anterior, dando-lhe continuidade, mas "contracena", também, com a melodia principal dessa estrofe. Voltemos a ela: Tua pegada filosófico-inominada,/
inintitulável : no fundo, mesmo, aquela/
velha pegada oriental, mal orientada.

O contracanto diz: Ouça o que eu tenho a/
te dizer a respeito: não creio no teu tempo/
de pisar o tempo.


Tua pegada não finca pé ao pé de nada, não acompanha o compasso do que eu digo. Não boto fé na tua capacidade de acompanhar a partitura. Assim, o contracanto dá prosseguimento ao contracanto da primeira estrofe, bem como faz um contraponto/realce ao que é afirmado na assertiva dessa segunda estrofe.


Prossigamos com o poema. A terceira estrofe tem como assertiva principal [ou "melodia"] a seguinte assertiva: Realize o feito: Kwai Chang Caine/
em moldura de jornal.

Quais as notícias contemporâneas sobre Kwai Chang Caine? A série está extinta. David Carradine morreu num suicídio. As últimas notícias de jornal não são auspiciosas a respeito das pegadas do "velho mestre". Na própria séria, ele sumiu na estrada sem deixar pegadas. A pessoa que quer definir sem admitir ser definida, talvez não o possa admitir por não ter se definido para si mesma! O contracanto dessa estrofe reforça/realça o argumento: Ficionalize ou/
caia na Real.

Aqui, temos um Real com maiúscula, um Real que subsiste e sobrevive a todas as nossas ficções ou "pegadas filosóficas enviesadas"; um Real que sobrevive a todos os nossos vieses, que "está ali, independente de nós, quer o queiramos ou não". Há muitas definições de Real possível, mas esta é suficiente para a "partitura" do poema que temos diante dos olhos.

A próxima estrofe do poema é a mais "entrecortada", o que significa dizer: é aquela que acumula subtextos ou "contracantos" em seu bojo. A melodia, aqui, é realçada por uma moldura filigranada de adendos e contrastes. Podemos escrever essa estrofe como fizemos até aqui: toda a assertiva sem colchetes/parênteses, toda a melodia principal. Também podemos ir-lhe acrescentando "um contracanto por vez", até reconstituir-lhe em seu conjunto. Como veremos, há mais de um contracanto implicado nessa quarta estrofe.

Vamos à assertiva principal, sem qualquer contracanto:

Inverta o eixo,
ajuste o ângulo, devolva o céu a seu limite.

Essa é uma assertiva forte. Devolver o céu a seu limite [ou devolver o aparentemente- sem-limite a seu limite] é, de fato, uma grande mudança de perspectiva. Equivale a girar o caleidoscópio, ou inverter o eixo de um gráfico, as coordenadas de um gráfico: trocar as ordenadas por abscissas! As três assertivas somadas, como num crescendo melódico, reforça a ideia dessa estrofe/canto principal: Inverta o eixo,
ajuste o ângulo, devolva o céu a seu limite.
Isso é "canto-em-progressão": do eixo-do-gráfico ao céu!

A essas três assertivas da estrofe correspondem três realces melódicos, ou três contracantos: um contracanto para cada afirmação, sendo que o segundo deles é um "contracanto duplo", ampliando a polissemia do texto [ou polifonia do poema-partitura]. Ao canto "inverta o eixo" segue-se o contracanto "vértico-horizontal", o que define as coordenadas do gráfico a serem invertidas; á continuação desse canto, "ajuste o ângulo" há um contracanto duplo, um dentro do outro, que se traduz no seguinte: parênteses dentro de colchetes, como segue: [sai de fre(n)te e põe/
o pé no fr(e)io]. Aqui há duas frases possíveis para definir esse juste de ângulo, como contracanto a realçá-lo: a) sai de frente e põe o pé no freio e/ou b) sai de frete e põe o pé no frio. Esses dois contracantos, imbricados um no outro, dialogam com o primeiro contracanto do poema: siga em frente/
e finque o passo ao pé da vírgula.

Sai de frente e finque o pé no freio, primeiro contracanto, parece reiterar a advertência do contracanto da primeira estrofe, qual seja: siga o ritmo do poema, em frente, fincando o pé a cada pausa. Ou seja: pise no freio quando a partitura assim o exigir, respeite a métrica do poema, seu ritmo de cantos e contracantos, sua fluidez intrínseca: siga o fluxo do Mel. O segundo contracanto é mais enigmático e, por isso mesmo, mais rarefeito: sai de frete e põe o pé no frio.

Sair de frete é deixar-se conduzir, é ser transportado. O pé não possui controle do veículo [porque o veículo é a própria partitura, extrínseca ao personagem]: só se pode por o pé no frio, uma vez que não há freio [ou acelerador!] algum ao alcance dele! Assim, o segundo contracanto imbricado no primeiro sugere uma "cessão do controle" ainda maior por parte do personagem "meio xiita" que quer nomear tudo, mas não admite ser nomeado: ele que pegiue carona na partitura, ponha o pé no frio e devolva o céu ao próprio céu! "Devolver o céu ao seu limite" também é isso: devolvê-lo a si mesmo. Não pseudo-nomeá-lo! Esssas são as difíceis injunções do narrador do poema à personagem. Diante delas todas, o narrador constata o seguinte [terceiro contracanto dessa estrofe]: Parece até pedir ajuda, mas não. Para seguir em frente e por o pé no freio, para seguir em frete e por o pé no frio, para devolver o céu a si mesmo [ou a seu limite], a personagem parece até pedir ajuda, mas não. Ênfase no "até". Isso é um belo contraponto ao início do poema: Olha, no início eu até te achei/
meio xiita. Agora, a personagem parece até pedir ajuda. Mas não. A mudança de pontuação aqui é proposital para reforçar o quanto cada até tem seu peso, e eles se sobrepesam, somando uma convicção [a do narrador do poema]! Um "meio xiita" que jamais pede ajuda pode ser, de fato, um xiita completo! Aqui, não é dito que jamais ele pede, mas que até parece pedir, como lá atrás até parecia meio xiita. Sobrepesos ou contrapesos? Eis outra polissemia do texto.

A quinta estrofe é a mais cerrada e complexa de toda a partitura: não só por sua extensão, mas pela carga de informação que traz. Vamos a ela, retomando [e recuperando] o mesmo método que usamos para a quarta estrofe do poema: em primeiro lugar, a assertiva simples [?] sem qualquer adendo ou contracanto. A quinta estrofe poderia, num primeiro momento, ser reduzida, em sua "essência melódica", à seguinte assertiva: Esquece atrás de si o mel ou
algo semelhante: embarque no falecido
seriado do Dr. Smith! Desta vez,
não grite. Deixe o teu estrilo anão
na Terra de Gigantes.


Os contracantos, aqui, serão extremamente úteis e necessários ao contexto, mas as injunções prosseguem, numa sequência de seriados televisivos que dão sequência à menção, na terceira estrofe, ao seriado Kung Fu e a seu personagem principal, Kwai Chang Caine, ambos já falecidos: personagem e seriado. E mais do que isso: morto o ator em circunstâncias trágico-nebulosas. Siga em frente e finque o pé ao pé da vírgula. Esquece atrás de si qualquer visgo [o mel] ou algo semelhante ao visgo [o mel, o doce visgo]: embarque em outro seriado agora, o do falecido Dr. Smith! [Perdidos no Espaço!] Outro seriado falecido, mas estar neste [perdido no espaço] equivale a "devolver o céu a seu limite", por sabê-lo maior! Dessa vez, não grite. Deixe seu estrilo anão [suas pequenas ressalvas existenciais e nominativas] em outro seriado, que colocará teu próprio grito em sua perspectiva anã: "Terra de Gigantes!" Aqui nós temos uma progressão de injunções [ou assertivas-em-progressão] paralelas às assertivas da estrofe anterior, também em progressão, ou num "crescendo melódico", qual seja: inverta o eixo, ajuste o ângulo, devolva céu a seu limite, assuma-se em outro seriado ["perdido no espaço, sabendo seu próprio limite em relação ao céu"] e assuma seu próprio resmungo ou grito como "resmungo-anão" numa Terra de Gigantes.

Entendamos e acrescentemos cada contracanto na progressão melódica apresentada. Esquece atrás de si o mel ou algo semelhante [os registros
paquidérmico-taquigráficos da
televisão]...


Os seriados caminham lentamente, são como paquidermes em sua lentidão do aparente sem fim. Mas morrem. São lentos e taquigráficos ao mesmo tempo. Os registros que eles deixam se apagam até o "não tem registro" do robô do mesmo seriado Perdidos no Espaço. O contracanto exemplifica isso. Esquece atrás de si o mel ou algo semelhante [...]:embarque no falecido
seriado do Dr. Smith! Desta vez,
não grite. Deixe o teu estrilo anão
[o pé seguro, no estrib(ilh)o] na Terra
de Gigantes.

Mais uma vez o pé. Finque o pé no pé da vírgula, sempre colado à partitura, pise no freio, acompanhando-a: o pé seguro no estribo e no estribilho da música-em-curso, ou do poema-em-curso. Não se perca, personagem ávida por definir, sem definir-se nem permitir-se ser definida. Eis o que diz a quinta estrofe. E a sexta [a última] arremata:

A marcha que se fez até aqui
[gangorra em ponto neutro ou morto]
justifica o título: zero zero zero.
[QSL, QSL... inoperante.
Câmbio.]


Vamos isolar a assertiva, como fizemos até aqui: A marcha que se fez até aqui/
justifica o título: zero zero zero.

A marcha que não respeita a partitura do poema desemboca num seriado mulificado: zero zero zero, em ironia ao zero zero sete, uma vez que zero zero zero é duplamente inexistente: enquanto número e enquanto filme. Não existe. O contracanto assume que a marcha-que-não-é-marcha, porque a personagem assim não o soube encaminhá-la [o que equivale a dizer: não soube marchar], diz o contracanto ser gangorra em ponto neutro ou morto.

Quem assim não marcha, perde contato com a torre de comando, com o radar, com o outro, em sentido amplo. Fica á deriva, como a aeronave de Perdidos no Espaço. O contracanto o reitera: QSL, QSL... inoperante.
Câmbio.


O poema encadeia imagens e ritmo num conjunto que, em seu próprio desdobramento, é polissêmico, polifônico e onde imagem-puxa-imagem, em associações-em-bloco, e sons puxam sons, no processo poético onde a palavra-som é tão importante quanto a palavra signo. Esse tempo-real é o tempo que se pede á personagem na atenção que dê à partitura simbólico-sonora que se lhe apresenta diante da própria (in)compreensão, assim comoa cada terapeuta-intérprete do Campo Simbólico onde se inscreve com o analisando-cliente existe uma exigência de acompanhamento da própria partitura que ali [e então] se instaura, sem pré-figurações ou falácias.


Como num poema polifônico.







Marcelo Novaes













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