Perspectivar a intervenção social: reflexões e dados sobre o trabalho profissional e o uso do método etnográfico no terceiro sector (2011)

September 14, 2017 | Autor: Telmo H. Caria | Categoria: Social Work, Ethnography, Social Work Education and Pratice, Sociology of Work and Proifessions
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Biblioteca Nacional de Portugal –– Catalogação na Publicação

ETNOGRAFIA E INTERVENÇÃO SOCIAL : POR UMA PRAXIS REFLEXIVA

Etnografia e intervenção social : por uma praxis reflexiva / coord. Pedro Gabriel Silva, Octávio Sacramento, José Portela. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-118-3 I – SILVA, Pedro Gabriel, 1973II – SACRAMENTO, Octávio José Rio do, 1973III – PORTELA, José Francisco Gandra, 1950CDU 364

Título: Etnografia e Intervenção Social: Por Uma Praxis Reflexiva Coordenação: Pedro Gabriel Silva, Octávio Sacramento e José Portela Editor: Fernando Mão de Ferro Depósito legal n.º 329 909/11

Lisboa, Setembro de 2011

Perspectivar a intervenção social: reflexões e dados sobre o trabalho profissional e o uso do método etnográfico no terceiro sector ____________________________________________ Telmo Caria

Introdução Na linguagem quotidiana, a noção de intervenção social contém algumas significações que importa reter e fixar para melhor se perceber do que estamos a falar: um trabalho de prestação de serviços que tem como objecto central pessoas, um trabalho que visa promover, proteger ou ajudar grupos sociais e territórios desfavorecidos, dependentes ou fragilizados. Assim, a noção de intervenção social permite descrever um trabalho que, socialmente, se espera que seja qualificado o suficiente para ser capaz de lidar com a heterogeneidade de condições e culturas que caracterizam os grupos e territórios que são excluídos – ou estão em risco de ser excluídos – dos principais processos de desenvolvimento e crescimento socioeconómico produtores de maior riqueza social. O facto de esse trabalho ser, ou não, assalariado; de ser, ou não, no sector público; e de se basear, ou não, em conhecimentos científicos directamente ligados à vida social das pessoas não parece, por si mesmo, fazer parte da noção de intervenção social na linguagem quotidiana. No entanto, pode admitir-se que o facto de não se ser um voluntário da intervenção social, de não se trabalhar em organizações que têm compromissos explícitos com o interesse público e de não se possuir conhecimentos científicos sobre a sociedade pode introduzir factores de constrangimento, desiguais e variados, sobre o compromisso que o trabalho de intervenção social tem (aspira a ter) com o combate à exclusão e com a procura de justiça social. Esta breve definição do que é a intervenção social carece de várias especificações conceptuais e empíricas baseadas no conhecimento científico que existe sobre o tema. Assim, o propósito central deste texto é desenvolver uma perspectiva teórico-empírica sobre a noção de intervenção

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social, considerando-a um fenómeno social e simbólico que intercepta os conceitos teóricos de profissão, de conhecimento e de reflexividade. Conceitos que, para melhor servirem a análise deste fenómeno, deverão tirar partido do método etnográfico como ferramenta sociocognitiva para permitir – ao tomar por objecto de estudo a própria acção de intervenção social dos seus profissionais – uma maior permeabilidade entre os discursos científicos e académicos e os discursos profissionais que servem a intervenção social. Intervenção social e profissionalismo Partindo da descrição que demos atrás, começarei por restringir o trabalho de intervenção social apenas ao trabalho assalariado, baseado nas Ciências Sociais e Humanas (CSH) e realizado no terceiro sector por diplomados do ensino superior. Esta restrição tem em vista explicitar a ideia de que a actividade de intervenção social a que nos estamos a referir é, na tradição sociológica anglo-americana, conceptualizada como trabalho profissional e como “profissionalismo”: uma actividade remunerada (por oposição a uma actividade voluntária), de prestação de serviços a pessoas (por oposição a uma actividade centrada na manipulação de objectos e tecnologias), baseada em conhecimento abstracto (por oposição a uma actividade apenas baseada na experiência prática) e com autonomia face às pressões do mercado e das organizações burocráticas (por oposição a um trabalho apenas instrumental e rotinizado), dado basear-se em valores com conteúdo altruísta (Freidson 2001; Evetts 2003; Caria 2005). No quadro desta tradição de investigação sociológica, o profissionalismo é um conceito de inspiração weberiana que se pode considerar como um ideal-tipo: um conjunto de atributos e propriedades sociais que são imputados pela vida social a determinados grupos sociais (e reconhecidos por estes como elementos simbólicos da sua identidade social), com (re)configurações variáveis e desiguais, conforme o impacto das conjunturas sócio-históricas nas relações sociais e na consciência colectiva destes grupos para com o conjunto da sociedade e vice-versa (Sciulli 2005). Em comparação com outras profissões de prestação de serviços, trata-se de grupos profissionais com elevado prestígio e estatuto sociais, em grande parte dependentes (se não mesmo totalmente) do valor simbólico da sua educação formal de nível superior e do desenvolvimento de uma ideologia que reproduz e legitima a crença social de que os interesses particulares dos grupos que realizam uma actividade profissional não estão em contradição com a defesa do bem comum: nestes casos, a hipótese de existência de motivações colectivas altruístas permitiria fazer coexistir o

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interesse particular das profissões com a realização do bem comum e, em consequência, criar uma relação de confiança acrescida com os utentes dos serviços (Evetts 2006; Svensson 2006). A existência desta ideologia está bem vincada no modo como as ordens profissionais se têm desenvolvido em Portugal na sociedade democrática do pós-25 de Abril e na ênfase que estas associações dão, na sua acção pública, aos propósitos éticos e deontológicos das profissões. No caso das profissões baseadas em CSH, o fenómeno ideológico do profissionalismo ligado à constituição de ordens tem tido alguma expressão no que se refere aos economistas e, mais recentemente, aos psicólogos. É certo que esta ideologia, de inspiração ética, pode ser apenas uma versão fraca daquilo que a intervenção social pode fazer pelo combate à exclusão. O conceito de ética profissional apenas pode visar a procura do bem e da melhoria da sociedade e, assim, somente inibir comportamentos que promovam ou gerem a violência e o preconceito face à diferença (Enriquez 2001), sem que se combata directamente a exclusão social. No entanto, parece certo que, na ausência desta orientação ética no trabalho profissional, qualquer intervenção social mais proactiva na luta pela justiça social não terá ambiente social para se propagar e consolidar. É por isso que, nas culturas profissionais em que não exista uma orientação ética explícita que estruture um espaço público para o profissionalismo, a intervenção social tende a ser confundida com a intervenção política, muitas vezes relacionada com processos autoritários de acção encobertos por uma retórica de participação (Lévy 2001). Neste quadro, qualquer orientação ética tenderá sempre a ser vista como sendo apenas do interesse de alguns profissionais que querem ser (ou são) agentes políticos, em lugar de ser tida como uma modalidade de realização de interesses particulares em coexistência com o bem comum. Sendo o profissionalismo um ideal-tipo, importa fazer alguma aproximação empírica à configuração social que o trabalho profissional de intervenção social pode assumir, quando reduzido ao conceito sociológico de profissionalismo que acabámos de apresentar. Os dados quantitativos, recentes, do projecto de investigação SARTPRO1 ajudam a melhor conhecer

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Projecto concebido em 2008, como proposta de investigação submetida a financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que veio a ser aprovado em 2009 e cujo financiamento foi iniciado em Fevereiro de 2010 [PTDC/CS-SOC/098459/2008]. Trata-se de uma parceria de investigação entre três centros de investigação universitários portugueses: CIIE da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (Telmo H. Caria, Margarida Silva, Berta Granja e Fernando Pereira), CICS do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (Ana Paula Marques) e CETRAD da Escola de Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (Isabel M. Costa e Armando Loureiro), a que foi associada a Universidade

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as condições sociodemográficas e sócio-organizacionais do trabalho profissional de intervenção social, baseado em CSH, no terceiro sector. Para a realização dos objectivos deste projecto foi necessário, numa fase inicial, fazer um recenseamento de organizações do terceiro sector no Norte de Portugal, tendo em vista obter informação mais pormenorizada e fiável sobre o número e a diversidade de trabalhadores e de profissionais formados em CSH, ou não, que trabalhavam neste sector. Assim, foi realizado um inquérito-questionário, tendo sido recenseados, ao todo, 1958 trabalhadores, contratados a tempo integral, em 41 organizações, dos quais um total de 621 trabalhadores (32% dos recursos humanos existentes) possuem diploma de educação superior. As organizações consideradas foram distribuídas de modo equilibrado por três zonas sociogeográficas da região Norte (zonas metropolitana litoral, urbana litoral e urbana interior), incluindo em cada uma delas os respectivos concelhos com maior população residente (ver Quadros 1, 2 e 3, em anexo). Também se teve a preocupação de equilibrar o número de organizações recenseadas relativamente à sua dimensão (das organizações mais pequenas às maiores, em termos de número de profissionais e número de valências/serviços) e à diversidade das valências existentes (actividades e serviços de educação não escolar, solidariedade social e desenvolvimento local). Todas as organizações recenseadas são consideradas pelo Instituto de Segurança Social como Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) e o seu financiamento é totalmente, ou quase totalmente, dependente do Estado. Não se tratou de uma amostra representativa do terceiro sector, mas, em qualquer caso, como contém uma grande diversidade de zonas sociogeográficas e de condições socio-organizacionais, arriscamos dizer que constitui um “bom retrato” dos profissionais do sector no Norte de Portugal, entre Fevereiro e Abril de 2010. Tomando por referência os 621 profissionais recenseados, podemos afirmar o seguinte (ver Quadros 4, 5, 6 e 7, em anexo): a grande maioria dos profissionais tem educação científica superior em CSH (68%, n=422, incluindo, principalmente, sociólogos, psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, gestores e economistas), podendo esta percentagem aumentar ainda significativamente (para 88%) se se considerar os cursos superiores de ensino (professores do ensino básico e educadores de infância); a grande maioria dos profisisonais são mulheres (82%, n=549); a maioria dos profissionais possui percursos profissionais curtos

Federal da Bahia do Brasil, através da Professora Vera Fartes. Tem ainda a consultoria externa da Professora Julia Evetts da Universidade de Notthingam e da Professora Susana Durão do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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(média=5 anos; mediana=4,5 anos) e são jovens (média=33 anos; mediana=32 anos). É de salientar que, no conjunto dos profissionais recenseados, apenas existe um antropólogo, facto que nos leva a questionar a imagem social que esta disciplina científica tem no sector para que não seja considerada como relevante para a intervenção social. Nestas condições, o trabalho profissional de intervenção social no terceiro sector parece ter uma procura extremamente dependente da educação escolar superior em CSH e do trabalho feminino e ainda dependente, em larga medida, de jovens diplomados com reduzida experiência profissional. Educação formal e saber profissional em contexto de trabalho Se o profissionalismo no terceiro sector depende muito das CSH, qual é a percepção subjectiva que os mesmos profissionais têm quanto à adequação e à utilidade da sua educação superior para o seu trabalho profissional nas respectivas organizações? Recentemente, no âmbito do projecto SARTPRO, pudemos obter dados quantitativos sobre este tema, a partir de um inquérito por entrevista que foi realizado, entre Maio e Agosto de 2010, a 63 profissionais diplomados em CSH. Foram seleccionados por critérios de quotas – zona sociogeográfica, grupo profissional, género e idade – de uma amostra de 35 organizações e 546 profissionais, retirada do universo de organizações (N=41) e de profissionais (N=621) recenseados, como referimos atrás. Como se pode ver nos Quadros 8 e 9, em anexo, a grande maioria dos profissionais (68%) reconhece total ou quase total utilidade (as duas posições mais elevadas numa escala ordinal de cinco posições) à educação formal obtida (usam os conhecimentos das CSH); contudo, quanto à sua adequação ao trabalho que realizam, encontramos resultados de total ou quase total adequação bem mais baixos (apenas 44%). Esta diferenciação de resultados quanto ao valor social da educação formal para o trabalho profissional dá conta de uma distinção que nem sempre está clara na tradição anglo-americana de análise do profissionalismo: ter o acesso e a posse de conhecimento formal e teórico não é suficiente para que o profissional tenha competência prática para saber agir nas situações de trabalho. Em consequência, esta tradição de investigação sobre o profissionalismo tem sido objecto de várias críticas (Champy 2009, 2010). Duas das mais importantes, e que têm uma relação forte com a noção de intervenção social, referem-se ao seguinte (Caria 2007a, 2008): – o profissionalismo é também um ofício (um métier, na tradição francófona de estudos sobre grupos profissionais) e, portanto, o conhecimento

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que confere especificidade ao trabalho profissional não é apenas o conhecimento científico e abstracto, mas também o conhecimento tácito e informal que é aprendido pela experiência de trabalho na intervenção social; – este conhecimento experiencial permanece, em grande medida, embora não totalmente, opaco à consciência (está inscrito no corpo; é incorporado), podendo ser parcialmente explicitado nos processos de interacção social entre membros da profissão. A tradição, de raiz francófona, de investigação sobre as profissões tem procurado interpretar este fenómeno à luz dos conceitos de profissionalidade, de profissionalismo relacional e de trabalho sobre o outro, procurando evidenciar os processos de (des)institucionalização do poder e da identidade social do profissionalismo de serviço a pessoas (Dubet 2002; Demailly 2008; Chopart 2000). É com base nestas contribuições que poderemos dizer que o profissionalismo que serve a intervenção social é relacional. Não tem como propósito primeiro produzir conhecimento para análise e para a explicação e, por isso, estes profissionais não se podem considerar como analistas simbólicos (Reich 1996) – ou peritos-experts, tal qual os cientistas, os consultores, os projectistas, etc. –, nem a configuração da prática e da organização do conhecimento usado podem ser consideradas como uma cultura epistémica (Knorr-Cetina 1997; Knorr-Cetina e Preda 2001). Esta relativa dissociação entre as finalidades analíticas e explicativas das culturas epistémicas do conhecimento científico, que servem a educação formal, e as culturas relacionais do trabalho profissional é hoje consensual nas ciências sociais, em consequência do grande impacto que o trabalho de Donald Shon (1983, 1987) teve, nos anos 80 do século XX, na reflexão e análise sobre os sistemas de educação, formal e não formal, e sobre a aprendizagem nas organizações e nas actividades de ensino, trabalho e gestão. Como bem analisava José Madureira-Pinto (1984, 1985a, 1985b), também nos anos 80 em Portugal o trabalho científico-social faz uso de uma teoria principal capaz de produzir verdade sobre a realidade mas, ao mesmo tempo, faz uso de uma teoria auxiliar para desenvolver a reflexividade sobre as condições sociais e os processos de produção desse conhecimento verdadeiro, durante e após o processo de investigação. Os dois usos da teoria não deverão ser confundidos, nem se deverá pressupor que os profissionais de CSH, que actuam fora do campo académico, fazem um uso do conhecimento teórico equivalente aos dos cientistas sociais. Nesta linha de pensamento, com base nos trabalhos realizados em Portugal a partir do final dos anos 902 do século XX (Pereira 2005, 2008;

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Refiro-me ao grupo informal de investigação ASPTI (Análise Social do Saber Profissional

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Caria 2002a, 2007b; Filipe 2003, 2005, 2008; Granja 2008; Loureiro 2005, 2009), ficou claro que os professores do ensino básico, os professores e educadores de ensino especial, os assistentes sociais, os técnicos de extensão agrária e os técnicos de educação de adultos usam (entre outros) o conhecimento formal e teórico das CSH de um modo auxiliar para desenvolver competências reflexivas que lhes permitam: – guiar a escolha de meios considerados relevantes na realização de finalidades (desenvolvimento de estratégias por valores) para a intervenção social, no quadro de crescentes incertezas institucionais; – introduzir prudência no juízo que se faz sobre os resultados obtidos e sobre o impacto da actividade planeada, face à diversidade social e cultural das pessoas e a crescentes desajustamentos na reciprocidade de sentido da interacção social. Neste quadro, o uso da teoria como recurso principal (quando existe) para produzir conhecimento legítimo sobre a realidade e, portanto, para responder à pergunta sobre o porquê dos fenómenos sociais está claramente subordinado à necessidade de agir estrategicamente para saber actuar nos contextos e situações de trabalho. Mas o saber prático-experiencial, quando explicitado, também é capaz de gerar competências reflexivas para, em contexto e em situação, se saber como fazer a seguir (competência processual que gera e adapta rotinas), como categorizar o que ocorre (competência normativa que gera consensos na interacção) e como ajuizar o que não é esperado que aconteça (competência comunicacional que compara e improvisa rotinas e consensos na interacção) (Caria 2010a). Em suma, o saber explícito da educação formal trará à intervenção social contribuições para desenvolver melhores estratégias em contexto (e não em abstracto e em geral), capazes de promover a justiça social. O saber prático-experiencial trará a habilidade para saber lidar em contexto (entre membros da profissão e entre profissionais e utentes), com os quadros intersubjectivos de (risco de) exclusão social que permitem e reclamam a intervenção social.

em Trabalho Técnico e Intelectual. Página na Web: http://home.utad.pt/ ~tcaria/aspti/), que desde 2007 se encontra sedeado no Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE) da Universidade do Porto, constituindo um núcleo autónomo de investigação designado por NECP (Núcleo de Etnografias do Conhecimento Profissional).

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Saber e autonomia profissionais As virtudes da conjugação destes dois tipos de saber profissional – incluindo o modo como eles se podem desdobrar e articular em diversas competências reflexivas – põem em evidência que a intervenção social protagonizada por profissionais de CSH não se orienta por oposições estéreis entre o individual/clínico/subjectivo e o colectivo/político/prescritivo (Guerra 2000; Autés 2000). Para ultrapassar estas oposições, há que desenvolver uma conceptualização da intervenção social que contenha duas dimensões (Kuty 2001): a dimensão de acção estratégica, desdobrada em elementos cognitivos e relacionais, que, como vimos, depende do uso dos conhecimentos provenientes da educação formal; a dimensão de acção comunitária, desdobrada nos elementos comunicacionais e normativos, que, como vimos também, depende dos saberes gerados e reproduzidos na intersubjectividade da acção. Mas não há uma tradução imediata ou uma articulação automática entre estes dois tipos de saber profissional. Na maioria dos grupos profissionais estudados, esta dualidade na organização das duas formas de conhecer (duas espistemologias do conhecimento profissional) transforma-se em dualismo, podendo ocorrer uma de duas situações em momentos diferentes: – as competências práticas do profissional experiente para interagir com uma grande diversidade de grupos sociais desfavorecidos não têm consequências reflexivas na invenção de novas estratégias para a justiça social; – boas ideias para gerar estratégias gerais e abstractas para combater a exclusão social (políticas sociais) não são capazes de gerar modalidades de interacção em contexto que tornem eficazes e efectivas as políticas sociais formuladas e prescritas para a intervenção social. Trata-se de um problema científico mais amplo, que tem motivado inúmeros debates no âmbito das ciências cognitivas, que geralmente é descrito como dualidade cognitiva e para o qual se está longe de chegar a conclusões científicas (Ventura et al. 2002; Karmiloff-Smith 1995; Sun 2002; Evans 2008, 2009). A explicação e descrição desta dualidade faz parte dos propósitos do projecto SARTPRO, isto porque entendemos, por hipótese, que existem modalidades sociais de desenvolvimento e transformação do saber profissisonal que podem prejudicar a eficácia e a efectividade da intervenção social – um dualismo que oponha o prático-experiencial e o implícito ao formal, explícito e analítico – ou, pelo contrário, potenciá-las, o que sucederá se se desenvolverem linguagens e dispositivos de tradução da experiência para a teoria, primeiro, e depois o inverso.

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A nossa hipótese de explicação do dualismo cognitivo na intervenção social liga-se, mais uma vez, a uma das dimensões de análise do profissionalismo, a que fizemos referência sumária no início deste texto, a saber: o poder e a autonomia que o profissional tem (ou percepciona ter) para superar, ou mesmo quebrar, os constrangimentos sociais e organizacionais. Poder e autonomia que, estando inscritos na sua trajectória social e no seu contexto de trabalho, têm implicações determinantes no modo como se consegue usar o conhecimento formal e se consegue explicitar o saber prático-experiencial nos contextos de trabalho profissional. O reconhecimento de que se tem, mais ou menos, autonomia no trabalho profissional está associado à possibilidade de melhor articular a dualidade das duas epistemologias do conhecimento profissional, porque isso supõe, quase sempre, ter maior acesso ao uso de recursos materiais e simbólicos (ou seja, aos vários tipos de capital) e ver reconhecidas e legitimadas as suas competências práticas e reflexivas no trabalho profissional quotidiano nas organizações (Caria 2010b). Também no âmbito do projecto SARTPRO pudemos, recentemente, obter dados quantitativos sobre o tema da autonomia do trabalho profissional. Como se poderá ver nos Quadros 10, 11 e 12, em anexo, os níveis mais elevados de autonomia individual face à organização e de autonomia das equipas face ao controlo externo têm uma frequência relativa que não ultrapassa um quarto dos inquiridos (23% a 25%). Inversamente, os níveis mais baixos de autonomia têm frequências relativas mais elevadas (36% a 48%). Quando desdobramos a autonomia em três diferentes dimensões de controlo (ver Quadros 13, 14 e 15, em anexo), verificamos que os dados continuam a ser congruentes, embora desiguais: a maioria dos inquiridos tem uma baixa fuga ao controlo externo (52% a 66%); as fugas ao controlo externo ocorrem mais na organização interna (48%), seguida do uso dos recursos (45%) e, no final, nos objectivos/resultados (34%). Assim, estes dados parecem indicar que, em geral, a maioria dos profissionais não reconhece ter um poder significativo face aos contrangimentos sociais e organizacionais implicados no seu contexto de trabalho. Em consequência, e em coerência com a hipótese formulada, poderemos afirmar que, nestes casos, o conhecimento profissional baseado nas CSH tenderá a estabelecer uma dicotomia entre a experiência e a teoria. Para uma maioria significativa de profissionais, isto levará a que o saber prático-experiencial permaneça implícito na acção comunitária e que o saber explícito e científico ajude a orientar a acção estratégica tão-só de um modo pouco contextualizado.

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Etnografias profissionais Como sabemos, o uso de inquéritos para descrever e entender autonomias, saberes e competências reflexivas é altamente discutível. As metodologias que melhor servem a construção teórico-empírica de objectos de estudo sobre a acção social (dependentes de percepções, indexicalidades, categorizações e representações situadas na interacção social, como é o caso) não são equivalentes, nem indiferentes, aos estudos que procuram encontrar regularidades estruturais e disposionais na distribuição do poder. Não se pretende com isto dizer que existem métodos mais fiáveis que outros, que os dados apresentados não são realistas ou que a ciência não é capaz de produzir conhecimento objectivo. Pretende-se, apenas, referir que as metodologias usadas têm um efeito específico no modo como se constroem os objectos teórico-empíricos das ciências sociais: a análise não é independente da perspectiva e do lugar social de quem produz conhecimento e, em consequência, as formas de recolha e tratamento de informação que servem a análise não são independentes das metodologias que articulam as hipóteses com os dados empíricos. Assim, não será de estranhar que os baixos níveis de autonomia profissional identificados sejam uma consequência do inquérito depender de percepções e representações que estão subordinadas às relações simbólicas de poder que constituem o campo social do terceiro sector: são respostas que, na prática, precisam de ser reconhecidas como legítimas pelas direcções das organizações, pelas entidades públicas que tutelam a aplicação das políticas sociais e, finalmente, pelos investigadores universitários de ciências sociais que irão “produzir verdade” sobre o que é o seu trabalho. O facto de os valores quantitativos de autonomia individual para a mudança e redefinições das tarefas de trabalho serem mais salientados do que os colectivos, de autonomia da equipa, e o facto de o controlo externo ser mais salientado naquilo que mais depende do exterior (objectivos e resultados) evidenciam que, no terceiro sector, a autonomia profissional é mais reconhecida e aceite nos processos sociais mais próximos da interacção (individuais, informais e interno à organização). Assim, é legítimo entender-se que o quadro de interacção social em que se move o poder profissional no terceiro sector está subordinado a poderes simbólicos (colectivos, formais e externos) que estão para lá do profissionalismo. Uma forma indirecta de se perceber até que ponto o profissionalismo está subordinado a processos sociais de legitimação no campo será cruzar a informação apresentada sobre a autonomia com os dados sobre a posição hierárquica dos profissionais nas organizações (ver Quadros 16 e 17, em anexo). Assim, podemos observar que existe uma relação estreita entre a posição hierárquica e as duas variáveis de autonomia já consideradas:

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– as posições superiores nas organizações (chefia e direcção técnica) implicam uma maior legitimidade para sobrevalorizar uma maior autonomia profissional; – inversamente, as posições inferiores na hierarquia técnica das organizações implicam uma maior legitimidade para sobrevalorizar uma menor autonomia profissional; – existe uma dependência estatística (medida através do teste de hipóteses qui-quadrado: Quadro 17, p
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