Poder normativo nas licitações sustentáveis - Murillo Giordan Santos.pdf

May 30, 2017 | Autor: M. Giordan Santos | Categoria: Direito Ambiental, Direito Administrativo, Sustentabilidade, Licitações
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Poder normativo nas licitações sustentáveis1 Murillo Giordan Santos Procurador Federal, Advocacia-Geral da União. Doutorando e mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco). Professor de Direito Administrativo.

Sumário: 1 Introdução – 2 O poder discricionário da Administração Pública para a contratação de objetos sustentáveis – 3 As licitações poderão ou deverão ser sustentáveis? – 4 O poder normativo da Administração Pública enquanto meio de efetivação das licitações e contratações sustentáveis – 5 O conceito de poder normativo e sua aplicação às licitações públicas e às licitações públicas sustentáveis – 6 A ordem econômica da Constituição Federal enquanto fundamento do poder normativo das licitações sustentáveis – 7 O meio ambiente na Constituição Federal enquanto fundamento do poder normativo das licitações sustentáveis – 8 Instrumentos normativos sobre licitações sustentáveis – 9 Margem de preferência para a aquisição de objetos sustentáveis – 10 A jurisprudência sobre a utilização do poder normativo pela Administração para viabilizar as licitações sustentáveis – 11 Conclusão – Referências

1 Introdução1 Licitação sustentável é a licitação que consi­ dera critérios de preferências sócio ambientais para a escolha de bens, obras e serviços a serem contratados pelo Poder Público, com o objetivo de preservar o meio ambiente e minorar desigualda­des econômicas e sociais. Tal como demonstrado nos capítulos anterio­ res, as licitações sustentáveis já eram possíveis desde a edição da Constituição Federal de 1988, por força dos seus artigos 170 e 225, e também por força da Lei nº 6.938/81, que impõem ao Poder Público o dever de preservação ambiental. Igualmente, a Lei Geral de Licitações e Con­ tratações Públicas (Lei nº 8.666/93) possuía (e ainda possui) algumas disposições sobre certas preocupações ambientais, como a exigência de Licenciamento Ambiental antes do início de obras ou serviços que possam gerar riscos ambientais e a previsão no projeto básico de estudos técnicos pre­ liminares que assegurem o adequado tratamento ambiental do empreendimento.2 No entanto, ainda não havia previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro obrigando o Esta­do a priorizar a aquisição de bens ou a contra­ tação de obras e serviços com base em critérios de preferência sócio ambientais, ou seja, a promover licitações sustentáveis.

Artigo originalmente publicado em: SANTOS, Murillo Giordan; VILLAC, Teresa (Coord.). Licitações e contratações públicas sus­ ten­táveis. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015. p. 157-181. 2 Cf. os capítulos 1 e 9 desta obra, nos quais essas disposições da Lei nº 8.666/93 são objeto de análise percuciente. 1

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Tal situação foi alterada com a edição das leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 12.349/10, que introduziram previsão legal expressa de inclusão de critérios preferenciais para contrações de objetos coerentes com a preservação do meio ambiente. As leis nº 12.187/09 e nº 12.305/10 insti­ tuem, respectivamente, a Política Nacional sobre Mudança do Clima e a Política Nacional de Resíduos Sólidos. A Lei nº 12.349/10, por sua vez, deu nova redação ao caput do art. 3º da Lei 8.666/93 e introduziu como objetivo da licitação, ao lado da obser­ vância do princípio constitucional da isono­ mia e da seleção da proposta mais vantajosa para a administração, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Com isso, passou a haver previsão expressa em lei ordinária para a inclusão de critérios de preferência nas licitações para promover contrata­ ções sustentáveis. No entanto, as leis nº 12.187/09, nº 12.305/ 10 e nº 12.349/10 não manifestam quais são os critérios de preferência socioambiental, tam­pouco mencionam as especificações de sustentabili­dade que os bens, obras e serviços a serem contratados devem seguir. De fato, a Lei nº 12.187/09, que trata sobre a Política Nacional sobre Mudança do Clima, traz a seguinte previsão em seu art. 6º, XII: Art. 6º. São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima: (...) XII - as medidas existentes, ou a serem criadas, que estimulem o desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para a redução de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a adaptação, dentre as quais o esta­ belecimento de critérios de preferência nas licitações e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias público-privadas e a autorização, permissão, outorga e concessão para exploração de serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior economia de ener­ gia, água e outros recursos naturais e redução da emissão de gases de efeito estufa e de resíduos. (grifos nossos)

Já a Lei nº 12.305/10, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, explicita ainda mais,

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em seu art. 7º, XI, a contratação prioritária de obje­ tos sustentáveis: Art. 7º. São objetivos da Política Nacional de Resíduos Sólidos: (...) XI - prioridade, nas aquisições e contratações gover­ namentais, para: a) produtos reciclados e recicláveis; b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e am­ bientalmente sustentáveis. (grifos nossos)

De igual modo, na nova redação do caput do art. 3º da Lei 8.666/93, com a redação dada pela Lei nº 12.349/10, não há menção aos aludidos critérios: Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional susten­ tável e será processada e julgada em estrita con­ formidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vin­ culação ao instrumento convocatório, do julgamen­ to objetivo e dos que lhes são correlatos. (grifos nossos)

Realmente ainda não foram trazidas regras legais explícitas de operacionalização desses crité­ rios preferenciais de sustentabilidade nas contra­ ções efetuadas pelo Poder Público, o que viabiliza a utilização do poder normativo da Administração Pública para a regulamentação das licitações sus­ tentáveis. A intenção do presente artigo é justamente demonstrar a viabilidade jurídica desses critérios de preferência por contratações sustentáveis serem estabelecidos pelo Poder Normativo da Admi­ nis­ tração Pública, tal como operado pela Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG e pelo Decreto nº 7.746/2012. Com isso, o poder regulamentar da Admini­ tração Pública deverá ser utilizado como forma de consagração dos valores e regras estampados na Constituição Federal e como forma de dar cumpri­ mento aos comandos das leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 12.349/10 (no que tange às alterações promovidas na Lei nº 8.666/93), possi­ bilitando, dentro dos limites da reserva legal, a inserção de critérios de preferência para a contração de bens, obras e serviços coerentes com critérios de sustentabilidade socioambiental.3 3

Nota-se que a Lei nº 12.305/10 foi recentemente regulamentada pelo Decreto nº 7.404, de 23.12.2010, que em seu art. 80, V prevê: “fixação de critérios, metas, e outros dispositivos

2 O poder discricionário da Administração Pública para a contratação de objetos sustentáveis Desde já, deve-se ter em mente que cabe ao gestor público a escolha do objeto das contrações efetuadas pelo Poder Público, ou seja, cabe a uma autoridade competente a escolha de quais bens, obras ou serviços serão contratados. Os produtos e serviços contratados pelo Estado são aqueles disponíveis no mercado, de acordo com os padrões e as especificações exigidas pelos agentes administrativos que agem em nome do Poder Público, o que é feito no momento de formulação do edital de licitação. Os artigos 14, 38 e 40, I, Lei nº 8.666/93, impõem que o objeto da licitação seja claro, preciso e sucinto. O objeto da licitação, por sua vez, nada mais é do que aquilo que a Administração pretende adquirir ou alienar. Embora não esteja expresso na Lei de Lici­ tações, não resta dúvida de que a definição do objeto (bem, obra ou serviço a serem contratados) passa pelo crivo da conveniência e da oportunidade do administrador, que deverá formular essa opção de maneira clara, precisa e sucinta.4 Além, é claro, de justificar a necessidade do produto ou do serviço para o desempenho da ativi­ dade estatal. Tal constatação leva a considerar o ato de escolha do objeto a ser licitado como um ato admi­nistrativo discricionário, já que a escolha do objeto da licitação deve atender à conveniência e à oportunidade do interesse público (mérito do ato admi­nistrativo), dentro da margem de escolha deixada pela própria lei. Em outras palavras, o agente administrativo competente para a escolha dos bens e serviços a serem contratados pelo Estado irá valorar, de acordo com a conveniência e a oportunidade do interesse público, dentro das hipóteses legais, aquilo que é necessário para a atuação estatal. Com a edição das leis sobre a Política Nacio­ nal sobre Mudança do Clima e sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos, leis nº 12.187/09 e nº 12.305/10, respectivamente, e com a nova redação do art. 3º da Lei nº 8.666/93 dada pela complementares de sustentabilidade ambiental para as aquisi­ ções e contratações públicas”. 4 Convém observar que o poder discricionário do administrador também pode estar implícito na lei, tal como se constata na doutrina de Hely Lopes Meirelles: “para o cometimento de um ato discricionário é indispensável que o Direito, nos seus lineamentos gerais, ou a legislação administrativa confira explícita ou impli­ citamente tal poder ao administrador e lhe assinale os limites de sua liberdade de opção na escolha dos critérios postos à sua disposição para a prática do ato” (Direito administrativo brasileiro, p. 173).

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Lei 12.349/10, a discricionariedade para a escolha dos objetos a serem contratados pelo Poder Público deve obrigatoriamente levar em conta os aspectos de sustentabilidade socioambiental. Ou seja, a melhor proposta para o Poder Público é aquela que, entre outros critérios, contempla aspectos de proteção ambiental. Mesmo assim, a discricionariedade continua fortemente presente na escolha dos objetos susten­ táveis a serem contratados; sendo que, ao mesmo tempo, essas leis não disponibilizam parâmetros de escolha para subsidiar os gestores do Estado durante o ato de escolha dos bens, serviços e obras a serem contratados. Em outras palavras, essa discricionariedade deve ser conjugada com outros meios para a efetiva­ ção das licitações e compras sustentáveis. Explicase: deixar somente sob o critério da conveniência e da oportunidade do administrador a opção por contratações sustentáveis pode colocar em risco essa ideia, pois uma série de fatores pode limitar essa escolha: falta de capacitação dos gestores para a escolha dos bens, serviços e obras que aten­ dam a critérios de sustentabilidade; controvérsias sobre a efetividade dessas contratações sob o ponto de vista da sustentabilidade; temor dos gestores em reduzir a competitividade dos certames, com a consequente responsabilização que pode recair sobre eles; além, é claro, da segurança jurídica, que deve ser sempre privilegiada. Por esses motivos é que o poder normativo da Administração deve ser utilizado para jungir essa discricionariedade do administrador à opção por bens, obras e serviços sustentáveis, fornecendo aos agentes do Poder Público os parâmetros neces­ sários para a escolha dos objetos sustentáveis a serem adquiridos pelo Estado. Conforme será abordado no item seguinte, o poder normativo já estabeleceu alguns desses parâmetros e também se manifestou quanto à obri­ gatoriedade do gestor inserir critérios de sustenta­ bilidade nas contratações públicas.

3 As licitações poderão ou deverão ser sustentáveis? A leitura do art. 2º da Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG e do art. 2º do Decreto nº 7.746/2012 poderia gerar um conflito aparente de normas, já que eles preveem respectivamente que as licitações “deverão” e “poderão” adotar critérios de sustentabilidade socioambiental.5

Essas previsões normativas poderiam gerar dúvidas quanto à obrigatoriedade das licitações serem sustentáveis, já que elas adotam regras dis­ tintas. Essa contradição poderia ser resolvida com base na hierarquia normativa, fazendo prevalecer à previsão do Decreto, que é hierarquicamente supe­ rior à Instrução Normativa. No entanto, a exemplo de qualquer conflito normativo, a antinomia entre as expressões “deve­ rão” e “poderão”, tal como utilizadas nos norma­ ti­vos citados, é apenas aparente, já que a melhor solução hermenêutica para o caso aponta para a ponderação entre os princípios e objetivos do pro­ cesso licitatório. Além da sustentabilidade, a licitação também objetiva a busca da proposta mais vantajosa e deve atender a diversos princípios, tais como a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a igualdade etc. Dessa maneira, a aplicação da sustentabili­ dade às licitações públicas deve ser ponderada com os demais princípios e objetivos aplicados a ela, ou seja, a sustentabilidade não deve se sobrepor aos demais princípios e objetivos e sempre que possível deve ser aplicada conjuntamente com eles, de modo que um ceda reciprocamente ao outro durante a solução do caso concreto. Assim, ainda que fosse considerada somente a expressão “deverão”, tal como utilizada pela Ins­trução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG, as licitações não estariam vinculadas somente à susten­ tabilidade, pois nelas também devem coexistir os seus demais princípios e objetivos. Tal entendimento encontra abrigo no próprio art. 2º da Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG, que determina que a opção pela sustenta­ bilidade não poderá frustrar a competitividade. Cabe ao gestor público verificar se a extensão da sustentabilidade no objeto licitado não preju­ dica os demais valores da licitação, devendo limitálo para que não elimine esses outros objetivos e princípios, inclusive a competitividade. Com isso, temos que a expressão “deverão” utilizada pelo Decreto nº 7.746/2012 não elimina de forma absoluta a discricionariedade do gestor público na definição da sustentabilidade do objeto licitado. Isso leva a uma vinculação mitigada, que obriga o gestor a levar em conta, de forma pon­ derada, além da sustentabilidade, os demais obje­ tivos e princípios do processo licitatório, privilegiando a aplicação conjunta de todos eles.

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Art. 2º da Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG. “Para o cumprimento do disposto nesta Instrução Normativa, o instrumento convocatório deverá formular as exigências de natureza ambiental de forma a não frustrar a competitividade” (grifo nosso).

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Art. 2º do Decreto nº 7.746/2012: “A administração pública federal direta, autárquica e fundacional e as empresas estatais depen­dentes poderão adquirir bens e contratar serviços e obras considerando critérios e práticas de sustentabilidade objetiva­ mente definidos no instrumento convocatório, conforme o disposto neste Decreto” (grifo nosso).

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Em suma, embora o gestor público esteja obri­gado a inserir critérios socioambientais nas lici­ tações públicas, ele não poderá fazê-lo de forma absoluta e em detrimento dos demais valores da licitação. Em outras palavras, ele deverá fazê-lo sempre que possível. Como esse equilíbrio entre os princípios e os objetivos das licitações é deveras trabalhoso, tornando a vida do gestor público ainda difícil, temos que o poder normativo deve servir como instrumen­ to apto e legítimo para definir os parâmetros dessa ponderação.

4 O poder normativo da Administração Pública enquanto meio de efetivação das licitações e contratações sustentáveis Ao mesmo tempo em que o ordenamento jurí­ dico brasileiro obriga o administrador a optar por contratações sustentáveis, é igualmente certo que o próprio legislador não fornece os parâmetros de operacionalização dos bens a serem adquiridos. Essa obrigação decorre da Constituição Fede­ ral brasileira e de disposições legais específicas que obrigam o Poder Público a preservar o meio am­ biente, tanto por meio da formulação de políticas públicas, como durante o exercício de suas ativida­ des e de sua gestão interna, proibindo-o de efetuar contratações de objetos indesejáveis sob o ponto de vista sustentável. O estudo dessas regras constitucionais e legais que obrigam o poder público a realizar con­ tra­ta­ções sustentáveis já foi objeto de estudo nos capítulos anteriores e será abordada posterior­mente sob o ponto de vista da necessidade de sua regu­ lamentação pelo poder normativo da Administração Pública. O que se pretende demonstrar nesse momento é que o poder normativo deve ser exercido para efetivar essas disposições constitucionais e legais, obedecendo à lógica do escalonamento normativo e propiciando a aplicabilidade das decisões polí­ ticas tomadas pela Constituição e pelas leis. Em outras palavras, pretende-se demonstrar que o poder normativo da Administração deve ser utilizado para fornecer parâmetros à discricio­ nariedade dos gestores públicos durante a escolha dos bens, obras e serviços a serem contratados, pau­ tando essa limitação na defesa do meio am­ biente, de acordo com as disposições constantes no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, reputamos bastante oportuna a criação da CISAP – Comissão Interministerial de Sustentabilidade na Administração Pública, cuja finalidade é propor a implementação de critérios,

práticas e ações de logística sustentável no âmbito da administração pública federal. Na qualidade de órgão consultivo, cabe à CISAP propor critérios e práticas de sustentabilidade à Secretaria de Logís­ tica e Tecnologia da Informação – SLTI, que por sua vez, deverá expedir atos normativos complementares a esse respeito. A CISAP cria um canal permanente para estabelecer novos parâmetros de sustentabilidade para as contratações públicas, por meio de atos normativos a serem expedidos pela SLTI, que guia­ rão o gestor público na definição dos critérios de sustentabilidade nas licitações públicas. Essa limitação legal à discricionariedade administrativa para a escolha de bens e serviços a serem licitados é inerente ao próprio Estado de Direito. Aliás, pode-se afirmar que a limitação legal da atuação dos agentes públicos é uma das maio­ res conquistas do Estado de Direito, que submeteu toda a atividade estatal à lei (princípio da legali­ dade), sendo que, na verdade, a discricionariedade é uma exceção à atividade vinculada pela lei. Cabe consignar também que a própria discri­ cionariedade só se opera dentro da margem legal deixada pelo ordenamento, não sendo cabível quan­ do a lei vincula a atuação do administrador a uma única opção nela contida. Essa limitação à discricionariedade adminis­ trativa para a escolha dos bens e serviços a serem adquiridos pelo Estado está em todo o ordena­ mento, ou seja, em compromissos internacionais assu­midos pelo Brasil e em normas constitucionais, legais e infra legais. Em relação às normas e princípios constitu­ cionais não resta dúvida alguma de que eles vin­ culam o legislador e o administrador, devido à inquestionável força normativa da constituição e ao caráter cogente das leis. Da mesma forma, o poder normativo da Admi­ nistração Pública é apto a vincular a escolha discri­ cionária dos agentes públicos no momento da defi­nição dos bens e serviços a serem contratados. É o poder normativo, aliado ao poder hierárquico da Admi­nistração, que deve definir as características e os padrões de qualidade do objeto a ser contratado. Tal limitação pelo poder normativo e pelo poder hierárquico não só é legítima como necessária. Nesse sentido é que um decreto do chefe do Poder Executivo pode (e deve) definir os padrões de escolha para os bens e serviços a serem contratados.6 6

Aliás, esse é o próprio fundamento do poder regulamentar, confor­ me a lição de José dos Santos Carvalho Filho: “Poder regula­ mentar, portanto, é a prerrogativa conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação” (Manual de direito administrativo, p. 47).

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Como atividade complementar às leis, o poder normativo da Administração Pública não deve contrariar a vontade do legislador e tampouco ir além dela. No entanto, nos dias atuais, é imprescindí­ vel que as leis sejam vistas e interpretadas à luz da Constituição, o que leva o poder normativo da Administração Pública a considerar obrigatoriamen­ te essa realidade no momento de regulamentar a aplicação das leis. Ou seja, o poder normativo da Administração Pública, ao disciplinar o modo de aplicação e de interpretação das leis que devem ser regulamen­ tadas, deve fazê-lo à luz da Constituição e dos seus princípios, fazendo com que as leis atinjam uma normatividade conforme a decisão política fundamental. No caso em discussão, o poder normativo deve levar em conta os preceitos constitucionais no mo­mento de fixar as diretivas de sustentabilidade para o agente competente guiar os seus critérios de esco­lha dos bens e serviços a serem contratados pelo Poder Público, entre eles os princípios cons­ titucionais relativos ao meio ambiente e à ordem econômica. O mesmo raciocínio decorre dos compromis­ sos internacionais adotados pelo Estado brasileiro, já que alguns deles possuem força hierárquica equi­ valente às emendas à Constituição e trazem dispo­ sições obrigacionais sobre o meio ambiente, tal como demonstrado no Capítulo 2. Já a imposição de sustentabilidade nas contra­ tações públicas trazida pelas leis nº 12.187/09 e nº 12.305/10 e pela nova redação do art. 3º da Lei nº 8.666/93 dada pela Lei 12.349/10 só poderá ser efetivada com as necessárias complementa­ ções do Poder Normativo de que elas necessitam, tal como comentado anteriormente. Ao mesmo tempo, o poder normativo deverá levar em conta a ponderação da sustentabilidade com os demais objetivos e princípios do proces­so licitatório, tal como também comentado anterior­ mente. Com isso, o poder normativo possibilitará a imple­mentação das licitações e contratações públi­ cas sustentáveis, o que é avalizado por uma inter­ pre­tação constitucional sistemática. Por esse motivo, deve ser demonstrado como as disposições constitucionais relativas à Ordem Econômica e ao Meio Ambiente devem influenciar o Poder Normativo da Administração durante a definição dos critérios de sustentabilidade a serem estabelecidos para as contratações públicas por ocasião da complementação das leis nº 12.187/09 e nº 12.305/10 e da Lei 8.666/93 (com a nova redação do art. 3º dada pela Lei 12.349/10).

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Antes, porém, deve ser abordado o conceito de poder normativo e a sua importância para o Estado Social brasileiro.

5 O conceito de poder normativo e sua aplicação às licitações públicas e às licitações públicas sustentáveis Passa-se então a discorrer sobre o conceito de pode normativo e sobre a forma de sua utilização pela Administração para viabilizar as licitações públi­ cas e também as licitações públicas sustentáveis. Inicialmente, deve-se diferenciar o poder nor­ mativo do poder regulamentar da Administração Pública. O primeiro é mais abrangente do que o se­gundo, pois compreende os atos com conteúdo normativo de competência de autoridades diversas do Poder Executivo. Já o segundo limita-se à edição de decretos para a fiel execução das leis e decretos autônomos, ato este de competência exclusiva do chefe do Poder Executivo.7 Nesse sentido, o poder regulamentar compre­ ende somente os decretos do chefe do Poder Exe­ cutivo, enquanto o poder normativo compreende diversos atos normativos do Poder Executivo, como resoluções, portarias, instruções etc., que são de com­ petência de outras autoridades do Poder Executivo. Ambos são aptos a serem utilizados como ins­trumentos da Administração Pública em matéria de licitações e contratações, v. g., a previsão por decreto do chefe do Poder Executivo de determina­ ção para que a Administração Pública utilize o pregão eletrônico sempre que o objeto contratado permita a aplicação desse tipo de modalidade licitatória. Já em relação aos outros atos normativos, podese supor a utilização de instruções editadas por se­ cretários de Estado, com o fito de estabelecer os padrões mínimos de configuração dos computadores a serem adquiridos. Da mesma forma, todos esses atos normativos também podem ser utilizados para estabelecer critérios de sustentabilidade social e ambiental para escolha de bens, obras e serviços a serem con­tratados pelo Poder Público. É certo que o ordenamento jurídico brasileiro privilegia em sua maior parte o regulamento de exe­ cução, sendo muito restrito o espaço para a uti­li­zação de regulamentos autônomos, o que, con­ se­­ quentemente também circunscreve a utilização dos demais atos normativos da Adminis­ tração à subordinação legal, não podendo, portanto, contra­ riar as leis ou ir além delas.8 Nesse sentido, cf. DI PIETRO. Direito administrativo, p. 82. Nesse sentido, cf. DI PIETRO. Direito administrativo, p. 82-83.

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Apesar dessa limitação, entendemos que tam­ bém os regulamentos autônomos podem servir como meio de regulamentar as contratações públi­ cas sustentáveis. Com isso o poder normativo pode guiar a discricionariedade da Administração Pública na direção do que se entende por proposta mais vantajosa, que, no caso, deve optar pela preferência por bens de menor impacto ambiental. Nesse sentido os decretos autônomos iriam estabelecer os critérios de preferência para que as contratações públicas sejam efetuadas visando respeitar o impacto socioambiental, estabelecendo inclusive as especificações dos bens, obras e ser­ viços a serem contratados nessas condições. A previsão dos decretos autônomos está no art. 84, VI, “a”, da Constituição Federal, permite ao Presidente da República dispor mediante de­ creto sobre “organização e funcionamento da admi­ nistração federal”. Ora, não resta dúvida alguma que o funciona­ mento da Administração Pública (e a atividade decor­ rente desse funcionamento) causa grande impacto ao meio ambiente, sendo legítima a utilização de decretos autônomos para dispor sobre essa gestão sustentável. Com a edição das leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 12.349/10 e a introdução de dis­ posição legal expressa obrigando o Poder Público a promover licitações sustentáveis, o decreto viável para estabelecer os critérios de preferência nas con­tratações sustentáveis para a efetivação dessas Leis deverá ser aquele do art. 84, IV da Constituição Fede­ral, ou seja, o decreto regulamentar. Como consequência, foi editado o Decreto nº 7.746, de 05 de junho de 2012, que regulamentou o art. 3º da Lei nº 8.666/93 ao estabelecer crité­ rios, práticas e diretrizes para a promoção do desen­ volvimento nacional sustentável nas contratações públicas federais. Além disso, o Decreto nº 7.746/12 também institui a Comissão Interministerial de Sustenta­ bilidade na Administração Pública (CISAP), cuja fina­ lidade é propor à Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento (SLTI) a implementação de critérios, práticas e ações de logística sustentável no âmbito da administração pública federal. Por essa razão é que o Decreto nº 7.746/12 é fundamentado no art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição Federal, pois ele é um misto de decreto regulamentar e de decreto autô­nomo. Regulamentar na medida em que regu­ lamente os critérios para a promoção do desenvol­ vimento nacional sustentável (art. 84, IV); autônomo na medida em que cria a CISAP (art. 84 VI, “a”).

Do mesmo modo a Lei nº 12.305/10 foi re­ gulamentada, nos termos do art. 84, IV da Cons­ titui­ ção Federal, o que resultou na edição do Decreto 7.404, de 23/12/2010. Como esse De­ creto tam­bém versa sobre outras providências, ele igual­mente se funda no inciso VI do art. 84 da Cons­ ti­tuição Federal. Nesse sentido é que Hely Lopes Meirelles refere-se a “atos administrativos normativos” para se referir àqueles atos que contêm um coman­ do geral do Poder Executivo para a correta aplica­ ção da lei, explicitando a maneira como a norma deve ser observada pela Administração e pelos administrados.9 No caso, esses atos adminis­trati­ vos normativos estariam se referindo às leis nº 8.666/93, nº 12.187/09 e nº 12.305/10. No caso da utilização do poder normativo (ou de atos administrativos normativos) para a viabili­ zação das licitações sustentáveis, não haverá con­ trariedade ou extrapolação da reserva legal, ao contrário, será uma forma de contemplar valores constitucionais e legais relativos à defesa do meio ambiente. Isso porque a normatização administrativa destinada a estabelecer os critérios de sustentabi­ lidades para a aquisição de objetos sustentáveis será um meio de possibilitar a aplicação da nova redação da Lei nº 8.666/93 de acordo com os va­ lores constitucionais de defesa do meio ambiente e de leis ordinárias, como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei de Mudanças Climáticas e a Lei sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Por esse motivo é que o poder normativo não estará contrariando ou extrapolando lei alguma. Tampouco estará versando sobre questão de reser­ va legal absoluta. Na verdade, esse poder normativo nada mais é do que uma prerrogativa conferida à Adminis­tração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva aplicação.10 Dessa forma, o que se pretende neste tópico é demonstrar que, ao complementar as leis sobre licitações e contratações públicas, a nova re­da­­ção do art. 3º da Lei nº 8.666/93 (dada pela Lei nº 12.349/10) e as leis nº 12.187/09 e nº 12.305/ 10, per­ mitindo a sua efetiva aplicação, o poder norma­­tivo da Administração o faça possibilitando a efeti­­vação da defesa do meio ambiente, tal como con­­sa­­grado no texto constitucional. Para isso, além de decreto do chefe do Poder Executivo, também podem (devem) ser utili­ za­ dos outros atos normativos editados por outras autori­ dades desse poder. Seria o caso de Instruções Normativas editadas por Ministro ou Secretário 9

MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 182. CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 47.

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regulamentando a aquisição e manutenção de veí­ culos pela Administração Pública, em que se esta­ beleceriam critérios de menor impacto ambien­tal, como veículos que podem ser abastecidos por eta­ nol, emissão máxima de poluentes, descarte de pneus, etc. Percebe-se com isso que mesmo a norma­tivi­ dade do chefe do Poder Executivo encontra limites próprios das leis formais para regulamentarem matéria de sua competência. No caso, a regulamen­ tação das leis nº 12.187/09 e nº 12.305/10 e da nova redação do art. 3º da Lei 8.666/93 (dada pela Lei 12.349/10) por decreto pode estabelecer critério gerais de preferência para contratações sustentáveis, mas é incapaz de tratar sobre a espe­ cificidade de determinados produtos, obras ou ser­ vi­ ços, quando deverá ser conjugado com outros atos normativos. É o que ocorre com o Decreto nº 7.746/12, que regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666/93 ao estabelecer critérios, práticas e diretrizes para a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas contratações públicas federais. O seu art. 3º, parágrafo único, estabelece que a CISAP pode­ rá propor à SLTI o estabelecimento de outras formas de veiculação dos critérios e práticas de sustenta­ bilidade nas contratações, entre elas a edição de outros atos normativos. Com isso, nota-se que a CISAP tem como atri­ buição justamente fomentar a utilização do poder normativo para fixar as práticas de sustentabilidade nas contratações públicas federais. O mesmo ocorre com o Decreto nº 7.404, de 23.12.2010, que regulamenta a também recente Lei nº 12.305/10, que trata sobre a Política Na­ cional de Resíduos Sólidos. Esse Decreto, em seu art. 80, V, prevê a “fixação de critérios, metas, e outros dispositivos complementares de sustenta­ bi­lidade ambiental para as aquisições e contrata­ ções públicas”; sem, no entanto, ir mais a fundo na questão, o que deverá ficar a cargo de outros ins­ trumentos normativos, que deverão fixar os aludidos critérios. Na sequência, passa-se a abordar as dispo­ sições constitucionais e legais que levam à regu­ lamentação das licitações e contrações públicas de uma forma sustentável, ou seja, estabelecendo cri­térios de preferência para a contração de bens, obras e serviços com reduzido impacto ambiental e social.

6 A ordem econômica da Constituição Federal enquanto fundamento do poder normativo das licitações sustentáveis Algumas disposições constantes no capítulo “Da Ordem Econômica” da Constituição Federal

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levam à utilização do poder normativo para a sua efe­tivação, possibilitando a inclusão das licitações sustentáveis entre seus objetivos. Isso porque o ordenamento jurídico brasileiro impõe ao Estado o dever de assegurar a todos exis­ tência digna por meio da intervenção no domínio econômico, o que deve ser feito com respeito ao meio ambiente. A ordem econômica da Constituição brasileira consagra o capitalismo. No entanto, não consagra um capitalismo selvagem, pois nítidas são as inten­ ções de caráter social em seu texto, inclusive dentro da própria ordem.11 É nesse sentido que a atuação do Estado no domínio econômico tem como objetivo alcançar resultados econômicos destinados ao interesse pú­­bli­ co. Para alcançar esses resultados, o Estado deve dirigir o comportamento dos particulares na área econômica. Da mesma forma, a busca desses resultados econômicos deve ser feita com base em valores (princípios) elencados na própria Constituição, entre eles o princípio da defesa do meio ambiente. Prova disso é que o art. 170 da Constituição Federal estabelece que a intervenção do Estado no domínio econômico deve assegurar a todos exis­ tência digna, o que deve ser feito também com fundamento na defesa do meio ambiente. Ao mesmo tempo em que traça esse objetivo para a ordem econômica, a Constituição também consagra uma série de instrumentos para alcançála, como a exploração direta de atividade econô­ mica, a repressão ao abuso do poder econômico e o seu papel normativo e regulador da atividade econômica. Em relação a esse papel normativo e regulador da atividade econômica é que deve ganhar desta­que a formulação de políticas ambientais e o estímulo ao desenvolvimento de tecnologias sustentáveis. Em outras palavras, a decisão política do legislador constituinte quanto à Ordem Econômica impõe a criação de políticas e de atividade nor­ mativa reguladora no sentido da proteção ao meio ambiente. Dentro desse contexto podem ser inseridas as leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e a nova re­ dação do art. 3º da Lei 8.666/93 (dada pela Lei

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Nesse sentido, convém ter em mente o entendimento de José Afonso da Silva: “(...) embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado. Conquanto de trate de decla­ ração de princípio, essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho, que, ao lado da livre iniciativa, constitui um dos fundamentos não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art. 1º, IV)” (Comentário contextual à Constituição, p. 709).

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12.349/10), que obrigam o Estado a efetuar con­ trações de bens, obras e serviços que atendam a critérios de sustentabilidade, pois o impacto dessas contratações na Ordem Econômica é evidente. Isso porque o Estado é um grande consumidor de bens, serviços e obras, de modo que é grande a movimentação do mercado para atender essa demanda de consumo estatal. Com a exigência de objetos sustentáveis por parte do Estado o Mercado passará a se movimentar para atender essa demanda estatal, o que levará ao desenvolvimento de bens, serviços e obras que atendam a critérios de sustentabilidade. Dessa forma, é que as licitações e as con­ tratações sustentáveis implicam em uma forma de intervenção do Estado na ordem econômica, vi­ sando assegurar a defesa do meio ambiente por meio do incentivo ao desenvolvimento de atividades e bens sustentáveis, o que também possui inegá­vel caráter educativo. Para tanto o Estado pode utilizar as leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 8.666/93 (com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/10), que agora precisam ser complementadas pelo poder normativo regulamentar para delimitar a escolha dos seus gestores, fazendo com que a escolha dos objetos licitados seja, sempre que possível, condicionada a critérios ambientais, tal como pre­ visto nessas leis. A atividade normativa complementar a essas leis deverá também atender às disposições cons­ titucionais sobre o meio ambiente, tal como de­ mons­trado nesta ocasião.

7 O meio ambiente na Constituição Federal enquanto fundamento do poder normativo das licitações sustentáveis Da mesma forma, as disposições constitucio­ nais sobre o meio ambiente também levam à utilização do poder normativo para a sua efetiva­ ção, possibilitando a inclusão das licitações susten­ táveis entre os seus objetivos. O art. 225 da Constituição Federal obriga o Poder Público a defender e a preservar o meio am­ biente para as presentes e para as futuras gerações. É dessa disposição constitucional que alguns auto­ res extraem o princípio da obrigatoriedade da inter­ venção estatal ou do desenvolvimento sustentável. Em decorrência dessa obrigação constitucio­ nal o Estado deve adotar uma série de posturas aptas à preservação ambiental. Nesse sentido é que os parágrafos do art. 225 da Constituição elencam uma série de instrumentos e de obrigações para que o Poder Público possa assegurar a efetividade da defesa e da proteção ao meio ambiente.

Desses instrumentos decorrem alguns outros princípios de proteção ao meio ambiente, como o princípio da precaução, o princípio da prevenção e o princípio do poluidor-pagador, entre outros. Esses instrumentos e também as obrigações impostas ao Estado brasileiro pelo art. 225 da Constituição implicam em uma série de medidas posi­tivas e negativas a serem adotadas pelo Poder Público. Nesse sentido, as licitações sustentáveis podem servir como um instrumento de atuação po­ sitiva e ao mesmo tempo negativa do Poder Público para a preservação e defesa do meio ambiente. Senão vejamos. Grosso modo, em termos de atuação negativa, o Estado deve se abster de tomar medidas poluidoras, sendo-lhe, portanto, vedadas as medidas que degradem o meio ambiente, ou seja, durante o desempenho de suas atividades o Poder Público deve adotar medidas para minimizar o impacto ambiental dessas atividades. Já em relação às obrigações positivas, deve o Estado adotar posturas de combate às práticas nocivas ao meio ambiente, como a fiscalização de atividades industriais poluidoras e a promoção de políticas públicas de preservação do meio ambiente. Ora, a opção por bens, serviços e obras sustentáveis, tal como determinado pelas leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e pela nova redação do art. 3º da Lei nº 8.666/93 (dada pela Lei nº 12.349/10), evita que o Estado cause danos am­ bientais durante o desempenho de suas atividades, pois, preventivamente, isso constitui um meio de evitar que o Poder Público utilize produtos e ser­vi­ ços nocivos ao meio ambiente, o que, consequente­ mente, também ajuda a evitar que o próprio Estado cause danos ambientais. Já sob o ponto de vista de uma atuação posi­ tiva, a adoção de critérios de sustentabilidade para a contratação de bens, serviços e obras constitui uma ação efetiva de promoção e incentivo da pro­ dução de bens e da prestação de serviços que não degradam o meio ambiente, já que o mercado seria compelido a incrementar a produção de bens, ser­ viços e obras sustentáveis para atender à demanda estatal. Nesse caso, o Poder Público esta­ria atuan­do (incentivando) o mercado a produzir bens, serviços e obras com padrões de qualidade socioambiental. Dessa forma, entre as várias opções possíveis de contratação, o Poder Público, nos termos das leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 8.666/93 (com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/10), deve optar por aquelas menos gravosas ao equi­ líbrio ambiental, o que constitui uma ação não polui­ dora e uma forma de promoção e incentivo ao desenvolvimento de meios de produção menos degradantes.

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Isso também serve para atender ao previsto no art. 225, VI, da Constituição Federal, pois também é uma forma de “promover a educação ambiental e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Daí, a utilização de seu poder normativo para estabelecer esses critérios de sustentabilidade e para estabelecer os padrões mínimos de aquisição desses bens e serviços sustentáveis, na forma pre­ vista por essas leis. É digno de nota o conteúdo do art. 225, V, da Constituição Federal, cuja previsão é propriamente destinada ao poder normativo da Administração Pública. O art. 225, V, CF, determina que o Poder Públi­ co é obrigado a “controlar a produção, a comer­ cialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qua­lidade de vida e o meio ambiente”. Como consequência, ele está igualmente proi­ bido de contratar bens, serviços e obras públicas que utilizem processos e produtos em desacordo com as proibições contidas nesse inciso. Dessa forma, será obrigado a fazer a especi­ ficação do objeto licitado em sintonia com essa imposição constitucional, o que o obrigará a inserir critérios de sustentabilidade no edital e no contra­ to de aquisição de bens e contratação de obras e serviços, para que seja obstada a utilização de técnicas, métodos e substâncias que comprome­ tam a qualidade de vida e o meio ambiente. Com isso, as licitações sustentáveis previstas nas leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e nº 8.666/93 (com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/10) também servirão como meio de cumprir as determinações do art. 225, V, CF, ou seja, servirão como meio de controle da produção e comercialização dessas sustâncias. Cumpre esclarecer que essas técnicas, méto­ dos e substâncias que comprometam a qualidade de vida e o meio ambiente são normalmente esta­ belecidos em atos normativos do Poder Executivo, particularmente por meio das agências regulado­ ras, como a ANVISA, que, entre outros objetivos, tem como missão esclarecer conceitos jurídicos indeterminados utilizados pela Constituição e pelas leis, como agentes poluentes, agrotóxicos, etc.12 Com isso, nota-se mais uma vez a presença do poder normativo da Administração para implementar licitações públicas sustentáveis, desta vez, em decorrência de disposições constitucionais sobre o meio ambiente. Isso demonstra que o poder normativo, ao regulamentar as leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 Ver ANEXO.

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e nº 8.666/93 (com a nova redação dada pela Lei nº 12.349/10), deve levar em consideração as dis­ posições constitucionais sobre a ordem econômica e sobre o meio ambiente.

8 Instrumentos normativos sobre licitações sustentáveis Nesta oportunidade, passa-se a discorrer sobre alguns instrumentos normativos que estabelecem critérios de sustentabilidade para as licitações. Em primeiro lugar, convêm citar o Decreto nº 7.746, de 05 de junho de 2012, que regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.666/93 ao estabelecer crité­rios, práticas e diretrizes para a promoção do desenvol­ vimento nacional sustentável nas contratações pú­ bli­cas federais. Igualmente importante é a Instrução Normativa nº 1, de 19.1.2010, da Secretaria Logística e Tec­ nologia da Informação do Ministério do Planeja­ mento Orçamento e Gestão, que dispõe sobre os cri­ térios de sustentabilidade ambiental na aqui­ sição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal, vedando contra­ tações em contrariedade às especificações nela con­tidas, que, por sua vez, são calcadas em critérios de sustentabilidade.13 Existem inúmeros casos em que o poder normativo delimita o poder discricionário do admi­ nistrador para a definição de objetos específicos a serem licitados, fazendo-o com vista a um consumo sustentável, como os atos normativos que versam sobre a aquisição de pneus (Resolução CONAMA nº 416/2009), aquisição de produtos ou subprodutos de madeira (Instrução Normativa IBAMA nº 112/ 2006), o uso de produtos preservativos de madeira (Portaria Interministerial nº 292/89 e Instrução Normativa IBAMA nº 5/92), resíduos da construção civil (Resolução CONAMA nº 307/2002), etc. O art. 3º, parágrafo único, do Decreto nº 7.746/12 estabelece que a CISAP poderá propor à SLTI o estabelecimento de outras formas de veiculação dos critérios e práticas de sustentabi­ li­ dade nas contratações, entre elas a edição de outros atos normativos. Com isso, provavelmente have­rá um aumento do número de atos normativos dis­ pondo sobre critérios de sustentabilidade nas licita­ções públicas. Também deve ser lembrado que o Decreto nº 7.404, de 23.12.2010, regulamentou a Lei 13

Tal como disposto no art. 1º desse normativo: “Art. 1º Nos termos do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, as especi­ ficações para a aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas”.

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nº 12.305/10, prevendo em seu art. 80, V, a “fixação de critérios, metas, e outros dispositivos complementares de sustentabilidade ambiental para as aquisições e contratações públicas”. No âmbito do Estado de São Paulo, convêm citar os seguintes atos normativos que estabelecem critérios de sustentabilidade para a administração paulista: Decreto Estadual nº 50.170/05 – cria o Selo Socioambiental no Estado de São Paulo; Decreto Estadual nº 53.336/08 – Institui o Programa Estadual de Contratações Públicas Sustentáveis e dá providências correlatas; Decreto Estadual nº 45.643/01 – dispõe sobre a obrigatoriedade da aquisição pela Administração Pública Estadual de lâmpadas de maior eficiência energética e menor teor de mercúrio, por tipo e potência, e dá provi­ dências correlatas; Decreto Estadual nº 49.674/05 – estabelece procedimentos de controle ambien­ tal para a utilização de produtos e subprodutos de madeira de origem nativa em obras e serviços de engenharia contratados pelo Estado de São Paulo e dá providências correlatas; Decreto Estadual nº 42.836/98 – dispõe sobre a aquisição e locação de veículos pelas Unidades Frotistas pertencentes à Administração Direta e Indireta do Estado.

9 Margem de preferência para a aquisição de objetos sustentáveis Os parágrafos 5º, 6º e 7º do art. 3º da Lei 8.666/93 prevêem que os editais de licitação podem esta­ belecer margem de preferência para a aquisição de produtos manufaturados e para a con­tra­tação de serviços nacionais que atendam às normas brasileiras. O uso dessa margem de preferência pode ser mais um meio de promover a sustentabilidade nas contratações públicas, pois, com a contratação pre­ fe­rencial de produção local e manufatura, há aumento de renda e inclusão social com a geração de empregos, o que destaca os aspectos econômi­cos e sociais da sustentabilidade. Do mesmo modo, a margem de preferência também atende ao aspecto ecológico da sustenta­ bilidade, já que, ao preferir contratações de pro­ dução local, poupa a emissão de carbono com o deslocamento de matérias primas e do produto final. O TCU possui entendimento de que a margem de preferência nos termos do art. 3º da Lei nº 8.666/93 deve ser precedida de Decreto, ou seja, somente o uso do poder regulamentar da Admi­ nistração legitima o estabelecimento de margem de preferência para a contratação de objetos de produção local ou nacional:

9.1.2. É ILEGAL O ESTABELECIMENTO, POR PARTE DE GESTOR PÚBLICO, DE MARGEM DE PREFE­ RÊNCIA NOS EDITAIS LICITATÓRIOS PARA CON­ TRATAÇÃO DE BENS E SERVIÇOS SEM A DEVIDA REGULAMENTAÇÃO VIA DECRETO DO PODER EXE­ CUTIVO FEDERAL, ESTABELECENDO OS PERCEN­ TUAIS PARA AS MARGENS DE PREFERÊNCIA NOR­MAIS E ADICIONAIS, CONFORME O CASO E DIS­ CRIMINANDO A ABRANGÊNCIA DE SUA APLICAÇÃO.14

Como consequência, diversos decretos do Poder Executivo federal vêm estabelecendo margem de preferência para objetos sustentáveis, para fins do disposto no art. 3º da Lei 8.666/93: Decreto nº 7.816 de 28 de setembro de 2012 – esta­ belece margem de preferência para a aquisição de caminhões, furgões e implementos rodoviários nas licitações públicas federais; Decreto 7.843/12 – estabelece a aplicação de margem de preferência em licitações realizadas no âmbito da adminis­tra­ ção pública federal para aquisição de disco para moeda; Decreto n. 7.840/12 – estabelece a apli­ cação de margem de preferência em licitações rea­ lizadas no âmbito da administração pública federal para aquisição de perfuratrizes e patrulhas meca­nizadas, para fins do disposto no art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993; Decreto nº 7.841/12 – altera o Anexo I ao Decreto nº 7.709, de 3 de abril de 2012, que dispõe sobre a margem de preferência para aquisição de retroescavadeiras e motoniveladores, para fins do disposto no art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Tal realidade reforça as preocupações deste artigo quanto à importância e à legitimidade do poder normativo da Administração Pública ser uti­ li­ zado como instrumento para a promoção da susten­tabilidade nas licitações e nas contratações públicas.

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A jurisprudência sobre a utilização do poder normativo pela Administração para viabilizar as licitações sustentáveis

As disposições normativas semelhantes às acima citadas já foram objeto de questionamento judicial, motivo pelo qual já existe posicionamento judicial sobre a juridicidade dos critérios de sus­ tentabilidade adotados para a contração de bens, obras e serviços pelo Poder Público. As controvérsias sobre a utilização desses critérios de preferência por contratações susten­tá­ veis decorrem do próprio ordenamento jurídico que impõe o princípio da competitividade, expresso no 14

TCU, Plenário. TC 032.230/2011-7 - Acórdão nº 1317/2013. DOU 05/06/2013.

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art. 3º, I, da Lei nº 8.666/93, que veda a introdução de qualquer disposição editalícia que restrinja ou frustre o caráter competitivo da licitação. Segundo alguns entendimentos, a opção por determinados bens e serviços que atendem aos cri­ térios de sustentabilidade contrariaria o princípio da competitividade, pois muitos desses bens e servi­ ços não são tão usuais no mercado e são forneci­ dos por um número reduzido de empreendedores, o que reduziria a competitividade nas licitações.15 Seria o caso da compra de papel reciclado, que não é produzido por todos os fabricantes de papel, o que excluiria dos certames as empresas que não conseguem produzi-lo. Da mesma forma, cogita-se sobre eventual quebra da economicidade, já que muitos desses produtos e serviços possuem custos mais elevados de produção justamente em razão do atendimento aos critérios de sustentabilidade. Quanto a esse aspecto deve-se considerar que o art. 3º, caput, da Lei nº 8.666/93 fala em pro­ posta mais vantajosa para a Administração Pública, o que não implica necessariamente em produtos e serviços mais baratos, mas sim em produtos que tragam maior benefício para a coletividade. Além disso, o custo inicialmente maior pode ser compensado pelos benefícios trazidos pelos bens e serviços sustentáveis, inclusive em termos de economia financeira, tal como ocorre com as lâmpadas fluorescentes (inicialmente mais caras que as incandescentes, mas com menor consumo energético, o que compensa o valor pago a maior com a economia nas contas de energia elétrica). Tais argumentos tentam afastar a legitimidade da utilização do poder normativo da administração para a definição de padrões de sustentabilidade para a aquisição de bens e serviços pelo Poder Público. Além, é claro, de marcar posição contrária à própria licitação sustentável. No entanto, corroborando a tese acima, o TJMG, na Apelação cível nº 1.0024.06.9355352/003, decidiu pela plena legalidade da exigência de licenciamento ambiental para a aquisição de bens móveis, fundado justamente na legitimidade do exercício do poder normativo da Administração, cuja ementa merece transcrição: Apelação cível. Ação anulatória. Decisão de inabili­ tação em pregão. Exigência de licenciamento am­ bien­­ tal. Dec. nº 44.122/05. Litigância de má-fé. Ausên­ cia de comprovação. No exercício de sua

competência regulamentar, o Poder Executivo pode­ rá exigir a apresentação de licenciamento am­bien­tal para habilitação de empresa em licitação para aqui­ sição de bens móveis, já que se afigura exigência de qualificação técnica que não implica dis­ crimi­ nação injustificada entre os concorrentes, assegura a igualdade de condições entre eles e retrata o cumprimento do dever constitucional de preserva­ ção do meio ambiente. A Administração Pública, além de observar a igualdade de condições a todos os concorrentes, também atenderá aos princípios da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo (art. 3º da Lei nº 8.666/93). A aplicação da pena por litigância de má-fé deve ser dada apenas nos casos de induvidosa prática de dolo processual. Recursos conhecidos, mas não providos. (grifos nossos)

Tal precedente legitima o exercício do poder normativo da administração para traçar e fixar as diretivas para o agente competente guiar os seus critérios de escolha dos bens e serviços a serem contratados pelo Poder Público de acordo com critérios sustentáveis, o que atende perfeitamente aos mandamentos constitucionais sobre o meio ambiente e sobre a ordem econômica, não consis­ tindo, portanto, em discriminação injustificada entre os concorrentes que restrinja o caráter competitivo da licitação e tampouco em atentado à escolha da proposta mais vantajosa para o Poder Público (art. 3º, Lei nº 8.666/93).16 Dessa forma, como demonstrado, já existe precedente jurisprudencial reconhecendo a possibi­ lidade do poder normativo da Administração Pública definir critérios de sustentabilidade nas contrata­ ções públicas sem atentar contra o princípio da iso­ nomia e contra a busca da proposta mais vantajosa para o interesse público, reforçando a presença da questão ambiental.









Sobre essa discussão, cf. o bem fundamentado parecer exa­­ra­ do pela procuradora do Estado de São Paulo Dra. Silvia Helena Nogueira Nascimento: Parecer CJ/SMA nº 683/2006. Disponível em:. Acesso em: 25 nov. 2010.

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Nesse sentido, convém ainda destacar o trecho do voto da E. Relatora do acórdão citado, Desembargadora Albergaria Costa: “E por estar imbuído do dever de satisfazer os interesses da cole­tividade, ao aplicar um comando normativo, aliado à falta de critérios para a fiel execução das leis, é que o Poder Executivo pode­rá manejar este poder, essencialmente instrumental, desin­ cumbindo do dever posto a seu cargo. Na verdade, foi lançando mão desta competência que o Estado expediu o decreto impugnado pela apelante, que, sem estipular exigências discriminatórias, mas no intuito de conferir segurança e eficácia ao projeto de política ambiental, afinando-o com o interesse público, dispôs que a Administração Pública estadual somente poderá adquirir produtos derivados de madeira se o fornecedor demonstrar certidão de regularidade ambiental. Tal exigência não ofende a igualdade de condições entre os con­ cor­rentes, permite a competitividade entre os interessados, im­ prescindível na licitação, e abarca os princípios da impessoalidade e igualdade ou isonomia, a serem observados pelo administrador público. Sendo assim, a exigência hostilizada pela apelante não atenta contra os princípios que regem a atividade licitatória; pelo contrário, tende a promover a defesa e preservação do meio ambiente, que é um dever precípuo do Poder Público e da coletividade (art. 225 da CF/88), de competência comum a todos os entes federados (art. 23, VI, da CF/88).”

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O Tribunal de Contas da União (TCU) proferiu o Acórdão nº 1.260/2010, Segunda Câmara (Processo nº 001.066/2010-2), em que reconheceu a juridicidade da Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG. Segundo o mencionado Acórdão, “a partir de uma primeira leitura desse normativo, observa-se o foco maior em novas obras, abrangendo medidas para redução do consumo de energia elétrica e água, e, em relação à aquisição de bens e serviços, exigências a serem cumpridas pelas empresas contratadas”. Embora a IN nº 1/2010 não tenha sido o foco da decisão comentada, a sua aplicabilidade já foi cogitada, parecendo haver uma sinalização do TCU sobre a sua juridicidade. Convém destacar que a superveniência das leis nº 12.187/09, nº 12.305/10 e da nova redação da Lei nº 8.666/93 (dada pela Lei nº 12.349/10) só tende a legitimar ainda mais a utilização do poder normativo para o estabelecimento de critérios e especificações de sustentabilidade dos objetos lici­ tados, até porque ele é imprescindível para a efeti­ vação das mesmas.

11 Conclusão De todo o exposto, percebe-se que a adoção de critérios de sustentabilidade para as licitações e contratações públicas atende perfeitamente ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Embora possa-se cogitar sobre uma suposta incompatibilidade das contrações sustentáveis com a economicidade e com a competitividade das lici­ ta­ções, esses argumentos contrários ficam supe­ rados quando ponderados com as disposições cons­­titucionais sobre a ordem econômica e sobre o meio ambiente. Da mesma forma, o restante do ordenamento jurídico brasileiro também possibilita a inclusão das contratações sustentáveis na pauta Adminis­ tração Pública brasileira, o que se dá por meio dos compro­missos internacionais incorporados ao di­reito brasileiro e por meio de disposições legais expres­sas, como a Lei de Mudanças Climáticas (Lei nº 12.187/09), a Lei da Política Nacional de Re­ sí­duos Sólidos (Lei nº 12.305/10) e pela própria Lei Geral de Licitações e Contratações Públicas (Lei nº 8.666/93 com a redação dada pela Lei nº 12.349/10).

Esse conjunto normativo permite que o administrador faça opção por contratações de bens, serviços e obras que atendam a critérios de susten­ tabilidade e possuam impacto ambiental reduzido se comparados a outros produtos e serviços. Ao mesmo tempo, é desejável, por razões de segurança jurídica e para a melhor capacitação dos agentes públicos, que essa discricionariedade da administração para eleger critérios de sustenta­ bilidade seja devidamente delimitada pelo Estado. Daí a utilização do poder normativo para pos­ sibilitar a aplicação desse conjunto de princípios e leis pela Administração Pública, o que pode ser feito por ocasião da regulamentação das leis sobre licitações e contratações públicas, em coerência com as disposições do ordenamento jurídico sobre o meio ambiente. Como demonstrado anteriormente, já existem alguns instrumentos normativos a esse respeito, como o Decreto nº 7.746/12 e a Instrução Normativa nº 1/2010 SLTI MPOG, que estabelecem critérios de preferência para contratações sustentáveis no âmbito da Administração Pública federal. Dessa forma, fica demonstrado que o poder normativo é meio apto para viabilizar as licitações e contratações públicas sustentáveis na Adminis­ tração Pública brasileira, como decorrência natural da proteção jurídica dispensada pelo ordenamento jurídico brasileiro ao meio ambiente.

Referências CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito admi­ nistrativo. 18. ed. rev. ampl. e atual. até 30.06.2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008. FRANCISCO, José Carlos. Função regulamentar e regulamentos. Rio de Janeiro: Forense, 2009. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 10. ed. São Paulo: Dialética, 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 36. ed. atual. até a Emenda Constitucional nº 64, de 4.2.2010. São Paulo: Malheiros, 2010. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2. ed. de acordo com a Emenda Constitucional nº 52, de 8.3.2006 (DOU 9.3.2006). São Paulo: Malheiros, 2006.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): SANTOS, Murillo Giordan. Poder normativo nas licitações sustentáveis. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 15, n. 172, p. 56-67, abr. 2016.

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