Pessoas sem mentes

September 26, 2017 | Autor: César Meurer | Categoria: Philosophy of Mind
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PESSOAS SEM MENTES1 César Fernando Meurer http://lattes.cnpq.br/1092880964040421 Tive que “dar conta” do Philosophy and the Mirror of Nature (Rorty 1979) na época da graduação em filosofia. A primeira parte dessa obra, sobre a nossa essência especular, parecia-me extremamente difícil naquela ocasião. Já mudei de opinião quanto a isso, mas algo que Rorty ensaia naquelas páginas volta e meia me interpela: a sugestão de pessoas sem mentes. A oportunidade de participar dessa coletânea tornou-se uma ocasião para começar uma exploração educacional desse tópico. A expressão ‘pessoas sem mentes’ convida a pensar na divisão físico/mental. Como tantas outras, essa divisão é usual e tem ares de natural no âmbito do senso comum. Para confirmálo, basta “puxar” o assunto na padaria ou no cabeleireiro (todo mundo sabe que salão de beleza é ótimo para ficar a par das coisas!). Sem demora dirão que são físicas as coisas materiais; aquilo que possui localização concreta. De fato, a linguagem que aprendemos na infância é fisicalista – falamos de objetos, propriedades e relações – e do ponto de vista dos padeiros e cabeleireiros que conheço é um absurdo duvidar da existência física do pão, da tesoura, do espelho e das demais regularidades sensoriais. Absurdo maior que duvidar do espelho seria duvidar da existência física do próprio corpo. Digamos que são físicas as coisas materiais que possuem localização concreta (não pretendo problematizar esse ponto). E os critérios que definem o mental, quais seriam? Pensando na mente humana, que é o que interessa aqui: o que é exatamente a mente? Será ela parte do corpo ou uma “substância” diferente? Sendo a mesma substância do corpo, tem ela localização concreta? Sendo diferente, será que ela ocupa algum espaço, tal como o cérebro, os dentes, o fígado ou a unha do dedo do pé? Será que a mente precisa do corpo? Pode ela permanecer, de algum modo, sem qualquer vínculo com o corpo? Confrontados com essas perguntas, meus amigos da padaria e do cabeleireiro já acham tudo muito estranho e passam a defender suas convicções religiosas. Presenciei essa conversa algumas vezes e vi que ela tende a terminar em “é impossível saber”, “é um mistério”, “é questão de acreditar”, “é coisa pessoal” etc. Embora pacíficas, tais conclusões não são boas para quem vive filosoficamente.

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MEURER, C. F. Pessoas sem mentes. In: FÁVERO, A.; TONIETO, C. (Org) Leituras sobre Richard Rorty e a educação. Campinas: Mercado de Letras, 2013. p. 237-255.

Como a intenção aqui é justamente ir além do senso comum, despeço-me dos aromas agradáveis da padaria e da polifonia engraçada dos espelhos para trilhar outro caminho. De volta à divisão físico/mental, agora no campo da filosofia. Os enigmas postos pelas discussões desse tema são complexos e estimulantes. As soluções, ao menos as tradicionais, podem ser alinhadas em dois abrangentes grupos: de um lado as teorias dualistas, que consideram que a mente é algo diferente do físico; de outro lado as teorias materialistas (também chamadas fisicalistas), que afirmam que estados, processos, propriedades e operações mentais são, em princípio, idênticos a estados, processos, propriedades e operações do cérebro. Uma das principais dificuldades enfrentadas pelos dualistas é explicar a causação mental: se a mente é imaterial e não-espacial, como pode ela causar eventos físicos? Aqueles que simpatizam com a orientação materialista, por sua vez, se veem em apuros para explicar, por exemplo, as experiências conscientes: se o que chamamos mente não é outra coisa senão o cérebro (algo físico, ou seja, material e que ocupa determinado espaço), onde se localizam essas coisas que conscientemente experimentamos como sensações, sons, odores, sabores, visões etc.? Ao sugerir pessoas sem mentes, Rorty expressa sua posição antidualista e materialista. Ele considera um erro bifurcar a realidade. No caso em tela, essa bifurcação consiste em supor uma divisória que estabelece um mundo mental/interno/privado – o mundo da mente com seus conteúdos, incluídas as experiências conscientes – apartado de um mundo físico/externo/público – o mundo dos objetos materiais com suas propriedades, incluído o corpo humano. A sugestão de pessoas sem mentes problematiza essa divisão, que é filosófica de origem e, enquanto tal, repercute na atividade educacional. Será que podemos abandonar as divisões mental/físico, interno/externo, privado/público? Qual é o significado desse passo na filosofia? E na educação? Nas últimas décadas, pensadores de diversas orientações vêm enfrentando os desafios de pensar sem dualismos. Tem sido recorrente criticar Descartes e a tradição por ele iniciada para, em seguida, enaltecer uma ou outra das concepções interpretativas do mundo e de si próprio. Todavia, volta e meia faltam respostas explícitas para certas questões fundamentais, que a meu ver são questões ontológicas. Uma delas, já apresentada acima, é: o que é a mente? Dizer que é uma questão ontológica significa que a resposta esperada deve oferecer uma descrição, a melhor possível, em termos gerais, daquilo que é. Além de internamente coerente e compatível com as evidências observáveis, a descrição do que a mente é deve estar sintonizada com as declarações atuais das ciências. Diante do teor dessa requisição, notamos que não é simples defender uma perspectiva dualista. Todavia, o fato de ainda não termos

uma explicação completa desse tipo não significa que no futuro ela não possa ser elaborada. Outra das questões fundamentais foca o que chamamos ‘consciência’: como compreendê-la sem incorrer em bifurcações do tipo interno/externo, subjetivo/objetivo? Por essas e outras, notamos que defender uma posição materialista também não é simples. Uma linha de argumentação promissora, conhecida como naturalismo, merece atenta consideração. O que segue é, como disse no parágrafo de abertura, uma primeira aproximação. O fio condutor, com o qual pretendo percorrer alguns argumentos de Rorty, consiste em elaborar respostas para as seguintes questões: (1) Qual é o cerne da concepção segundo a qual nós somos seres que possuem mentes? (2) Qual é a avaliação que Rorty faz da concepção mentalista? (3) Qual é a concepção rortiana de pessoa? Pessoas com mentes! Descartes é a referência primeira das teorias dualistas, aquelas que distinguem o mental do físico e, desse modo, nos levam a crer que seres humanos são pessoas com mentes. Descartes elaborou uma concepção de mente que influenciou enormemente diversos âmbitos da cultura. Depois de examinar criticamente o núcleo e a história que essa concepção desencadeou, Rorty conclui que passaríamos melhor sem ela. Farei uma recapitulação sucinta do dualismo cartesiano a fim de subsidiar a exposição das considerações de Rorty, que vem em seguida. À partida, é importante recordar que no século de Descartes a teologia, baseada no conceito de verdade revelada, exercia controle sobre a filosofia, esta limitada ao alcance das luzes naturais. Nessa atmosfera, na qual praticamente todos os mortais estavam orientados a salvar a sua alma, Descartes foi levado a crer que mentes e corpos são substâncias diferentes. Ele acreditava que os seres humanos vivos eram feitos dessas duas substâncias, que aí interagiam de maneira integrada e harmoniosa: o corpo físico, cujo atributo distintivo é a extensão, e a mente, uma substância imaterial e não-espacial, cujo atributo é o pensamento. Dito de outro modo: corpos são substâncias extensas e mentes são substâncias pensantes. Hoje em dia costumamos designar essa posição com a expressão ‘dualismo de substâncias’. O dualismo de substâncias promove uma combinação de dois reinos de ser: o da matéria e o do espírito. Somente as coisas materiais são espaciais. O termo ‘espacial’ significa que ocupa lugar no espaço; que apresenta dimensões espaciais. Alguém poderia aqui intervir de sobressalto e dizer que uma sensação (uma coceira, por exemplo) é espacial: “Sinto coceira na panturrilha”. Isso provaria que o mental também é espacial? Não. O contraexemplo, que aliás já era conhecido no século XVII, é o da coceira fantasma: há relatos de amputados que dizem sentir coceira ou outra sensação no membro amputado. Logo, experimentar uma coceira como

ocorrendo na panturrilha não significa que essa sensação ocorre efetivamente nesse local. A coceira é uma sensação e, segundo Descartes, sensações são mentais (coisas do reino do espírito) e, portanto, não-espaciais. Tendo dito que o dualismo cartesiano é algo como uma combinação de dois reinos, podemos acrescentar que o reino da matéria abrange os objetos materiais enquanto que o reino do espírito abrange os objetos mentais. Dito isso, cabe assinalar algo que parece trivial: objetos materiais possuem qualidades materiais e objetos mentais possuem qualidades mentais. A bem da verdade esse ponto não é trivial: dito está que as qualidades mentais, como as qualidades de uma coceira, não podem ser encontradas em objetos materiais, como a panturrilha. Ainda que um dermatologista examine exaustivamente a sua perna enquanto você sente coceira, ele jamais observará algo qualitativamente parecido com a coceira. Se um neurologista examinar o seu sistema nervoso enquanto você sente aquela coceira, ele tampouco observará qualquer coisa parecida com a coceira. Isso porque essa sensação, que é um objeto mental, possui qualidades mentais e estas não se confundem com qualidades materiais. Na filosofia usamos a expressão ‘propriedades fenomênicas’ para designar as propriedades de objetos mentais como sensações, dores etc. Conforme Descartes, temos conhecimento direto e incorrigível dos próprios objetos mentais. Essa parece ser uma afirmação sensata, afinal eu conheço meus próprios objetos mentais melhor que qualquer outro. Se estou sentindo uma coceira, então é indiscutível que estou sentindo uma coceira. Encontro-me na posição que Rorty chama ‘acesso privilegiado’: nem mesmo um cientista especializado em coceiras de panturrilha (se é que há alguém assim) teria autoridade maior que eu para dizer se agora estou ou não sentindo tal coceira. As propriedades fenomênicas da coceira são acessíveis somente ao portador da coceira. Diz-se, por isso, que elas são subjetivas; do sujeito. A imagem cartesiana da mente humana é muito interessante: uma substância imaterial, que não ocupa lugar no espaço, cujo atributo distintivo é o pensamento. Aparecem na concepção cartesiana de pessoa – uma pessoa com mente – todas as divisões antes mencionadas: físico/mental, público/privado, interno/externo. Como disse no início do tópico, essa concepção exerceu forte influência, ao ponto de se popularizar e dar forma às opiniões do homem comum dos nossos dias. Embora sumária, a apresentação do dualismo de substâncias nos ajudará a entender as considerações de Rorty acerca desse tema. Ele coloca um grande ponto de interrogação depois da expressão ‘pessoas com mentes’. Esse é o assunto da próxima seção.

Pessoas com mentes? Rorty considera que a concepção moderna de mente está no centro de um emaranhado heterogêneo de problemas. Ao invés de dar crédito filosófico a esses problemas e tentar resolvê-los, seria melhor abandoná-los corajosamente. Teríamos então pessoas sem mentes? Isso faz sentido? Para alguns, a expressão ‘pessoa sem mente’ dá a entender algo como ‘pessoa sem dignidade’, sobretudo se a mente estiver vinculada com a consciência e, por meio desta, com a responsabilidade. O emaranhado de problemas que circundam a concepção moderna de mente é constituído de pelo menos três grupos de questões: (1) questões acerca da consciência, (2) questões acerca da razão e, finalmente, (3) questões acerca da dignidade humana. Nas palavras do autor: The problem of consciousness centers around the brain, raw feels, and bodily motions. The problem of reason centers around the topics of knowledge, language, and intelligence – all our “higher powers”. The problem of personhood centers around attributions of freedom and of moral responsibility (Rorty 1979, p. 35).

O universo de discussão que na segunda metade do século XX tornou-se conhecido como filosofia da mente tem, segundo Rorty, esses pontos de convergência: (1) o problema da consciência; (2) o problema da razão; e (3) o problema da pessoalidade. Digo ‘pontos de convergência’ para assinalar, uma vez mais, que são tópicos interconectados. Segundo o nosso autor, a conexão profunda desses assuntos aparentemente tão diversos é a concepção moderna de mente. Uma das coisas que Rorty pretende colocar em evidência com esse enquadramento é que a tradição moderna de pensamento estabeleceu uma hierarquia nessas questões: (3) está subordinado a (2) e, finalmente, a (1). O entendimento padrão é mais ou menos este: a dignidade humana é assegurada na medida em que pudermos assegurar a capacidade de conhecer verdades e normas universais. Esses poderes superiores de conhecer, por sua vez, se veem assegurados na medida em que pudermos atestar a existência de algo além do corpo. Esse algo além seria o nosso traço distintivo; uma base para a nossa singularidade. Sem esse algo além seríamos em nada distintos dos demais animais. Façamos o caminho inverso para conseguir outro ângulo: conforme a tradição que Rorty critica, é necessário ter uma mente para ser capaz de conhecer verdades e normas universais. Conhecimentos desse tipo, diz essa tradição, são necessários para ser livre e moralmente responsável – logo, para dar sentido à noção de dignidade humana. Ser um humano é, segundo esse entendimento, uma questão de ser capaz de conhecer verdades e normas universais, o que é possível, em última instância,

graças a algo radicalmente distinto do meramente físico: a mente. Consequentemente, pessoas sem mentes não são humanos. Já mencionei nos parágrafos introdutórios que Rorty é antidualista e materialista. Isso significa que ele não concorda com essa concepção de pessoa. A seu ver, a concepção de mente aí adotada como constituinte fundamental não se sustenta. Por que exatamente? Segundo o autor, não há critérios conclusivos para definir o que é a mente ou os assim chamados ‘estados mentais’. Essa suposta entidade distinta do físico, a mente, talvez não exista. É um erro tratá-la como uma âncora na fundamentação da nossa condição de pessoas. Para Rorty, ninguém jamais conseguiu oferecer uma descrição geral razoável para a questão ‘O que é a mente?’. Diante desse empecilho, o discurso mentalista preferiu a expressão ‘estados mentais’. Mas o que é isso? Como identificar os tais estados mentais? O ponto aqui é o movimento de passagem de um dualismo de substâncias, a la Descartes, para um dualismo de propriedades, que designarei com a expressão ‘neodualismo’. Quer isso significar que as explicações dualistas não necessariamente contraem compromisso ontológico com a mente. Em outras palavras: é possível ser dualista sem ser cartesiano. É o que acontece com quem descarta a substância mental e, não obstante, continua caracterizando certas coisas como mentais, dizendo com isso que elas não são físicas de forma alguma. Normalmente, são consideradas mentais as sensações, as crenças, os desejos e os demais portadores de conteúdo proposicional. Vejamos primeiro o caso das coceiras, das dores e das demais sensações. Qual é o critério a partir do qual se diz que essas coisas são mentais? A resposta clássica afirma que tais estados apresentam propriedades fenomênicas, ou seja, constituem experiências conscientes, privadas e incorrigíveis do portador. Logo, o fenomênico é critério para identificar estados mentais. Mas, além das sensações, também as crenças, os desejos e demais portadores de conteúdo proposicional são considerados mentais. Ora, desde Freud é pacífico que as pessoas possuem crenças e desejos inconscientes. Logo, nem todas as crenças e desejos apresentam propriedades fenomênicas. Assim sendo, já não resolve dizer que são mentais porque são fenomênicos. Para contornar essa dificuldade o discurso neodualista recorre a outro critério: que crenças e desejos são mentais porque são intencionais, isto é, porque se direcionam a algo; apontam para algo. Para Rorty, esses dois critérios do mental, o fenomênico e o intencional, são inconciliáveis: The obvious objection to defining the mental as the intentional is that pains are not intentional – they do not represent, they are not about anything. The obvious objection to defining the mental as “the phenomenal” is that beliefs don’t feel like

anything – they don’t have phenomenal properties, and a person’s real beliefs are not always what they appear to be. The attempt to hitch pains and beliefs together seems as hoc – they don’t seem to have anything in common except our refusal to call them “physical” (Rorty 1979, p. 22).

Diante desse impasse, o neodualista pode propor um terceiro critério para o mental, que de algum modo sintetiza os anteriores: são mentais as imagens e os pensamentos ocorrentes, ou seja, isso que estou pensando ou imaginando agora, no presente instante. Façamos um exercício. Nesse instante estou pensando silenciosamente: “Será ótimo passar o feriado de carnaval na praia”. Por um lado, esse pensamento ocorrente é fenomênico: no momento em que ocorre constitui uma experiência consciente; não tenho dúvidas de que estou pensando isso que estou pensando. Por outro lado, ele é intencional: aponta para algo; refere uma festa popular e um local. Penso que fenomênico e o intencional constituem bons critérios para o mental. Rorty, no entanto, não está satisfeito. Depois de mostrar que tais critérios são inconciliáveis ele segue sua crítica por outro flanco, através das seguintes questões: por que o intencional e o fenomênico são considerados imateriais? A imaterialidade é, nesses casos, necessária? Rorty acha que ela é forçada. O raciocínio mediante o qual ele chega a essa conclusão é complexo e a sua exposição detalhada aumentaria demais a extensão do meu texto. Opto por registrar apenas a ideia: The only way to associate the intentional with the immaterial is to identify it with the phenomenal, and the only way to identify de phenomenal with the immaterial is to hypostatize universals and think of them as particulars rather than abstractions from particulars – thus given them a non-spatio-temporal habitation (Rorty 1979, p. 31).

Ao invés de seguir essa rota tortuosa de justificação da tese segundo a qual o fenomênico e o intencional são imateriais, Rorty recomenda uma visão funcionalista desses estados. Conforme o funcionalismo, estados mentais definem-se em atenção às suas relações causais com o ambiente, com outros estados e com o comportamento corporal. Essa recomendação permite sublinhar a importância do contexto e dos jogos de linguagem. Em tom wittgensteiniano, a proposta consiste em [we shall] treat the intentional as merely a subspecies of the functional, and the functional as merely the sort of property whose attribution depends upon a knowledge of context rather than being observable right off the bat. We shall see the intentional as having no connection with the phenomenal, and the phenomenal as a matter of how we talk (Rorty 1979, p. 32).

Se o funcionalismo está certo em seu enfoque causal que considera o ambiente, outros estados mentais e o comportamento corporal, então a suposta imaterialidade dos estados

mentais se vê questionada. Talvez seja apenas força do hábito – ou melhor, do jogo de linguagem que estamos acostumados – considerar que o intencional e o fenomênico são imateriais. Digo ‘talvez’ pois penso que os argumentos de Rorty precisam ser mais bem analisados antes de tomarmos partido a favor ou contra o autor. Ao invés de aprofundar essa análise, quero agora abordar outro conjunto de considerações de Rorty, o argumento da redescrição terapêutica. A redescrição terapêutica entra em cena quando admitimos a interrogação “Pessoas com mentes?” e, aos poucos, ela começa a martelar como “Pessoas sem mentes?”. Pessoas sem mentes? Tendo assinalado o quão importante é o papel tradicionalmente concedido à mente na fundamentação da nossa condição de pessoas, Rorty propõe uma reflexão que ele chama ‘terapêutica’: “just as the patient needs to relive his past to answer his questions, so philosophy needs to relive its past in order to answer its questions” (1979, p. 33). A proposta consiste em reviver, em ritmo terapêutico, a história da divisão físico/mental. A terapia é conduzida de modo a mostrar que tal divisão é datada, problemática e, finalmente, que não precisamos levá-la tão a sério nas nossas defesas da dignidade humana. Para Rorty, uma das principais funções sociais da filosofia é justamente a de “ajudar as pessoas a sair do domínio das ideias filosóficas antiquadas, ajudando a quebrar a crosta de convenções” (Rorty 1997, p. 59). A redescrição terapêutica que Rorty faz da tradição moderna visa turvar a noção de mente como uma dimensão distinta do físico. Com esse propósito, ele põe-se a examinar critérios que a modernidade filosófica apresentou para definir a natureza do mental, a saber: a capacidade de existir separadamente do corpo e a não-espacialidade. Para o autor, esses critérios estão longe de serem conclusivos. Vejamos. O autor desses critérios é Descartes. No século XVII era por demais necessário subscrever a imortalidade da alma. Foi o que Descartes fez ao dizer, nas Meditações, que o eu pensante não deixa de ser o que é quando o corpo deixar de existir: “é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele” (1973, p. 142). Rorty sublinha que antes de Descartes predominava uma concepção de orientação aristotélica. Aristóteles considerava o intelecto “potencialmente idêntico aos objetos do pensamento, nada podendo ser, porém, até àquele momento em que pensa” (Aristóteles 2001 – Livro III, 429b30). Na interpretação de Rorty, temos em Aristóteles “a conception

according to which knowledge is not the possession of accurate representations of an object but rather the subject’s becoming identical with the object” (Rorty 1979, p. 45). Costuma-se dizer que a concepção aristotélica é hilemórfica e a cartesiana é representacionista. O ponto é: apenas o modelo representacionista permite a separação mencionada como critério do mental. Por quê? Porque ele inaugura o assim chamado “espaço interior”, expressão que Rorty usa em referência à concepção cartesiana de pensamento. Para compreender a novidade do “espaço interior” é oportuno lembrar das Meditações Metafísicas, escrito no qual Descartes demonstra o “eu penso” e em seguida pergunta: “Que é uma coisa que pensa?” E responde: “é uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente” (Descartes 1973, p. 103). Algo similar é dito nos Princípios da Filosofia, com as seguintes palavras: “Pelo termo pensar eu entendo tudo quanto acontece em nós de tal modo que o percebemos de imediato por nós mesmos. Por essa razão é que não apenas entender, querer, supor, porém ainda sentir, são aqui o mesmo que pensar” (Descartes 1968, p. 54). Menciono essas duas passagens para sinalizar que o conceito cartesiano de pensamento é amplo – inclui a imaginação, as sensações, a vontade etc. – e, principalmente, para frisar o enlace de pensamento com consciência: o pensamento é algo imediatamente percebido pelo sujeito. Ao declarar “eu penso”, Descartes estava na verdade dizendo “eu penso, eu duvido, eu concebo, eu afirmo, eu nego, eu quero, eu imagino, eu sinto, eu suponho” e assim por diante. Sendo essa atividade privada e consciente, ele estava dizendo “eu sei que penso, duvido, concebo, afirmo, nego, quero, imagino, sinto, suponho,...”. Mas o que isso tudo tem a ver com o “espaço interior”? Para compreender a invenção do “espaço interior” vale a pena também lembrar também de Locke, que partiu da concepção cartesiana de pensamento para elaborar a noção de ‘ideia’, assim definida na Introdução do Ensaio sobre o Entendimento Humano: “qualquer coisa que consiste no objeto do entendimento quando o homem pensa [...] qualquer coisa que pode ser entendida como fantasma, noção, espécie, ou tudo o que pode ser empregado pela mente pensante” (Locke 1978, p. 142). Locke considera ainda que “cada um tem consciência delas [as ideias] em si mesmo e as palavras e ações dos homens o persuadirão que elas existem nos outros” (1978, p. 142). Embora tenhamos aprendido no colégio que Descartes e Locke são oponentes (racionalismo versus empirismo), esses autores estão rigorosamente alinhados no que diz respeito ao conceito de pensamento. As citações do Ensaio que acabo de apresentar atestam que a mente pensante de Locke lida com ideias. Eis o ponto: mente e ideias não são o mesmo. Assim a mente moderna tornou-se um “espaço interior”; um local à parte onde se manipulam objetos de uma categoria especial – os objetos mentais. Todo o conteúdo

consciente faz parte dessa categoria especial. Cria-se, assim, a separação de físico e mental e, simultaneamente, a noção de conhecimento como representação interna. Para ressaltar a novidade do “espaço interno”, Rorty insiste que sob o prisma hilemórfico “is no way to divide ‘conscious states’ or ‘states of consciousness’ – events in a inner life – from events in an ‘external world’” (Rorty 1979, p. 47), pois a forma de uma substância extensa entra diretamente (identificação por instanciação do mesmo) no intelecto. Já sob o prisma representacionista essa separação é clara: o conhecimento que temos do próprio pensamento (isto é, a consciência das ideias) antecede o conhecimento do próprio corpo e do mundo externo como um todo. Confirma-o, por outra via, a importância crucial concedida à questão ‘Como sabemos que algo mental representa algo que não é mental?’. O novo ceticismo problematiza justamente a correspondência do interno (consciente, claro, indubitável) para com o externo. Antes, sob os auspícios de Aristóteles, o intelecto se identificava formalmente com a coisa (sujeito – objeto). Agora, com a introdução desse terceiro termo (sujeito – representação – objeto), é preciso determinar qual representação é capaz de figurar a realidade. A mente pensante dotada de capacidade representacional lida conscientemente com objetos do entendimento e tais objetos podem não ter ligação com o que está além da consciência. A mente, enquanto tal, não precisa do corpo para existir. Do ponto de vista dualista, o corpo não é parte da natureza essencial da mente. A capacidade da mente de existir separada do corpo deve ser compreendida como uma possibilidade lógica. O “espaço interior”, da maneira como Descartes e Locke o conceberam, é anterior e independente do mundo. Disse que a separação é uma possibilidade lógica e isso quer dizer que a demonstração da natureza e do funcionamento da mente foi feita sem recorrer, em momento algum, a algo externo. Rorty acertadamente enfatiza que o “espaço interior”, uma vez concebido, ocasionou uma nova distinção: entre consciência e o que não é consciência. Na interpretação do autor, essa é uma divisão profunda: This was not a distinction between human faculties but a distinction between two series of events, such that many events in one series shared many characteristics with many events in the other, while nonetheless differing toto caelo because one was an event in extended, and the other in nonextended, substance. It was more like a distinction between two worlds than like a distinction between two sides, or even parts, of a human being (Rorty 1979, p. 51-52).

Conforme esse enquadramento, eventos conscientes possuem a peculiar característica de serem indubitáveis. Não posso duvidar que penso pois duvidar é pensar, dizia Descartes. Logo, a indubitabilidade foi promovida a marca indelével do mental.

O segundo critério distintivo da natureza do mental, a não-espacialidade, faz sentido apenas sob o prisma do dualismo de substâncias. Além do mais, a não-espacialidade parece dependente da possível separação mente/corpo. Como bem observa Rorty, “Descartes insists over and over again that we can separate mind from ‘extended substance’, thereby viewing it as nonextended substance” (1979, p. 62). Penso que a redescrição terapêutica que Rorty implementa é bem sucedida no seu intento principal: mostrar que o mental, definido na modernidade em termos de separação do corpo e de não-espacialidade, tem uma origem histórica precisa e que essa explicação é opcional. Os argumentos de Descartes foram importantes no século XVII, na medida em que foram decisivos para certos propósitos daquele contexto, em particular, libertar a filosofia da teologia e aproximá-la das ciências, que a partir daquele período conquistaram autonomia. Rorty nos encoraja a ver as afirmações cartesianas não como afirmações que possuem valor universal e necessário, mas como estratégias linguísticas concebidas em função de determinados propósitos, inteligíveis em seus respectivos contextos. Além de revisar criticamente o dualismo, Rorty desenvolve sua concepção de pessoa sob uma base física. Trata-se, agora, de substituir o ponto de interrogação por um sinal afirmativo: pessoas sem mentes! Esse é o assunto da próxima seção. Pessoas sem mentes! Rorty está interessado em uma concepção antiessencialista de pessoa. Para ele, a humanidade não é uma questão de ter uma mente, essa considerada um fundamento, mas de estabelecer vínculos com uma comunidade. Visto que Philosophy and the Mirror of Nature é um livro mais terapêutico do que construtivo, é preciso buscar em escritos posteriores do autor algumas indicações da sua concepção de pessoa. O professor Ghiraldelli Jr. (1998, p. 328), importante estudioso brasileiro do pragmatismo, entende que Rorty formula sua concepção de pessoa mediante dois passos: primeiro “ele traz o homem para um campo único e homogêneo: o campo da causalidade natural”. O que isso quer dizer? Que uma pessoa é, antes de qualquer coisa, “um corpo que vive, em todos os seus aspectos e situações, no âmbito das regularidades e contingências do mundo completamente natural e desencantado”. O segundo passo consiste em considerar o comportamento como referência básica para compreender o que se passa com esse indivíduo humano completamente imerso no mundo natural. Seguindo essas indicações do professor Ghiraldelli, podemos dizer que na ótica de Rorty cada ser humano é um corpo vivo que pode ser mais

bem compreendido na sua individualidade se observarmos o seu comportamento, incluído o comportamento linguístico. A visão fisicalista de pessoa que Rorty recomenda é explicitamente tributária de outro autor americano, com quem ele manteve uma longa e produtiva interlocução: Donald Davidson. Quero com isso dizer que Rorty apropria-se de algumas ideias de Davidson para expor uma “imagem naturalizada das relações do ser humano com o mundo” (Rorty 2002, p. 158). Vejamos essa imagem em três teses. A primeira tese diz que algo pode ser descrito como físico e como mental, sendo ambas as descrições igualmente boas. Convido o leitor a lembrar do exemplo da coceira, usado em seções anteriores. Rorty entende que esse acontecimento pode ser descrito em uma linguagem física e em uma linguagem mental. Muito provavelmente, a descrição fisiológica/nãointencional mencionará certa rede de neurônios ativados no cérebro, descreve a configuração de descargas elétricas e químicas entre os neurônios etc. Em certas circunstâncias, dependendo do propósito, essa descrição pode ser a mais útil. Já a descrição mental – uma descrição psicológica/intencional – mencionará provavelmente a sensação, talvez o desconforto, o desejo que passe logo, a vontade de friccionar a pele etc. O critério a partir do qual escolhemos a descrição é a utilidade, conforme o propósito em questão. Do ponto de vista fisicalista, a distinção físico/mental não é ontológica, mas sim linguística. O que isso quer dizer? O mundo natural é matéria, energia e movimento regido por leis estritas. O que acontece no mundo, inclusive com os seres humanos, pode ser descrito de várias maneiras: em alguns casos empregamos a terminologia mentalista – crenças, desejos, sensações, ... – e em outras circunstâncias, se oportuno for, mencionaremos apenas partículas elementares. No exemplo da coceira, linhas acima, indiquei uma possível descrição fisiológica e uma possível descrição psicológica. É importante destacar, uma vez mais, que a diferença está nas descrições, não no acontecimento. Aqui alguém poderia perguntar: é possível derivar uma descrição fisiológica de uma descrição psicológica ou vice-versa? Rorty e Davidson pensam que não, em virtude da indeterminação da tradução, um argumento que remonta a Quine e que não detalharei aqui. Essa incapacidade de traduzir uma linguagem para o interior da outra, vejo-a como um limite da investigação científica, a ser transposto algum dia. No entanto, esse limite não inviabiliza a seguinte inferência: eventos que estão sob descrição psicológica podem causar outros eventos. A segunda tese fundamental do fisicalismo rortiano assevera que o mundo não torna as descrições verdadeiras ou falsas. Em outras palavras, é impossível conectar um item

linguístico a um item não linguístico. A tentativa de fazer essa conexão, a teoria correspondentista da verdade, aposta na possibilidade de determinar átomos linguísticos e a correspondência destes a entidades, átomos igualmente simples no mundo extralinguístico. Para Davidson, essa proposta é ininteligível e sem conteúdo. A ideia de correspondência é intuitiva e, a primeira vista, inabalável. Parece óbvio que uma sentença como “A neve é branca” é tornada verdadeira por um fato – o fato de que a neve é branca. Essa obviedade, no entanto, não resiste a um escrutínio lógico-semântico rigoroso. Davidson convenceu-se disso em meados da década de 60 e manteve essa posição até o final da carreira, reapresentando-a diversas vezes. O instrumento que Davidson usa para implementar o escrutínio lógico-semântico da teoria correspondentista é hoje famoso entre lógicos e filósofos da linguagem: o argumento da funda. Alicerçado em princípios de inspiração fregeana – a saber, a substituibilidade salva veritate de termos singulares correferenciais, predicados co-extensionais e sentenças logicamente equivalentes – esse argumento mostra que é impossível individuar a contraparte não-linguística, que supostamente torna verdadeira ou falsa a sentença. Chego agora à terceira tese fundamental do fisicalismo rortiano: o que chamamos ‘consciência’ é uma rede de eventos que o próprio sujeito descreve em termos psicológicos/intencionais. Trata-se, aqui, de uma retomada de algo sugerido por David Hume, de que o ‘eu’ refere um feixe de episódios mentais e não uma substância. Em vários escritos Rorty discute essa noção de si próprio como uma rede móvel de crenças e desejos. O ponto é sutil e de grande importância: o ‘eu’ é uma rede de crenças e desejos em permanente reformulação. Nas palavras do autor: “o importante é pensar na coleção dessas coisas [crenças, desejos, ânimos etc.] como sendo o Si próprio, ao invés de pensar nela como algo que o Si próprio tem” (Rorty 2002, p. 168). A proposta de pessoa sem mente tem um significado filosófico profícuo. Por um lado, Rorty nos ajuda a entender que a mente foi concebida pelos mestres da modernidade como um “espaço interno”, base para o conhecimento e para a dignidade. Interessado em superar as visões duais do mundo e de si próprio, o autor desenvolve uma longa argumentação que mostra os problemas e fragilidades da concepção mentalista. Por fim, dedica-se em recomendar outra perspectiva, na qual já não há essências e tampouco divisões metafísicas. Acredito que a proposta de pessoas sem mentes também tem um significado educacional profícuo. Ao dizer que o ‘eu’ é uma rede de crenças e desejos, Rorty está chamando a nossa atenção para a importância da comunicação intersubjetiva, o que tem decorrências educacionais várias. Educar é, em poucas palavras, contribuir para que o outro continue

tecendo a sua rede – a sua individualidade. Sociedades democráticas possuem projetos educacionais e pessoas especialmente dedicadas a eles. Um projeto educacional é, sob essa ótica, um projeto de encontrar modos novos e fecundos de falar.

Referências ARISTÓTELES (2001). De Anima. Tradução de Carlos Humberto Gomes. Lisboa: Edições 70. DESCARTES. René (1973). Meditações metafísicas. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural. _______ (1968). Princípios da filosofia. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus. GHIRALDELLI Jr., Paulo (1998). “Materialismo e nova subjetividade no projeto filosóficopedagógico de Richard Rorty”. In: PINTO, Paulo Roberto Margutti [et all] (Org.). Filosofia analítica, pragmatismo e ciência. Belo Horizonte: Ed. UFMG, pp. 323-331. LOCKE, John (1978). Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural. RORTY, Richard (2002). “Fisicalismo não-redutivo”. In: _______. Objetivismo, relativismo e verdade. Tradução de Marco Casanova. 2.ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. _______ (1997). “Os perigos da sobre-filosoficação”. In: GHIRARDELLI Jr., Paulo; PRESTES, Nadja Hermann (Org). Filosofia, Sociedade e Educação, Marília, ano I, n. 1, pp.59-68. _______ (1979). Philosophy and the mirror of nature. Nova Jersey: Princeton University Press.

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