Pensando o gênero nas relações internacionais

June 6, 2017 | Autor: Larissa Isquierdo | Categoria: International Relations Theory, Feminist Theory, Transnational Feminism
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Pensando o gênero nas relações internacionais

Larissa Bozza Isquierdo[1]

Resumo
O objetivo desta exposição é localizar a categoria gênero no debate da
disciplina através da revisão da produção recente das acadêmicas feministas
em Relações Internacionais, focando em suas escolhas metodológicas,
identificadas como predominantemente pós-positivistas. O uso desta
categoria faz parte do esforço teórico das feministas em repensar a própria
disciplina em termos de um compromisso metateórico com um projeto
emancipatório - compromisso este que permeia parte significativa do
terceiro debate em RI entre positivistas e pós-positivistas. A análise
contextualizará o triunfo das preferências metodológicas positivistas,
especialmente nas universidades estadunidenses, como parte de um projeto
científico apoiado, de um lado, pelos interesses e preocupações dos Estados
Unidos durante a Guerra Fria e, de outro, pelos desejos da própria
comunidade acadêmica, motivada pela autonomia da investigação racional em
oposição às ideologias totalitárias. Na década de 80, em razão das inúmeras
mudanças nas relações sociais internacionais, emerge a crítica pós-
positivista, incluindo-se neste grupo as teóricas feministas. Dada a
complexidade no interior da mesma filiação teórica, será apresentada uma
proposta de classificação das teóricas a partir da própria literatura e em
diálogo com as escolhas metodológicas prevalecentes.


Introdução

Fundamentado, num primeiro momento, na busca da igualdade entre homens
e mulheres, e, posteriormente, expandindo seu escopo de reivindicações,
existe uma indeterminação sobre a origem do feminismo enquanto movimento
social. Um dos marcos significativos, associados à sua gênese na
modernidade, foi o lançamento do manifesto "Declaração do Direito das
Mulheres", escrito em 1791, por Olympe de Gouges – posteriormente
decapitada. A escritora e militante francesa denunciava a "Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão" como um documento que não contemplava os
interesses das mulheres e as excluía da vida política e cidadã, e exigia a
adoção de seu manifesto, pautado na equidade jurídica e legal de homens e
mulheres. O documento foi rejeitado pela Assembleia Nacional francesa, em
28 de outubro de 1791, e, Gouges executada, em 1793, pelas críticas cada
vez mais duras que fazia ao governo dos jacobinos e pela sua intransigência
na defesa dos direitos das mulheres.
Embora eventos importantes para uma história do feminismo tenham
ocorrido nos séculos XVIII e XIX – como a publicação de "A Vindication of
the rights of woman" de Mary Wolstonecraft[2], na Inglaterra, em 1792, e a
Convenção em Seneca Falls[3], Nova Iorque, em 1848 – foi no século XX que o
movimento alcançou uma considerável amplitude social, especialmente após a
adoção do sufrágio universal, na França, Itália e Japão, em 1939, o que
reforçou os movimentos feministas sufragistas em outras localidades, e,
finalmente, penetrou na esfera da produção acadêmica, em 1948, com a
publicação de "O Segundo Sexo", obra de Simone de Beauvior, filósofa e
feminista francesa.
Nas relações internacionais, autoras como Ann Ticknner (1992) e
Sandra Harding (1987) afirmam que houve uma entrada tardia da perspectiva
feminista na disciplina. Enquanto que nas demais ciências sociais, o
feminismo apresentava uma penetração crescente desde a década de 1960, nas
Relações Internacionais (RI) ele passa a atrair a atenção de pesquisadoras
e pesquisadores apenas na década de 1980, juntamente com o debate trazido
em conjunto com outras perspectivas pós-positivistas – como o
construtivismo, a teoria crítica e o institucionalismo histórico-
sociológico –, compondo o chamado "terceiro[4] debate" da disciplina.
Para Tickner (2001), a entrada das feministas nas RI pode ser
dividida em dois momentos, que ela classifica como "duas gerações". A
primeira geração[5] de feministas em RI, preocupou-se fundamentalmente em
desafiar os viéses masculinistas a partir dos quais se estruturavam as
premissas centrais e conceitos do campo, de modo que as autoras
introduziram uma crítica que evidenciava a genderização[6] da teoria e da
prática da disciplina. Já a segunda geração[7], deu enfoque à investigação
de casos empíricos, com o objetivo de dar visibilidade as questões de
gênero e da vida das mulheres. Enquanto a primeira geração centrou-se na
desconstrução de conceitos e formas de conduzir as análises vigentes, as
autoras da segunda geração são mais propositiva ao mesmo tempo em que
apresentam um interesse metodológico comum pela investigação sociológica –
baseada nas questões identitárias (identity-based) –, interpretativa ou
linguística.
O que há de unificador nos trabalhos das teóricas feministas em
Relações Internacionais é, de um lado, o uso do gênero como uma categoria
central de análise na condução de suas investigações, e, de outro, a
centralidade dada às questões metodológicas, o que, para Tickner, pode ser
a razão explicativa da marginalidade do feminismo na disciplina, já que "o
campo tende a julgar os pesquisadores nos termos de quão bem eles
operacionalizam e testam as teorias existentes ao invés de valorizar as
inovações teóricas e metodológicas que apresentam" (2005, p. 2173)

O triunfo do positivismo

Desde os anos 1970, o positivismo desfrutou do mais alto prestígio em
termos de metodologia nas Relações Internacionais estadunidenses. Nos EUA,
a disciplina emergiu no começo do século XX quase sempre como uma subárea
de Ciências Políticas. Inicialmente havia pouco interesse sobre questões
metodológicas (Pereira; Rocha, 2014). No período seguinte à Segunda Guerra
Mundial, RI desenvolve sua própria identidade disciplinar, a despeito de
permanecer de modo geral vinculada aos departamentos de Ciências Políticas,
o que influenciou o desenvolvimento metodológico do campo nos EUA (Waever,
1998).
Os cientistas sociais estadunidenses[8], de modo geral, sustentavam a
convicção de que os problemas sociais poderiam ser resolvidos pela ciência
e o que eles entendiam como ciência aqui era, principalmente, hard science.
Então, as metodologias das ciências naturais e econômicas[9] foram
empregadas na construção de modelos teóricos nas RI, com o objetivo de
descobrir as leis e regularidades que regem o comportamento internacional
dos Estados.
Havia a crença compartilhada entre muitos teóricos de RI de que a
pesquisa sistematicamente conduzida a partir de inferências causais poderia
contribuir nos esforços em diminuir a probabilidade da ocorrência de
futuros conflitos. Alguns dos primeiros teóricos mais proeminentes de RI no
período pós-guerra eram intelectuais europeus que haviam fugido da
perseguição nazista[10] e estavam motivados pelo objetivo de defender a
autonomia da investigação racional em oposição às ideologias totalitárias.
Aqui fica evidenciada a validade da crítica pós-positivista acerca da
questão da neutralidade, pois mesmo entre autores positivistas estão
presentes objetivos e compromissos metateóricos, como a crença de que a
racionalidade positivista poderia ser a chave para o controle dos
conflitos, e, com esse desejo, a crença dos teóricos de que sua produção
poderia contribuir para a construção de um mundo melhorado (o que, no
mínimo, requer uma imagem idealizada de como o mundo deveria ser, além do
reconhecimento de que o discurso acadêmico poderia contribuir nessa
construção).
Esse esforço empreendido pelos primeiros teóricos, tanto realistas
quanto liberais, em colocar a disciplina cada vez mais em uma 'base
científica', foi somado ao interesse nacional dos EUA em liderar a luta
contra a 'ideologia' do comunismo global. Aqui, especialmente a perspectiva
realista, que predominou no período posterior à Segunda Guerra Mundial, foi
estrategicamente traduzida em ação política, "sobretudo pelo seu enfoque de
realpolitik para a política exterior norte-americana" (Pereira e Rocha,
2014, p. 315). Desde aproximadamente 1945, o realismo ocupa o lugar de
teoria mais influente de RI nos EUA, e, como os Estados Unidos também
alcançaram uma posição hegemônica no mundo após esse período, é sintomático
que o realismo também passou a dominar a disciplina como um todo.[11]
A teoria realista retrata o mundo como anárquico, lendo o ambiente
internacional como semelhante ao constructo hobbesiano do estado de
natureza, onde não há poder algum acima dos atores[12] capaz de sancionar
suas ações, dada a soberania dos agentes estatais. O resultado dessa visão
é que, sendo a ameaça uma constante neste ambiente, cada Estado precisa
agir no sentido de prover sua própria segurança, para sobreviver em meio à
insegurança e intermitente hostilidade, através do sistema de autoajuda
(self-help) e da acumulação de poder. Ou seja, o realismo, para além de um
retrato do mundo, a partir das suas concepções ontológicas (sobre a
natureza, realidade e existência dos entes) que lhe conduzem nos termos
metodológicos, é ele mesmo orientador dos princípios das relações
internacionais. Ele não apenas descreve o funcionamento das relações entre
os Estados, mas também o influencia normativamente, prescrevendo aos
Estados como devem agir para sobreviver no sistema internacional, tal como
o concebem, de modo que, embora pretensamente ancoradas no pressuposto da
objetividade e neutralidade, estas preferências metodológicas positivistas
estão carregadas por certas visões normativas sobre o mundo.
O liberalismo, por sua vez, que foi colocado à margem após o fracasso
da Liga das Nações e que só vai retomar espaço significativo na disciplina
após o fim da Guerra Fria, oferece uma visão um pouco mais positiva do
sistema internacional, assumindo a possibilidade da cooperação entre os
Estados, contudo, a despeito da diferença da visão de mundo em relação ao
realismo, não oferece uma mudança substancial em termos metodológicos. Os
liberais compartilham com os realistas as mesmas crenças nos pressupostos
positivistas, ou seja, acreditam que é possível encontrar leis que
expliquem o comportamento dos Estados, através da investigação sistemática
e da inferência causal. Muitos dos teóricos liberais[13] das Relações
Internacionais buscam explicar o comportamento dos Estados usando os
modelos da escolha racional ou da teoria dos jogos, entendendo a cooperação
como resultado do cálculo racional e auto interessado dos Estados
nacionais.

O terceiro 'debate' e a ascensão da teoria feminista

As concepções metodológicas positivistas, a despeito da hegemonia
conquistada na produção acadêmica estadunidense, que, segundo Tickner, se
baseia numa convicção, exclusivamente americana, de que a ciência poderia
resolver boa parte dos problemas existentes, e, como afirmam Jackson e
Sorensen, onde "a cultura científica é mais intensa do que em outros
lugares" (2013, p. 396), não estiveram livres de desafios. O primeiro
desafio talvez tenha sido o debate, na década de 1950, entre a escola
clássica e os behavioristas, onde a metodologia positivista acabou saindo
fortalecida. No entanto, este debate não foi exclusivamente travado no
interior da disciplina de RI, foi um debate que atingiu as RI como
consequência do debate teórico estabelecido nas ciências sociais, de modo
geral, e na ciência política, em particular.
No campo específico das Relações Internacionais, Sandra Harding
(1998) observa que o conteúdo das críticas aos pressupostos do positivismo,
intensificadas a partir do terceiro debate da disciplina, na década de
1980, é, na verdade, uma a atenção renovada para os problemas nas
epistemologias, filosofias da ciência e metodologias iluministas, que
estavam sendo gestados desde a 2ªGM, com as mudanças nas relações sociais
dela decorrentes, como: o fim do domínio colonial formal Europeu/Americano,
em muitas partes do mundo; mudanças na economia política global, com vastos
efeitos tanto locais quanto globais; a emergência e o subsequente fracasso
das políticas de desenvolvimento do terceiro mundo; o aumento das
evidências de que a cumplicidade entre a ciência moderna e as tecnologias
são, na prática, destrutivas para as relações sociais e para o meio
ambiente[14]; e a ascensão de diversos movimentos sociais e sua
marginalização ainda presente dentro e fora dos Estados. Enfim, para a
autora, essas e muitas outras tendências históricas significativas teriam
levantado, intensificado e expandido suspeitas anteriores sobre as
inadequações das teorias prevalecentes de produção de conhecimento – ou
seja, ensejaram a crítica à visão iluminista de produção de conhecimento,
pautada na exterioridade, objetividade e neutralidade das ciências.
Na década de 1980, acadêmicos de RI localizados nos EUA, mas cujos
trabalhos surgiram a partir de tradições metodológicas prevalecentes na
Europa e no Canadá (a tradição sociológica) montaram o chamado de "terceiro
debate". Os primeiros teóricos pós-positivistas mais influentes foram
Alexander Wendt, Nicholas Onuf e Friederich Kratochwil. A partir deles,
multiplicam-se às críticas aos pressupostos do positivismo e o pós-
positivismo torna-se consequentemente mais complexo. Jackson e Sorensen
(2013) classificam as abordagens construtivistas em construtivismo
convencional e construtivismo pós-positivista. Os construtivistas
"convencionais" apesar de rejeitarem a noção de uma verdade objetiva,
reivindicariam uma verdade sobre os sujeitos e os temas que investigam,
mesmo admitindo que tais verdades seriam contingentes e parciais. Já os pós-
positivistas, ainda que exista uma enorme variedade de concepções
ontológicas e metodológicas sob o mesmo 'guarda-chuva', seriam mais céticos
quanto a possibilidade da reivindicação de verdade, já que não há um
terreno neutro e objetivo, descolado das relações de poder, na elaboração
do saber e de seus critérios de validação, de modo que "a principal tarefa
do construtivismo crítico é desmascarar essa relação central entre verdade
e poder" (p. 240). Maja Zehfuss (2002), ao tratar da amplitude do terceiro
debate, entende o construtivismo como um meio-termo entre as abordagens
racionalistas (ou positivistas) e posições fundamentalmente mais radicais
como a teoria crítica, o pós-colonialismo e o feminismo.

A agenda de pesquisa feminista nas Relações Internacionais

De modo geral, a produção das acadêmicas feministas em RI tem se
vinculado ao construtivismo pós-positivista. Primeiro porque o propósito
das análises a partir do uso da categoria gênero está vinculado ao
compromisso de superação das condições subalternizadas ou desiguais nas
quais se encontrariam as mulheres. Segundo porque, repetindo o padrão
metodológico do feminismo nas outras disciplinas, as feministas das
Relações Internacionais preferem análises históricas e sociológicas, que
consideram o modo como se estruturam as relações de poder, desde o nível do
indivíduo até o nível das organizações. Ou seja, as feministas estão
abertamente comprometidas com o desenvolvimento de um projeto emancipatório
para as mulheres e os 'subalternizados', e entendem que a investigação da
situação das mulheres ou da produção dos gêneros, no interior dos Estados
ou nas estruturas internacionais, é um caminho para alterá-las.
O núcleo de pesquisa da agenda feminista em Relações Internacionais
envolve temas relacionados com questões identitárias, como raça, cultura e
gênero, e, o enfoque predominante, é o modo como as instituições
internacionais estruturam, moldam e reproduzem a desigualdade de gênero, e,
ao mesmo tempo, como as instituições ganham sua sustentação com base nesta
mesma desigualdade. Isto é, a investigação feminista é pautada por questões
constitutivas da organização do ambiente internacional, "questões que
provavelmente não podem ser levantadas nos limites epistemológicos e
metodológicos das ciências sociais positivistas" (Tickner, p. 2180), de
modo que as questões de gênero nas Relações Internacionais estão
inexoravelmente vinculadas a uma perspectiva ontológica e metodológica
fundamentalmente mais crítica.
A perspectiva feminista, portanto, colocada nestes termos, na medida
em que privilegia a análise das relações entre poder e conhecimento e a
importância da linguagem, das regras e das identidades na conformação das
relações internacionais, só é possível como parte do projeto pós-
positivista. As perguntas colocadas, os objetivos assumidos e a condução
das investigações raramente são compatíveis com os pressupostos
positivistas, justamente porque já se parte do pressuposto de que não há
neutralidade, assume-se que a disciplina e sua produção teórica mainstream
são genderizadas, ou seja, construídas a partir de uma perspectiva de
gênero, e que é preciso desvelar as relações de poder que constroem essas
desigualdades com o objetivo de superá-las.
A análise feminista tem sido um esforço pela inclusão do "gênero"
como uma categoria de análise, com o objetivo de compreender e evidenciar
as formas pelas quais as normas de gênero estão presentes nas relações da
vida social internacional e como se constroem/desconstroem/reconstroem-se
mutuamente. Para as feministas, o gênero é uma característica constitutiva
da política internacional e da economia global, bem como da própria
disciplina de Relações Internacionais. As perspectivas de gênero constituem
e constroem a realidade, pois é a partir delas que lemos o mundo e os
acontecimentos, e é por isso que a análise feminista se preocupa em
desconstruir as leituras genderizadas para incorporar um novo modo de
pensar a realidade, que faça justiça ao projeto de igualdade.
Esse modo de pensar a realidade, contudo, não pode ser construído fora
de uma estrutura de significados compartilhados, não é um projeto ingênuo
de construir uma leitura completamente desvinculada da 'realidade' 'que
está aí', mas que visa reconhecer o papel do discurso na construção dessa
própria realidade e assumir uma postura ética em relação à produção
acadêmica. O filósofo Jacques Derrida, que cunha e nos empresta o termo
"desconstrução", pontua a necessidade de se pensar o texto filosófico como
um gênero literário particular. Do mesmo modo, o discurso científico pode
ser pensado como uma forma de produzir narrativas sobre o mundo, a partir
de regras e critérios específicos para sua validação, e é a partir dessas
múltiplas narrativas que organizamos nossos modos de existir coletivamente.

Os 'feminismos' nas Relações Internacionais: debates de perspectivas

A publicação de uma edição especial da Revista Millenium, da London
School of Economics Journal, com o tema "Woman and International
Relations", marcou o ano de 1988 como um ponto de inflexão nos estudos de
gênero em RI. Antes disso, os estudos de gênero não tinham impacto visível
na produção dominante da disciplina. Autoras e autores que se dedicavam a
estes estudos não alcançavam espaço para a publicação de seus artigos na
maioria das revistas de Relações Internacionais e, por este motivo,
enviavam seus papers para revistas que integravam os chamados estudos para
paz e desenvolvimento, que se mostravam um pouco mais receptivas, ou,
ainda, nas revistas específicas sobre estudos de gênero. Ou seja, não havia
incorporação do tema na disciplina, mas, ao contrário, uma marginalização
(MURPHY, 1996).
O primeiro artigo feminista publicado numa revista de língua inglesa
de grande circulação sobre questões internacionais é atribuído a Berenice
Carroll, no ano de 1972. O título do artigo "Peace Research: The Cult of
Power" não faz nenhuma referência à temática de gênero e o artigo também
não era explicitamente feminista. Contudo, além de apresentar uma
referência à obra "Sexual Politics", de Kate Millet, obra declaradamente
feminista, o texto de Carroll antecipava muitos dos temas explorados pelo
feminismo nas RI posteriormente (MURPHY, 1996).
Carroll argumentava que os acadêmicos de
RI ganhariam se, ao invés de se
concentrarem nos atores com mais
concentração de poder, voltassem sua
atenção para outros atores com menos
poder. [...] mostrou a necessidade de uma
revisão de conceitos- chave para
incorporar as contribuições das mulheres
na reestruturação da sociedade
internacional [...] [e, por fim] antecipou
uma reforma na disciplina onde as questões
problemas incluíssem genuinamente a
experiência dos indivíduos,
independentemente de raça, cultura, classe
ou gênero (tradução livre, idem, p. 514)

Após a publicação da edição que continha o artigo de Carroll, o
conselho editorial do Journal of Conflict Resolution mudou e nenhuma outra
revista da área publicou artigos similares até o final dos anos 1980.
Apenas em 1991 a Associação britânica e norte-americana de Estudos
Internacionais estabelece uma seção para as pesquisas e estudos de gênero
em Relações Internacionais, o que estimulou e ampliou o debate de
perspectivas centradas nesta categoria nas teorias de RI.

A perspectiva liberal


De acordo com Monte (2010), o início da discussão das questões de
gênero nas relações internacionais, a partir dos anos 1970, é marcado pela
perspectiva liberal. No campo dos movimentos sociais, as demandas do
feminismo liberal estiveram, principalmente, relacionadas à extensão dos
direitos políticos e civis "masculinos" às mulheres. O feminismo liberal
entende que a opressão das mulheres é resultante das barreiras legais
impostas pelo Estado, de modo que a disputa no interior deste seria
suficiente para promover a igualdade. Monte (2010) ainda afirma que as
feministas liberais compartilham alguns dos pressupostos epistemológicos
positivistas, perturbando a classificação do feminismo como pós-
positivista. Elas entenderiam que a constituição das RI como ciência têm
sido enviesada, mas que a adesão de mulheres ao quadro epistemológico do
pensamento convencional seria condição suficiente para corrigir esse viés.
Essas tentativas de classificar os feminismos não são estanques e a
interpretação feita pela Izadora Xavier Monte sobre as feministas liberais
é controversa. Jacqui True, uma acadêmica feminista das relações
internacionais que poderia ser classificada como liberal, afirma que a
potencialidade dos projetos transformadores depende do que as intelectuais
feministas, ativistas e policy-makers, fizerem coletivamente em relação as
iniciativas do gender mainstreaming. Para True (2003), a questão não seria
como as acadêmicas e ativistas feministas poderiam evitar a cooptação por
instituições poderosas, mas se poderíamos nos permitir o não envolvimento
com essas instituições, na medida em que a incorporação da perspectiva de
gênero na formulação de políticas teria efeitos para além das comunidades
epistêmicas. A mesma autora diz que essas estratégias de incorporação da
perspectiva de gênero, aceitam provisoriamente certas normas e
instituições, mas buscariam alterá-las no momento apropriado, não se opondo
à mudança social fundamental. Ou seja, a integração das feministas
liberais, incorporando a perspectiva de gênero ao status quo, seria uma
estratégia provisória na construção do projeto emancipatório de igualdade.


A perspectiva 'radical'


Na classificação proposta por Monte (2010), estariam discutindo com as
feministas liberais, as feministas radicais, as feministas socialistas e as
feministas pós-colonialistas. De modo geral, para a autora, as feministas
radicais se opõem à afirmação de que as barreiras legais seriam os únicos
entraves à emancipação feminina. Esse conjunto de autoras, veria o
patriarcado como um sistema de opressão que permeia as instituições da
sociedade num nível muito mais profundo do que o da esfera jurídica. O
patriarcado é visto aqui como uma opressão fundamental, presente em todas
as formas de organização social, de modo que a partir de sua superação
avançaríamos na desconstrução de todas as outras formas de opressão nas
sociedades. Enquanto as liberais sustentariam a ideia e a busca de
igualdade entre os gêneros, as radicais enfatizariam as diferenças entre
eles e a necessidade de valorização das características e experiências
femininas, tradicionalmente inferiorizadas pelo patriarcado. Argumentam
pela existência de maneiras distintas de conhecimento e tomadas de decisão
e que homens e mulheres teriam diferentes concepções sobre temas da
política internacional, decorrentes dos processos de socialização de cada
um dos sexos – distintos justamente porque inseridos na lógica do gênero
que opera nas sociedades (Gillian, 2005)

A perspectiva socialista

O feminismo socialista, concebido por Monte (2010) como uma das
correntes que compõem a discussão feminista nas Relações Internacionais,
defenderia que o fundamento da opressão de gênero seriam as diferenças nas
condições materiais de existência entre homens e mulheres. A principal
fonte de poder do patriarcado seria o controle que os homens possuem sobre
o trabalho feminino – especialmente o reprodutivo não-remunerado de
manutenção do lar e criação dos filhos. A revisão da importância social do
trabalho doméstico, naturalizado e não-valorizado, seria uma pauta
fundamental da luta das mulheres.
O feminismo socialista também debate veementemente com o feminismo
liberal. Silvia Federici (1984) afirma que quando o movimento de mulheres
iniciou na década de 1960, havia a convicção de que as mulheres iriam
"virar o mundo de cabeça para baixo" (p. 338). As mulheres, organizadas em
uma espécie de irmandade, expressaram uma rejeição massiva pelas atividades
domésticas e em serem 'donas-de-casa', "posição que, todas percebemos, era
a causa primeira de discriminação contra nós" (p. 338). Sobre o movimento
feminista de sua geração, Federici (1984) diz que "nós descobrimos que a
'cozinha' era nossa escravidão e que se nós quiséssemos libertar a nós
mesmas, nós precisaríamos primeiro romper com essa nossa identificação com
o serviço doméstico" (tradução livre, p. 339).
O problema desta constatação, segundo a autora, foi a importância
estratégica que o feminismo passou a atribuir à entrada no mercado de
trabalho. "Deixar o lar" e "conquistar um emprego" deixou de ser apenas uma
parte da utopia de uma sociedade livre das relações de poder – onde todos
os indivíduos pudessem alcançar sua libertação e desenvolver todo o seu
potencial criativo –, para se tornar uma estratégia na qual a entrada para
o mercado de trabalho em si afigura-se como um momento de libertação. Essa
concepção estratégica teria sido adotada, especialmente entre as décadas de
1960 a 1980, pelas diversas correntes do movimento de mulheres. Para as
liberais, o trabalho estaria revestido do glamour das carreiras, mas mesmo
para as socialistas, a entrada no mundo do trabalho significaria a inserção
das mulheres na 'luta de classes', uma condição essencial para sua
libertação.
O quadro teórico, porém, é sempre menos estanque do que as
classificações possíveis. Se o feminismo não pode ser lido como uma
perspectiva monolítica, nem mesmo as classificações propostas podem ser
lidas desta maneira. De modo geral, as feministas socialistas estariam
preocupadas em incluir um recorte de classe na leitura crítica sobre
gênero. Mas, enquanto uma vertente compartilha com as liberais a atribuição
da importância estratégica no mercado de trabalho, entendendo que a partir
disso as mulheres iriam unir-se à luta sindical, o que fortaleceria a luta
de classes, outro grupo questiona essa estratégia, acusando-a inclusive de
enfraquecer o movimento de mulheres.
Acreditamos que o movimento de mulheres não
deveria perseguir modelos que obrigam à
conformação das mulheres, mas, ao invés disso,
inventar estratégias que expandam nossas
possibilidades. Uma vez que conseguir um emprego
é considerado necessário para nossa libertação,
as mulheres que recusam trocar seu trabalho
doméstico pelo trabalho nas fábricas são
inevitavelmente estigmatizadas como atrasadas e,
além de serem ignoradas, seus problemas são
transformados em questão individual. É provável
que muitas mulheres que mais tarde foram
mobilizadas pela "New Moral Majority"[15]
poderiam ter sido ganhas pelo movimento se este
tivesse se dirigido às suas necessidades
(Federici, 1984, tradução livre, p. 340)

Em 1972, Selma James, Mariarosa Dalla Costa e, posteriormente, Silvia
Federici, iniciam, primeiramente na Itália e Inglaterra, a campanha "Wages
for Housework". O objetivo da campanha era demonstrar que a demanda de
salários para os serviços domésticos era uma necessidade estratégica mais
imediata do que a colocação no mercado de trabalho. Segundo as autoras, era
preciso, em primeiro lugar, reconhecer que o trabalho doméstico é trabalho
– o trabalho de produção e reprodução das forças produtivas. Ou seja, o
capitalismo seria sustentado por uma enorme quantidade de trabalho não-
remunerado, sistematicamente invisibilizado e, por isso, incontestado.
Segundo, este seria um problema comum a todas as mulheres, o que abriria um
espaço de luta comum num terreno onde as mulheres teriam mais força. Até
porque, a colocação do ingresso no mercado de trabalho como condição
principal para nos tornarmos independente dos homens, seria um fator de
afastamento daquelas mulheres que não desejariam trabalhar fora de casa
porque elas já trabalhariam demais tomando conta de suas casas e de seus
parentes. Além disso, muitas das mulheres que já trabalhariam fora, assim
faziam por necessidade financeira e não por considerar o ingresso no
mercado de trabalho uma experiência libertadora, especialmente quando a
maior parte dos cargos ocupados por essas mulheres são aqueles que exigem
grande esforço ao mesmo tempo em que são mal remunerados, e, trabalhar
fora, não as livraria também do trabalho doméstico, impondo a estas
mulheres uma dupla ou até tripla jornada de trabalho. Para esse grupo de
autoras a maneira mais rápida de dessexualizar o trabalho doméstico seria
atribuir valor monetário a ele.


A perspectiva pós-colonialista


O outro grupo citado por Monte (2010) seriam as feministas pós-
colonialistas, que criticam as visões anteriores por operarem a partir do
que chamam de um 'essencialismo de gênero'. O que caracteriza o feminismo
pós-colonialista é a negação do sujeito soberano do Ocidente (Spivak, 2014)
e, portanto, a negação de um sujeito feminino universal, monolítico e
estável, definido a partir de sua base biológica. A tentativa de elaboração
de uma identidade feminina universal acabaria revelando a formação de
espaços de exclusão no interior do próprio movimento e da teoria feminista
e levaria a uma fragmentação, decorrente da resistência das mulheres que
não se sentem representadas por essa identidade (Butler, 2004). Nessa
perspectiva, as categorias de identidade e representação devem ser espaços
abertos à negociação, ao debate e à contestação.
A perspectiva feminista pós-colonial "existe como uma configuração
discursiva em diálogo com as construções acadêmicas predominantes no 1º
Mundo, mesmo quando em tensão com estas" (BAHRI, 2013). As primeiras
reflexões relacionadas à esta perspectiva surgiram justamente do
questionamento acerca da legitimidade da representação e do essencialismo,
ou seja, da aparentemente bem-intencionada produção teórica no "primeiro
mundo" sobre as mulheres do "terceiro mundo" e a afirmação das teóricas
feministas do terceiro mundo sobre a identidade e necessidades dessas
mulheres "terceiro mundistas". De modo geral, essas primeiras acadêmicas
tendiam a estender suas concepções e reivindicações como universais para
todas as mulheres e, com isso, surgiram inúmeros conflitos no interior do
próprio feminismo e o questionamento sobre a possibilidade real de um
movimento feminista coerente e coeso em meia às inúmeras diversidades no
interior da própria categoria "mulher".
Uma das primeiras teóricas a escrever sobre essa questão foi Gayatri
Chakravorty Spivak. O que Spivak constata é que existe no discurso
acadêmico e científico um poder de representação e esse poder de
representação não seria algo de valor apenas simbólico, mas acarreta em
ações e políticas concretas para as populações subalternas que não dispõe
do mesmo espaço de fala para representarem a si próprias. Para ela, os
subalternos estariam inevitavelmente fadados a serem ou mal compreendidos
ou mal representados por interesse pessoal dos que tem poder para
representar e tanto a essencialização da identidade quanto a
universalização da demanda sem levar em consideração o contexto das
significações reais, teriam como consequências políticas ineficazes e a
criação de estereótipos que reproduziriam uma condição de subalternidade.
Essas considerações de Spivak geraram uma série de críticas e reações
que levantaram alguns questionamentos que desde então passaram a ser
fundamentais para qualquer discussão sobre o feminismo e(no) pós-
colonialismo, como: 1) Quem pode falar e em nome de quem?; 2) Quem ouve ou
para quem se fala?; e 3) Como se representa a si e aos outros?. Todas as
questões estão, portanto, relacionadas à questão da representação e do
essencialismo na construção das identidades e tem gerado inúmeros debates
entre as teóricas feministas.
A questão central contida na perspectiva feminista pós-colonial é a
preocupação com os diferentes modos de ler o gênero: no mundo, na palavra,
no texto (BAHRI, 2013). As autoras vinculadas a essa corrente, acreditam
que "é a partir da análise diferenciada e de contexto específico que é
possível gerar estratégias políticas efetivas" (MOHANTY, 2011). Exemplo
disso seria a questão do uso do véu por mulheres muçulmanas. De acordo com
Mohanty, os significados concretos do uso do véu por mulheres iranianas é
claramente distinto dados os contextos e "assumir que a prática de usar véu
– e\ou – velar as mulheres em vários países muçulmanos indica a opressão
das mulheres através da segregação sexual não só é analiticamente redutivo,
como resulta inútil quando chega o momento de elaborar estratégias
políticas de oposição" (2011, p. 13).
O esforço dos estudos feministas pós-coloniais é, portanto, no
sentido de estabelecer a identidade como uma categoria relacional e
histórica em vez de essencial ou fixa (e, mesmo, universal), ao mesmo tempo
em que busca manter o gênero como uma categoria significativa de análise.
Para este conjunto de autoras, a identidade é produzida no âmbito de
contextos específicos e para compreendê-las é necessário levar em
consideração o funcionamento das relações de poder locais (BAHRI, 2013). Ou
seja, o lugar das mulheres (ou de qualquer outro grupo identitário) na vida
social não é biologicamente determinado e nem mesmo ditado pelas atividades
que elas fazem, mas sim definido pelos significados atribuídos às suas
atividades através das interações sociais de uma determinada comunidade.
O fato de que mulheres sejam mães em uma
sociedade específica não é tão relevante como o
valor que se atribui à maternidade nessa
sociedade. A distinção entre o fato de ser mãe e
o status a ele associado é muito importante: é
uma distinção que se deve enunciar e analisar de
forma contextual (Mohanty, 2011, p. 8)

Spivak lembra que os subalternos estão fadados, pelos que comandam e
possuem autoridade nos meios de fala, a serem representados, a terem alguém
para "falar por" eles (ou elas, no caso) e essa representação não
necessariamente está em correspondência com a realidade. Para corroborar
seu argumento, a autora evoca o texto "Orientalismo" de Said, onde este
afirma que "é possível gerar um relato fictício, sem referência ou
compatibilidade significativa com algo real, para criar e difundir a ideia
de um lugar e de um povo" (ano, p.). O problema é que inúmeras políticas,
especialmente no âmbito internacional, têm sido elaboradas a partir de tais
narrativas e produzido efeitos concretos na vida de pessoas reais. Nesse
sentido, o nexo foucaultiano entre saber e poder torna-se evidente nas
relações coloniais e/ou de gênero. De acordo com Deepika Bahri (2013),
"aqueles que tem o poder de representar e descrever os outros claramente
controlam como esses outros serão vistos. O poder de representação como uma
ferramenta ideológica tradicionalmente faz dele um espaço disputado" (s\n).
Outro problema apontado pelas feministas pós-coloniais na produção
teórica ocidental sobre as mulheres do "terceiro mundo" é a questão do
essencialismo – não só o essencialismo de gênero, como já mencionado, mas o
essencialismo na representação dessas identidades. A representação das
mulheres nas categorias universalistas de gênero e os critérios de
diferenciação criados para marcar o espaço de cada uma dessas mulheres no
interior de uma "história única" geram expectativas de uma estabilidade
estereotipada e de uma invariabilidade da comunidade representada. Assim,
se as mulheres do "primeiro mundo" representam a si mesmas como múltiplas e
heterogêneas, elas acabariam por representar as mulheres do terceiro mundo
como indiferenciadas, como um conjunto congelado e monolítico e, portanto,
com pouca ou nenhuma autonomia na construção de suas identidades.
É verdade que o problema do essencialismo é, na maior parte das
vezes, inevitável, na medida em que as categorizações identitárias exigem
uma tipologia essencialista em algum grau. Porém, essas categorias precisam
ser usadas de modo a evitar o apelo ao determinismo histórico ou à ideia de
congelamento estereotipado das identidades. Para isso, Spivak recomenda o
que ela chama de "essencialismo estratégico", que seria um uso estratégico
dessas categorias "com um interesse político escrupulosamente manifesto",
como ocorre nos próprios estudos "das mulheres" como uma estratégia de
confrontar o discurso predominante e hegemônico na academia. Acomodar a
diferença é uma postura relevante na perspectiva do pós-positivismo, no
entanto, deve haver uma auto-vigilâcia epistemológica na condução da
investigação para que essa construção da alteridade não termine por reduzir
a complexidade do 'outro', aniquiliando-o numa narrativa limitadora de si
mesmo.
Para Mohanty (2011), a produção do 'outro' "depende da construção do
sujeito que ocupa posição de privilégio de sua cultura como norma" (p. 5),
de modo que a representação das mulheres do "Terceiro Mundo" pelos escritos
das teóricas do feminismo do Ocidente estaria contaminado por uma visão
colonialista, pois as categorias mobilizadas em torno da questão de gênero
nestes escritos tomaria como referência os interesses feministas tal como
articulados nos EUA ou na Europa ocidental, tomando-os como categoriais
universalistas para compreensão das questões de gênero sempre e em todo
lugar. Ainda para a autora,
Se uma das tarefas de formular e compreender a
localização dos 'feminismos do Terceiro Mundo' é
delinear a sua localização e a forma pela qual
resiste e 'trabalha contra' o que denomino
'discurso feminista ocidental', um importante
primeiro passo é a análise da construção
discursiva da mulher do Terceiro Mundo no
feminismo ocidental (2011, p. 6)

Uma das maneiras propostas para controlar o uso dessas categorias que
criam espaços de diferenciação, seria a aplicação da 'análise
interrelacional' – ou o que se popularizou no movimento de mulheres
brasileiro como 'análise interseccional' – que propõe a não redução na
definição das identidades femininas ao critério único de gênero, elas
precisam ser construídas levando-se em conta, além das definições de
gênero, as coordenadas sociais, de classe e de etnia, nas quais estão
inseridos os indivíduos analisados.

Conclusão: os limites da classificação

A despeito das diferenças nas concepções ontológicas e metodológicas
entre as perspectivas pós-positivistas, elas compartilham a convicção de
que as análises devem estar orientadas pelo compromisso com o
desenvolvimento de um projeto emancipatório por uma ordem social mais justa
e, dado o compromisso político explícito assumido por este grupo de
pesquisadores, há uma estreita vinculação entre essas produções teóricas e
os movimentos sociais exteriores à academia. A consequência disso é uma
sobreposição ou uma junção dessas diversas perspectivas na construção
teórica das autoras feministas.
Autoras feministas socialistas, como Sandra Whitworth[16] e Christine
Chin[17], incorporam a categoria gênero ao conjunto da teoria crítica das
Relações Internacionais, ou seja, a partir do arcabouço teórico
gramsciniano trabalhado por Roberto Cox, analisam as relações de poder e
gênero na esfera internacional. De modo semelhante, Elisabeth Prügl[18] faz
uma análise da construção global da categoria gênero – que ela entende como
uma constelação de regras e práticas relacionadas que criam privilégios e
situações de subordinação e que atravessam as instituições – fundamentada
no construtivismo linguístico de Nicolas Onuf.
Ao observar a produção teórica das autoras é um pouco complicado
operacionalizar a classificação proposta por Monte (2010), justamente pelo
emaranhado teórico no qual se encontram e, também, porque abrigam disputas
importantes no interior de cada perspectiva. As feministas socialistas, por
exemplo, não compactuam unanimemente à estratégia de atribuir um salário
para as atividades domésticas. Se essas teóricas não podem ser chamadas de
socialistas, apesar de defender o socialismo como objetivo final de todas
as lutas, onde poderíamos enquadrá-las? Em relação ao feminismo radical, a
despeito da relevância para a militância e teoria feminista de modo geral,
teríamos produção suficiente para tomarmos ele como uma perspectiva teórica
do feminismo nas Relações Internacionais especificamente? E autoras
relevantes como Prügl estariam em qual dessas perspectivas, já que não
correspondem suficientemente a nenhum deles?
A partir das limitações da classificação existente, propõe-se que as
perspectivas feministas sejam lidas a partir da combinação que trazem entre
as teorias no tratamento da temática de gênero. Teríamos assim a
permanência de um feminismo liberal, com uma visão mais reformista e
focando na questão da igualdade de oportunidades e acesso; o materialismo
de gênero, lendo as questões de gênero a partir das condições materiais nos
quais homens e mulheres estariam inseridos; o construtivismo de gênero (ou
generificado), que colocaria a questão da linguagem e do discurso como
central para o entendimento das questões de gênero e, por fim, o feminismo
pós-colonialista, que a partir de uma releitura do feminismo "terceiro
mundista"[19], que entende que é preciso ler o gênero a partir das
especificidades de cada local.


BIBLIOGRAFIA CITADA

BAHRI, Deepika. Feminismo e\no Pós-colonialismo. Rev. Estudos Feministas,
vol. 21, Florianópolis, Mai/Aug 2013.
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in. International Affairs, Vol. 80, 2004, pp. 75-87
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HOOPER, Charlotte. Manly States: Masculinities, IR and Gender Politics. The
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MOHANTY, Chandra Talpade. Bajo los Ojos de Occidente: Academia Feminista y
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SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o Subalterno falar? Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2014.
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WAEVER, Ole. The sociology of a not so international discipline: American
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WHITWORTH, Sandra. Feminism and International Relations. International
Politics Economy Series. Palgrave Macmillan UK: Macmillan Publishers
Limited, 1997
ZEHFUSS, Maja. Constructivism in International Relations: The Politic of
Reality. Cambridge University Press: Cambridge Studies in International
Relations, 2002.



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[1] Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná
[2] O texto de Wolstonecraft é considerado um clássico da literatura
feminista e introduz a ideia de que homens e mulheres não tem desempenhos
inatos diferentes, e, se essas diferenças podem ser observadas, elas são
muito mais decorrentes das diferenças no processo de socialização – onde
homens teriam privilégios educacionais em relação às mulheres. A autora
defende, a partir de sua tese, uma educação igualitária para ambos os sexos
para que meninas pudessem desenvolver todo o seu potencial humano.
[3] A Convenção em Seneca Falls é considerada o primeiro encontro
organizado com o objetivo de discutir os direitos das mulheres. Fonte:
http://www.ufrgs.br/nucleomulher/mov_feminista.php
[4] Para alguns autores, este é o quarto debate da disciplina, pois
trabalham com a seguinte periodização: 1º debate: liberalismo versus
realismo; 2º debate: behavioristas versus tradicionalistas; 3º debate:
interparadigmático – neorealistas versus neoliberais; e 4º debate:
positivismo versus pós-positivismo (PEREIRA, D. C; ROCHA, R. A., 2014).
Optei aqui pela denominação de terceiro debate levando em conta a repetição
desta classificação nos textos feministas em relações internacionais
(HARDING; TICKNER, TRUE).
[5] ENLOE, 1989; PETERSON, 1992; TICKNER, 1992; SYLVESTER, 1994.
[6] Genderização ou genderizado são usados como substitutos do termo
"gendered" nas referências feministas originais (a maior parte em inglês) e
remete a algo que é marcado por especificidades de gênero.
[7] CHIN, 1998; PRÜGL, 1999; HOOPER, 2001
[8] Com exceção da Escola de Chicago
[9] Dado que os economistas desfrutavam de grande prestígio, por serem
considerados os 'mais científicos' entre os cientistas sociais, e exerceram
por isso grande influência nas escolhas metodológicas de seus pares
[10] Como Morghentau, judeu alemão exilado nos EUA nos anos 1930 (Neacsu,
M., 2010; Rodrigues, T., 2008)
[11] Waever (1998) argumenta, inclusive, sobre a correlação entre uma
postura mais assertiva dos intelectuais europeus na reação contra as
metodologias positivistas, como a teoria da escolha racional ou teoria dos
jogos não-cooperativos, que ocorre ao mesmo tempo em que o mundo passa a
questionar a unilateralidade da política externa norte-americana, no
período seguinte à guerra do Vietnã, que foi sucedido pela crise do
petróleo e pela desvalorização do dólar – eventos que levaram ao
questionamento da hegemonia norte-americana por autores como Wallerstein
(1996).
[12] Uso apenas o termo atores, sem detalhar, justamente porque outro
pressuposto desta teoria é o de que os únicos (ou os únicos que importam de
fato) atores políticos das relações internacionais são os Estados.
[13] Rosecrance (1986, 1995, 1999), Keohane e Nye (1977)
[14] O liberalismo, de modo geral, concebe a história como uma narrativa
linear e cumulativa, de modo que o progresso é uma condição inexorável da
vida em sociedade. A crença de que o progresso (seja ela científico,
tecnológico, social e/ou político) traria consigo bem-estar, juntamente com
o triunfo da razão humana sobre todos os demais interesses na organização
da vida política, é uma premissa central no liberalismo. Ou seja, a
modernização é vista como algo sempre positivo e não pernicioso.
[15] Moral Majority é uma organização política americana associada tanto
aos "direitos religiosos" (christian rights), caracterizado pela defesa de
políticas sociais conservadoras, quanto ao Partido Republicano. Federici,
neste texto de 1984, refere-se ao "the Moral Majority" como "New Moral
Majority", porém, desde então, o movimento passou por reformas e a
referência que a autora traz passou a ser chamada de "old Moral Majority".
O "old Moral Majority" era baseado no tripé pró-valores da família, pró-
vida e pró-America, que se desdobravam na defesa dos 'valores familiares'
incluindo a fidelidade no casamento e o celibato fora dele, na proibição do
aborto e na defesa das guerras do Estado americano, incluindo a do Vietnã.
Desde 2004, o Moral Majority atua como coalização de deputados da bancada
religiosa do Congresso Americano.
[16] Feminism and International Relations. International Politic Economy
Series. UK: Palgrave Macmillan, 1997 [1994]
[17] In Service and Servitude: Foreign Female Domestic Workers and the
Malaysian "Modernity Project". ColumbiaUniversity Press, 1998.
[18] The Global Construction of Gender: Home-Based Work in the Political
Economy of the 20th Century. Athabasca University Press: Labour, vol. 51,
2003.
[19] Representado principalmente pelos títulos da coleção "Woman in the
Third World" da editora Zed Press.
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