Poema é isto?

September 7, 2017 | Autor: Danilo Augusto | Categoria: Gilles Deleuze, Immanuel Kant, Estética, Poesía, Poesia, Teoría poética, Lugunes, Teoría poética, Lugunes
Share Embed


Descrição do Produto

poema é isto ?

Quando criança, eu acreditava existirem certas conjunções de palavras que fariam as pessoas agirem como eu quisesse, se apaixonarem ou esquecerem quem eram, ou mesmo, desencadearia processos vitais nelas, como o sono e a morte. Eu acreditava em feitiços e encantamentos, mas algo me dizia que, talvez, cada pessoa requeresse uma combinação diferente de palavras desconhecidas, algo impossível de ser acessado ou descoberto. Poderiam ser palavras esquecidas de uma época arcaica ou palavras inexistentes a não ser no âmago íntimo da natureza e do espírito. Encadeações de fonemas como voltas nas combinações de um cadeado. Eu tinha consciência de jamais poder ter o uso delas, mas não abandonava uma esperança vaga de ver algo acontecer à minha frente por uma dessas coincidências absurdas do universo, que me fizesse pronunciar, sem querer, alguma dessas sentenças misteriosas. Eu acreditava na natureza das coisas e na sua correspondência direta com a linguagem, como eu acreditava que o meu próprio nome era algo semelhante a uma força física e real, ocupando um lugar na mecânica dos objetos e energias computáveis. Quando criança, meu nome nunca foi, para mim, uma referência ao meu corpo e intelecto. Ele não “significava” o meu Eu, mas o continha, inteiro, como se o carregasse no ar. Eu estava trilhando, desavisado, o velho caminho do embate grego sobre convenção e naturalismo da linguagem. Sem saber, eu irmanava meu intelecto junto ao de Hesíodo que começava o seu canto com uma invocação. Eu não conseguia resolver o fato de as palavras serem a exata substância do meu pensamento racional. Depois fui, gradualmente, sendo convencido da faculdade representativa da linguagem, do erro e da incerteza epistemológica da razão humana. Não só a arte mostrou-se, para mim, mimética, mas toda a escritura foi esvaziada e desmaterializada, cada palavra se transformou no vácuo de uma ou de um aglomerado de setas ocas, como os raios de uma estrela que se expandiam para regiões hipotéticas de um universo escuro e em expansão. A condição de andar em uma corda bamba sobre as incertezas do mundo natural era condizente com miDAN I LO AUGUSTO

33

nhas experiências no cotidiano, e com o resultado de minhas próprias dúvidas e indagações. Porém, sempre houve - e há - algo de irreconciliável no meu intelecto (em particular) por ter aceitado (algo) da função representativa e hipotática das palavras. Esta incompatibilidade é a daquele sujeito que, uma vez moderno e racional, se dá a ler e escrever poemas. O hábito de leitura e escrita de poemas me fez criar todo um artefato cognitivo contra a negação da função, há um só tempo, eidética e concreta das palavras. Negar a materialidade da linguagem poética era equalizar poema e texto, abdicar da imagem como coisa pesada e real, colocar o poema como algo redutível aos -simples, leves e supostamente mais eficientes- conceitos racionais. A necessária e simplória pergunta “por que escrever poemas?” desencadeava as mais várias respostas arbitrárias; no meu próprio intelecto tal pergunta não conseguia ser encarada sem altas especulações. Especulações que se mostravam verdadeiros desvios, algo fruto do receio, uma tentativa de resguardar aquela arraigada noção da “inescapabilidade da forma poética”. De um lado, a certeza defendida de que “um poema só pode ser um poema”, do outro, a constatação que a aparente matéria do poema é a mesma que a da prosa ou a do texto científico. Considerar que a poesia é apenas consequência de um elevado grau de “metaforização da linguagem” me parecia obtuso e enganador. Em minha experiência, poesia nunca foi indicação de grau metafórico, nunca foi mais metáfora do que a própria língua. Havia o problema de pensar por palavras, usar as palavras para representar as coisas do mundo e fazer poemas. Por que no poema a palavra se diferia ou deveria se diferir? Qual seria relação dos poemas com as palavras, e destas com o mundo? Como justificar que meu intelecto sempre dividiu poesia e filosofia como dois picos incongruentes do pensamento humano? Acontece que, ao olhar para essas questões, fui empurrado de volta para as intuições da minha infância. O poema é uma imagem ou um conjunto de imagens verbais 34

ZUMBI

que acontece e se retoma somente no tempo. A ligação entre poesia e tempo parece clara e óbvia, mas ela se difere do aspecto linear da linguagem como exposto pelos linguistas estruturalistas. O poema não é intratemporal porque é linguagem e a linguagem deve se ordenar linearmente no tempo, mas porque é imagem. A imagem que decorre no tempo tem existência material porque ela jamais poderá ser abstraída e retomada por um conceito, mas somente pelo próprio poema que precisará decorrer de um primeiro ponto a um segundo ponto, de um ponto A para um ponto B. O que se quer dizer é que um poema se realiza em sua recitação, seja ela mental ou vocal. A antiga relação entre música e poesia não é gratuita, embora suas razões estejam um tanto ofuscadas. No poema, a importância do tempo é explicitada pelos seus marcadores de ritmo e rima (o verso talvez seja o mais importante dentre eles). Porém, se confunde a função dos marcadores pelo o que eles são em um poema impresso. Não é o verso ou a estrofe que define o que poema é, eles são uma indicação do (e da importância do) tempo para a construção daquela imagem poética. Verso é interrupção natural, é cadencia da própria fala humana. Somente reduzida à relação entre imagem e tempo que a linguagem poderá se estender, forçadamente, por um parágrafo (como este). Talvez, parte desta confusão se deva ao fato de, hoje, nossa experiência do poema seja dada extremamente mais pela sua leitura do que por o ouvirmos ou recitarmos. Para nós, é muito fácil perceber que a partitura não é a música, mas esta noção parece se embotar quando temos na mão um livro de poemas. Se temos uma partitura na mão, não será possível pensarmos aquela música reduzindo-a sem concretizá-la em nosso pensamento, sem cantá-la. Será preciso decorrer de um ponto A para um ponto B, estejamos tocando-a em nossas cabeças, cantarolando-a ou dando play em um aparelho eletrônico. Ela precisa acontecer dentro do tempo. A partitura é somente uma referência a uma música ausente e, para isto, usa marcadores temporais. Musica ausente que, porém, pode presentificar-se em um momento na alma e/ou consciência de um sujeito que a lê. Esta relação da música com o tempo é praticamente idêntica à do poema. Como a música, o poema só poderá existir DAN I LO AUGUSTO

35

em um continuo devir. Para ele se manter como poema, precisará continuar no tempo, complementando-se, até ser quebrado ou abandonado pela pausa final. Por isso, o poema é o avesso radical do conceito filosófico. O conceito, como nos avisava Deleuze, possui uma “velocidade infinita”, ele se dá fora do tempo. Um conceito não é vivenciável, ele é imaterial e puramente referencial. O conceito não é, sequer, a sensação do pensamento, como Kant uma vez diferenciou. O pensamento filosófico quer desvencilhar-se da sua própria matéria para chegar ao conceito que é, verdadeiramente, extralinguístico. No conceito, as palavras não referenciam nem coisas nem si mesmas, mas um entendimento que nunca é realizável no tempo, por isso ele é infinitamente veloz. Porém, só os conceitos matemáticos podem alcançar sua meta final, que é a de serem puros de cargas poéticas. Por exemplo, o conceito de multiplicação. O conceito de multiplicação já é em si aquilo que Platão chamaria de Ideia. Ele não está em lugar algum, nem nunca poderá ser concretizado no tempo. Se você escreve 2x2 em um caderno e depois escreve =4, em nenhum momento a multiplicação se realizou. Apenas há, ali, unidades e uma relação que as ligam, uma relação imutável, não abalada pela operação matemática. O processo mental de conta dentro do seu intelecto também não é a multiplicação, o conceito de multiplicação é algo puramente e instantaneamente inteligível em seu acontecimento, nada se perde em seu nome, porque ele nada carrega ou referencia no mundo. O conceito e a imagem são dois usos opostos da faculdade referencial da linguagem. Conceitos são palavras vazias que apontam para fora de si mesmas, para um possível conhecimento puro e eidético. Imagens são palavras concretas e irredutíveis que apontam para si mesmas, preenchendo-se. gem.

A referencialidade da imagem poética não é a da lingua-

36

ZUMBI

Como a analogia com a música nos serve para analisar a relação entre tempo e poema - a sua indicação sintática -, talvez a analogia com a pintura nos sirva para tratar da referencialidade e do aspecto mimético do poema – a sua indicação semântica. Essa relação, entre poema e música, e poema e pintura sempre retorna com novas formulações, o que talvez aponte para alguma verdade ou intuição. As palavras são, no poema, como a cor em uma pintura. Não a forma, o desenho ou a linha, mas a cor. A cor deixa de ser, em um quadro, matéria puramente intelectual, aparência sensível, para ser também a referência a todas as cores. O azul pintado não é mais a tradução de um fenômeno natural em forma sensível, mas uma referência, a si mesmo, ao azul. Pintar por exemplo, uma maçã de azul, não só nos remete a todo o azul experimentado e às nossas formulações mais intimas do que ele desencadeia ou significa, mas também a todas as outras cores e às suas relações com as coisas, como ao vermelho, em um exemplo óbvio. Em outras palavras, a cor se coisifica. O vermelho em uma maçã natural é uma indicação intelectual de algo natural, mas invisível, uma tradução, porém o azul (ou o vermelho) em uma maçã pintada é uma indicação do azul (ou do vermelho). Assim são as palavras em um poema. Não pensamos a natureza como uma gigantíssima palheta pintada, sabemos ou intuímos a cor no quadro (enquanto cor) mais facilmente que uma palavra no poema, pois estas se confundem com a própria matéria do nosso pensamento. A distância do pensamento poético pode nos fazer borrar a margem do poema com o nosso intelecto, como um quando sem imagem ou traço que se derramasse para fora de si, camuflando-se na realidade natural. A palavra deve surgir, no poema, com uma complexidade original que é mais que a soma do sujeito e da referencia. Por isso, as palavras em um poema não são as palavras da linguagem e vice e versa. Como as cores naturais não são as cores de um quadro Se se diz “cadeira”, isto pode ser a uma referência a algo apreendido pelos nossos sentidos; à cadeira de madeira na sala, por exemplo. Porém, se o poema diz “cadeira”, ele não referencia nada no mundo, mas é a própria palavra que se autorreferencia. A palavra, no poema, DAN I LO AUGUSTO

37

é preenchida por suas referências até referenciar a si mesma como algo existente, como o azul em um quadro deixou de ser aparência sensível para ser exatamente o que ele significa. Isto está para além da tautologia explicitada em “cadeira significa cadeira”, por que, se a primeira pertence ao poema e a segunda não, as duas são coisas diversas. A palavra é pincelada no verso, na prosa retórica ela é contabilizada. Na prosa a palavra abdica de toda a sua materialidade em detrimento de uma referência que, pelo menos, tende a ser única, clara e irrevogável. Quando a prosa se recusa a isso ela certamente se encontra muito perto de ganhar o epíteto de poética. Acontece que a natureza da referencialidade da palavra no poema se iguala àquela da cor no quadro, elas são a mesma das coisas no mundo. Cor e palavras são argamassas, como uma pedra para uma estátua, como uma argamassa para um tijolo. A meta final do poema é de referenciar a realidade como uma pedra referencia a realidade. Se um existe no espaço, o outro existe no tempo. Os dois precisam estender-se para existir, eles não são puramente inteligíveis, eles são coisas. O poema é um Isto. É um isto que se sucede no tempo com palavras que são como sons em uma música ou cores em um quadro. Ele estende-se ininterrupto até sua pausa final. O tempo é matéria constituinte do próprio poema, ele junta-se à argamassa das palavras, ele lhe dá a substância. Fora o tempo, o poema é apenas sentença, é apenas uma seta oca, que só pode significar algo fora de si. Entre duas palavras o poema existe puro de erro e livre de ruído, como a música se mostra no silêncio entre duas notas - está é a musica que sempre retornará. Em sua pausa, música e poema provam que transformaram o tempo em sua própria matéria, que se coisificaram, que são algo material e concreto. O tempo continua a fluir na pausa de uma música ou entre palavras de um poema como uma pedra é pedra enquanto é estátua, como o espaço ocupado ainda é espaço. Apesar de usar a exata substância de nosso pensamento racional, as palavras, o poema não pode ser abarcado pelo pensamento, 38

ZUMBI

e jamais pelo conceito. Ele só pode existir sendo presentificado. Igualmente à música. Ele não é reduzível ao inteligível porque uma imagem que decorre no tempo não pode caber dentro da cabeça como uma pedra não pode caber dentro de uma cabeça. Em sua presentificação o poema pode ser experimentado. A anotação musical e a anotação do poema (a linguagem referencial) é um meio de retomar esta experimentação, que jamais poderá ser guardada ou reduzida. Por exemplo, nos versos do poeta argentino, Leopoldo Lugunes, em seu Luna Crepuscular: El jardín, com sus íntimos retiros Dará a tu alado ensueño fácil jaula Conceitos como “afetividade” ou formulações como “o ser humano costuma se isolar e autossabotar” não podem reduzir e muito dificilmente conseguem sequer tocar esta imagem. Ela não significa um conceito ou uma interpretação. Para significá-la você deverá repetí-la: El jardín, com sus íntimos retiros Dará a tu alado ensueño fácil jaula Você nunca a apreende inteira, mas somente como devir, quando a presentificar. Porém, o “pensar por imagens” requer um mecanismo diverso do “pensar por conceitos”. Ele troca razão por memória, lógica por imagem. Contudo só há uma avaliação puramente lógica, como já apontava Kant, que é a das grandezas matemáticas. O poema é uma tentativa de ser pura imagem. É tentativa de destruir a logicidade sintática da língua pelo privilegio do tempo; isso se evidencia em seus resultados mais aparentes, como nos poemas concretos. O poema concreto, em sua máxima aspiração, é a de conseguir uma imagem estática, é a de terminar de igualar poema e pintura. No entanto, só se chega, em grande parte das vezes , a uma abertura na ordenação destas imagens, se faculta ao sujeito aquela ordenação no tempo. “Se manter aberto” é, na verdade, não mais do que oferecer DAN I LO AUGUSTO

39

variações de ordenações. Poemas que alcançam uma nova complexidade através da faculdade desta ordenação (ou seja, algo que não pode mais ser pensado na ordenação temporal, mas somente como imagem pictórica) estão extremamente próximos de já não serem poemas. Quanto mais eles evidenciam a simultaneidade desta ordenação, mais se adentram no campo da pintura (tanto que somente poderá ser pensado através da marca impressa, não mais através da memória ou recitação mental). Talvez obras como “l(a” de Cummings ou “eis os amantes” de Augusto de Campos, já pudessem ser chamados por outro nome para além de poema, ou mesmo poema concreto. Uma nova arte. Ainda nova (e de vanguarda), pois ainda não realmente desvendada. Mas o poema não abandonará a sua relação com a música, ele precisa desenrolar-se. Em algum momento, a ordenação no tempo terá que se realizar em um poema, como você jamais poderá voltar a pensar os versos de Lugunes sem fazer exatamente isto. El jardín, com sus íntimos retiros Dará a tu alado ensueño fácil jaula

40

ZUMBI

sobre mim Sou um poeta que nasceu no Brasil. Também sou um professor e um pai. Minha filha nasceu há três anos e, desde então, tenho alguma dificuldade para escrever de forma sincera e sem hesitação. Não considero a mim mesmo um artista. Penso que a arte é um dos discursos mais poderosos, dominantes e violentos do nosso tempo Mas eu publiquei três livros de poemas. “Sonhos e outros sonos”, na minha primeira adolescência, “Poemas” e “Canto para a morte de Mandela”. Fico muito contente quando alguém pode lêlos. Penso que escrevo para ser lido. Talvez somente isto na escrita nos traga felicidade.

Títulos Coisa Edições 001 - Um copo de cerveja congelada aqueceu um coração Jeison Placinsch - Poemas

002 - Aonde foi parar aquele sor riso? Jeison Placinsch - Crônicas

003 - Alguns dos quadrinhos mais sujos da face da Ter ra Cristiano Onofre - Quadrinhos

004 - O homem bílis

Leonardo Mingotti - Contos

005 - Homenagem aos 30 anos do SUB Vários autores - Especial

006 - Lugar cativo cativeiro Cristiano Onofre - Poemas

007 - Desconexões Neurais : Antologia ao delírio Giselle de Andrade Bayan - Poemas

008 - Outra vez o gosto amargo Jeison Placinsch - Poemas

009 - Acho engraçado mas não a ponto de rir Roberta Fofonka - Histórias

010 - Primeira

Jeison Placinsch / Roberta Fofonka - Memórias

011 - Cinza

Jeison Placinsch / dpsmkr / Lucia Marques - Crônicas / CD / Fotografias

012 - Olho nu

Roberta Fofonka - Ilustrações

013 - Como os velhos cães

Sidney Summers - Contos

014 - Zumbi

Danilo Augusto - Poemas

015 - Reboco Caído: Reflexos e reflexões Fabio da Silva Barbosa - Poemas

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.