Poética do encontro

July 23, 2017 | Autor: Clayton Guimarães | Categoria: Azorean Literature, Literatura Portuguesa, Poesia
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Uma Poética do Encontro Clayton Santos Guimarães Universidade de Coimbra

O encontro aqui parece ser a palavra-síntese de hoje. É sob sua sombra que estamos todos aqui: foi sua ação misteriosa sobre o acaso que um dia me fez chegar a Casa dos Açores do Norte, lugar de amigos, pelos quais nutro um imenso carinho – quase como minha casa – e aos quais agradeço o convite de estar partilhando esse dia. E também o encontro foi a razão primeira de tudo isso – aquele que impulsionou o despertar de duas pessoas, de suas mãos e corações, para dar origem a esse pequeno mimo: Entre sei lá e o quê, de Marta Oliveira e manuel Tomás. É sempre bom ler poesia sincera, aquela que dispensa toda a superficialidade que a crítica especializada passou a cobrar dos poetas e dedica-se ao grau zero da experiência da vida: andar ao redor com olhar despreocupado, a sentir e a absorver tudo, deixando o entendimento para o encontro das palavras no papel. Sempre gostei de pensar a poesia desta maneira, blocos de montar do menino Deus, a forma mais simples de dotar o homem da capacidade de desligar-se do mundo e brincar com Ele às econdidas nos arredores da alma... de rir e chorar ao mesmo tempo, celebrando a graça de estar vivo. Existe uma passagem do romance do alemão Michael Ende, A História Interminável, que produz uma das mais contundentes imagens do que poderia definir esse fazer poético – a terra dos antigos imperadores. Ao alcançarem o cume de suas vidas negando a realidade por um mundo de fantasia, eles ali chegaram, sem passado, sem futuro, sem desejos. Por isso, cotidianamente, estavam fadados a

jogar grandes dados com letras em suas faces, sem nunca parar: haviam se esquecido do essencial e agora, buscavam que o encontro aleatório das letras um dia lhes dessem palavras, porventura frases – ligados pela paixão de um dia tocar a essência do mundo: a poesia do real. Os poemas de Marta Oliveira e Manuel Tomas parecem compartilhar dessa mesma busca pela poesia: Não é por acaso o subtítulo “Notas de uma correspondência com termos e tempos incertos”. Se ele nos direciona ao ponto de partida da empreitada poética, a troca de correspondências, ele abre-se sobre aquilo que liga os dois autores, esse sentimento não-verbal que se disfarça de amizade e que permite às palavras se ligarem e religarem da forma como melhor expressar aquilo que há alguns séculos os químicos chamavam de afinidades electivas. ...porque é do cinzento que tudo brota

...Entre o moinho deixava a palheta à solta,

as pedras saltaram no meio

ao escorregar pelo tempo,

a maça e a bandeira ficaram alegres e

moía o sal que salga o sargaço e a vida

do sargaço

num espaço inundado de ar.

à beira-vinha regurgitado

enquanto o moinho deixava a palheta à solta

II, p.8

Sei lá, p.7

A dança que as palavras desenvolvem nos poemas revelam o princípio velado do Universo – o movimento, o diálogo constante de todas as coisas da natureza. Mesmo a tentativa de fixar palavras no papel não consegue segurá-las: Deixa-te de tintas e de tonturas que a vida está a preto e branco a tinta preta tem muita cor... e a luz branca também. Beijinhos a preto e branco. Sei lá, p.7

Palavras nasceram para voar – são nossas asas. Há uma simplicidade ingênua na forma como eles a captam para despertar a vida em suas cores, luzes e imagens eternas. Porém nessa eternidade repousa

a outra polaridade dessas poesias – o passar do tempo, tempo incerto. O tempo é o mapa das cicatrizes do corpo. Não há nada mais corpóreo que o tempo. Sua materialidade solidifica a história da humanidade, de suas alegrias e temores, na constituição de todo o homem. O peso dessa experiência pode ser sentido em alguns poemas, como: Sobranceiro ao mar paro e escuto o carro há uma música de outrora vou de regresso aos regressos de outras viagens de viagens de viagens ao baile de carnaval onde já então procurava e não achava e havia muito tempo e era tanto e ficava tão longe perdido para lá do tempo. Agora, sopra o vento e a água salta do carro balançando o mar. Onde param os outros que sendo nos uniam e juntos havia o que já não há para onde foram as vidas da amizade e dos amigos a alegria? XXXIV, p.41

Assim, gravitamos nesse diálogo de forças – ingenuidade e experiência, simplicidade e cicatriz – que se alastra para todos os lados até alcançar a própria estrutura do livro: a divisão de capítulos, EXISTIR e DESISTIR, e nos poemas que iniciam e encerram o volume, Sei lá e O quê. O que há entre os dois é a propria vida.

E o que ganhamos com sua leitura: não deveríamos esperar ganhar nada com poesia – ela, em si, é tesouro. Mas não posso deixar de pensar que o frescor dessas páginas garantem uma experiência valiosa: nessa visão aguda, mas delicada de tudo do viver acedemos a uma forma alternativa de encarar nossos fantasmas do cotidiano, quase como se tudo fosse fragmento de algo maior: uma “economia” do absoluto, sem termo e sem tempo. Economia esta muito diferente daquela que nos habituamos a crer e sobre a qual o último poema do livro nos fala: Hoje só há uma notícia mil vezes repetida mas sempre igual hoje é tumba tudo cimeira e ciumeira de economês platão não teve razão: ele queria expulsar os poetas da cidade os poetas continuam a fazer falta porque a poesia continua apesar de tantos e tantas ao longo dos tempos escuros e claros a poesia ainda existe e existirá sempre. fora!pum!fora!pum!fora! com os economistas sem economistas o mundo ficava mais barato, não os tinha a eles e eles de nada servem um país sem economistas gere melhor a sua economia vem nas estatísticas dos próprios economistas porque eles nada sabem de matemática nem de filosofia e... nunca tiveram no do velho merceeiro... o caderno de assentar o quê... O quê, p.90

Casa dos Açores do Norte, 5 de abril de 2014

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