PERSPECTIVA DE ENSINO CRÍTICO EM CIÊNCIAS: UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE A PARTIR DA ABORDAGEM TEMÁTICA FREIREANA

October 11, 2017 | Autor: Alberto Montalvão | Categoria: Violência, Ensino De Ciências, Estágio Supervisionado, Abordagem Temática Freireana
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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

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PERSPECTIVA DE ENSINO CRÍTICO EM CIÊNCIAS: UMA EXPERIÊNCIA DOCENTE A PARTIR DA ABORDAGEM TEMÁTICA FREIREANA Alberto Lopo Montalvão Neto¹, Juliana Rezende Torres² ¹ Graduado em Ciências Biológicas - Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba.Mestrando em Educação Científica e Tecnológica - Universidade Federal de Santa Catarina. [email protected] ² Professora Adjunta - Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba.

Resumo: A violência está fortemente presente no cotidiano escolar e para ser combatida são necessárias mudanças no quadro político, socioeconômico e cultural. A educação é um dos principais meios para transformar a realidade via a conscientização dos sujeitos. Neste contexto, este trabalho relata uma experiência de Estágio Supervisionado em Ciências, tendo por base fundamentos da dinâmica teórico-prática de Abordagem Temática Freireana, para ensinar criticamente conceitos de Ciências, cujo critério de seleção de conteúdos programáticos pautou-se em uma situação-limite advinda da investigação da realidade escolar, a saber: violência. Os resultados obtidos são qualitativos, indicando que através da adoção dessa concepção curricular foi possível construir conhecimentos e reflexões críticas. Palavras-chaves: Abordagem Temática Freireana, Violência como Contradição Social, Estágio Supervisionado de Ciências. Introdução Visando uma pesquisa de abordagem crítica acerca da realidade escolar e a do entorno da Escola Estadual Benedicto Rodrigues, localizada na cidade de Salto de Pirapora (SP), foi realizado um trabalho com alunos da 6ª série A (7º ano do Ensino Fundamental) e a comunidade escolar desta instituição, onde os fundamentos empregados pautaram-se na dinâmica teórico-prática de Abordagem Temática Freireana (ATF) (DELIZOICOV, ANGOTTI, PERNAMBUCO, 2002; SILVA, 2004; TORRES, 2010). Tal trabalho foi elaborado durante a realização da disciplina Estágio Supervisionado em Ciências 3, ofertada pela Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba. Para identificar as demandas e problemas sociais vinculados a esta unidade escolar, foram elaborados e aplicados questionários referentes às necessidades da escola tanto na visão dos professores quanto na dos alunos (com um enfoque especial nos discentes), especificamente sobre a realidade de seu bairro, visto que a cidade local é de pequeno porte, e muitos alunos que estudam nesta escola não pertencem ao bairro Santa Julieta, onde se localiza a instituição, vivendo assim, em distintas localidades. Sabendo que as realidades externas à escola, influenciam diretamente nas relações internas, tal enfoque metodológico se torna necessário. 122

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Portanto, o objetivo desse trabalho foi levantaros problemas mais significativos na perspectiva dos sujeitos investigados e trabalhá-los nas aulas de Ciências junto aos alunos, de forma a evidenciaras dificuldades presentes tanto na comunidade escolar, quanto nas comunidades em que os alunos vivem, sendo identificada como principal situação-limite (FREIRE, 1987) a questão da violência nas comunidades - apesar de serem apontados outros problemas referentes tanto aos aspectos internos como externos da unidade escolar. A violência dentro e fora das escolas A violência na escola, muitas vezes, é pensada como um quadro recente, remetendo-se às últimas décadas como um quadro agravante, porém esta é uma visão errônea. De acordo com CHARLOT (2002), apesar de se acreditar que o quadro de violência na escola se tornou descomunal a partir da década de 1980, agravando-se nos anos 90, esta questão advém do século XIX, havendo explosões de violência em certas escolas de 2º grau na França. Igualmente, nos anos 50 e 60, no ensino profissionalizante, que começava a se tornar preponderante na época, o autor atenta para a ocorrência de relações bastante grosseiras entre os alunos. Apesar de reconhecer que a violência dentro da escola provém de tempos longínquos, sabe-se que sua gravidade é cada vez mais ampla na atualidade. Sobre os tipos de violência escolar, CHARLOT (2002) assim as caracteriza: violência na escola (que poderia ocorrer em qualquer outro local); violência à escola (ligadas às agressões aos profissionais e depredações à instituição) e violência da escola (violência simbólica). Em seu trabalho, ABRAMOVAY e RUA (2003) apontam que Charlot amplia o conceito de

violência escolar, classificando-a em: Violência (física e vandalismos), Incivilidades (agressões verbais e comportamentos desrespeitosos) e Violência Simbólica ou Institucional (obrigatoriedade aos alunos de permanecerem tantos anos na escola, sem compreender o sentido, com conteúdos alheios aos seus interesses, imposições sociais e relações de poder entre professores e alunos). O conceito de violência é complexo e amplamente discutido, sendo, na visão de ANDRADE e FONSECA (2007, p. 592), “todo evento representado por relações, ações, negligências e omissões realizadas por indivíduos, grupos, classes ou nações que ocasionem danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a outrem”. Vários tipos de violência acometem a sociedade atual, perpassando muitos ambientes, como escolas, áreas urbanas, rurais, domésticas, trânsito, dentre outras. Muitas vezes as formas de violência não são explícitas, não sendo percebidas por quem as sofrem. Segundo ARANHA (1999) apud FERRARI et al. (2010) podemos classificar a violência em 123

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cincogrupos principais: física, passiva, indireta, simbólica e branca. De forma geral, violência física é a mais explícita, referindo-se à utilização de força para assaltar, ferir, matar ou coagir alguém; violência passiva é representada pela omissão, onde um indivíduo aceita ser coagido para salvar vidas ou evitar sofrimentos, como mulheres que se subvertem aos seus companheiros pelo bem-estar dos filhos; na violência indireta o ato não é violento em si, mas pode desencadear efeito posterior perigoso, como o uso abusivo de água que pode comprometer gerações futuras; e a violência branca, ocorre quando não é possível conhecer o agente causador, muitas vezes nem sequer é prevista nos códigos penais, como, por exemplo, diferenças sociais, fome e desigualdade, consideradas com conformismo, como algo natural. O quinto tipo de violência classificada no trabalho de ARANHA (1999) apud FERRARI et al. (2010), a violência simbólica, ocorre quando existe manipulação ideológica, de forma psicológica, que obriga a adesão do indivíduo, sem que este perceba, pensando que está por fazer algo por vontade própria. Muitas vezes as instituições de ensino e os que nela atuam cometem esse tipo de violência, de forma a exercer algum tipo de autoridade (VASCONCELLOS, 2002). Na visão de Bourdieu, citada por VASCONCELLOS (2002), a escola transmite sua cultura através dos conteúdos, programas, métodos de trabalho e avaliação, relações pedagógicas, dentre outros meios, próprios da classe dominante, sobre alunos de classes populares. Existe, assim, uma íntima relação entre cultura e desigualdades sociais, sendo empregado o termo capital cultural para definir valores que são passados e, por vezes impostos, gerando seleção social e escolar. Dessa forma, através de diversos tipos de relações de poder, a violência simbólica é o tipo mais comum, resultando de forças de natureza psicológica, atuando sobre a consciência e exigindo adesão irrefletida, que parece voluntária, mas é carregada de manipulação ideológica, obrigando uma adesão acrítica. Com efeito, as concepções de violência escolar explicitadasnesse trabalho contextualizam a contradição social violência, tomada neste trabalho como uma situação-limite. No próximo item são apresentados os fundamentos de uma dinâmica que permite o trabalho educativo a partir de contradições sociais, a exemplo da violência. A dinâmica teórico-prática de Abordagem Temática Freireana Os procedimentos teórico-metodológicos da ATF tiveram sua gênese no processo de Investigação Temática (e Redução Temática) descrita na obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987), fundamentada na concepção de Educação Libertadora de Paulo Freire. Esta dinâmica foi adaptada por DELIZOICOV (1982; 2008) para o contexto escolar, o qual a 124

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sistematizou em cinco etapas que interagem entre si: Levantamento Preliminar da Realidade Local, Análise das situações e escolha das codificações, Diálogos descodificadores, Redução Temática e, Sala de Aula. Na primeira etapa, Levantamento Preliminar, realiza-se um levantamento das condições da localidade, através de dados escritos e conversas informais com vários indivíduos, como alunos, pais, representantes de associações, entre outros, além de observações e visitas a órgãos públicos, como centros de saúde, creches, mercados, etc. Tal procedimento de investigação tem por objetivo reconhecer o espaço social da comunidade escolar, em uma ação previamente planejada, conhecendo a realidade em questão. Na segunda etapa, Análise das situações e escolha das codificações, a equipe escolar seleciona contradições vividas pela comunidade, de acordo com dados obtidos, tendo por base o que é significativo para a comunidade e dificuldades que devem ser superadas. As situações significativas podem ser obtidas por um processo de análise qualitativa, com base na elaboração de uma “matriz 10x10” (SÃO PAULO, 1994), a partir da qual são definidos critérios de indicadores que possam configurar problemas sociais na comunidade. Através do cruzamento dos dados obtidos sobre as diferentes visões (educadores e educandos), torna-se possível sintetizar situações significativas e escolher as codificações. A terceira etapa Diálogos descodificadores, consiste em reuniões com a finalidade de validar as situações e temas representados nas codificações como sendo realmente significativos para a população. Aqui são apresentadas para a comunidade investigada as codificações, desencadeando problematizações e diálogos entre saberes, visando à descodificação para confirmação dos temas (então denominados temas geradores), de modo a caracterizar o processo de codificação-problematização-descodificação (FREIRE, 1987). Na quarta etapa, Redução Temática, ocorre redução dos temas geradores pelos especialistas, dentro do seu campo, o que envolve a seleção de conteúdos específicos, de acordo com critérios pedagógicos e epistemológicos, que irão compor os currículos críticos a serem elaborados. Os temas são vistos sob a ótica de todas as disciplinas, sequenciando os resultados de acordo com as faixas etárias, as possibilidades de cada turma e a estruturação de cada disciplina. Transformam-se conhecimentos científicos universais em conteúdos programáticos escolares significativos à realidade dos educandos. Nessa fase, a partir dos Temas Geradores e dos Conceitos Unificadores (ANGOTTI, 1991), a saber: Energia, Escala, Regularidades e Transformações, organizam-se programas escolares (de Ciências) com base 125

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nos Momentos Pedagógicos (DELIZOICOV, ANGOTTI, PERNAMBUCO, 2002), ou seja: Problematização Inicial (PI), onde o professor apresenta a situação-limite ou tema gerador aos alunos, de forma a problematizar suas concepções; Organização do Conhecimento (OC), onde são trabalhados conhecimentos sistematizados, por sua vez, selecionados como necessários para compreender os temas e, Aplicação do Conhecimento (AC), onde é abordado sistematicamente o conhecimento que vem sendo incorporado pelo aluno. Na última etapa, Sala de Aula, onde o estudo e os programas escolares já estão organizados, desenvolve-os em sala, efetivando o papel da educação escolar, propiciando a construção de conhecimentos pelos sujeitos escolares. Procedimentos teórico-metodológicos do trabalho Em um primeiro momento foram realizadas entrevistas com 27 alunos e 10 professores, sendo aplicados questionários distintos a cada um desses grupos, devido as suas especificidades, mas ambos possuindo questões centrais. Em um segundo momento realizou-se a análise dos dados obtidos no processo de investigação temática, utilizando-se os procedimentos da ATF, onde através da construção de uma matriz 10x10 foi possível identificar os problemas mais relevantes da comunidade escolar e, assim realizar uma intervenção de forma crítica. Para tal intervenção foi elaborada uma aula com base nos fundamentos da ATF, de forma a abordar conteúdos de Ciências em uma perspectiva crítica, referente à situação-limite violência e tomada como ponto de partida da aula, correspondendo assim aos princípios de Paulo Freire de problematizar e contextualizar a realidade do aluno. Por fim, foram analisados os resultados da intervenção pedagógica, e consequentemente, da elaboração deste trabalho. Resultados Neste item são descritos resultados obtidos nas etapas da ATF, realizadas neste curto espaço/tempo de Estágio Supervisionado de Ciências 3 (um semestre). Ressaltamos que buscamos nos aproximar ao máximo das premissas e encaminhamentos teóricometodológicos que embasam as etapas da ATF, reconhecendo, no entanto, que, em vários momentos caberiam maiores aprofundamentos. Na 1ª Etapa da ATF realizou-se um levantamento das falas significativas (SILVA, 2004) da comunidade escolar para identificar os problemas sociais mais relevantes ali vivenciados. 126

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Colocamos as seguintes questões: “Como é a escola em sua opinião? O que falta na escola? Como é o bairro onde se situa esta escola? Quais os principais problemas desse bairro?” A partir dos questionamentos obtivemos as falas significativas. Em geral, pode-se observar que os funcionários da escola consideram o bairro de bom nível. Apesar disso, consideram como principais problemas questões como saneamento básico e meio ambiente, sendo que os principais empecilhos são: um córrego localizado próximo à escola e a segurança na entrada da escola. Em relação à própria escola, o principal problema apontado é Infraestrutura, pois esta é pequena para abrigar tantas atividades, além de estarem ausentes estruturas básicas como sala de vídeo, de informática e biblioteca bem equipada. Outro problema é o compromisso de pais e alunos com o desenvolvimento escolar. Em relação às opiniões dos alunos, foi proposta a seguinte pergunta: “O que falta na escola?”, também obtendo falas significativas. Analisando as falas dos alunos, podemos perceber que os fatores principais que se ausentam na escola são: infraestrutura, onde alguns apontam a necessidade de reformas, ampliação dos espaços, necessidades de algumas salas didáticas, falta de alguns materiais e até mesmo reparos urgentes na sala de aula devido a goteiras. Em relação à questão da educação, apesar de nenhum deles apontar explicitamente, muitos falaram das complicadas relações de respeito entre professores e alunos, mencionando ainda a questão da limpeza, apontando principalmente a alta vegetação da quadra escolar. Sabe-se que a comunidade de alunos não vive apenas no contexto escolar. Para tanto, buscou-se compreender opiniões dos alunos sobre seus bairros, caracterizando quase uma abrangência total da cidade de Salto de Pirapora, devido à diversidade de bairros citados. O questionário consistiu-se das perguntas: “Você mora em qual bairro? Como é morar nele? Gosta de morar lá? Considera o bairro violento? Por quê? O que falta nesse bairro?” As respostas geradas foram bem diversificadas devido à diversidade de bairros. Algumas das falas mais significativas seguem no Anexo 1, no final desse trabalho. A 2ª etapa da ATF foi o momento de análise das falas significativas dos alunos e professores, tentando constatar qual é problema social mais relevante da comunidade. Para constatar a relevância das falas, foi elaborada uma matriz 10x10, (SÃO PAULO, 1994). Consideramos todas as opiniões sobre a escola e a comunidade que a circunda. Na matriz, são analisados os seguintes fatores: Vida, Saúde, Transporte, Educação, Trabalho, Segurança, Condições de Higiene (limpeza e saneamento básico), Participação Social, 127

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Infraestrutura e Lazer. Os interlocutores em questão puderam apontar um ou vários problemas que considerassem relevantes quanto aos problemas da escola/comunidade e do convívio escolar. Diante dos resultados analisados sinalizamos que o fator preponderante a ser solucionado na escola é Infraestrutura, como apontaram alunos e professores. Em relação aos diversos bairros de Salto de Pirapora e suas necessidades, também foi elaborada uma matriz 10x10. Os resultados demonstram que o fator segurança foi mais citado entre os alunos, porém é cabível um levantamento da concepção prévia destes, pois se percebeu que algumas respostas foram contraditórias. Houve alunos que disseram que o bairro não era violento, mas quando questionados sobre o que faltava em seus bairros, a resposta, muitas vezes, era segurança. A hipótese é que talvez muitos não entendam bem o conceito de segurança, podendo esta ser uma abordagem de trabalho, de forma a reconhecerem a real necessidade que abrange este conceito no convívio social. Na 3ª etapa da ATF, após estas análises iniciais a partir da matriz 10x10, a temática que se sobrepôs como principal contradição vivida no contexto das comunidades do entorno da Escola Estadual Benedicto Rodrigues foi à falta de segurança nos bairros. Portanto, parece pertinente a abordagem do tema gerador“O bairro é violento, porque tem muitas brigas e ontem até carro queimaram lá perto de casa”.

Seguindo procedimentos da ATF, foi elaborado um contratema (SILVA, 2004) – que abarca a visão do educador (conhecimentos científicos) sobre a situação-limite ou tema gerador, presente no quadro abaixo. Assim, abordamos com os alunos a violência existente na comunidade, em uma aula que perpassou aspectos críticos para a apropriação do conceito de violência, pois identificamos ausência de clareza do tema em suas concepções. Reconhecemos, no entanto, que a intenção não era a apropriação de profundos conceitos teóricos pelos alunos, mas uma reflexão crítica sobre problemas sociais que os cercam, pois como ABRAMOVAY e RUA (2003) apontam, é difícil estabelecer um conceito de violência, em particular a escolar, não existindo exato consenso de seu significado. A 4ª etapa da ATF está voltada ao planejamento da intervenção, de forma a delinear dentro dos vários momentos, as reflexões e os conteúdos que serão abordados durante as aulas propostas. De forma a abarcar conteúdos de Ciências, a aula foi planejada de acordo com os momentos pedagógicos, tendo por base uma questão geradora da aula, a qual visa traçar um paralelo entre o tema gerador (visão dos alunos) e o contratema (visão do educador) sobre a situação-limite identificada, indicando possíveis conteúdos para entendimento do tema. 128

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Tema Gerador Contratema

Questão geradora da aula Problematização Inicial

Organização do Conhecimento Aplicação do Conhecimento

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Momentos Pedagógicos “O bairro é violento, porque tem muitas brigas e ontem até carro queimaram lá perto de casa.” “O atual quadro de violência não é apenas um problema local, sendo uma questão social de âmbito global. A falta de controle das pessoas, devido ao desequilíbrio familiar, psicológico e social da atualidade causa cada vez mais violência. Muitas vezes rotulamos apenas casos muito explícitos de agressão física ou patrimonial à violência, mas esta se encontra presente também implicitamente, não sendo na maioria das vezes percebidas como violentas ações indiretas de repressão psicológica ou verbal. As reais causas da violência estão ligadasao modelo de organização sócio-econômico-cultural vigente pautado no capitalismo sendo, portanto, necessário erradicar a pobreza, melhorar a educação e a qualidade de vida das pessoas (com a oferta de trabalho e lazer), para que seja solucionado tal problema.” “O que pode ser considerado um ato deviolência e quais são as reaçõesfisiológicas que podem ocorrer no corpohumano a partir de tal ato?” “O que é violência para você? Que tipo de exemplos de violência encontramos no dia-a-dia? O que leva uma pessoa a ter atitudes violentas? Você já sofreu algum tipo de violência? Você já foi violento com alguém em algum momento? O que te levou e o que você sentiu ao praticar um ato de violência? Ofender com palavras alguém pode ser considerado algo violento? Convencer alguém a fazer algo contra sua vontade é algo violento? As pessoas sempre percebem quando sofrem violência? A fome e miséria é um ato violento? Violência é um problema de ordem social, econômico e educacional? Como resolver a violência?” Definição de alguns conceitos, classificando as diversas formas de violência. Concepções teóricas sobre o medo e a raiva, abordando questões sobre sua fisiologia. Discussão sobre violência em abrangência local e global através de gráficos indicadores de violência em cidades, no país e no mundo.

Na 5ª etapa da ATF, a partir da leitura do contratema com os alunos, iniciamos questionamentos sobre as afirmativas aí contidas. Os alunos começaram a expressar diversas opiniões sobre o que de fato é um ato de violência. Instigando maior debate e interligando a essas discussões do tema e do contratema, foi realizada a Problematização Inicial, através dasquestões relatadas no quadro acima. Visivelmente observamos mudanças na concepção dos alunos ao longo desses questionamentos. A violência, inicialmente definida como o ato de agressão física, logo também foi admitida por elestambém como atos de agressão de caráter verbal, psicológico e social. Os discentes refletiram sobre a violência que eles mesmos praticam e sofrem a todo instante em seu cotidiano, seja escolar, familiar ou na sociedade como um todo. Um ponto relevante a ser evidenciado são questionamentos politizados dos alunos, por exemplo, a respeito de como o descaso do governo com as comunidades locais pode ser uma violência, interligando fatores como a falta de saúde, educação básica e condições mínimas de vida, e colocando como causas a serem resolvidas para terem perspectivas de uma sociedade melhor.

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Tais concepções construídas com os alunos remetem ao conceito de violência simbólica de Bourdieu e Passeron (2008) que dizem que “todo o poder de violência simbólica impõe significações como legítimas dissimulando as relações de força que lhe subjazem”. Assim, a violência simbólica caracteriza-se pela representação do professor como autoridade, ou por instituições escolares e/ou governamentais que estabelecem relação de poder sobre alunos, povo ou classes menos favorecidas. Cabe lembrar que tais reflexões são ímpares, pois, o que é caracterizado como violência varia dependendo da instituição escolar, do status de quem fala, da idade e, provavelmente, do sexo (ABRAMOVAY e RUA, 2003). Dentre várias manifestações de violência simbólica reconhecida pelos alunos, apontou-se como uma das principais, as desigualdades sociais. Estas também podem ser consideradas um tipo de violência branca (ARANHA, 1999 apud FERRARI et al. 2010). Pelas reflexões dos alunos, além da necessidade de resolver desigualdades sociais, a solução da violência gira em torno da educação. Esta foi apontada não só como solução para a violência social, mas para a própria violência no cotidiano dos alunos, pois quando questionados na posição de agressor ou de agredidos reconheceram que, em ambas as posições, faltam compreensão ediscernimento do diálogo para solucionar o problema antes de cometer um ato violento. Chegando às conclusões dos alunos através de reflexõespróprias, foi exibido o vídeo “El reclamo de los niños incómodo”, para discutir quais perspectivas críticas eles tinham sobre o futuro, refletindo consequências e implicações, caso não existam medidas efetivas para minimizar problemas sociais, econômicos e educacionais, e consequentemente, melhorar o quadro atual da violência em seus aspectos, locais e/ou globais. Ou seja, é necessário agir diretamente sobre as violências simbólicas (conceito de Bourdieu, discutido por Charlot, entre outros), ou violência branca (de acordo com ARANHA, 1999 apud FERRARI et al. 2010). Em seguida foram explicados conceitos de violência doméstica e urbana, desencadeando novos debates. A violência doméstica é um tipo de violência passiva (ARANHA, 1999 apud FERRARI et al. 2010) e, por vezes, coexiste com a violência física, sendo também um tipo de violência simbólica, segundo Bourdieu. Abordamos exemplos de imagens que representavam diferentes tipos de violência (racismo, xenofobia, homofobia e machismo), estabelecidas pelo que é estabelecido como “normal”. Para GOFFMAN (1988) apud SALLES e SILVA (2008) a sociedade categoriza pessoas em função do que considera comum e natural para um grupo social, uma faixa etária ou status social. Essas préconcepções geram estigmas e estereótipos que, pelo processo de estigmatização, o indivíduo é 130

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visto como diferente do normal. Assim, discutiu-se com os alunos as implicações desses preconceitos, tentando colocá-los no lugar da vítima, para perceberem, como, atitudes, aparentemente normais de julgamento ou ironização, podem ofender e destruir moralmente. Sobre esse tipo de violência, CASTRO (2002) aponta que, apesar do quadro geral, houve um aumento das expressões sobre a mesma, ocorrendo uma conquista democrática de movimentos sociais, reconhecendo discriminações raciais, domésticas e outras de gênero, também como violência simbólica, que, em outros tempos, foram silenciadas. De forma a incorporar tais abordagens críticas ao contexto do ensino de Ciências, abordamos concepções teóricas sobre o medo, explicando que este é um tipo de sentimento que permite proteção dos organismos, uma forma de reação ao perigo. Foram exemplificados sintomas que o medo causa em nosso corpo, como a reação de luta e fuga (CRASKE e BARLOW, 1994), utilizando exemplos de relações ecológicas (como o medo da presa em relação ao predador), bem como exemplos do dia-a-dia (como o fato de uma pessoa, devido ao medo, poder ficar paralisada ao correr o risco de ser atropelada). Relacionada ao medo, a raiva foi abordada. Introduziu-se o conceito de raiva e suas diferentes origens através de exemplificações sobre sentimentos e situações que podem aflorála, como o desejo de vingança, inveja, ego, agressão por instinto, brigas de família e no trânsito. Em seguida explicamos alguns conceitos fisiológicos sobre as origens do medo e raiva e seus efeitos no organismo humano, abordando os principais compostos químicos liberados por esses estresses e alterações que estes compostos causam no sistema vital humano, como modificações na frequência cardíaca, circulação sanguínea, pele, transpiração, visão, sistema digestório, respiração e músculos. Relacionadas a essas questões fisiológicas introduzimos

explicações

básicas

sobre

sistema

nervoso

autônomo,

simpático

e

parassimpático, mostrando como mensagens do cérebro desencadeiam medo e raiva. Por último, para fixar os conceitos, apresentou-se o vídeo Medo e Ansiedade, Neuroanatomia. Por fim, foi realizada uma discussão sobre a violência em abrangência local e global, partindo de questionamentos sobre violência sofrida pelos próprios alunos e a violência na cidade de Salto de Pirapora, seguindo a discussão do atual quadro de violência no estado de São Paulo, no Brasil e no mundo. Tal discussão foi realizada em uma abordagem crítica, onde os alunos analisaram gráficos sobre violência, fornecidos em aula.

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Considerações finais Consideramos que tais encaminhamentos levaram os alunos a refletirem sobre as causas da violência, os motivos que levam ao seu agravamento atual em contextos individuais, socioeconômicos, familiares e sobre a própria construção da personalidade na infância dos indivíduos, os quais, por vezes, acabam por envolver-se na criminalidade. Com as respostas dos alunos percebemos que se apropriaram das reflexões e conceitos obtidos em sala, pois foi solicitada uma síntese reflexiva sobre a aula que demonstrou que, a maioria dos alunos, tornou-se mais crítica em relação ao conceito de violência, compreendendo também boa parte dos conteúdos de Ciências. Evidencia-se que o processo de obtenção e redução de temas geradores inerentes à dinâmica de ATF contempla uma concepção de currículo, de conhecimento e de ensino bastante promissora. Dessa forma, utilizando conceitos básicos sobre violência, com base em Bourdieu e outros teóricos, foi possível elucidar algumas questões sobre violência, mediante a dinâmica de ATF, de forma a ampliar a visão dos alunos do 7º ano da EE Benedicto Rodrigues. Mesmo diante de muitos avanços nesta forma de conduzir o Ensino de Ciências na Educação Fundamental, reconhecemos alguns limites, principalmente nas etapas 2 e 3 da ATF, a exemplo da não elaboração de codificações representativas da situação-limite identificada e sua posterior descodificação e legitimação em grupo – o que ficou a nosso cargo. De qualquer forma, indicamos que, ao agregarmos também estas potencialidades da ATF ao trabalho realizado durante os Estágios Supervisionados em Ciências da UFSCar, campus Sorocaba, teremos melhores resultados diante do desafio de melhoria da educação básica e do papel da escola na formação de sujeitos crítico-transformadores. Nesta direção, este trabalho de formação continua sendo realizado em outras turmas de licenciandos, futuros docentes de Ciências e Biologia, da Educação Básica. Referências ABRAMOVAY, M.; RUA, M. G. Violências nas Escolas. Brasília, UNESCO, 2003 ANDRADE, C. J. M.; FONSECA, R. M. G. S. Considerações sobre violência doméstica, gênero e o trabalho das equipes de saúde da família. Artigo de revisão. 2007. Disponível em: www.scielo.br/pdf/reeusp/v42n3/v42n3a24.pdf. Acesso em: 09 de dez. 2013. ANGOTTI, J. A. Fragmentos e totalidades no conhecimento científico e no ensino de ciências. Tese de doutoramento, FEUSP, 1991.

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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

V Enebio e II Erebio Regional 1

Anexo 1 - Falas significativas dos alunos acerca de seus próprios bairros.

Bairros Tropeiro

Santa Julieta

Jardim Ana Guilherme

Santa Maria Teixeira Jardim Alexandre Alvorada Fazendinha

Jardim Paulistano

Juncal

Falas significativas dos alunos “Transporte, trabalho e rede de esgoto”. “Falta muita segurança, pois não é porque ele é um lugar calmo que ele tenha segurança, e também falta cortar os matos que tem do lado de casa que causa muitos bichos, etc, e falta também lazer”. “...no campo que tem ali tem várias pessoas que usam drogas”. “No bairro não falta muita segurança, mas há vandalismo, drogas, etc. Tem muitas pessoas boas”. “Falta um parquinho para as crianças brincarem no dia de calor”. “O meu bairro falta educação, pois há bastante vandalismo”. “Segurança, transporte e trabalho”. “Eu acho que não falta nada, tem tudo, só falta lazer.” “O bairro é bom, mas falta segurança”. “Menos vandalismo, mais educação e segurança”. “Tranquilidade e vizinhos bons, transporte público, esgoto, segurança, etc.” “porque tem algumas pessoas que picham, roubo, etc.” “Educação com as praças públicas.” “O bairro é um pouco violento, porque tem vândalos”. “O bairro é muito violento, porque tem muita violência e bandidagem”. “O bairro é violento, porque tem muitas brigas e ontem até carro queimaram lá perto de casa”.

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