Pessimismo e Política: o Brasil Grande e a violência

October 12, 2017 | Autor: Moysés Pinto Neto | Categoria: Brasil, Movimentos sociais, Direitos Indígenas, PT (Partido Dos Trabalhadores), Copa Do Mundo
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Pessimismo e Política no Brasil Grande Moysés Pinto Neto Fala para IHU Debate

1. Começo essa intervenção conversando um pouco sobre o papel do pessimismo na política. Dois pensadores nos ajudam a pensar acerca disso: Georges Sorel e, na sua trilha, Walter Benjamin. Soler Sorel afirmava que "o otimista em política é um homem inconstante ou mesmo perigoso, porque não se dá conta das grandes dificuldades que seus projetos apresentam. Estes lhe parecem possuir uma força que conduz à sua realização, tanto mais facilmente quanto mais pessoas felizes estiverem destinados, em seu espírito, a produzir. Parece-lhe muitas vezes que pequenas reformas, introduzidas

na

constituição

política

e,

sobretudo,

no

pessoal

governamental, bastariam para orientar o movimento social de modo a atenuar o que o mundo contemporâneo oferece de horrível aos olhos das almas sensíveis". O pessimismo, por outro lado, "é a concepção de uma marcha rumo ao livramento estreitamente ligada, de um lado, ao conhecimento experimental que adquirimos dos obstáculos que se opõem à satisfação de nossas fantasias (...), de outro, à convicção profunda da nossa fraqueza natural" (SOREL, Georges. Reflexões sobre a violência, pp. 30-31). E Benjamin, inspirado no próprio Sorel, ao mesmo tempo que afirmava ter sido a crença no progresso o principal disparate da classe operária alemã, opunha-se à "história monumental" usando a metáfora do freio de mão da locomotiva nas Teses sobre o conceito de história. Para ambos, lembrando nesse ponto o trabalho de Idelber Avelar nomeado Alegorias da Derrota, o pessimismo é um antídoto (portanto, nada mais que um pharmakon) contra a narcose do progresso.

Se em algum lugar do mundo hoje o discurso de Sorel e Benjamin faz sentido, é no Brasil de Dilma Rousseff. Mais do que nunca, a ideologia do progresso nos moldes nacional-desenvolvimentistas tem sido usada como chantagem contra todos aqueles que ousam se colocar contra o projeto do Brasil Grande. Apesar da origem brizolista, é muito menos com Darcy Ribeiro do que com Getúlio Vargas e todo imaginário grandiloquente do Brasil autoritário da Ditadura Militar que Dilma parece apoiada. Portanto, nada melhor do que a vacina pessimista para não cair em ilusões conduzidas pela megalomania governista.

2. A acusação mais usada contra todos os que se opuseram ao PT durante o período eleitoral foi de que estariam contribuindo para o "retrocesso". Mas a pergunta é: não terá o retrocesso já começado? Comecemos, portanto, recapitulando em breves anotações o cenário préeleitoral. Sabemos - e já estamos todos um pouco cansados de ouvir a esse respeito - que André Singer construiu um dos melhores relatos do fenômeno que nomeou "lulismo". O lulismo seria uma plataforma de governo que envolveria um "pacto conservador" por parte do PT que, em troca da manutenção da configuração brasileira de classes (temida, diz André Singer, tanto pela parte do alto quanto do baixo, que ele identifica como "conservadora"), poderia, enriquecendo a todos, melhorar as condições da parte dos mais pobres. Para tanto, não apenas o Bolsa-Família se mostrou um sucesso absoluto, como também políticas de crédito consignado e o aumento real do salário mínimo colaboraram para aquecer o mercado interno e promover o crescimento brasileiro. Segundo Singer e outros, esse momento positivo foi conduzido pelo boom das commodities, cenário internacional favorável que possibilitou ao Brasil crescer sem a necessidade de grandes reformas e mantendo sólido o "tripé macroeconômico". O próprio Singer, no entanto, reconhece que o ciclo "bonapartista" do lulismo

estava visivelmente se encerrando em possibilidades, de modo que seria necessário passar do "reformismo fraco" para o "reformismo forte", com apoio dos próprios segmentos que "subiram" graças ao lulismo, a fim de dar o passo seguinte. Há outras leituras mais críticas (como as de Paulo Arantes e Francisco de Oliveira) e outras mais potencializadoras (como a de Giuseppe Cocco e dos negrianos em geral) em torno do lulismo, mas fico com a de Singer como um ponto arquimédio.

3. Em 2010, Dilma Rousseff assume a Presidência da República sucedendo um governo de plena aprovação e com a provável ressaca da crise de 2008, que bloqueia o ciclo positivo de exportações, para dar conta. Dilma vence uma eleição em que a grande surpresa fora Marina Silva, do PV, contando com 20% dos votos no primeiro turno, e tendo a disputa sido feita em um segundo turno bastante conservador com José Serra, do PSDB, quando

temas

como

aborto

ingressaram

de

maneira

abrupta,

descontextualizada e reacionária, obrigando os candidatos a defender pontos de vista conservadores que sacrificam minorias para atender esse tipo de demanda. O padrão do segundo turno é repetido durante o primeiro ano de mandato de Dilma. Ao assumir, ela: (a) demite Pedro Abramovay por ter declarado em entrevista ser favorável à aplicação de penas alternativas para traficantes; assim o novo Governo insinua uma aproximação com políticas de lei e ordem na segurança. Bem pouco depois, Dilma compra as operações da "pacificação" com a estratégia de militarização do controle das favelas, apoiando a política das UPPs até simplesmente acabar com um dos melhores programas do Governo Lula, o PRONASCI (inspirado nos ideais conhecidos como "realismo de esquerda" e apoiado pelos principais intelectuais da área da segurança pública);

(b) desfaz a gestão do Ministério da Cultura fortemente inovadora conduzida por Gilberto Gil e depois Juca Ferreira, com experimentos como os pontos de cultura, que incentivavam a cultura local e descentralizavam a gestão, e coloca Ana Buarque de Hollanda como representante da manutenção do copyright que vinha sendo aos poucos questionado pelos gestores anteriores. Estes eram pontos costumeiramente elogiados pela esquerda que, apesar de reconhecer que o Governo Lula era apenas reformista de baixa intensidade, consideravam que - fora da macroeconomia - vinha produzindo bons resultados. Ou seja, Dilma desmanchou uma estrutura de governo que já estava em andamento e substituiu por uma estrutura mais conservadora. Mais sensível ainda foi o tratamento da questão indígena e ambiental. Sabe-se que foi Lula quem primeiro se aproximou do latifundiário Blairo Maggi, mas seu governo ainda equilibrava os opostos ao permitir a presença de Marina Silva, uma ambientalista de destacada história, no Ministério. Aos poucos, depois do Mensalão e da perda dos seus principais braços-direito (Dirceu, Palocci, Genoíno etc.), Lula dá cada vez mais protagonismo à Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e deixa que suas concepções irriguem o imaginário do governo. Dilma tem a visão ultrapassada de que o meio ambiente é um "entrave" ao progresso e pensa o desenvolvimento como se vivessemos ainda nos anos fordistas de Celso Furtado. Ela parece querer fazer o que o projeto nacional-desenvolvimentista da Ditadura Militar não conseguiu, embora com aportes de redistribuição de renda. Assim, no racha entre Dilma e Marina ainda durante o Governo Lula prepondera a primeira. Um dos principais fieis da balança é o Pré-Sal: o ambientalismo de Marina, que até então tinha sido visto como oportunidade por Lula devido ao protagonismo brasileiro no etanol, perde lugar para a exploração de petróleo que poderia garantir o "futuro" dos brasileiros. É claro que o futuro que Lula enxergou aí é o dos próximos 50 anos, não o futuro no sentido que

Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro desenham no seu Há mundo por vir?, para o qual a redução da emissão de combustíveis fósseis é um dado determinante. Dilma coloca uma ministra testa-de-ferro do meio ambiente, Izabella Teixeira, para gerir a pasta defendendo o discurso do "equilíbrio" entre crescimento e preservação, como se a pasta não fosse já um espaço de resistência, e aproxima-se cada vez mais dos latifundiários (agora denominados "ruralistas"), em especial da sua voz mais forte no Senado, Kátia Abreu. Essa aproximação escandalosa para um partido que tinha nas suas origens ambientalistas como Chico Mendes é cada vez mais aprofundada e podemos deduzir, com toda tranquilidade, uma afinidade programática entre o desenvolvimentismo dilmista e a visão do agronegócio sobre o Brasil. Com seu perfil tecnocrático, a Presidenta Dilma passa a valorizar mais índices econômicos que a qualidade desses índices, assumindo pactos com todo o tipo de aliado para garantir suas metas. Para tanto, sacrifica todas as minorias políticas que precisam de foco específico nas políticas de direitos humanos, a começar pela comunidade LGBT, que vê o kit antihomofobia retirado das escolas sem discussão para proteger o Ministro Palocci de ser convocado a depor no Congresso Nacional após escândalo de corrupção. A Presidenta ainda escancara sua truculência quando afirma que "o Brasil não faz propaganda de opção sexual", como se as centenas de assassinatos e agressões à comunidade LGBT fosse simplesmente um dado irrelevante ou irreal. Pior destino sofrem ainda os povos indígenas, que veem suas demarcações conquistadas na Constituição de 1988 subitamente interrompidas e passam a receber a maior ofensiva contra seus direitos, inclusive contra as suas vidas, desde a Ditadura Militar, a fim de viabilizar os projetos faraônicos assumidos como símbolo do Brasil Grande sonhado pelo Governo, tal como a Usina de Belo Monte. O Governo brasileiro passa a ser visto como inimigo pelos povos indígenas, negando-se a negociar as

demarcações e se mostrando conivente com o genocídio em ato que acontece silenciosamente nos rincões do Brasil. A política é promover aquilo que a Ditadura Militar não conseguiu: "a colonização da Amazônia". Finalmente, do ponto de vista do urbanismo, o projeto do Governo Dilma é turbinar os "grandes campeões" da construção civil com empréstimos via BNDES e com isso promover o "desenvolvimento" urbano que significa, em termos gerais, gentrificação. As áreas centrais são objeto de remoções contínuas e a pobreza - com a promessa do Minha Casa Minha Vida - é deslocada para o espaço periférico. As obras para a Copa do Mundo são o principal pretexto para efetivar essas medidas, criando uma espécie de estado de emergência em que tudo é justificado em nome da "imagem" do Brasil para o exterior. Até que a ponte caia.

4. Um caldo de inconformismo com todas essas políticas vinha sendo produzido, em especial via redes sociais, desde 2010. E em 2013, com a luta contra o aumento da passagem, ele explode. O Governo sente o golpe imediatamente: em vez de se solidarizar com os protestos, como era a atitude esperada do PT (tradicionalmente com relações com movimentos sociais como o sindical e o MST, por exemplo), prefere manter silêncio e usar os comunicadores governistas como tropa de choque contra os protestos. Encampando o discurso do "vandalismo", os governistas negamse a perceber os links entre os movimentos-rede brasileiros e os demais espalhados pelo resto do mundo (Tunísia, Egito, Turquia, Espanha, EUA, Chile etc.). Quando finalmente os movimentos atingem o pico, Dilma faz um discurso medíocre e propõe, sem qualquer convicção, uma constituinte exclusiva para reforma política (proposta que desaba em menos de uma semana). No momento em que o PT poderia ter aproveitado a chance para colocar-se mais à esquerda, fazendo uso da popularidade próxima dos 80%

de aprovação que vinha acumulando, ele prefere confrontar os protestos e depois tentar cooptá-los ou até comandá-los. A reação é obviamente de forte rechaço, chegando à violência por alguns segmentos fascistas antipartidários. O Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, torna-se um dos símbolos da visão repressiva sobre os novos movimentos sociais, oferecendo diversas vezes a Força Nacional para auxiliar as polícias estaduais a reprimir protestos. Quando, no Rio de Janeiro, a luta dos manifestantes soma-se ao "Cadê o Amarildo?", o papel da militarização promovida pelo Governo Federal torna-se ainda mais patente. O ano segunte, 2014, é a continuação dos mesmos erros. Os novos movimentos aglutinam-se em torno da hashtag #naovaitercopa, fazendo uma crítica do projeto urbanístico do PT, dos gastos excessivos com a competição, da aliança em a entidade mafiosa FIFA, à compra de drones israel-estadounidenses e da repressão das manifestações em geral. Mais uma vez, a tropa de choque governista coloca o #vaitercopa como contraponto, separando-se e distanciando o governo dos novos movimentos. Dilma Rousseff permanece olimpicamente indiferente a tudo, pensando apenas em como realizar com sucesso a Copa do Mundo e vencer as eleições que viriam.

5. As eleições começaram sem sobressaltos. Dilma e Aécio, polaridade tradicional, tinham os índices mais ou menos esperados e Eduardo Campos, embora ameaçador, parecia um nome mais para 2018 que para 2014. É quando Eduardo Campos sofre um acidente aéreo e Marina Silva, inicialmente excluída do páreo por não conseguir regularizar a Rede Sustentabilidade, entra no páreo. Marina já tinha sido uma ameaça real em 2010 e crescera vertiginosamente com as manifestações de junho, recebendo apoio tanto de parte da juventude mais à esquerda pela pauta ecológica e

indígena, quanto da juventude mais à direita que reclamava da corrupção, dada sua trajetória íntegra e relativamente separada do meio político até então. Quando ingressou como candidata, ultrapassava Dilma em intenções de votos no segundo turno. Apresentou-se uma alternativa que poderia derrotar o imbatível PT pós-Lula. O PT, então, deflagra uma gigantesca operação de difamação para atingir Marina Silva. Lula afirma em privado que "o primeiro turno é o segundo turno", traçando a estratégia de retirar Marina e ressuscitar o PSDB (bastante fragilizado) se necessário, dado que no primeiro caso a forte diferença identitária que o PT mobiliza seria em parte neutralizada. Como petista histórica e identificada com as causas dos direitos humanos e do meio ambiente, seria difícil à Marina ocupar o papel diabólico que o PT normalmente coloca em seus rivais. Por isso, uma mobilização que envolveu o submundo midiático - com sites publicando suspeitas sobre a queda do avião, envolvimento com o Itaú pelo fato de uma das herdeiras, Neca Setúbal, participar da campanha, acusações de fundamentalismo religioso (por ser evangélica), de ser o "novo Collor" e de falta de coerência - até a alta intelectualidade, que a declarou "a nova cara da direita", configurou a bem-sucedida estratégia de evitar a qualquer custo a derrota do PT estraçalhando a imagem pública de Marina. Evidentemente, como já é visível hoje em dia, todas as acusações dirigidas contra Marina - mesmo quando falsas poderiam richotear no PT. Dilma promoveu aliança com os setores mais reacionários do fundamentalismo religioso (rifou a Comissão dos Direitos Humanos, deixando Marco Feliciano no seu comando), destruiu qualquer coerência do PT em matéria de direitos indígenas, proteção do meio ambiente e identificação com os movimentos sociais, mas tudo se passava da seguinte forma: na defesa, alega-se a governabilidade; no ataque, ocupa-se o lugar da pseudo-extrema esquerda. Assim, curiosamente, o discurso “petista” passou a se identificar com o do PSOL de Luciana Genro, partido que esteve na

oposição durante os últimos anos e acabou servindo nas circunstâncias de reforço ao discurso governista contra Marina Silva. Marina não resiste ao golpe e passa a cambalear, oscilando nas declarações e perdendo a confiança do grande público. Ela própria pratica uma sucessão de erros administrativos e políticos que vai fazendo minguar sua base de apoio, buscando agradar segmentos que se identificam mais com a direita, como é o caso das suas declarações ruralistas na Expointer, no RS, e, por isso, no final acabaram preferindo seu candidato natural, Aécio Neves. O segundo turno configura-se como o PT esperava.

6. O que o PT não esperava, no entanto, é que Aécio viesse tão forte para o segundo turno. A votação expressiva de Marina acabou criando a imagem de que era possível vencer e o eleitorado em dúvida passou para o lado de Aécio. Diante disso, o PT resolve promover uma campanha agressiva à esquerda sinalizando para os antigos eleitores, desiludidos com o projeto dilmista, que irá fazer esse movimento. Nasce, com isso, o "apoio crítico" e o "veto a Aécio". São inúmeros os intelectuais, artistas e ativistas que declaram que, apesar do repúdio ao governo atual, prefeririam ver o PT a ter novamente o PSDB na cabeça do poder. O PT consegue mobilizar novamente o que André Singer chama de "Alma de Sion", o espírito que irrigou a primeira fase do partido e se encontrava próximo das ideias do Fórum Social Mundial, por exemplo. Além disso, mobiliza uma camada de descontentes que declara voto útil. Marina Silva, por outro lado, ressentida com a operação de destruição da imagem que o PT operou e vendo no partido seu pior inimigo político pela estratégia do "vale-tudo", resolve juntar-se aos outros oposicionistas (todos, exceto Luciana Genro e Mauro Iasi) e apoiar Aécio Neves, o que desmobiliza bastante sua base e faz com que muitos dos seus apoiadores de esquerda migrem para o PT.

Um segmento do eleitorado (que chamarei provocativamente, com base em texto publicado no período dos protestos de 2013, de Peter Pel Pelbart, "Ninguém") permanece inamovível no nulo. É o grupo de pessoas que fez tantas rupturas durante o primeiro mandato que não suportaria votar em Dilma, apesar de Aécio poder vencer. Ele permanece inflexível em "Grande Recusa", recusando a chantagem da volta do PSDB que é o principal mecanismo de convencimento que restou ao PT diante da base cindida de esquerda. Para o grande público, Dilma e o PT vendem a imagem de um "populismo", identificado com o velho nacional-desenvolvimentismo de Getúlio e João Goulart, fazendo o partido se metamorfosear para uma imagem mais próxima do que fora o PDT antigamente. Os petistas utilizam direitos trabalhistas, privatizações, conquistas sociais e outros pontos desse gênero para defender o governo e colocar o PSDB como ameaça. Fazem até tímidas propostas para os esquecidos povos indígenas e comunidade LGBT, buscando contentar não apenas os próprios destinatários, mas também seus apoiadores nas redes sociais. Desenha-se um conflito "entre ricos e pobres" no Brasil, como se fosse a versão tupiniquim da luta de classes. Mas a realidade criativa e transformadora, por exemplo, o “tupi or not tupi” permanecerá esquecida ou recalcada. Evidentemente, boa parte do que nutre o petismo hoje em dia é o antipetismo em toda sua truculência, sendo boa parte dos virais compartilhados durante o período motivadores porque sinalizariam a necessidade de enfrentamento da asquerosa, estúpida e mesquinha elite brasileira. Curiosamente, apesar da ideia de luta de classes, a forma verticalizada, misturada a grandes lideranças e identificada com o velho populismo tem pouco a ver com as virtualidades do PT quando foi criado. Os projetos de intensificação da democracia, a horizontalidade, o respeito ao meio ambiente e o próprio apoio às questões de direitos humanos envolvendo minorias políticas passaram para o segundo plano em

relação ao projeto nacional-desenvolvimentista. Dilma consegue ser eleita nesse diapasão.

7. O que eu gostaria de destacar por último é que, quando falamos em contradições, normalmente estamos enganados. Primeiro, porque a lógica política não admite planificação sem autoritarismo. Dessa forma, ver toda contradição como algo negativo pode ser aquilo que Zizek chama do "estar apaixonado pelas próprias ideias". Melhor é nos libertarmos dessa lógica dialética e pensar em termos de programas não-lineares. Nesse sentido, penso que o diagnóstico de diversos intelectuais durante a campanha esteve totalmente errado, basicamente porque o conflito central no Brasil não é mais entre o projeto neoliberal e o projeto desenvolvimentista, mas entre um híbrido desses dois e algo novo que aponta no horizonte - e que os movimentos sociais souberam localizar e potencializar com muita desenvoltura. O Brasil não está fora do mundo, não custa lembrar; e perceber que boa parte dos países europeus, por exemplo, está em processo de reorganização política não é apenas um fato irrelevante. Mas o Brasil pode esquivar-se à utopia e ao mundo novo. Vivemos mudanças estruturais no século XXI e uma série de ameaças - com destaque para a questões ecológica - passaram a ser protagonistas. A formação de boa parte das cabeças do PT é o mesmo nacionaldesenvolvimentismo que a Ditadura Militar implementou (não por acaso a influência de Delfim Neto e os vários elogios de Lula à visão econômica dos militares), mas com o projeto de distribuição de renda e cidadania inclusiva. Para essas descrições, o problema central do neoliberalismo seria o desmanche da estrutura do Welfare State e a desregulação dos mercados, com a consequente hegemonia do mercado financeiro sobre a indústria e a produção. A nostalgia desenvolvimentista pensa ser possível reconstruir a

indústria com as bases do século XX e aplicar políticas de crescimento via intervenção do Estado com vistas à melhoria das condições sociais em especial dos mais pobres. Esse foi o projeto dilmista. No final, chegaríamos a uma sociedade no modelo dos Estados de bem-estar europeus e poderíamos somente então, quem sabe, começar a pensar nas utopias ecológicas ou anarquistas, grupos apelidados pela Ministra Gleisi Hoffman de "minorias com projetos ideológicos irreais" – talvez propagadas por aqueles que “são tudo o que não presta”. Não por acaso boa parte do ideário dessa esquerda é nacionalista, como o poderoso ministro Aldo Rebelo, cuidadosamente indicado para a pasta do Esporte em período de Copa do Mundo, e suas patacoadas não cansam de nos mostrar. Um keynesianismo econômico cumulado à plataforma constitucionalista seria o suficiente para transformar a sociedade brasileira contra a “globalização dos mercados” e suas políticas de exclusão social.O problema desse diagnóstico é que ele deixa muitas variáveis de fora e não leva em considerações boa parte das transformações sociais do que hoje em dia podemos já chamar de século XXI. O que se chamava de “neoliberalismo” hoje não pode mais ser reduzido a uma visão monetarista da política macroeconômica e tampouco apenas à hegemonia do mercado financeiro. Hoje, o que se chama com esse nome é um complexo de medidas de urbanização que envolvem a reconstrução dos espaços públicos a partir de uma nova arquitetura das cidades e um processo de adestramento dos habitantes dos espaços favelados para a sociedade de consumo. É um projeto de reconfiguração que funciona a partir de conglomerados econômicos que controlam o mercado da construção civil. A rigor, isso nem é mais liberalismo, porque o livre mercado foi para o brejo. É outra coisa. O complexo de oligopólios que atua no mercado da construção e conta com o apoio do sistema político — convertido em plutocracia — que usa a justificativa banal da “criação de

empregos” para promover a reconfiguração do espaço urbano a partir de estratégias como a gentrificação e da organização de mega-eventos. O Estado, que no caso brasileiro até pode acreditar estar “induzindo” processos de crescimento, financia essas operações ou no mínimo as respalda usando sua força policial — especialmente a militarizada — para evitar o protesto dos atingidos. O Brasil não apenas faz parte desse modelo, como inclusive o está exportando. A aliança Sul-Sul que alguns compram com um alinhamento automático pouco crítico na verdade está consolidando uma espécie de “quase-colonialismo”

sobre

outros

países

ao

viabilizar

que

empreendimentos relativos à extração de matéria-prima e construção civil comandados pelos oligopólios brasileiros sejam levados para mercados como a própria América do Sul e a África, atingindo sobretudo as populações vulneráveis (como os indígenas da Bolívia e Peru) e favorecendo as cleptocracias (especialmente na África). Ao lado da aliança política comemorada pelos intelectuais partidários existe uma estratégia econômica que fortalece algumas mega-empresas que não por acaso se destacam em termos de doação para a campanha majoritária. Esse fenômeno é ainda mais visível se considerarmos a ocorrência da Copa do Mundo e todas as remoções e outras medidas que ela significou. Lembrando que, antes do Brasil, essa estratégia aconteceu na África do Sul, outro dos países emergentes. Não se pode negar, nesse sentido, que a FIFA tem visão. Olhos voltados para o norte. O projeto desenvolvimentista brasileiro está embarcando forte nessa aventura. Alguns intelectuais como Eduardo Gudynas chamam isso de "neoextrativismo": ele se converteu em um reposicionamento do capitalismo contemporâneo não na forma decadente de neoliberalismo, explodida em 2008, mas do aceleracionismo. Não por acaso o PT, partido majoritariamente formado nas categorias socialistas e social-democráticas, não entendeu nada dos protestos de 2013.

Os protestos (encarados por Gilberto Carvalho, uma das cabeças mais compreensivas do governo atual, como “traição”) organizaram-se justamente a partir da pauta urbanística, em torno da questão do transporte público, mas também da gentrificação e da interferência dos oligopólios econômicos na política institucional. As ocupações de todos os estilos, inclusive das câmaras municipais, e os protestos contra a Copa bradaram sobretudo contra essa nova onda do que antes se chamava “neoliberalismo”. Essa nova onda não é mais anti-Estado, e por isso os libertários talvez fiquem magoados, mas precisa do Estado como indutor desses processos de reconfiguração, sobretudo a partir do uso da violência “legal” exercida pela polícia. Ela também precisa do apoio dos desenvolvimentistas para driblar as proteções ambientais e fazer girar a roda da “modernização” sem respeitar os limites naturais. Em troca, promete “aquecer” o mercado e melhorar os índices macroeconômicos gerais que contentam aos desenvolvimentistas. Devastando a paisagem e variedade das experiências urbanas, faz proliferar espaços “higienizados” com a construção de gigantescos arranha-céus, imensas autopistas e a vigilância generalizada por meio de tecnologias sempre em renovação. A multiplicidade e o colorido da diferença são absorvidos na monotonia cinza da grande megalópole. “Aquecendo” o mercado, o aceleracionismo nos conduz a lugar nenhum: a felicidade desidratada do consumidor nunca satisfeito, com sua caminhonete 4x4 e gadgets, mas cada vez mais privado de singularidade e esmagado pelo stress causado pela máquina abstrata da aceleração. Nesse ponto, o que podemos esperar no conflito entre PT e PSDB, ambos plenamente de acordo nos projetos de crescimento, é a disputa entre a biopolítica disciplinar, que transforma a população favelada em consumidores adestrados (quem sabe formados nas escolas técnicas idealizadas pela Presidência), ou a thanatopolítica sem pudores que utiliza a intervenção militar para promover o genocídio das populações descartáveis.

Na área rural, o quadro é ainda muito pior, muito mais catastrófico, mas não é crítico. Ele pressupõe a transformação do solo em mercadoria produzida em monocultura, com uso de todo tipo de defensivo agrícola ou de biotecnologia cujos efeitos desconhecemos ainda (transgênicos), produzindo uma intoxicação generalizada na economia natural dessas áreas e nos consumidores desses alimentos, com reflexos em todo ecossistema e nas populações humanas que vivem lá e mesmo efeitos à distância que a seca em São Paulo hoje deixa a ver. É a transformação da multinatureza da floresta em deserto monocultural e barragem dos rios e fluxos para produção de energia a fim de viabilizar o circuito compulsivo e potencialmente infinito, não fosse o limite material de recursos biofísicos (que se teima em esquecer), da sociedade de consumo. Mas o que podemos visualizar nisso tudo é que o projeto “progressista” está em completa sintonia com as dinâmicas aceleracionistas do capital. Analisar a questão eleitoral apenas sob o ângulo da macroeconomia sem macroecologia é um anacronismo a que não temos mais direito. O neoliberalismo como descrito pelos petistas não existe mais. Não tem mais futuro. Ele ruiu com a crise de 2008. O principal rival a ser enfrentado hoje em dia é o aceleracionismo, a “ultramodernização urbana” que é na realidade a exploração do espaço existencial da cidade no modelo “Dubai”. O futuro do capitalismo hoje é o Brasil, a África do Sul, a Índia, os “mercados emergentes”. Hora de avançamos o debate, confrontando o Governo Federal e sua mentalidade loucamente aceleracionista. No entanto, estamos ainda muito atrasados. O debate mal começou.

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