Pessoa ou Personagem? Uma Decisão Ética

October 5, 2017 | Autor: Maria João Neves | Categoria: Philosophy, Ethics
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Neves, M.J., “Pessoa ou Personagem? Uma questão ética.” in Revista Inuaf Studia Nº 10, Instituto Universitário Dom Afonso III, INUAF, Loulé, 2007.

Pessoa ou Personagem? Uma Decisão Ética. Maria João Neves Resumo Este artigo versa sobre a realização da pessoa procurando demonstrar como essa realização implica sempre tomadas de decisão do foro ético. Nele são analisadas as perspectivas da filósofa María Zambrano, do psicólogo Carl Gustav Jung e do psicoterapeuta Carl Rogers. Abstract This article is about self-accomplishment and seeks to demonstrate how that accomplishment implies ethical decisions. It focuses on the perspectives by philosopher María Zambrano, psychologist Carl Gustav Jung and psychotherapist Carl Rogers.

Existe uma extraordinária afinidade entre a filosofia de María Zambrano e os resultados a que chegam diversos trabalhos no âmbito da psicologia e psicanálise, nomeadamente, de Carl Rogers e Carl Gustav Jung. O grande motivo de admiração deve-se ao facto de os resultados a que chega Zambrano que só podem ser produto da sua investigação intelectual acompanhada por um processo de interiorização e de atenção a si própria, à sua experiência vital, coincidirem em bastantes pontos com os outros investigadores que chegam a esses resultados após vários anos de observação directa. Se a influência de Jung é bem conhecida pelas vezes que a autora o menciona e pelos livros existentes na sua biblioteca pessoal, não se conhece na sua obra nenhuma referência ao trabalho de Carl Rogers. Não pode, pois, tratar-se de uma influência, trata-se de uma coincidência de resultados que partem de investigações muito diferentes: uma singular e eminentemente teórica e outra colectiva e de cariz fundamentalmente prático. No entanto, apesar dos pontos comuns, existem bastantes diferenças das quais destaco duas: 1. No que se refere ao método, Zambrano nunca prescreve objectivamente um modo de acesso ao ser, cada um tem de descobrir o seu próprio caminho “recebido”, o passo que a “Terapia centrada no paciente de Carl Rogers” ou os métodos de análise de Jung, possuem um conjunto de técnicas e instrumentos que pretendem ajudar o indivíduo a actualizar-se cada vez mais como a pessoa que é. 2. Com respeito aos resultados, todos estes psicólogos e psicoterapeutas afirmam que a realização da pessoa constitui um incremento de felicidade enquanto que nos escritos de Zambrano parece haver sempre um certo pudor em falar de felicidade. Escreve abertamente sobre questões como o amor ou o sacrifício, mas a felicidade é qualquer coisa que somente podemos subentender pelo contexto e cadência da sua escrita, não se lhe refere abertamente. Esta ausência cuja causa atribuo a um certo pudor 1

poderia também ter outra origem; ás vezes, quando uma realidade é evidente, quando a sua presença ocupa muito espaço, podemos esquecernos de a referir. É possível que para Zambrano fosse tão evidente o enlace entre o acesso ao ser do homem e o incremento de felicidade que não lhe ocorresse mencioná-lo. Uma vez realizados estes breves esclarecimentos, passo a ocupar-me especificamente do problema da pessoa no interior da filosofia zambraniana. Originariamente, a palavra pessoa, em espanhol persona, significava o que hoje em dia entendemos por máscara. Uma máscara é algo que se oferece à visibilidade para dessa forma ocultar outra coisa. É neste sentido que Jung entende pessoa como os diferentes papéis representados pelo indivíduo, correspondendo à sua atitude consciente, às funções que representa ao relacionar-se com os outros1. Para estes conteúdos, Zambrano prefere a utilização do termo personagem, reservando o termo pessoa para aquela realidade autêntica que subjaz em todo ser humano. A personagem é a máscara com a qual se enfrenta a vida em todos os seus aspectos, o trato com as coisas e a relação com os outros. Esta personagem proporciona-nos segurança e tranquilidade devido à suposta certeza de sabermos quem somos quando desempenhamos um papel ou uma função, quando somos o filho de alguém ou se está em posse de um determinado título. Dessa forma possuímos um nome e uma figura que são reconhecíveis por todos. No entanto, se se pretende tornar-se transparente a si mesmo ou revelar-se, isso não se consegue enunciando os actos que a pessoa desempenhou, aquilo que fez ao longo da vida, com o lugar que ocupou, etc. É algo muito mais subtil, ao ponto de Zambrano considerar que para ser fiel ao falar sobre a vocação que nela se manifestou, mais do que contar o que fez e foi durante a sua vida, teria de contar o que desejou ser ou fazer: “Me siento incapaz de revelar mi propia vida (...)el hilo de mi vocación, no de lo que he hecho, no de lo que he sido, sino de aquello que no he podido dejar de ser, aquello que aún queriendo no he podido dejar de ser;”2 Mas se retiramos todos esses “conteúdos” que compõem a nossa máscara que sobra? Saberemos reconhecer-nos a nós próprios? Talvez não seja tarefa fácil.

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“(...) como el nombre nos lo dice, (la persona) no es sino una máscara de la psique colectiva, una máscara que finge individualidad, haciendo creer a los demás y a uno mismo que es individual, cuando no constituye sino un papel representado, donde la psique colectiva tiene la palabra. (...) En el fondo, la persona no es algo “real”. Constituye un compromiso entre individuo y sociedad acerca de “lo que uno parece”. Uno asume un nombre, adquiere un título, representa una función, es esto o aquello. Lo cual, naturalmente, en cierto sentido es real, pero en relación con la individualidad del sujeto sólo como una realidad secundaria, una mera configuración de compromiso en que muchas veces participan aun más otros que uno.” In C.G. Jung, Las Relaciones entre el Yo y el Inconsciente, Paidos, Barcelona, 1990, p.48. 2 M. Zambrano, “A modo de autobiografia”, Anthropos, 70/71 Marzo-abril 1987, p.81.

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“Se había vaciado de sí misma y ya no se dolía; había perdido su imagen y esto era un gran descanso. Esa imagen que sin darnos cuenta elaboramos (...) hay una imagen de sí, densa, cargada de sentimientos, casi corpórea y si sus contornos son muy fijos, ya la imagen está en trance de convertirse en “personaje”, más real que la persona misma, alimentado a su costa... Y mientras el “personaje”crece y toma posesión de cuanto espacio vital le dejan, sus 3 semejantes, la persona que lo sustenta, se vuelve como un fantasma.”

O perigo do incremento de “peso” da personagem radica em que este pode dessa forma asfixiar a pessoa e isso corresponderia a um acto de suicídio ao não permitir-se viver quem realmente se é. Nocivamente, o ser humano parece constituir-se de uma forma tal que tende a ocultar a si próprio a sua verdadeira natureza, acabando por ser mais fácil, menos esforçado, viver de uma forma inautêntica do que procurar ser fiel à sua realidade pessoal. Por outro lado, existe uma tendência “socialmente natural” para que cada um se identifique com a função que na desempenha na sociedade, sem que esta seja necessariamente um reflexo da sua realidade autêntica como pessoa; este facto pode contribuir grandemente para o ocultamento da pessoa e desenvolvimento da ou das personagens. Zambrano descreve o seu estado de perplexidade ao voltar à vida normal depois de um longo período de doença. Continuava chamar-se María Zambrano e a ser filha dos mesmos pais com quem vivia, mas o afastamento das suas ocupações profissionais e sociais e a alteração perceptiva que o estado de doença lhe provocou foram mais do que suficientes para que vida e ela própria lhe aparecessem como estranhas: “Tenía que acordarse de lo que la estaba pasando ahora y no era fácil porque... propiamente no la estaba pasando nada; sólo había vuelto a la vida. Y como volvía sin proyecto ni personalidad, rechazando la imagen que se transforma en máscara, como quería seguir así, tal como se vio que no era, sentía muy agudamente estas vestiduras del tiempo, 4 estas capas de ser que los diversos tiempos nos echan encima.”

Este “não passar nada”, expressão tipicamente andaluza, este estar, existir simplesmente pode causar incomodidade ante a impossibilidade de identificação em virtude do facto de não se exercer nenhuma função socialmente reconhecida, mas pode também constituir uma oportunidade para iniciar o processo de autoconhecimento. A pessoa não se identifica com todas estas personagens e seus diversos papéis ou funções porque está mais além de tudo isso. A pessoa é o indivíduo autêntico quando consciente da sua singularidade, e é tarefa de todo homem procurar conhecer a sua individualidade, pois o seu ser não lhe é completamente revelado, pelo contrário, vive normalmente oculto, e, por outro lado, este ser é por essência transcendente, o que quer dizer que está permanentemente construir-se e a desconstruir-se, modificando-se de tal forma que acaba por ser difícil um conhecimento verdadeiro e completo de si próprio. Por este motivo é imprescindível empreender a busca do seu ser para que se possa acolher essa verdade que reside no interior do homem e configurar a vida de acordo com ela, pois se assim não se fizer, teremos desperdiçado o nosso tempo e consequentemente nos teremos perdido a nós 3 4

M. Zambrano, Delirio y Destino, Mondadori, Madrid, 1989, p.29 M. Zambrano, Delirio y Destino, Ed. Cit., p.113.

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próprios. Somente através desta busca se inicia o processo de realização da pessoa, tal como o entende Zambrano. O caminho da verdade só é possível descendo a esse fundo de solidão que cada homem possui, esse espaço de intimidade que cada um vive consigo mesmo. Esta solidão transporta-mo-la sempre connosco, podemos senti-la inclusivamente dentro da mais animada convivência. Podemos não ser sensíveis a ela ou ignorá-la, mas esse ser profundo que aí reside, esse “si mesmo” continua vivo e com ânsia de nascer completamente. A pessoa vive em solidão mas quanto maior é a intensidade da vida pessoal, maior é a vontade de se abrir ao outro, numa ânsia de amor e comunicação, porque no fundo último da solidão existe um pequeno ponto que é solidário com todos os outros, e a partir deste lugar nunca estamos completamente sozinhos porque podemos perceber que existem outros, ou melhor, outro “alguém” que é pessoa como “eu”. Enquanto que o animal procura algo determinado e a sua busca termina quando o encontra, o ser humano é um ser que vai sendo, que se vai construindo e é preciso tomar a decisão de querer ser pessoa, de querer despertar para essa verdade que reside no fundo de cada um e que se pode deixar inerte. Uma vez desperta a pessoa, é preciso tomar a decisão de viver a partir dela; ora as decisões só se tomam se se tem consciência da liberdade. A liberdade contém em si o peso da responsabilidade de ter a vida nas próprias mãos. Pode estar-se descontente com a sua vida e encontrar com facilidade culpáveis: o governo, o patrão, a família, etc. Mas quando se toma consciência da liberdade, tais culpas não são atribuíveis porque como ser livre o homem pode sempre, salvo em condições limite e mesmo assim ter-se-ia que proceder a um rigoroso exame sobre a vivência interior, fazer alguma coisa para modificar a sua situação. Claro está que é muito mais fácil enumerar razões, e sempre as há, que obstruem a possibilidade de fazer algo, buscando assim uma auto-justificação para não se fazer nada, fugindo às responsabilidades e desculpando-se pela inactividade. No entanto isto corresponde a um autoengano que nos afasta da nossa realidade intrínseca de seres livres que dispõem de um tempo para gerir da forma que creiam mais conveniente. Por outro lado, este fundo residual e autêntico, não é qualquer coisa que esteja completamente dada, mas antes, algo que vai nascendo, um algo “à medida que”, por este motivo, chegar a ser pessoa é uma tarefa interminável de tentar decifrar os seus próprios sentires, de penetrar nessa zona desconhecida de obscuridade. Quem deseja realmente conhecer-se a si mesmo e empreende um verdadeiro esforço nesse sentido deparar-se-á, cedo ou tarde, com a sua sombra, pois entre cada etapa da vida humana, justamente na passagem de uma a outra, encontra-se um obstáculo distinto e há que saber parar, há que saber escutar. O grande perigo da condição humana consiste justamente na possibilidade de não se escutar a si mesmo e consequentemente não viver a partir desse fundo autêntico.

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Jung chama “Individuação” 5 a este processo de auto-conhecimento. Realizá-lo significaria aceder ao ponto central da personalidade onde se dá a reconciliação dos opostos, a harmonização do consciente e do inconsciente a que Jung denomina si-mesmo6 estabelecendo um paralelismo entre o processo psicológico e a alquimia: assim como os alquimistas tentavam transformar os metais em ouro, a mente humana realiza a função unificadora de fundir consciente e inconsciente. Com esta fusão Jung considera que se atinge um equilíbrio entre estas duas instâncias que actuam, ou devem actuar, de forma compensatória, pois o principal perigo a que o indivíduo se encontra exposto consiste em acreditar que aquilo que é apenas uma máscara constitui a sua autenticidade, em confundir o si-mesmo com a máscara. É fundamental o esforço de libertação do si-mesmo dos falsos invólucros das personagens e da pressão exercida pelo Inconsciente Colectivo7. De acordo com a antiga mitologia grega Zeus significa aquele que chega a ser completamente si mesmo. Não é de menosprezar o facto de o pai dos deuses, aquele que ocupa o cume da hierarquia, ser justamente aquele que se caracteriza por ser completamente quem é. Parece não haver maior grau de perfeição que este: atingir a realização plena, ser-se inteiramente, sem misturas de condicionamentos sociais, educacionais, traumáticos ou outros quaisquer. Atingir um grau de actualização do seu ser tal que se possa afirmar que se é verdadeiramente livre, que se vive um estado de autenticidade, de fidelidade com respeito a si próprio absoluta. Na mesma linha de diferenciação pessoa/personagem se encontra esta célebre frase de César que afirmou: “Eu não sou um imperador, sou César!”. Ser César, ser ele próprio, significava incrivelmente mais do que o posto que ocupava mesmo tratando-se de um dos homens mais poderosos do mundo, senão o mais poderoso.

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“Individuación significa llegar a ser un ente singular, y, en cuanto entendemos por individualidad nuestra singularidad más íntima, última e incomparable, llegar a ser sí-mismo. De modo que “individuación” podría traducirse también por “realización del sí-mismo” o “realización de sí” (Selbstverwirklichung, Verselbstung)” In C.G. Jung, Op. Cit., p.69. 6 “(...) la consciencia y el inconsciente no están necesariamente en oposición, sino que se complementan recíprocamente formando una totalidad, el sí-mismo. Según esta definición, el sí-mismo es una dimensión que incluye al yo consciente. Comprende no sólo la conciencia sino también la psique inconsciente y constituye entonces, por así decirlo, una personalidad que también somos.” Ibid., p.74. No ponto seguinte veremos como a harmonização entre consciente e inconsciente pretendida por Jung se relaciona estreitamente com o binómio vigília-sonho zambraniano. 7 “El inconsciente colectivo se constituye: Primero, por percepciones, ideas y sentimientos subliminales que no están reprimidos por su incompatibilidad personal, sino que a causa de su reducida fuerza de estimulación o el escaso investimiento de libido son subliminales desde el origen. Segundo, con restos subliminales de funciones arcaicas, que existen a priori y que en cualquier momento, por cierta acumulación de la libido, pueden ser puestos en función. Estos residuos son de naturaleza no sólo formal sino también dinámica (pulsiones). Tercero, con combinaciones subliminales en forma simbólica, que todavía no son capaces de asunción consciente. (...) Los contenidos más importantes del inconsciente colectivo parecen ser las “imágenes primordiales”, es decir las ideas y tendencias vitales colectivas (formas místicas de vida y pensamiento).” Ibid., pp. 218, 219.

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Também Carl Rogers considera um passo fundamental do processo da pessoa esta confiança em si mesmo na sua individualidade única inconfundível e expressa-o desta forma: “El Greco, por exemplo, deve ter compreendido ao olhar para certos trabalhos da sua juventude, que “os bons artista não pintam assim. Mas confiava suficientemente na sua própria experiência da vida e em si mesmo para poder continuar a exprimir as suas concepções pessoais e únicas. Era como se dissesse: “Os bons artistas não pintam assim mas eu pinto”. Num outro campo, Ernest Hemingway estava certamente consciente de que “os bons escritores não escrevem assim”. Felizmente, porém, resolveu ser Hemingway, ser ele próprio, de preferência a tornar-se em qualquer outra concepção de bom escritor. Einstein parece ter-se habitualmente esquecido de que os bons físicos não pensavam como ele. Mais do que a renunciar devido à sua inadequada preparação académica em física, preferiu simplesmente ser Einstein, com os seus pensamentos próprios, ser ele mesmo de uma maneira tão verdadeira e tão profunda quanto possível. Não se trata de um fenómeno que ocorra apenas no artista ou no génio. Repetidas vezes vi alguns dos meus pacientes, pessoas simples, adquirirem uma importância e uma criatividade na sua esfera própria, à medida que ganhavam maior confiança em si mesmos ao longo do processo e ousavam ter os seus próprios sentimentos, viver com 8 valores que descobriram dentro de si e exprimi-los na sua forma pessoal e única.”

Este chegar a ser o que se é constitui o principal objectivo do processo de construção da pessoa que não coincide em absoluto com as ocupações, com aquilo a que o indivíduo se dedica. Esses afazeres são a parte exterior do processo e podem estar em consonância com ele ou revelarem-se verdadeiros obstáculos. Neste ponto coincidem também os diversos investigadores sobre a pessoa que temos vindo a mencionar, todos eles insistem na necessidade de cada um se ouvir a si próprio de uma forma aberta e disponível, sob pena de se assim não se fizer, se correr o risco de actuar de um modo desvitalizante e nefasto para a realização da pessoa. Não são poucas as vezes em que a cabeça “vai por um lado” enquanto os sentimentos ou as sensações “correm por outro”. Nestas circunstâncias importa não desprezar o que se sente impondo voluntariosamente o que se pensa ou se julga que se deve fazer, baseando-se em normas de conduta, ou valores reconhecidos social ou religiosamente. O sentir é na sua maior parte das vezes consequência de algo que pode não ter comparecido de forma nítida à consciência consistindo assim numa importante fonte de auto-conhecimento e realização pessoal a não desprezar. Por este motivo Jung considera que o inconsciente, que inclui além de tudo aquilo que foi reprimido qualquer conteúdo subliminal, pode actuar perigosamente se não se lhe presta a atenção devida, criando uma desunião interna do indivíduo –neurose–ou também desarranjos médicos como úlceras, doenças cardíacas, etc., pois o estancamento da energia psíquica pode a qualquer momento chegar a um limite e rebentar nas direcções menos beneficiosas. Para Jung o principal perigo consiste na reacção que o indivíduo pode ter quando certos conteúdos inconscientes afloram à consciência. Jung considera quatro grandes possibilidades: ser dominado por esses conteúdos, crer cegamente neles, rejeitá-los, ou, finalmente, compreendê-los de uma forma crítica. Os três primeiros casos dão origem a distúrbios mentais e apenas a quarta possibilidade corresponde a uma atitude sã9. 8 9

C. Rogers, Tornar-se Pessoa, Moraes Editores, Lisboa, 1985, p.154. Cf. C.G. Jung, Op.Cit., pp. 57-66.

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São notórias as semelhanças entre o processo de individuação junguiano e o processo de constituição da pessoa zambraniano apesar da filósofa não pretender realizar uma investigação sobre distúrbios psíquicos, como é o caso do psicanalista, uma vez que o seu enfoque diz respeito a uma experiência que é comum a qualquer ser humano. Mas a fronteira da sanidade mental ou da normalidade é, como se sabe, difícil de determinar. Por este motivo existe uma natural resistência a um aventurar-se por territórios dúbios onde o risco a perder-se aumenta e a segurança parece ser apenas uma miragem. No entanto, Zambrano decide adentrar-se por esses territórios pantanosos, alargar o horizonte da investigação filosófica a essas “zonas de sombra”, como a onírica, cuja exploração considera essencial quando se pretende o conhecimento desse ser em permanente transgressão que é todo o humano. Com efeito, “ ser humano” não é uma expressão demasiado exacta para a realidade que pretende enunciar, o ser humano é um ser “a meias”, um ser que não recebe o seu ser por inteiro quando nasce, pelo contrário, recebe em vez desse acabamento um caminho, “o caminho recebido”10 e um horizonte rumo ao qual caminhar. A esta acção de caminhar é-lhe inerente o tempo, a projecção a um futuro que o homem tematiza como esperança: “Pues se nos figura que sea la esperanza, junto con la necesidad, el “a priori” de todo humano camino, hecho o recibido. (...) Pues que la esperanza es el vacío activo de un ser 11 insuficiente para sí mismo, de un ser que no es todavía”

Mas apesar de se encontrar em constante processo, a pessoa constitui a única garantia de autenticidade: Quando captamos a realidade de alguém e nos relacionamos pessoa a pessoa, ante uma acção imprevisível e inesperada desse outro que se tem por “pessoa conhecida”, ficamos em suspenso, não julgamos, porque mesmo que os dados de que dispomos nos pareçam incompreensíveis existe um compasso de espera, se não se perde de vista a pessoa, confiamos que viremos a entender. A confiança constitui um modo de estar no mundo que Zambrano considera fundamental privilegiar e que, seguramente, se potenciará à medida que cada um seja cada vez mais pessoa. “Las almas mezquinas lo son por la estrechez de esta inicial confianza, pues la realidad, en su maior plenitud, está ligada a esta capacidad de aceptación, de olvido y de amor, 12 a este tesoro divino de confianza y entrega.”

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“Visión y pensamiento que se quedan establecidos de una vez. Y por ello serán los caminos por antonomasia, los arquetípicos: el trazado por el desígnio sinuoso, por las intenciones siempre curvilineas de la vida elemental. Y a su vez, el camino recto que la inteligencia traza en obediencia a una voluntad declarada, impronta de una finalidad a conseguir por el camino más corto. Si el sinuoso es la hulla del animal hombre, inteligente y aun intelectual desde el principio, el rectilínio es ya una verdadera construcción, un principio de arquitectura.” M. Zambrano, “El camino recibido” (fragmento) in Papeles de Almagro, Zero, Madrid, 1983, p.144. “Es el camino que vale más llamar sendero, vereda, vericueto, trocha o camino de sirga, el camino recibido por el hombre y sólo ensanchado, cuando se puede, allanado a fuerza de ser recorrido”, in Notas de un Método, Mondadori, Madrid, 1989., p.30. 11 Ibid., p.37. 12 M., Hacia un Saber sobre el Alma, Alianza, Madrid, 1989, p.90.

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Zambrano considera que esta disposição da vida humana que se denomina confiança se encontra numa relação directa com a percepção que temos da realidade: Quanto maior amplitude de confiança, maior é a realidade de que gozamos. Se o tempo é a substância da vida humana, a confiança é, segundo a autora, o substracto do próprio ser. É uma espécie de “primeira inocência” ou de “virgindade da alma” que constitui uma atitude prévia de abertura e disponibilidade. A confiança potencia a comunicação e esta é fortemente vitalizante para o ser humano. Poder comunicar-se sem estar preocupado em erigir barreiras para se proteger, sentir-se aceite, escutado, respeitado, só é possível confiando; e a energia que empregam todas estas distintas formas de protecção fica assim solta e pode ser aplicada em desfrutar da convivência, em saborear o acontecimento de estar vivo. Também Carl Rogers atribui à confiança um papel fundamental no desenvolvimento da pessoa verificando que quando o indivíduo se abre à totalidade da sua experiência deixando de lado a sua atitude de defesa, quando toma em conta as suas próprias necessidades bem como as exigências do meio, as suas reacções revelam-se positivas, progressivas e construtivas. Alguns dos seus pacientes manifestavam relutância a abrirem-se à experiência do seu mundo interior por temerem que daí poderia advir algo terrível, que os sentimentos que cariz negativo como a raiva ou o ódio adquirissem proporções tais que escapassem a um comportamento adequado. No entanto, observou-se que o indivíduo capaz de deixar-se viver este tipo de sentimentos, deixa também que se manifestem outros de sinal contrário, isto é, positivos, de tal forma que o próprio organismo possui um funcionamento autoregulador que proporciona o equilíbrio das atitudes. O perigo de um funcionamento atípico ou anti-social não é realmente importante uma vez que uma das aspirações profundas da pessoa consiste na convivência e comunicação com os outros. “À medida que o indivíduo se torna mais plenamente ele mesmo, torna-se igualmente mais socializado, de uma maneira mais realista. Não precisamos de perguntar quem controlará os seus impulsos agressivos; à medida que se for tornando mais aberto a todos os seus impulsos, a sua necessidade de ser querido pelos outros e a sua tendência para oferecer afeição serão tão fortes como os impulsos de violência ou de ataque. O indivíduo será agressivo em situações onde a agressão seja realmente adequada, mas não sentirá uma 13 necessidade desordenada de agressão.”

O perigo da atenção a si próprio poder reverter num prejuízo para os outros também é posto de lado por María Zambrano que considera que “não é possível eleger-se a si mesmo sem eleger ao mesmo tempo todos os outros. E os outros são todos os homens.” 14 Fica bem claro que o processo de construção da pessoa não é um movimento enclausurante, pelo contrário, desenvolve-se numa atitude de abertura aos outros e ao mundo ainda que um espaço de solidão e intimidade consigo próprio se revelem fundamentais para o seu perfeito desenvolvimento. Tal como María Zambrano, Carl Rogers contraria uma certa tendência que considera o homem como um ser fundamentalmente irracional cujos 13 14

C. Rogers, Op.Cit., pp.172, 173. Cf., M. Zambrano, Persona y Democracia, Anthropos, Barcelona, 1988, p. 165.

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impulsos se revelariam extraordinariamente prejudiciais a si e aos que o rodeiam. A este medo se deve a falta de vontade de explorar os domínios ditos mais obscuros de si mesmo, como se existisse o perigo de fazer soltar dessa forma uma besta indomável. Por este motivo, o homem não só se desconhece a si próprio como acrescenta, contribui, para esse desconhecimento. Zambrano afirma que a tragicidade humana se deve a esta cegueira ontológica em que o humano se encontra com respeito a si mesmo. Por seu lado, Rogers afirma que a tragédia deriva do facto de as defesas do indivíduo o impedirem de aceder a essa outra forma de racionalidade inata que se baseia num complexo auto-regulador das actividades do organismo tanto fisiológicas como psicológicas, dando lugar a uma vida harmoniosamente crescente. Esta outra forma de racionalidade diz respeito às reacções “organísmicas”15 do indivíduo que Rogers considera mais dignas de crédito do que qualquer apreciação puramente intelectual. A reacção organísmica porque dá conta da experiência trata-se de uma reacção total em que nenhum aspecto do indivíduo é desprezado, sendo ouvidas todas as instâncias do ser humano. É tão simples como confiar em que aquilo que se sente como bom e verdadeiro para si mesmo o é realmente. Estas reacções convertem-se então num guia competente e digno de confiança que leva a pessoa a um comportamento altamente satisfatório. A razão de tal facto deve-se a que a abertura da pessoa à totalidade da sua experiência permite que um grande número de dados sejam como que “processados” com o peso e medida que possuem. Desde as exigências pessoais e sociais, bem como os desejos e ambições que muitas vezes coexistem de forma conflictiva, à recordação de situações semelhantes ou da percepção única que da realidade em questão se obtém, tudo é tomado em consideração. Rogers compara este procedimento ao de um gigantesco computador electrónico: “Dado que está aberto à sua experiência, todos os dados da suas impressões sensoriais, da memória, da aprendizagem anterior, dos estados interiores e viscerais, são introduzidos na máquina. Esta regista todas estas tendências e forças que lhe são fornecidas e calcula rapidamente a acção que será o vector mais económico da satisfação das 16 necessidades nessa situação existencial determinada.”

Ao longo dos seu anos de trabalho como terapeuta, Rogers observou os resultados francamente positivos de tal forma de actuar verificando que as escassas situações de erro provinham na maior parte das vezes da inclusão de informações não pertencentes à situação presente, ou vice-versa, da exclusão de informação que lhe dizia respeito. É fundamental para esta forma de actuar distinguir o que é memória do que não o é tendo sempre presente que a pessoa, como realidade processual, pode surpreender-se a si mesma de tal forma que um comportamento assumido num passado não implica necessariamente a sua repetição num tempo futuro ante um situação de características semelhantes. O terapeuta verificou que o organismo se revelava

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Este termo inventado por Carl Rogers procura significar simultaneamente a realidade anímica e orgânica em interacção com o meio ambiente, integra a totalidade biopsíquica do indivíduo. Cf., C. Rogers, Op.Cit., p.33. 16

Ibid., p.169.

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na maior parte das vezes mais sábio que a consciência atingindo graus de satisfação muito mais altos e genuínos. Zambrano assimila o dinamismo do ser proposto pela filosofia orteguiana e aplica-o ao funcionamento da pessoa cujo ser assume uma realidade processual. O problema reside em saber como se pode obter uma garantia de autenticidade a partir de uma realidade que se encontra em contínuo movimento e consequente transformação. Tem que existir algum elemento que assinale a autenticidade. Zambrano encontra-o na distinção entre actividade e acção verdadeira: “Mas quando a acção é simples actividade que reveste o sujeito da sua personagem, ocultando sob ele a pessoa, então não existe possibilidade alguma de criação, nem em factos 17 nem em palavras.”

A confusão com a obra só se dá porque esta adquire um nível de expressão tão ajustado ao ser do autor que coincide com o que este é no momento em que a produziu. Zambrano não se refere aqui somente à produção artística, a palavra obra está aplicada também no sentido da mais insignificante acção quotidiana desde que realizada em perfeito acorde consigo mesmo. Neste sentido, em meu entender, não deveria tanto falar-se de confusão mas antes de coincidência entre o interior do ser da pessoa e a sua manifestação exterior, um acorde uníssono, ausência de distância entre o ser e o fazer. No entanto, como é possível que a pessoa, ela própria, se aperceba do seu actuar autêntico ou inautêntico? Só um certo sentir pode dar conta da autenticidade que se experimenta. É um sentir vocacional: “(...) sentimos que é qualquer coisa que vem dirigida a nós, que é para nós unicamente, que é um reclamo daquilo a que se chamou “destino”. (...)[é] a chamada da vocação. 18 (...)”

Zambrano parte do pressuposto de que cada indivíduo possui de forma inata um conjunto de aptidões que instintivamente trata de actualizar. Todas as acções realizadas neste sentido são “essenciais” uma vez que actualizam aquilo para que uma pessoa se sente feita, ou seja, a sua vocação. Para realizar a sua vocação torna-se necessário conhecer pelo menos alguns destes “ingredientes” que parecem constituir algo assim como o núcleo da pessoa que se é, para poder, seguidamente actuar em conformidade. Por este motivo, por este desejo fundamental que o homem sente por desocultar-se a si próprio, Zambrano afirma que o homem tem como vocação a transparência: “Porque es la transparencia lo que persigue el ser humano con su palabra y con su vida; podríamos decir que el hombre es el ser que tiene la vocación de la transparencia aunque no la logre. (...) por eso buscamos la experiencia originaria en lo más hondo, en lo más alto, en 19 todas partes, a ver si la encontramos.”

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M. Zambrano, O Sonho Criador, Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, p. 88. Tradução de Maria João das Neves. 18 Ibid. P. 33 19 M. Zambrano, “A modo de autobiografia”, Anthropos, Op Cit., p.69.

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Existe um sentir positivo de satisfação ou plenitude que acompanha esta experiência vocacional a par de um incremento da energia física e psíquica, bem como de um aumento de criatividade. Todos estes investigadores parecem coincidir, em meu entender, em cinco pontos essenciais: 1. A pessoa é uma realidade fluida, um processo em constante modificação, de tal forma que não lhe servem quaisquer concepções estáticas do conceito de ser, tal como vinha sendo entendido pela tradição parmenídico-aristotélica. Ser não significa algo rígido, fixo ou imutável, pelo contrário a sua estrutura é dinâmica, tal como salienta Ortega y Gasset, corresponde a uma realidade em constante devir como sabiamente verificou Heraclito. 2. É necessário, para o bom desenvolvimento do processo, a abertura à experiência que inclui a escuta atenta do próprio corpo, permanecer atento às entranhas constitui a única salvaguarda para não cometerem grandes equívocos. 3. A confiança em si próprio e nos outros é um ingrediente fundamental da pessoa em crescimento. A sua independência e segurança interior aumentam numa relação directamente proporcional à sua abertura e disponibilidade para o exterior. 4. Um espaço de solidão, de intimidade consigo mesmo é indispensável para poder não só conhecer-se mas também saborear-se a si próprio. 5. Verifica-se que à medida que o processo de desenvolvimento da pessoa avança esta torna-se mais responsável, mais autónoma e, porque não dizê-lo claramente, mais feliz. Há um não sei quê de frescura inerente a todo este processo de enlaçamento de vários nascimentos.

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