Poder Politico e Dever Etico

June 6, 2017 | Autor: Alfredo Manhiça | Categoria: Ethics and Politics, Political and Social Philosophy, Ethics, Political Ethics, Political Power
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PODER POLÍTICO E DEVER ÉTICO (Oração de Sapiência – UCM - ano académico 2016 – Prof. Manhiça) Introdução Considerando o panorama sociopolítico nacional e internacional, caraterizado pelo declínio generalizado e acentuado, nos últimos dez ou quase vinte anos, da observância dos princípios e práticas que desde sempre nutriram a convivência pacífica de vários povos, e a consequente regressão ao “estado permanente de guerra de todos contra todos” - ou por motivado ideológicos, ou por motivos religiosos, ou pelo controlo dos recursos de sobrevivência, ou por questões étnico-tribais - quando o Diretor da Faculdade de Economia e Gestão, O Professor Alfândega Manjoro, convidou-me a proferir a “Oração de Sapiência”, pela ocasião da inauguração do presente ano acadêmico, quis colher esta preciosa oportunidade para, da minha parte, formular um convite a todos vós aqui presente, para, uma vez mais, refletirmos, sobre uma possível base inabalável, a partir do qual os cidadãos governados, e aqueles a quem foi confiado o governo das nações e da comunidade internacional, podem fundar os seus relacionamentos, de modo a promover a cultura da convivência pacífica. Foi por esta razão que o título que atribui a esta minha “aula” foi: Poder Político e Dever Ético. As palavras chave que conduzirão todo o raciocínio e servirão de base para a construção do discurso são: política e ética. Segundo o Professor Gianfranco Pasquino ( 2004), a política é, desde tempos antiquíssimos, uma atividade realizada por alguns homens e, mais recentemente, por algumas mulheres, com o objectivo de nutrir a união estável de um determinado grupo de pessoas, criar sistemas de proteção contra tudo o que pode representar ameaça contra o grupo, decidir quem toma as decisões e como distribuir os recursos, prestígios, fama e valores. E, por ética, se denota uma filosofia responsável pela elaboração de um sistema abstracto de valores universalmente válidos. A ética é também um conjunto de princípios normativos da conduta humana, estabelecido segundo o sistema de valores universalmente válidos. O termo abstracto não deve ser entendido como sinónimo de “fictício”. De facto os valores éticos são universalmente aceites por uma dada sociedade precisamente porque a sociedade se identifica com eles, constituem seu património ontológico. Na ordem comportamental, a ética molda a conduta do indivíduo, enquanto membro de uma determinada sociedade. E é por essa razão que, em quase todas as civilizações antigas, ética e política sempre se entrelaçaram, já que o lugar privilegiado onde o homem ou a mulher virtuosos explicitam as suas virtudes é na pólis e, a ética política tem como objecto mostrar como deve ser e organizar-se a societas civilis, tendo em conta as exigências da ética geral. A ética política consiste, portanto, na construção de um arquétipo de Estado ou Estado ideal, ao qual deve ajustar-se a política empírica.



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Aristóteles (384-322 a.C) deixa bem claro o inter-relacionamento entre Política e Ética quando, depois de preconizar, no início do capítulo 2, do livro I, do Ética a Nicômaco, a existência nas coisas que fazemos, de um bem, ou melhor, do sumo bem, que desejamos por si mesmo e tudo o mais é desejado por causa dele, individua o bem humano (o bem comum) como fim da ação política, visto que a ciência política utilizando as demais ciências e, ainda, legislando sobre o que devemos fazer e sobre o que devemos nos abster, demonstra ser dotada de finalidade que necessariamente abrange a finalidade das outras ciências, isto é, o sumo bem. A ética do cristianismo preserva em parte os pressupostos filosóficos da Antiguidade. Com a diferença que, no cristianismo, as regras morais, não advêm do património filosóficocultural, mas da vontade revelada de Deus todo-poderoso que, expressamente, estabeleceu normas de conduta a serem seguidas pela humanidade. E a finalidade da observância da ética cristã é o amor a Deus e aos irmãos. A convicção de que o lugar privilegiado onde o homem ou a mulher virtuosos explicitam as suas virtudes é na pólis promoveu, a partir do fim da Idade Média, a composição e divulgação de escritos sobre a ética social, dirigidos aos governantes oferecendo-lhes conselhos, que supostamente serviriam para que alcançassem sucesso em suas empreitadas de governar. Os livros de aconselhamento insistiam sobre o fato de que o bom governo nasce da prática das virtudes em todas as circunstâncias. Assim, o bom príncipe era aquele que se mirava no espelho e aprendia a guiar-se pelo conjunto de virtudes consagradas pela tradição da literatura moral. Advento do Realismo Político A partir dos fins do século XIV e princípios do século XV alguns filósofos e pensadores começaram a elaborar teorias políticas que advogavam a separação entre a política e a ética, devido à sua incompatibilidade. A base da convivência política na prática das virtudes foi substituída pelo poder da força, ou seja, o “Realismo”. Por “Realismo Político” se entende a absolutização do Estado ou dos interesses de quem pretende manter ou conquistar o poder político e, por conseguinte, a impossibilidade da observância de princípios éticos. A literatura política atribui ao filósofo italiano, Nicolau Maquiavel (1464-1527), a paternidade da teorização sobre a separação entre Política e Ética. A conclusão que muitas vezes aflora aos leitores e estudiosos dos escritos políticos de Maquiavel como, por exemplo, os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio e, de modo especial, O Príncipe, é que, para aquele filósofo, os fins justificam os meios. A impressão que esta máxima suscita é a de que, na luta pelo poder, ao ator político é permitido agir de forma que lhe parecer conveniente, inteiramente livre de escrúpulos e outros condicionamentos psicológicos e éticos. Todavia, embora Nicolau Maquiavel possa, historicamente, ser considerado o percursor dos teorizadores da separação entre Política e Ética e, portanto, o inspirador do “Realismo



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Político”, ele não pode ser considerado advogado, nem da separação da Política da Ética, nem do Realismo Político. Em primeiro lugar, não pode ser considerado advogado da separação da Política da prática das virtudes éticas porque os seus escritos políticos – tanto os Discursos, como O Príncipe, são descritivos, e não prescritivos. A análise que ele faz nada tem de especulativo. Funda-se na investigação empírica. Interessa-lhe, sobretudo, conhecer o mais possível acerca do fenômeno do poder que se apresenta diante dos seus olhos. E, por isso, pôs-se a examinar com atenção a trajetória existencial das organizações políticas tradicionais, procurando saber como nascem, desenvolvem-se, adquirem estabilidade ou entram em decadência. O filósofo florentino tem consciência de que, do ponto de vista ético, um príncipe [ou governante] deveria ser íntegro, fiel à palavra dada, sincero e leal nos seus atos e atitudes. Insiste, todavia, em afirmar, com base na experiência, que, na prática, dirigentes com esse feitio dificilmente chegam ao poder e, se conseguem chegar, dificilmente mantêm-no. Os que conquistam fama e prestígio são precisamente aqueles que não cumprem o que prometem e usam da astúcia para confundir os homens. Em segundo lugar, Maquiavel não pode ser considerado advogado do “Realismo Político” porque, embora defenda que na disputa política, é permitido ao príncipe o emprego da força, o uso da crueldade, da traição, da deslealdade, da dissimulação, do ardil, da má-fé e de outros procedimentos afins, observa, todavia, que ao príncipe não lhe é facultado fazer uso de tais expedientes para apropriar-se de bens dos seus súditos, nem molestar suas mulheres. Mais do que nas teorias filosóficas, portanto, o esforço para banir a Ética da Política esteve sempre presente nos detentores de poder, desde os tempos imemoráveis. Segundo o Professor Heinrich Popitz (2001), o processo da consolidação do poder de tipo totalitário e absoluto, desejoso de sobrepor-se também à voz da consciência e à lei divina, passa por três momentos fundamentais: O primeiro momento é caracterizado pela avocação, da parte de quem detém o poder político, do controlo exclusivo dos meios de produção, e a consequente colocação de uma classe de indivíduos ao próprio serviço. O passo seguinte é caraterizado por um longo processo da institucionalização e legitimação do regime concebido, segundo as conveniências. A institucionalização é um processo que visa converter o subjetivo em objectivo. Neste processo constroem-se posições de poder que adquirem consistência independente das figuras dominantes do dia, e regras de conduta que permitem o estabelecimento de precisas expectativas recíprocas entre os governantes e os governados, e coloca-se o centro do poder dentro de um vasto ordenamento.



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O último degrau da estabilização do poder de tipo absoluto é o reconhecimento da vinculação dos vários níveis de poder ao poder supremo. Olhando para o panorama sociopolítico que se vive, nos últimos anos, a nível nacional e internacional, caraterizado pelas profundas dificuldades de coexistência pacífica entre vários grupos sociais, entre as diferentes convicções políticas, entre as diferentes confissões religiosas, entre as diferentes raças ou grupos linguísticos, entre os interesses nacionais e internacionais, entre o centro e a periferia, entre os países do norte e os países do sul do hemisfério, entre os servidores públicos e os operadores privados, entre os detentores do poder político e o resto dos cidadãos, em fim, entre os have e os have not, pode-se concluir que o “Realismo Político”, ou seja, a filosofia que advoga a separação da Política da Ética, constitui uma ameaça para o projeto da sociedade política, pelo menos como o entendemos hoje. O Professor Giovanni Sartori (1965) observa que a concepção maquiavélica de que a política é incompatível com o dever ético corresponde a uma concepção que advoga a existência de uma política pura. Ou seja, que não incorpore os valores dos homens que a compõem. Mas, segundo Sartori, não existe uma política pura porque nenhum homem ingressa na ação política se não for impulsionado por crença e fins. [...] Ninguém pode até hoje instituir com êxito uma política genuinamente pura ou uma política inteiramente ética. Ambas fracassam pelas mesmas razões. A advocação da separação da Política da Ética é, portanto, uma denúncia da vontade ou prática colectiva que visam alterar o vínculo da conduta virtuosa dos indivíduos, da função de aglutinador social. Considerando a impossibilidade da existência de uma sociedade política capaz de subsistir, sem um vínculo que a mantenha unida, a dissolução do vinculo da conduta virtuosa da função de aglutinador social é, implica a sua substituição por outros vínculos, dos quais julgo ser útil mencionar alguns:

• O Medo: O medo é, provavelmente, a mais primitiva e a mais incontrolável de todas as emoções. Ele pode fazer referência a um perigo real ou imaginário, iminente ou possível, suscitar um estado de alarme ou gerar comportamento de luta ou de fuga. Em muitos aspectos, a cultura de um povo é constituído pelo aparato que serve de defesa contra o medo. Por isso mesmo, pode-se dizer que o medo é um elemento social muito importante e é produtor das sociedades. É por isso que para o filósofo inglês, Thomas Hobbes (1588-1679), foi graças ao medo que a pessoa humana renunciou o estado selvático e instituiu a comunidade política. Mas, acrescenta Hobbes, com a instituição da comunidade política, nasceu também a submissão e o pacto de domínio, da parte dos governados pelos governantes, porque o



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Estado não é vinculado, nem sequer pelas próprias leis e não é responsável diante dos cidadãos. O paradoxo é que o poder político nasce como remédio do medo, mas quando se torna absoluto, governa através do medo. • O esvaziamento do Direito, quer constitucional como administrativo, por via de legalismos estéreis. • A manipulação e compra das consciências: Existe uma intrínseca relação entre a consciência e a realidade. Por isso que se define conhecimento como “correspondência entre a realidade (o ser) e o entendimento. A manipulação e a compra das consciências visa agir na estrutura ontológica do ser, de modo a apresentar o falso como verdadeiro e o verdadeiro como falso. A este propósito, é pertinente, na nossa qualidade de “produtores” de conhecimento, interrogarmo-nos sobre o que confere às universidades o valor de um bem público. As Universidade são um bem público porque agregam valor à sociedade ao educar as pessoas, que depois se tornam cidadãos produtivos, ou um bem público porque beneficia pessoas singulares que, terminada a formação, têm a possibilidade de ganhar mais dinheiro e desfrutarem de outras vantagens como resultado da sua educação! De facto, as Instituições do Ensino Superior treinam pessoas que, em linha de máxima, atingem as mais elevadas posições de responsabilidade na sociedade. As suas decisões em todas as áreas de atividade e em todas as profissões têm, com certeza, um impacto positivo ou negativo no progresso global da humanidade e nas sociedades.

• A tendência a falsear ou a esvaziar o debate político. • O uso da força como instrumento de domínio. • O uso do poder sem autoridade. O poder político pode ser exercitado de forma desassociada da autoridade. Segundo o sociólogo alemão, Max Weber (2004), o termo “poder” designa qualquer possibilidade de fazer valer a própria vontade, numa relação social, independentemente do fundamento que justifica tal possibilidade. A autoridade é, igualmente, uma força. Mas não é uma força cega: é orientada racionalmente a um fim que visa o bem comum. Quando o poder se converte em fim último, aí temos a dominação. Por isso, muitas vezes na história tem-se considerado o poder como um mal, como uma tentação, um pecado. Lord Acton diz que o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente. Na verdade, o poder político não pode apresentar-se como pura força tirânica, despótica, pois ele requer justificação. Eis aí o porquê de a humanidade insistir no casamento da ética com a política. Ao colocar a polis na esteira do fim humano mais elevado, Aristoteles revela que o bom político não é necessariamente um bom condutor de homens em geral, seja qual for a grandeza de escala em que se encontra, mas sim o que revela idoneidade para governar comunidades que têm por fim o bem supremo, isto é a vida boa em comunidade.



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Na contemporaneidade, a cobrança nesse sentido evidencia-se ainda maior. E talvez até caiba acusá-la de pretender algo difícil, mas não utópico ou incompatível com a racionalidade. De fato, o povo elege os seus representantes para que promovam o bem comum. Se a conduta dos governantes revela descompromisso com a causa pública, frustrando a expectativa da população, há fortes chances de que a desordem se instale, passando cada um a agir por sua própria conta, com graves prejuízos para o convívio social.



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