Poema significa imagem - se, se, se, onde

July 14, 2017 | Autor: Renato Roque | Categoria: Poesia, Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão
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Poema significa imagem se, se, se, onde Há que se encontrar pela primeira vez uma frase para poder ser poeta nela. Manuel de Barros, Gramática expositiva do chão

1. Este pequeno texto pretende ser uma reflexão pessoal, à moda de “relatório de leitura”, acerca de dois pequenos poemas de dois autores de referência da poesia portuguesa do século XX, Fiama Hasse Pais Brandão e Herberto Helder, e a partir dessa reflexão posicionar dois pequenos textos (poemas?) escritos por nós a partir deles. 2. Após a leitura do poema “Grafia 1” de Fiama Hasse Pais Brandão e do poema “Sei às vezes que o corpo é uma severa” de Herberto Helder criou-se em nós um fluxo de palavras e de ideias que resultaram nos dois novos textos em anexo. Há com certeza nesse “jogo jogado”, a partir dos poemas originais, uma componente lúdica, como se tratasse de uma espécie de puzzle desafiador, para o qual nos foi necessário encontrar solução, encaixando as palavras umas nas outras, para obter o objecto que procurávamos. Mas sendo um jogo, com uma componente de prazer e de desafio inerentes, a escrita também pretendia ser um exercício de seriedade e não gostaria de ser interpretada como jocosa ou menos respeitadora dos textos originais. Até porque as obras mais importantes para nós sempre foram afinal aquelas que nos provocam reacção, mesmo se à partida nos parecessem menos inspiradoras. Obras desafiadoras, que nos sacodem, versus obras deslumbrantes, que nos obrigam a abrir a boca e os olhos e a sentar. Obras desafiadoras que nos obrigam a levantar, partir e a descobrir a paisagem. As obras, ao mesmo tempo, desafiadores e deslumbrantes são raras. Comecemos por olhar para os dois textos que resultaram do nosso exercício. As soluções adoptadas em cada um para escrever a partir do poema inicial, se têm pontos em comum, são diferentes. No primeiro caso, o novo texto adopta uma estrutura idêntica à do poema original, mas não glosa qualquer verso. No segundo texto há um conjunto de versos glosados, quer no início do poema, quer antes do fim do mesmo. 3. Vejamos o primeiro texto que nos serviu de inspiração. O poema “Grafia 1” de Fiama Hasse Pais Brandão é considerado por muitos como paradigmático da poesia de um grupo e de um tempo: a chamada Poesia 61. Se o projecto dos poetas de 61 pudesse ser resumido em um único verso, seria ele, decerto „Água significa ave‟, abertura de „Grafia 1‟, de Fiama. (MAFFEI, 2007: 310)

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Por ser este poema uma verdadeira arte poética, desperta-me ainda o desejo de chamá-lo grafiama 1. (SILVEIRA, 2006: 52)

E este poema inserir-se-á numa obra fundamental de reflexão sobre os limites imagéticos da poesia. A obra de Fiama dá-nos uma das mais elaboradas meditações sobre a relação entre poesia e imagem de toda a história da poesia portuguesa (MARTELO, 2012: 23)

É uma poesia caracterizada por uma corporalidade dos textos e das palavras, capaz de ampliar todas as dimensões da linguagem, para a reinventar. Caracterizada pelo recurso à imagem que convoca a visão e a audição. Gastão Cruz resumiu esta característica imagética da poesia do grupo, a que se chamou Poesia 61, escrevendo: “era de imagens que nós achávamos que a poesia vivia” (CRUZ, 2008: 294). A poesia seria a arte de converter os nomes em imagens, a arte de converter uma coisa noutra coisa, deslexicalizando os nomes, despindo-os do seu uso comum. A poesia desenvolveria assim um mecanismo de deslocação semântica, que aprofundasse a visão como imagem mental, ligando a imagem e o imaginário. A linguagem como uma forma de ver outra coisa. “ Le langage fait comme si nous pouvions voir la chose de tous les côtés… Non pas une manière de dire, mas une manière transcendante de voir.” (BLANCHOT, 1969: 40). Ou como sintetiza Rosa Maria Martelo, recorrendo a Antoine Janvier, “Janvier conclui que falar não seria, então, ver, mas fazer com que se veja (faire voir)” (MARTELO, 2012: 20) … a imagem surge nos poetas dos anos 60 como uma figura retórica, associada à metáfora, e como um entendimento da escrita que convoca a visão e a audição a um nível que nada tem a ver com a écfrase ou com a exploração do reconhecimento do mundo habitual por parte do leitor. Trabalhar na fronteira do sentido (significância), usando aquilo que é o fundo de visão que existe no texto, é sempre um acontecimento libertário (a partilhar com o leitor). […] a exploração da iconicidade do poema, bem como do fundo de visão presente no texto, frequentemente através de processos metafóricos que procuram evidenciar a plasticidade imagética desse mesmo fundo de visão, parecem ser dominantes. (MARTELO, 2012: 21)

A imagem na poesia de 60 nasce numa rede tecida de muitas heranças, desde o visionarismo romântico, passando pela concreção imagética simbolista e modernista, até ao imaginário radical dos surrealistas. O poema “Grafia 1” é antes de mais uma reflexão poética sobre a capacidade da linguagem, enquanto força transformadora, a linguagem como uma forma “perversa” de visão, “la

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perversion commence alors. La parole ne se présente plus comme une parole, mais comme une vue affranchie des limitations de la vue” .” (BLANCHOT, 1969: 40). O poema “Grafia 1” é constituído por treze versos curtos de formato livre, de comprimento variável, sem rimas. É um exercício auto-reflexivo sobre a poesia, sobre a escrita e sobre a palavra. Metapoesia ou metaescrita, poderíamos dizer, tão na tradição da poesia dos anos 60. Será possível encontrar uma ligação entre essa dimensão meta-reflexiva, tão característica da poesia dos anos 60, e a crise de representação associada ao modernismo, conduzindo a uma poética de rompimento da visão e da audição nas imagens. A visão e audição (como imagens, na escrita) estariam directamente ligadas à crise modernista da representação e implicariam a dimensão meta-reflexiva desenvolvida pelos Modernismos e enfatizada pelas poéticas de 60. (MARTELO, 2012: 20)

É um poema onde o “eu” poético não é explicitado; é afinal um poema sobre as palavras e sobre a sua capacidade de transformação. A poesia como uma espécie de pedra filosofal. “Água significa ave”. Uma imagem avassaladora? A poesia estava quase numa única imagem avassaladora, que coincidia quase com uma única palavra. Tão avassaladoras que eram totais, uma a uma […] "Uma palavra em equilíbrio, com o seu referente imagéticoverbal. Quase sempre equilíbrio de sons: assonâncias, ecos, ritmos sincopados mínimos, repetidos. E a obsessão visual, um êxtase, mais do que uma metodologia estilística. Sim, da estrutura gramatical emergiam seres verbais quase biologicamente iniciais e vivos ('de cada vez um óvulo'): 'água' era um substantivo: um ente de substância verbal e imagética. Era pois uma poética do substantivo e, pela soma das presenças desses entes e suas significações ('água significa ave'), a poética de um léxico, no sentido próprio."” (BRANDÃO, 2001: 109).

Materiais avassaladores, as palavras, palavras em equilíbrio, que permitem criar imagens, criar uma nova linguagem, um novo mundo. Uma poética de um léxico, como escreve Fiama, a propósito deste poema e da sua poesia. Uma poesia feita de imagens avassaladoras que levaria Fiama Hasse Pais Brandão a criar a expressão “opensamen-/tovisual” para falar da sua poesia, ou a escrever num poema do seu livro Área Branca: “Penso a minha vida/ no âmago das imagens/ Nas esferas dos jacarandás / que borbotam de flores e folhas” (BRANDÃO, 2010: 74). “Água significa ave” pode ser lido como a poesia pode fazer com que “água” signifique “ave”. “Água significa ave” tal como “Terra significa ave” ou “Fogo significa ave” ou ainda “Ar significa ave”. Ou se quisermos, como “Água significa todas as coisas” e até “Água significa água”. Mas haverá condições: “ses” e “ondes”.

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…uma imagem geraria sempre um desfilar de imagens, uma tensão entre actual e virtual, processo que necessariamente induz uma leitura activa por parte do leitor. É o que Fiama chama imagem “profusa”. (MARTELO, 2012:23)

“A minha visão confiante é a alucinação” (HELDER, 2006: 22), escreverá Herberto Helder, (indo mais longe?), em Photomaton & Vox, expressando a sua confiança numa visão, que não é a visão ocular, mas uma visão que a linguagem poética nos mostra. A visão poética “restabelece a unidade na multiplicidade”, “cria uma nova realidade”, apenas real (visual e audível) no mundo da linguagem, a “alucinação” de que fala Herberto Helder. A imagem poética moderna restabelece a unidade na multiplicidade, recupera a riqueza da percepção original nas suas várias significações, estabelece a identidade dos contrários, cria uma nova realidade conservando, no entanto, cada termo concreto e independente. O princípio de contradição? Esse precioso instrumento será uma regra absoluta? A linguagem poética dispensa-o por inútil a este novo nível em que o imaginário e o real se identificam. (ROSA, 1986, p. 22)

Como afirma Jean -Luc Nancy, e esta poesia parece demonstrá-lo, o texto poético é sempre uma impotência perante a potência de imaginar que convoca: Existe no texto uma potência indefinida de imaginar diante da qual texto não é senão impotência , uma exposição permanente das imagens. (apud MARTELO 2012: 46)

Mas os versos seguintes do poema “Grafia 1” sugerem que essa transformação da água em ave, se é possível (desejável?) através da poesia, a transformação é difícil. Ela é feita com sílabas e com palavras. Mas “a sílaba é uma pedra álgida /sobre o equilíbrio dos olhos”, ou seja a sílaba é fria como uma pedra que oferece resistencia à passagem da água, e os olhos têm de garantir o equilíbrio (precário?); as palavras para despirem objectos “são densas de sangue”; e o tamanho da ave é um rio demorado, ou seja, a água tem de fluir durante muito tempo sobre as pedras álgidas para termos a ave. O poema é trabalho oficinal, precisa de tempo, o que nos remete para Carlos de Oliveira. Só assim “as mãos derrubam arestas /a palavra principia”. São as mãos que escrevem os versos, porque são as mãos o símbolo do trabalho. Mas elas têm de derrubar as arestas , que o léxico e a semântica da língua impõem. Só assim se escreve o poema e a água significa ave. O poema “Grafia 1” faz parte de um livro chamado Morfismos, o que nos remete para um exercício sobre formas. E grafia, título deste poema e de mais alguns que integram o livro, é afinal a concretização da forma através da escrita. Esta ideia de forma identifica-se com um poema que reflecte sobre o objecto poesia, sobre a sua forma e sobre os elementos que constituem essa forma, as palavras e as sílabas. Poderemos inclusive descobrir um significado no desenho gráfico do poema, o que sublinharia o título do poema e do livro? 4

Ao traçar as continuidades das linhas, a “grafia” as divide em quantidades descontínuas de significações. Grafados assim, insólitos e exatos, “se” e “onde” impulsionam a verticalidade metafórica (o voo) a “ascensão por água”, quer dizer, de “água significa ave”. (SILVEIRA 2006: 54)

Nesse caso, teríamos aqui uma ponte - muitas se podem identificar em muitos poetas deste tempo - entre a imagem, tal como ela é entendida na poesia dos poetas dos anos 60, onde se inclui certamente Fiama, e a chamada poesia-experimental ou a poesia-concreta, que também se desenvolve na década de 60, onde a imagem remete para o concreto, para o grafismo, para o desenho e a para materialidade do objecto poético.1 “Grafia 1” é afinal um poema sobre a liberdade poética, sobre a capacidade de a poesia romper com o mundo, através de um rompimento da linguagem, e de assim criar um novo mundo, ou, se preferirmos, uma nova língua. A voz poética como um talento demiúrgico. Os últimos versos são: “as mãos derrubam arestas / a palavra principia”, ou seja a escrita poética cria novas palavras, “a palavra principia”, ou potencia novos territórios semânticos e até afectivos, que são desbravados para as novas palavras. A poesia como instrumento libertário, capaz de construir um novo edifício linguístico a partir dos sons, das palavras e das imagens. Trabalhar na fronteira do sentido (significância), usando aquilo que é o fundo de visão que existe no texto, é sem pre um acontecimento libertário (a partilhar com o leitor) […] um espaço de resistência ao hábito, à ordem, ao senso-comum, o que pode envolver dimensões políticas (MARTELO, 2012:21)

“Dir-se-ia que a língua é tomada por um delírio, que a faz precisamente sair dos seus próprios sulcos2”, afirma Deleuze, em Crítica e Clínica, para depois sublinhar o processo de levar a linguagem a um limite. (...) a um exterior ou a um avesso consistindo em Visões e em Audições que já não fazem parte de nenhuma língua. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras ideias que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem. (...) Elas não estão no exterior da linguagem, elas são o seu exterior. O escritor enquanto vidente e ouvinte, objectivo da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias. (DELEUZE, 2000:16)

Estaríamos, segundo Deleuze, na poesia, no lado de fora da linguagem, mas num fora que não lhe é exterior, no qual visão e audição estão livres da dominância da visão ocular e da audição ocidentais. 1

“Como ler poesia concreta”: - “Se é a primeira vez que a vê, não tente lê-la como poesia, melhor, nem

sequer tente lê-la de todo: olhe simplesmente para ela. Examine os espaços entre as letras, as variações tipográficas, os espaços à volta das palavras. Considere-a como uma imagem. Depois veja que ideias surgem dessa imagem associadas com as letras e as palavras que há nela”. (HATHERLY, 1981:146) 2

O verbo liro, liras, lirare, liraui, liratum, significa lavrar, arar; portanto (de)lirar significa literalmente

sair do sulco do arado. 5

Mas o jogo, mesmo se se constrói sobre a instabilidade do mundo e do sentido, resiste, impõe um sentido, constrói um novo mundo (isto é, uma visão do mundo; e o mundo não é senão a visão que dele se faz). Por isso, a linguagem em jogo reinventa as regras do uso da própria linguagem; mais ainda, inventa um prazer do texto. […] O que começa por ser um jogo de linguagem, imagens, rasuras, palavras – deve tornar-se combate, política, ethos, prazer; mas esse prazer é gerado pela gramática reinventada, é, em primeiro lugar, um prazer criado pela escrita/leitura. A poesia, fora do mundo, regressa ao mundo e acrescenta-se visceralmente a ele. (EIRAS, 2013:194,195)

Um jogo, que nos leva para o lado de fora da linguagem, mas onde se impõe um sentido, um novo mundo. 3. Mas se a poesia é uma ferramenta de manipulação libertária da linguagem, há quem manipule palavras para as desfigurar, para as ocupar. E esse é o foco do nosso primeiro texto, “Palavra 2.0”, que foi escrito, tendo como hipotexto o poema “Grafia 1” de Fiama. “Água” já não significa “ave” mas mercadoria a privatizar; não importa a dor sob os nossos olhos, não importa o sangue, não importam os corpos exangues. Por causa dessa manipulação castradora “A palavra palavra não significa palavra”, ou seja, a palavra dada, símbolo de honra e de seriedade, deixa de ser dada, para ser trocada por moedas. Se pensarmos na espécie de Novilíngua inventada nos últimos anos, percebemos como as palavras podem ser violentadas, espremidas, até perderem todo o sentido. Para Fiama “o tamanho deste vento é um triângulo na água / o tamanho da ave é um rio demorado”, para estes novos transformadores de palavras “o tamanho deste tempo é sempre / o tamanho da palavra é nada”; vivemos numa sociedade onde a utopia não existe3 e que, por isso, transforma o nosso tempo num tempo que dura sempre, sem uma utopia no horizonte, e onde a palavra não vale nada. 4. Vejamos agora o segundo texto que nos serviu de inspiração. O poema “Sei às vezes que o corpo é uma severa” de Herberto Helder é constituído por quinze versos, relativamente curtos e, tal como acontecia no poema de Fiama, de formato livre, de comprimento variável e sem rimas. É também, tal como acontecera com o poema de Fiama, um exercício auto-reflexivo, onde o poeta escreve sobre a poesia, sobre o acto de escrever, mas neste caso o objecto da reflexão não são as palavras, a sua capacidade demiúrgica de transformação e de criação de uma linguagem nova, não é a língua4, mas antes o próprio poeta como poeta, ou seja, Herberto Helder, como corpo de escrita. Ele escreve; “Eu sei5”, e o “eu” que escreve é o tal “protoplasma primitivo”, 3

“Utopia faz mal à economia”, afirmou um destes dias Paulo Portas

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Noutros poemas Herberto Helder falará, tal como no poema de Fiama, dessa capacidade mágica da

poesia para criar uma nova língua, “mas quem não queria criar uma língua dentro da própria língua? / eu sim queria (HELDER, 2008: 168) 5

O poema começa pela construção: “Sei às vezes que o corpo é uma severa massa oca”. Curiosamente

“Sei que” é uma expressão que se repete na poesia de Herberto Helder. Alguns exemplos que nos 6

“electricidade do universo”, “força”, como se a escrita fosse algo de independente da vontade, ou do trabalho oficinal do autor. Aqui parece opor-se a Fiama, onde, ”, como vimos, os versos sugerem trabalho oficinal para a “palavra principiar. Em Herberto Helder temos um corpo poético, como “um canal calcinado” por onde sai “um ruído rítmico”, “um verbo sibilante”. … vai transformar o seu corpo na terra em que essa língua é plantada.(JÚDICE, 2010:149)

E é esse som que começa tudo, porque a poesia é som, som “completamente vivo”, como nos habituou a poesia e a voz de Herberto Helder. Nesse corpo-canal, que produz versos6, como se tivéssemos uma poesia-líquida, que circula numa rede tubular que desagua na boca, parece-nos que poderemos estar em presença de algo que nos aproxima da poética de Sophia, naquele seu acto de ouvir os versos na natureza, “num esforço para ouvir o poema todo”, como mera receptora-transmissora da voz do mundo; “o poema aparece, emerge e é escutado”, e a poetisa tem apenas “de deixar o poema dizer-se”. Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido, ora mais confuso), é a minha maneira de escrever. (ANDRESEN, 1992: 166) Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si. (ANDRESEN, 1992:349)

Aliás, Sophia é, com toda a certeza, uma das referências de Herberto Helder; foi Herberto quem escreveu: “Quando ela pôde escrever que "os poemas eram (...) o nome deste mundo dito por ele próprio7", chegou ao termo, ficou completa, e escutou-se então, e eu escutei já noutro sítio, noutro inferno qualquer, a voz clara”, e ainda: “[em Sophia ] O poema existe por si, é uma forma impessoal que as mãos limpas arrancam à desordem para apresentar como ordem objectiva no meio das corrupções”, "A voz sobe os últimos degraus / Oiço a palavra alada impessoal / Que reconheço por não ser já minha” (HELDER, 2001).

passaram à frente dos olhos: “sei que cercastes o pensamento com mesa e harpa”, ”sei que há este intento: o da relação, segundo uma forma básica”, “eu sei que ele não sente”. A poesia de Herberto Helder parece ser uma poesia de quem afirma, de quem tem uma voz que sabe. 6

Podemos encontrar em Al Berto alguma influência do poema de HH? Al Berto escreveria em “Poalha de

água”, que faz parte da sua antologia Medo: “mas se ao morrer o abrissem ao meio /nada encontrariam /nem vísceras nem ossos nem sangue /apenas poalha de água /e a dor da infindável travessia”. (AL BERTO, 2009, 573) 7

“… nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao

universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.” (ANDRESEN, 1992:349) 7

Herberto Helder escreveria também, no mesmo texto, acerca do seu tempo em Coimbra: " Os poemas verdadeiros encontravam-me”. Temos assim o poeta como um flâneur da poesia, uma espécie de fotógrafo, que se passeia à espera que a poesia aconteça, a dos outros e a sua. E se entendermos, como muito do que Herberto Helder escreveu nos sugere, que Herberto Helder é a sua obra poética, o poeta como produto da obra e não como autor da obra, como ele tão bem concretizou no seu título “Herberto Helder / Ou o Poema Contínuo”8 , Lido a seguir ao nome de autor, como normalmente acontece no rosto de um livro, este último título, iniciado pela disjuntiva inclusiva “Ou”, sugere uma total identificação entre e o nome da obra e o nome de autor fazendo “Herberto Helder ” um sinónimo de “o poema contínuo “e estabelecendo, entre ambos, um vínculo e uma permutabilidade incontornáveis. (MARTELO, 2012:45)

seria então como se o corpo do poeta, “uma severa massa oca, com dois orifícios nos extremos”, se autocriasse através da voz do próprio poeta, “uma fremente desarrumação do ar”. Como inúmeras vezes é afirmado nos poemas, as imagens, o som, o ritmo dos versos supõem uma voz e um corpo, mas os textos pretendem funcionar como “carnagem sonora” (2009:355), como uma

dobra

reflexiva do mundo apenas possível em função do processo de des-subjectivação resultante da escrita. (MARTELO, 2012:45)

Um corpo que, através do poema, soprado através da voz, mais do que se expressar, ou até de se reproduzir, se faz, se cria, uma espécie de sistema realimentado de criação de poeta-poema, um moto continuo poético. Um moto contínuo poético ou um poema contínuo, como se o poeta procurasse de cada vez reescrever o poema, ou contribuir para um só poema9 (a vida do poeta?10), o que também explica que o livro com esse título não contivesse toda a sua poesia anterior. Este livro [Ou o Poema Contínuo] é e não é uma antologia, desde logo, porque se escolhe poemas, também constrói um poema contínuo. (GUSMÃO, 2009: 130)

Curiosamente, Rosa Maria Martelo afirma acerca da obra de Herberto Helder, relacionando a sua poesia com o corpo: “A imagem de um corpo condutor de uma energia despolarizada, que

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É curioso verificar como um título Poesia Toda evolui para Ou o Poema Contínuo, como se um só

poema tomasse o lugar da poesia toda na obra de Herberto Helder. 9

Tal poderá explicar por que razão 9Herberto Helder por vezes se tenha apresentado como um poeta de

folhetos, como se cada livro de pequenos fascículos da obra a construir se tratasse. 10

Esta ideia em Herberto Helder de a poesia se confundir com o poeta parece de alguma forma

aproximar-se dos ideais surrealistas. 8

atravessa a poesia herbertiana “, como se de facto se referisse ao poema de que neste pequeno relatório falamos, como se este poema pudesse ser um manifesto poético. E se o processo libertário de procura de uma nova língua pode não parecer evidente no poema que escolhemos, ele também é característico da poesia Herberto Helder, tal como acontecia com Fiama. Uma nova língua entre imagem, som e sintaxe. … processo libertário (vox) ao qual Herberto Helder chama criar um estilo ou um idioma, e que é a manifestação de uma língua singular, única. Esse idioma surge entre imagem, som e sintaxe, em permanente tensão com a gramática da língua comum, em particular com a sua distribuição semântica convencional, que os poemas a todo o tempo deslocam. (MARTELO, 2012:45)

Segundo Rosa Maria Martelo, a poesia de Herberto Helder convoca “um fundo de imagem para colmatar a insuficiência (impotência?) da língua “, de que fala Jean-Luc Nancy, ou seja nete ponto parece aproximar-se de Fiama. O poema acontece “Quando não há palavra que se siga e apenas uma imagem / mostre em cima/ os trabalhos e os dias submarinos”(HELDER, 2009:433) . Se a palavra não serve, a imagem pode salvar-nos, permitindo emergir “os trabalhos e os dias submarinos”. Imagens que se encadeiam, em vertigem, “Enxames de imagens”, como se lhes refere Herberto Helder. Como se de uma poesia-cinema se tratasse. E então o poema significa imagem. 4. Passemos agora ao texto que escrevemos a partir do poema de Herberto Helder. O texto glosa um conjunto de versos do poema original, no início e antes da parte final, para falar não do corpo criador de poesia de um poeta, o tal “corpo-canal”, onde flui um “verbo sibilante”, mas do corpo da maioria dos homens, condicionado por instintos primitivos, pela fome, pelo medo; o mesmo “protoplasma primitivo”, mas que cria “um silêncio surdo, uma cega obediência, o verbo dócil”. Um corpo que não é moto contínuo poético, mas que é espelho, e apenas reflecte o mundo que outros colocam perante si, um corpo que, sendo canal, apenas devolve a imagem, que parece viva, com que é alimentado. 5. Conclusões Os dois poemas analisados, um de Fiama Hasse Pais Brandão, outro de Herberto Helder inserem-se de maneiras diferentes numa poética auto-reflexiva, característica das décadas pós60, onde a poesia, a escrita, a imagem, a palavra, a sílaba são os objectos de reflexão. Mas enquanto Fiama parece ser fiel a uma poética de tempo demorado, baseada em trabalho oficinal, que lhe permita limar as sílabas e derrubar as arestas das palavras, para transformar água em

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ave, Herberto Helder parece reflectir uma poética quase-romântica, em que o poeta-mago é um corpo-canal, onde a poesia-som flui e tudo começa, “completamente vivo”. Parece existir nos dois poemas uma certa euforia, uma fé ilimitada (?) na capacidade libertária da poesia, capaz de criar outro mundo, através da expansão das fronteiras da linguagem. “As mãos derrubam arestas” e “a palavra principia”, outra palavra, uma palavra que não existia, ou pela boca do poeta sai “uma fremente desarrumação do ar, o verbo sibilante” e “começa tudo”. Os dois textos que escrevemos, pelo contrário, revelam a disforia perante um mundo que nos asfixia, que nos oprime, onde a palavra deixa de ser palavra, onde a palavra deixa de ser dada para ser trocada, onde as palavras, em vez de livres e capazes de voar, são enterradas na areia do deserto de cabeça para baixo, e assim impedidas de abrir os olhos e de criar imagens. O corpocanal angustiado, de onde, em vez de verbo sibilante, sai medo e silêncio, espelho desse mundo que nos cala. Será a poesia capaz de contribuir para romper este cerco que nos impõem?

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BIBLIOGRAFIA:

1.

ANDRESEN, Sophia Mello Breyner, Obra Poética, Círculo de Leitores,1992

2.

BLANCHOT, Maurice, L’Entretien infini, Gallimard, 1969

3.

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais, A minha poética nos anos 60 (memorando talvez para os

4.

BRANDÃO, Fiama Hasse Pais, Âmago – Antologia, Assírio e Alvim, 2010,

críticos), Revista Relâmpago n. 8, 2001, pp. 109-112 https://pt.scribd.com/doc/194522739/Fiama-Antologia-AMAGO 5.

CUNHA, Caio Laranjeira, FIAMA: ESTE AMOR LITORAL, UFRJ, 2011

6.

CRUZ, Gastão, A Vida da Poesia – Textos críticos reunidos, Assírio & Alvim, 2008.

7.

DELEUZE, Giles, Crítica e Clínica, Trad. de Pedro Eloy Duarte, Edições Século XXI, 2000

8.

EIRAS, Pedro, DA NOVIDADE DE POESIA 61, HOJE: RECENSÃO A JORGE ERNANDES DA SILVEIRA E LUIS MAFFEI (ORGS) POESIA 61 HOJE, Revista Abril, Vol. 5, n° 10, 2013

9.

GUERREIRO, Ana Lúcia et al, Dia Crítica 23.3, U. Minho, 2009

10. GUSMÃO, Manuel, Herberto Helder: o poema contínuo na primeira década do 2.º milénio, Diacrítica, Revista do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (dir. de Ana Gabriela Macedo, Carlos Mendes de Sousa e Vítor Moura), n.º 23, Maio de 2009, pp. 129-144. 11. HATHERLY, Ana. Po-ex – Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, Moraes Editores, 1981 12. HELDER, Herberto, Paradiso um pouco, Revista Relâmpago nº 9, 2001 13. HELDER, Herberto, Poesia Toda, Assírio & Alvim, 1996 14. HELDER, Herberto, Ofício Cantante, Assírio & Alvim, 2009 15. HELDER, Herberto, Photomaton & Vox, Assírio & Alvim, 2006 16. HELDER, Herberto, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008 17. JÚDICE, Nuno, As fronteiras do poético na poesia de Herberto Helder, Diacrítica, Revista do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho (dir. de Ana Gabriela Macedo, Carlos Mendes de Sousa e Vítor Moura), n.º 23, Maio de 2009, pp. 145-149 18. MAFFEI, Luis, Concerto Fiama, Associazione per l’interscambio culturale Italia-Brasil Anita e Giuseppe Garibaldi, n. 59/60, 2007 19. MARTELO, Rosa Maria, De Imagem em Imagem, revista Abril, Vol. 5, n° 9, Novembro de 2012 20. MARTELO, Rosa Maria, HERBERTO HELDER, O NOME DA OBRA, FBAUL, 2012 21. ROSA, António Ramos. Poesia, Liberdade Livre, Ulmeiro, 1986. 22. SILVEIRA, Jorge Fernandes, Portugal – Maio de Poesia 61, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986

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ANEXO 1

Grafia 1

Palavra 2.0

Água significa ave

A palavra palavra não significa palavra

se

se

a sílaba é uma pedra álgida

dor é uma sílaba álgida

sobre o equilíbrio dos olhos

sob o equilíbrio dos olhos

se

se

as palavras são densas de sangue

as mãos são densas de sangue

e despem objectos

e despem corpos exangues

se

se

o tamanho deste vento é um triângulo na água

o tamanho deste tempo é sempre

o tamanho da ave é um rio demorado

o tamanho da palavra é nada

onde

onde

as mãos derrubam arestas

as palavras derrubam palavras

a palavra principia

a palavra acaba PS: palavra por palavra dada moeda por palavra trocada resta a moeda, não resta mais nada

Fiama Hasse Pais Brandão, Morfismos, 1961, Antologia Âmago, pag 7

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ANEXO 2

Sei às vezes que o corpo é uma severa massa oca, com dois orifícios nos extremos: a boca, e aos pés a dança com a coroa de labaredas – a cratera de uma estrela. E que me atravessa um protoplasma primitivo, uma electricidade do universo, uma força. E por esse canal calcinado sai um ruído rítmico, uma fremente desarrumação do ar, o verbo sibilante, vento: o som onde começa tudo – o som. Completamente vivo.

“Sei às vezes que o corpo é uma severa massa oca, com dois orifícios nos extremos:”* a boca, e acima dos pés a pança com a coroa de apetites - a cratera de um vulcão. “E o que nos atravessa um protoplasma primitivo, uma electricidade do universo, uma força. E por esse canal calcinado sai”* um silêncio surdo, uma cega obediência, o verbo dócil, espelho: a imagem onde reflecte tudo – a imagem. Parece viva.

Herberto Helder, Poesia Toda, 1996, pag 422

*Versos de Herberto Helder

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