Poder, violência e religião no século IV: Hilário de Poitiers e a construção da imagem de Constâncio II

May 19, 2017 | Autor: Melissa Melo | Categoria: Late Antiquity, Hilary of Poitiers, Fourth Century
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Mestranda em História Social das Relações Políticas pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo. A autora é membro do Laboratório de Estudos Sobre o Império Romano (LEIR)/Seção-ES. Esse artigo é um fragmento do projeto de dissertação com o tema "Identidade, poder e rede de sociabilidade na Antiguidade Tardia: a dinâmica das querelas religiosas segundo Hilário de Poitiers no contexto do conflito ariano ocidental (343-361)", orientado pela Prof. Dra. Érica Cristhyane Morais da Silva. E-mail para contato: [email protected].
Com a morte de Constantino em 337, teve início um período de lutas internas pelo poder. Os numerosos meios-irmãos e sobrinhos de Constantino foram assassinados por políticos. Constâncio II defendia uma sucessão dinástica ordenada, livre da disputa entre os diversos ramos da família. Essa ideia, assassinato dos membros da família, foi defendida por Helena, mãe de Constantino, sendo provável que Constâncio II, o homem-forte do novo regime, tenha ordenado o massacre (CARVALHO, 2013, p. 7).
O tratamento que Hilário recebeu no exílio não foi o mesmo que os bispos nicenos Eusébio de Vercelli e Lúcifer de Cagliari gozaram. Enquanto estes foram privados de liberdade e comunicação externa, Hilário passou um período com Basil de Ancyra, esteve presente no concílio de Selêucia em 359 e no mesmo ano solicitou uma audiência com Constâncio em Constantinopla (De Synodis, 63, 90).
"É realizada a profecia que disse: Virá o tempo em que as pessoas não suportarão a sã doutrina, mas por opção de suas paixões, eles dão mestres abundância á que agradam os ouvidos; e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas as transformarão em fábulas. " (In Const., 2).
"Clamo a ti, Constâncio, o que eu diria para Nero, o que Décio e Maximiano ouviriam falar de mim: você luta contra Deus" (In Const., 7)



2 Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016

Poder, violência e religião no século IV: Hilário de Poitiers e a construção da imagem de Constâncio II

Melissa Moreira Melo Vieira

INTRODUÇÃO
A interferência imperial no processo de desenvolvimento e alargamento do aparelho eclesiástico é um dos princípios que orientam a sociedade romana tardo-antiga. Esse novo modelo está intimamente relacionado ao processo de crescimento organizacional da Igreja, que ocorre paralela e concomitantemente com a busca de centralização do poder na figura do imperador (CRUZ, 2007, p. 5). A aproximação da religião cristã com o poder político foi decisiva para a história ocidental, pois permitiu que o discurso cristão desenvolvesse suas definições e princípios doutrinários na condição de uma teologia política (CARVALHO, 2010, p. 78). Essa ligação do Estado Romano com a Igreja potencializou uma nova autoridade política no século IV: o episcopado. O bispo exerceu um papel importante na propagação do cristianismo e teve o seu poder legitimado dentro da esfera imperial. Segundo Rapp (2005, p. 6), na qualidade de legítimo líder da comunidade, o bispo julgava os assuntos religiosos a fim de conter os desvios doutrinais, que, nas interpretações discordantes acerca da fé cristã, eram classificados como heresias (LEMOS, 2013, p. 9). Dentre essas heresias, abordaremos no presente artigo o conflito entre arianos e nicenos que, devido à nova configuração das relações entre Estado e Igreja, não se limitou apenas ao campo teológico e tornou-se um conflito político envolvendo o imperador Constâncio II e os bispos ocidentais.
Em detrimento a uma suposta ideia de unidade – difundida e aspirada pelas lideranças eclesiásticas e pelo poder imperial – as igrejas locais desenvolveram estruturas distintas, cada uma a seu modo, seja nas questões disciplinares, teológicas ou litúrgicas (LEMOS, 2013, p. 7). Numa perspectiva geral, a Igreja assemelhava-se muito mais a um imenso mosaico, o que rompe com a concepção de uma organização monolítica uniforme que ainda é perpetuada pela historiografia (SILVA; SOARES, 2012, p. 143). Assumir que no final do Império Romano o secular e o religioso foram percebidos como separados – e que a nossa visão deste período deve aderir a esta dicotomia – é um resultado enganador do pensamento moderno (RAPP, 2005, p. 6). Essa suposta ideia de coesão, contudo, ainda figura nos estudos específicos sobre os concílios do século IV. Ao negar a uniformização da unidade eclesiástica, Burns (2002, p. 151) afirma que os denominadores comuns eram obtidos por meio de negociações acertadas em concílios.
Em termos gerais, os concílios são reuniões com o objetivo de discutir e regulamentar questões da doutrina da Igreja. Eles foram o marco legal dessa nova configuração hierárquica da Igreja e, na teoria, agiam como fator de padronização de práticas e credos nos diversos grupos religiosos que se denominavam cristãos (YOUNG, 2007, p. 17). Eles não eram, no entanto, uma reunião de todo o corpo episcopal de uma determinada região: há uma distinção sutil que separa os que são ou não convocados aos concílios (GAUDEMET, 1977, p. 32). Isso se deve ao fato de que os concílios eram solicitados para discutir questões como condenações de bispos, exílios ou reconhecimentos de credos, e a convocação dependia das posições doutrinárias e da representatividade dos bispos em sua região. A convocação do imperador é um ponto significativo para a compreensão da diversidade, das coesões e dissenções dos bispos convocados.
A motivação dos imperadores cristãos, a partir do século IV, em realizar os concílios, refletia a preocupação destes em preservar uma coesão e unidade na comunidade cristã, pois uma fragmentação poderia implicar em uma divisão na própria sociedade (CARVALHO, 2006, p. 272). Contudo, buscar uma unidade de ideias, dentro dessa complexa sociedade, composta de interesses distintos, que assegurasse uma relação equilibrada entre a política e a religião mostrou-se frágil (FIGUEIREDO, 2012, p. 17), resultando em diversos conflitos entre os bispos e o imperador. Isso pode ser verificado no decorrer do século IV d.C., por meio do surgimento de múltiplos conflitos nessas relações, ligados aos interesses de legitimação da política imperial e às relações de poder, autoridade e prestígio da organização eclesiástica (FIGUEIREDO, 2012, p. 17). As disputas religiosas no século IV geraram diversas contendas entre membros do episcopado e do corpo imperial, e estes conflitos também criaram um conjunto mais elaborado de regras para a definição de legitimidade religiosa. A hierarquia eclesiástica foi potencializada, juntamente com a coerção religiosa pura e simples, que serviu para reforçar – ao invés de conciliar – visões de mundo e de grupos de identidades divergentes (BROWN, 1999, p. 98).
Dentre os conflitos mais significativos em vista da documentação conservada, estão aquelas conhecidas como controvérsias trinitárias, com destaque ao Arianismo, que surgiu em Baucális, no Egito, com os sermões de Ário. No ano 312, Ário assumiu o presbitério e pregava sobre a origem e a natureza de Jesus. Ário questionava a divindade de Jesus, afirmando que antes de Cristo existir, Deus ainda não era pai (ENTRINGER, 2009, p. 37). Então, como sendo uma criação, o Filho tinha uma essência distinta e inferior ao Pai e não era eterno como Ele. Sem muita demora, o bispo de Alexandria logo tomou conhecimento sobre os sermões de Ário e convocou um concílio no ano 318 com líderes da igreja do Egito e Líbia com o objetivo de reprovar e condenar a doutrina de Ário. O presbítero, contudo, levou a controvérsia a uma dimensão hierárquica, pois recusou-se a abandonar sua doutrina e assim foi banido da Igreja, juntamente com seus seguidores. A querela alcançou as ruas e atraiu os leigos de Alexandria, que escolheram um posicionamento favorável ou contrário a Ário. Mesmo com a condenação de Ário no Concílio de Niceia, a doutrina ariana continuou a expandir-se. O Concílio de Niceia não respondeu à questão central da teologia trinitária, e a harmonia oficial após o Concílio ocultou as diferenças teológicas que estavam presentes e que alimentavam novas discussões e disputas (DÜNZL, 2007, p. 61). Segundo Magalhães (2009, p. 113), as disputas entre os grupos nicenos e arianos em cada cidade "converteram-se em uma verdadeira luta pela hegemonia e controle dos espaços de culto entre os grupos rivais, liderados por seus bispos respectivos".
O presente artigo tem como objetivo analisar a imagem do imperador Constâncio II construída pelo bispo Hilário de Poitiers na inventiva Contra Constantium Imperatorem, bem como compreender o contexto em que a obra e o autor se inserem. A análise se dará a partir do conceito de representações, proposto por Roger Chartier. As representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; almejam à universalidade, mas são sempre assentadas e determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. As representações não são discursos imparciais: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas (CHARTIER, 1990). Sendo assim, num contexto de conflito entre bispos e imperador, são estabelecidas novas relações de poder e representações entre os personagens e grupos envolvidos, de modo a afirmar um controle e hegemonia em um determinado âmbito.

CONSTÂNCIO II, O IMITATOR CONSTANTINI
Constâncio II assumiu a posição de Augusto do Oriente em 337, após a morte de seu pai, Constantino. O Ocidente ficou sob o governo de seu irmão Constante até a sua morte, em 350, e após isso Constâncio passa a ser o único imperador que daria continuidade às diretrizes do reinado de seu pai, como se ele consistisse em um imitator Constantini (ANTIQUEIRA, 2012, p. 128). Em meio a inúmeros conflitos entre os bispos orientais e ocidentais, Constâncio II não desistiu de suas tentativas de restaurar a unidade da Igreja (DÜNZL, 2007, p. 94). A ação política de Constâncio sobre a igreja foi intensa, tendo o seu governo desenvolvido um padrão específico de relações entre Estado/Igreja, que se afasta em larga medida daquilo que se observa no período precedente, quando Constantino, embora intervindo nas disputas eclesiásticas, deixou sempre aos bispos uma ampla margem de autonomia (SILVA, 2003, p. 85).
Os conflitos político-religiosos do século IV sempre sofreram intervenções do poder imperial, ora em forma de apoio a uma doutrina específica, ora em forma de repulsa. Esse fator era deliberado pela orientação político-religiosa do representante do poder imperial (PAPA, 2014, p. 3) e, no caso de Constâncio II, a doutrina adotada como ortodoxa foi o arianismo. O imperador adotou a posição teológica da maioria dos bispos orientais, que posicionaram-se contra o credo niceno e seu principal símbolo: Atanásio de Alexandria. A partir de 350, Constâncio iniciou uma ofensiva para submeter os bispos ocidentais às suas decisões. Os bispos que não aceitassem um determinado credo subscrito pelo imperador poderiam ser substituídos por outros alinhados com a corte, o que resultava no exílio dos recalcitrantes (SILVA, 2003a, p. 90).
As ações reproduzidas por Constâncio II em benefício dos arianos "atestam um controle estrito exercido pelo imperador sobre a Igreja, o que encontra a sua justificação ideológica na produção de uma mística imperial de inspiração cristã que faz do soberano o vértice da hierarquia religiosa" (SILVA, 1998, p. 12). Para que suas decisões fossem perpetuadas dentro dos concílios, Constâncio precisava de apoio episcopal e, durante a expansão de seu governo para o Ocidente, Constâncio tinha cada vez mais sob sua influência os bispos da Ilíria, Valente de Mursa e Ursácio de Singiduno. O imperador deu a eles lugares privilegiados como bispos da Corte e eles desempenhavam o papel de seus conselheiros (DÜNZL, 2007, p. 91).
O arianismo, que já estava presente na teologia oriental desde as pregações de Ário em 318 (ENTRINGER, 2009, p. 39), ainda não era uma questão para a teologia ocidental. A maioria dos bispos da parte ocidental da Igreja foi atraída diretamente para a disputa ariana apenas quando o imperador Constâncio – com o apoio de Valente de Mursa e Ursácio de Singiduno, seus partidários – convocou concílios em Arles (353) e Milão (355) para discutir a deposição de Atanásio (BORCHARDT, 1966, p. 47). Ao confirmar a condenação de Atanásio, Constâncio II obrigou os bispos a se posicionarem a favor da decisão imperial e exilou todos os que se opuseram à sua vontade, incluindo Libério de Roma, Dionísio de Milão, Eusébio de Vercelli e Lúcifer de Cagliari (Historia Arianorum, 31-32). Segundo Weedman (2007), os concílios convocados a partir de 353 eram uma forma de Valente de Mursa e Ursácio de Singiduno – os bispos da Ilíria que apoiavam e aconselhavam o imperador Constâncio II – de imporem a tendência pró-ariana do imperador no Ocidente. Foi nessa fase que os elementos nicenos na Gália foram agrupados em torno de Hilário de Poitiers, que passa a ser visto como um dos líderes da Igreja no Ocidente na luta contra os arianos (BORCHARDT, 1966, p. 23).
HILÁRIO DE POITIERS E A DEFESA DO CREDO NICENO
Hilário nasceu na Gália, por volta de 320 d.C. A cronologia de sua vida é incerta, mas crê-se que tenha sido eleito bispo de Poitiers no ano de 350. Mesmo não tendo comparecido aos concílios ocidentais de Arles (353) e Milão (355), de tendência ariana, Hilário trouxe à tona um decreto rompendo a comunhão com os líderes arianos no Ocidente. Não se sabe de que forma este decreto foi elaborado e se ele encontrou grande apoio entre os outros bispos na Gália. Os líderes arianos, no entanto, responderam com a convocação do Sínodo de Béziers, no início de 356, que decretou o exílio do bispo de Poitiers (BORCHARDT, 1966, p. 47). Sua condenação provavelmente veio dos bispos da Gália agindo de acordo com Saturnino de Arles, bem como os seus partidários Ursácio de Singiduno e Valente de Mursa (STEVENSON, 2014, p. 7). Hilário, que não teve a chance de afirmar plenamente o seu caso diante dos bispos e do imperador, escreveu uma obra na qual indicou que a verdadeira razão para o consenso na condenação de Atanásio foi a negação da fé nicena, ao invés da rejeição do bispo de Alexandria. Antes de ir para o exílio, publicou o compilado de cartas que posteriormente recebeu o nome de Adversus Valentem et Ursacium.
Antes de setembro de 356, Hilário chegou ao Oriente e foi enviado para a Frígia, para onde os bispos Paulino e Dionísio – mortos no exílio – foram enviados. Embora seja difícil recuperar a diferença entre as condições de Hilário, Paulino e Dionísio nos exílios, dificilmente podemos evitar especular que o bispo acabou em um local menos isolado e aberto a algumas formas de comunicação. Assim, ele foi capaz de manter uma posição dissidente no exílio. (STEVENSON, 2014, p. 14). Até certo ponto, ele estava livre para viajar e no Oriente aprendeu os pontos mais delicados da disputa ariana. Durante seus anos de exílio, ele escreveu sua principal obra exegética, conhecida como De Trinitate e desenvolveu o seu próprio ponto de vista da teologia oriental e comunicou ao Oeste as ideias e tendências religiosas do Oriente (BECKWITH, 2008, p. 9). Sob a influência do bispo Macedônio a partir de 360, a cidade de Constantinopla converteu-se na fortaleza do arianismo e ratificou em concílio este credo. Após o concílio, Hilário decidiu voltar para a Gália sem a permissão do imperador, embora isso seja uma questão de debate entre os historiadores (WEEDMAN, 2007, p. 15). De volta ao Ocidente, começou a trabalhar ativamente contra os interesses dos arianos, e, junto do bispo Eusébio de Vercelli, tentou forçar, sem êxito, a remoção do bispo ariano Auxêncio de Milão. No mesmo ano, escreveu a inventiva Contra Constantium Imperatorem, dirigida à Constâncio II.
No que se refere às inventivas, estas são construções retóricas criadas para determinados fins polêmicos, como posturas adotadas por seus autores em resposta a conjunturas desfavoráveis (FLOWER, 2013, p. 21). Estruturalmente, eram idênticas aos panegíricos: como em um negativo fotográfico, cumpriam o mesmo papel de construir e destruir uma imagem de autoridade. Mark Humphries (1997, p. 464) afirmou, a partir de uma análise das construções estruturais e ideológicas das inventivas, que estas se classificam como anti-panegíricos. Ao debater as inventivas de Hilário, Humphries (HUMPHRIES, 1997, p. 465) afirma que:
Longe de emergir do trabalho como um modelo de virtude imperial, como Constâncio teria aparecido em um panegírico, a imagem duradoura do imperador criado por Contra Constantium é a de um tirano bestial que criou uma guerra dentro da Igreja.
A figura do imperador foi tratada com desprezo e indignação em Contra Constantium, o que nos permite ponderar sobre o quanto o desempenho de Constâncio causava aversão aos bispos nicenos (SILVA, 2003, p. 229). Essa inventiva, produto de uma controvérsia, foi uma peça de propaganda para instruir historiadores da igreja e do ensino clerical. Contra Constantium foi escrito com uma perspectiva messiânica, sendo as atitudes de Constâncio o cumprimento do presságio anunciado por Cristo, segundo a qual haveria no futuro um período de negação dos verdadeiros dogmas em prol das doutrinas difundidas pelos falsos apóstolos, ou seja, os bispos partidários do imperador (SILVA, 2003, p. 230).
Em Contra Constantium há uma construção da imagem de um imperador que, por seu posicionamento ariano, torna-se não apenas uma ameaça à Igreja, mas também personifica a imagem do Anticristo: "Este é o momento de falar, pois já passou o tempo para ficar em silêncio. Nós esperamos a vinda de Cristo, uma vez que o Anticristo ganhou. [...]" (Contra Constantium, 1). Posteriormente, o bispo retorna a essa equiparação de Constâncio ao Anticristo e também o chama de Anjo de Satã disfarçado de um anjo de luz, que reina sobre a terra pela ausência do Salvador: "O tempo do Anticristo, disfarçado como um anjo de luz, chegou. O verdadeiro Cristo é escondido de quase todas as mentes e corações. O Anticristo está obscurecendo a verdade e fazendo valer a mentira" [...] (Contra Constantium, 1). Os argumentos de caráter profético de Hilário possuem uma forte relação com trechos bíblicos (SILVA, 2002, p. 231), dentre eles a segunda epístola aos Tessalonicenses (2, 1-5) escrita por Paulo, que anunciava que a chegada do Anticristo – que tentaria se passar por Deus – representaria o fim dos tempos:
Não vos deixeis enganar de modo algum por pessoa alguma; porque deve vir primeiro a apostasia, e aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, o adversário, que se levanta contra tudo que se chama Deus, ou recebe um culto, chegando a sentar-se pessoalmente no templo de Deus, e querendo passar por Deus.
Outras referências a textos bíblicos aparecem no decorrer da inventiva, dentre elas a comparação de Constâncio a um "lobo em pele de cordeiro", metáfora encontrada no livro de Mateus (5, 15-16). Sobre ela, Hilário afirma: "O Senhor me ensinou uma outra palavra [...] quando Ele disse: 'Cuidado com os falsos profetas, que vêm até vós vestidos com pele de cordeiro, mas, por dentro, são lobos devoradores que, pelos seus frutos, os conhecereis, porque encontramos no coração o que se encontra na face'" (Contra Constantium, 10).
Para que a imagem de Constâncio fosse marcada como um inimigo da fé, Hilário o compara a antigos perseguidores do cristianismo, retirados de narrativas bíblicas e da história romana. Usando a linguagem do martírio e referindo-se a ele como "o mais cruel imperador" (Contra Constantium, 8) e o culpado de crueldades similares às de Nero, Décio e Maximiano, Hilário estava abrangendo novos personagens e contextos, de modo a encaixar Constâncio dentro de narrações pré-existentes da história cristã. O bispo afirma que a perseguição de Constâncio é mais cruel do que a tortura e violência dos imperadores de outrora, pois ele agiu ardilosamente no interior da Igreja, como um imperador assumidamente cristão (Contra Constantium, 5).
Hilário finaliza a inventiva comparando a imagem de Constâncio à de seu pai, Constantino. Para o bispo, as atitudes de Constâncio contra os bispos partidários do credo niceno eram uma desonra à memória de seu pai (Contra Constantium, 27):
Ouça o significado sagrado de suas palavras, ouça a constituição imutável da Igreja, ouça a fé professada por seu pai, [...] ouça a consciência do povo que condena a heresia, e entenda que você é o inimigo da religião de Deus, o inimigo da memória dos santos e um rebelde contra a ortodoxia do seu pai.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diferente dos conflitos entre bispos e imperadores pagãos, os cristãos ortodoxos pela primeira vez tiveram que posicionar-se contra um imperador que era de fato cristão e estava entrelaçado nas complexidades das disputas teológicas. Isso resultou em uma nova retórica de oposição que esperava transformar a imagem de um imperador (FLOWER, 2013, p. 16). Hilário de Poitiers buscava se adequar a um sistema de poder a partir do uso da retórica. Assim como ele, os autores das inventivas não faziam parte de uma literatura outsider que lutava contra as estruturas do poder imperial e tampouco eram representantes de uma Igreja autônoma que tentava se defender contra a intervenção do Estado (FLOWER, 2013, p. 87). Entre uma multiplicidade de distintas virtudes, exemplos e métodos que podem ser rearranjados para promover uma diferente versão do governante ideal para atender e satisfazer o bispo de Poitiers, este almejava assentar a ortodoxia piedosa como o atributo definidor da legitimidade de um imperador e retratando a política religiosa como o aspecto mais importante do seu reinado (FLOWER, 2013, p. 125).
Em Contra Constantium, Hilário de Poitiers estava construindo uma representação. Retornaremos ao conceito proposto por Roger Chartier: as representações não são discursos imparciais, e produzem práticas e efeitos com o intuito de impor uma autoridade. Ora, é certo que essas representações se colocam no campo da concorrência e da luta. Nessa luta, tenta-se impor ao outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social (CHARTIER, 1987, p. 17). Hilário, ao construir a imagem de Constâncio II como um imperador ímpio, estava definindo a identidade de um imperador pelo ponto de vista de seus oponentes. Essa definição das identidades é um processo que sempre depende da maneira pela qual um determinado grupo compreende, configura e representa o seu mundo.
É necessário, portanto, compreender a inventiva de Hilário como um posicionamento político, e não apenas teológico. Visto que o secular e o religioso não eram interpretados como separados, atacar o posicionamento doutrinário de um imperador era uma ofensa política, e Hilário estava ciente disso. Em um contexto de instabilidade de sucessões do poder imperial – já que não era possível saber se o sucessor de Constâncio II seria de fato ariano – Hilário posicionou-se de modo a relacionar o posicionamento ariano de Constâncio à sua incapacidade de gerir o império.

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