Poética e História

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POÉTICA E HISTÓRIA1

Por Gérard Genette Tradução e notas: Franco Baptista Sandanello2

Censura-se com freqüência a suposta indiferença ou desdém da chamada crítica nova (“temática” ou “formalista”) pela história, ou ainda, sua suposta ideologia anti-historicista.3 Essa censura não tem sentido quando ela mesma é formulada em prol de uma ideologia historicista cujas implicações são muito exatamente situadas por Lévi-Strauss, que faz “reconhecer com que a história seja um método ao qual não corresponde um objeto distinto, e, por conseguinte, faz recusar a equivalência entre a noção de história e aquela de humanidade, que se pretende nos impor pelo propósito inconfessado de fazer da historicidade o último refúgio de um humanismo transcendental”.4 Em compensação, faz-se necessário tomá-la a sério quando formulada por um historiador a partir da evidência de que a história é uma disciplina que se aplica a toda espécie de objeto, inclusive à literatura. Eu me lembro de haver respondido aqui mesmo há três anos a Jacques Roger que, ao menos no que diz respeito à crítica dita “formalista”, essa aparente negação da história não era nada mais que um parêntese provisório, uma suspensão metódica, e que esse tipo de crítica (que se chamaria sem dúvida mais acertadamente teoria das formas literárias – ou, mais brevemente, poética) me parecia fadada, talvez mais que qualquer outra, a deparar-se algum dia em seu percurso com a história. Gostaria de tentar dizer agora brevemente porque, e como.

Apesar da importância teórica da segunda parte do livro Figures III, intitulada Discours du récit, para o campo da narrativa literária, os ensaios que constam de sua primeira parte foram deixados como que à deriva pela crítica, e em função daquela importância mesma. Além da conhecida tradução portuguesa “Discurso da Narrativa” de Fernando Cabral Martins, há apenas uma tradução de “Metonímia em Proust” de autoria de Carmen Cruz Lina e Walter Carlos Costa publicada há 26 anos na revista Fragmentos, de Santa Catarina. Os ensaios “Critique et histoire”, “Poétique et histoire” e “La rhétorique restreinte” ainda estão por traduzir e, mediante esse hiato, pouco se pode entrever do (verdadeiro) diálogo que há entre as partes de Figures III. A tradução desse ensaio, que se deverá seguir da tradução dos demais, busca corrigir essa lacuna. [n.t.] 2 Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras – UNESP (Campus Araraquara). E-mail: [email protected] 3 Comunicação de Cerisy-la-Salle sobre “o ensino da literatura” em julho de 1969. Texto corrigido. 4 La pensée sauvage, Plon, 1962. p. 347. [Tradução brasileira: LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 2007] 1

Primeiramente, é necessário distinguir entre diversas disciplinas, existentes ou hipotéticas, que se confundem muitas vezes sob o nome comum de história literária ou de história da literatura. Deixemos de lado a “história da literatura”, tal qual é posta em prática nos manuais de ensino secundário: trata-se aí de seqüências de monografias dispostas em ordem cronológica. Que essas monografias sejam boas ou más não importa para nós, pois é evidente que a melhor série de monografias não constitui uma história. Lanson, que, como todos sabem, escreveu uma quando jovem, disse mais tarde que já havia outros exemplos em demasia, de que ninguém mais tinha necessidade. Nem por isso, como todos também sabem, a fonte secou: é óbvio que essas monografias respondem, bem ou mal, a uma função didática específica, e não pequena, conquanto não seja essencialmente de ordem histórica. Segunda espécie a distinguir, justamente aquela pela qual Lanson ansiava e que propunha com justeza chamar não de história da literatura, mas história literária: “Poderíamos escrever, dizia ele, ao lado dessa “História da literatura francesa”, isto é, da produção literária, de que nós temos muitos exemplos, uma “História literária da França” que nos falta e que é talvez impossível de praticar hoje: entendo por isso o quadro da vida literária da nação, a história da cultura, da atividade da multidão obscura que lia, tanto quanto dos indivíduos ilustres que escreviam”. 5 Tratase aqui, como vemos, de uma história das circunstâncias, das condições e das repercussões sociais do fato literário. Essa “história literária” é na verdade um setor da história social, e, enquanto tal, sua justificação é evidente; seu único defeito, embora grave, é de não ter conseguido fundamentar suas bases desde que Lanson delineou seu programa; o que hoje chamamos história literária persiste, com algumas exceções, na crônica individual, na biografia dos autores, de sua família, de seus amigos e conhecidos, em suma, no nível de uma história anedótica, circunstancial, ultrapassada e repudiada pela história geral depois de mais de trinta anos. Ao mesmo tempo, o propósito da história social foi, o mais das vezes, abandonado: lá onde Lanson pensou a história literária de uma nação, pensa-se agora história literária simplesmente, o que dá ao adjetivo um tom e uma função completamente diferentes. Lembremos que em 1941 Lucien Febvre devia ainda lamentar que o programa de Lanson jamais fosse comprido: em um artigo intitulado, não sem razão, “De Lanson a Moret: uma renúncia?”. Eis algumas frases que convém lembrar aqui, dado que elas definem com mais precisão que as de Lanson o que deveria ser a história “literária” anunciada pelo último: “Uma história histórica da literatura quer dizer a história de uma literatura em dada época, em suas relações com a vida social dessa época [...]. Para escrevê-la, seria preciso reconstituir o meio, interrogar quem escrevia, e para quem; quem lia, e por que; seria preciso saber qual sucesso obtinham, e qual era a extensão e profundidade de seu sucesso; seria preciso fazer dialogar as mudanças de hábito, de gosto, de escrita e de preocupação dos escritores com as vicissitudes da política, com as transformações da mentalidade religiosa, com as evoluções da vida social, com as mudanças de moda artística e de gosto etc.” 6 Programme d’études sur l’histoire provinciale de la vie littéraire en France, fevereiro de 1903; in Essais de méthode, de critique et d’histoire littéraire reunidos e apresentados por Henri Peyre, Hachette, 1965, p. 81-87. 6 “Littérature et vie sociale. De Lanson à Daniel Mornet: un renoncement?” Annales d’histoire sociale, III, 1941; in Combats pour l’histoire, p. 263-268. [Tradução portuguesa: FEBVRE, Lucien 5

Mas é também preciso lembrar que em 1960, em um artigo intitulado “História ou literatura”,7 Roland Barthes reclamava ainda a execução desse programa de Lucien Febvre, isto é, do programa de Lanson: depois de mais de meio século, a confusão não havia sido dissipada. E ela está hoje, aproximadamente, no mesmo patamar, e essa é a primeira crítica que se pode endereçar à história “literária”. Há uma outra, sobre a qual nós voltaremos logo mais. A terceira espécie a distinguir não é mais a história das circunstâncias, individuais ou sociais, da produção e do “consumo” literários, mas o estudo das obras por elas próprias, das obras consideradas como documentos históricos, refletindo ou exprimindo a ideologia e a sensibilidade características de uma época. Isso evidentemente faz parte do que se chama história das idéias ou das sensibilidades. Por razões que seria necessário determinar,8 essa história é mais bem sucedida que a precedente, com a qual não se pode confundir: para ficar apenas entre os franceses, lembremos apenas os trabalhos de Hazard, de Bremond, de Monglond, ou mais recentemente, os de Paul Bénichou sobre o classicismo. Também nessa categoria pode-se incluir, com seus postulados específicos bem conhecidos, a variante marxista da história das idéias, agora representada na França por Lucien Goldmann, e talvez hoje pelo que se começa a designar pelo termo de sociocrítica. Esse tipo de história, que tem ao menos o mérito de existir, parece-me, no entanto, levantar certo número de objeções, ou talvez, melhor, provocar certa insatisfação. Primeiramente, há as dificuldades de interpretação no sentido dos textos literários, dificuldades que dizem respeito à natureza mesma desses textos. Nesse plano, a noção clássica de “reflexo” não é satisfatória: há, no suposto reflexo literário, fenômenos de refração e distorção muito difíceis de dominar. Por exemplo, pergunta-se se a literatura apresentava uma imagem direta ou indireta do pensamento de determinada época: essa é uma questão muito embaraçosa, cujos termos não são muito claros. Há dificuldades que tocam à tópica dos gêneros, há fenômenos de inércia próprios da tradição literária etc., que não se percebem sempre e que se confundem geralmente em prol desse princípio cômodo e muitas vezes preguiçoso: “não é por acaso que na mesma época...”: seguido por uma analogia questionável qualquer (quem sabe batizada de homologia pelo efeito de não se sabe qual pudor), como todas as analogias, e de que não se pode definir se contribui mais para a solução ou para o problema, dado que tudo se passa como se a idéia de “não é por acaso” dispensasse pesquisar seriamente o que é, ou, em outras palavras, definir com precisão a relação cuja existência basta afirmar. O rigor científico provavelmente recomendaria ficar à margem dessa asserção, e pode-se observar que um dos empreendimentos mais positivos desse gênero, o Rabelais de Lucien Febvre, é essencialmente uma demonstração negativa.

Literatura e vida social. De Lanson a Daniel Mornet: uma renúncia? In: ______. Olhares sobre a história. Trad. Fernando Tomaz. Porto: Asa, 1996. p. 29-36] 7 Annales ESC, maio-junho de 1960, reproduzido em Sur Racine, Seuil, 1963, p. 147-167. [Tradução brasileira: BARTHES, Roland. Sobre Racine. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008] 8 Sem dúvida, entre outras, pois essa leitura ideológica dos textos está mais adaptada às “literárias” que o gênero de pesquisa sócio-histórica programado por Lanson e Febvre. É peculiar que um dos raros trabalhos que respondem a esse programa, Livre et Société au XVIII siecle (2 v., Mouton, 1965-1970), foi dirigido por um historiador, F. Furet.

A segunda objeção é que, mesmo que se admitam brevemente esses obstáculos superpostos, esse tipo de história será necessariamente exterior à literatura. E essa exterioridade não é a mesma da história literária de Lanson, que se prende explicitamente às circunstâncias sociais da atividade literária: trata-se aqui de avaliar e atravessar a literatura para logo buscar em seu revés as estruturas mentais que a ultrapassam e hipoteticamente a condicionam. Jacques Roger dizia com clareza: “A história das idéias não tem por objeto primeiro a literatura” 9. Resta, portanto, uma última espécie, que teria por objeto primeiro (e último) a literatura: uma história da literatura considerada em si (e não em suas circunstâncias exteriores) e por si própria (e não como documento histórico): considerada, para retomar os termos propostos por Michel Foucault em Archéologie du savoir,10 não mais como documento, mas como monumento.11 Imediatamente, coloca-se aqui uma questão: qual poderia ser o verdadeiro objeto de tal história? Parece-me que não pode ser ele as próprias obras literárias, posto que uma obra (que se entende pelo conjunto da “produção” de um autor, ou, a fortiori, uma obra isolada, livro ou poema) é um objeto muito singular, muito pontual para ser verdadeiramente objeto de história. A “história de uma obra” pode ser a história de sua gênese, de sua elaboração, ou pode ser também a história do que se chama evolução – de obra em obra – de um “autor” ao longo de sua carreira (por exemplo, o que René Girard descreve como passagem do “estrutural” ao “temático”

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). Esse gênero de

pesquisa pertence claramente ao domínio da história literária biográfica como se pratica atualmente, de que apresenta um dos aspectos críticos mais positivos, mas não advém do tipo de história que procuro definir. Ele pode ser igualmente a história de sua recepção, de seu sucesso ou de seu insucesso, de sua influência, de suas interpretações sucessivas ao longo dos séculos, o que, está claro, pertence inteiramente à história literária social de Lanson e Febvre: porém, vê-se que, ainda aqui, não atingimos a história da literatura tomada em si e por si mesma. Diacronicamente, das obras literárias avaliadas em e por seu texto, e não em sua gênese ou difusão, pouco se pode dizer além de que elas se sucedem umas às outras. Ou a história, ao que me parece, na medida em que ultrapassa o nível da crônica, não é uma ciência de sucessões, mas uma ciência de transformações: a história não pode ter por objeto senão realidades que respondem a uma dupla exigência de permanência e de variação. A obra, enquanto tal, não responde a essa dupla exigência, e eis o porquê ela deve permanecer sem dúvida objeto da crítica. E a crítica – como assinalado por Barthes no texto ao qual fiz alusão há pouco –, não é, e nem pode ser, fundamentalmente histórica, porque ela consiste sempre em uma relação direta de interpretação, ou, prefiro dizer, de imposição de sentido, entre o crítico e a obra, relação essencialmente anacrônica, na acepção forte (e, para o historiador, radical) do termo. Parece-me, então, que na literatura, o objeto histórico, simultaneamente fixo e variável, não é a obra: são os Les chemins actuel de la critique, Plon, 1967, p. 355. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. [n.t.] 11 O autor, de fato, limita-se ao panorama francês. Os termos assinalados, apesar de discutidos por Michel Foucault, não foram por ele inicialmente propostos, e retomam, por exemplo, a teoria anteriormente desenvolvida pelo italiano Benedetto Croce. A respeito do significado desses termos para Croce, conferir a bela introdução de BOSI, Alfredo. “A estética de Benedetto Croce: um pensamento de distinções e mediações”. In: CROCE, Benedetto. Breviário de estética. Aesthetica in nuce. Trad. Rodolfo Ilari Jr. São Paulo: Ática, 2001. p. 9-23. [n.t.] 12 “A propos de Jean-Paul Sartre: Rupture et création littéraire”, ibid., p. 393-411. 9

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elementos transcendentes às obras e constitutivos do jogo literário que sem mais se designará como formas: por exemplo, os códigos retóricos, as técnicas narrativas, as estruturas poéticas etc. Existe uma história das formas literárias como de todas as formas estéticas e como de todas as técnicas, tão somente pelo fato de que com o tempo essas formas se enrijecem e se modificam. Infelizmente, o essencial dessa história está ainda por ser escrito, e me parece que sua construção seria hoje uma das tarefas mais urgentes. É surpreendente que não exista, ao menos no âmbito francês, qualquer coisa como uma história da rima, da metáfora ou da descrição: e isso apenas dentre os “objetos literários” mais comuns e tradicionais. É preciso interrogar as razões dessa lacuna, ou melhor, dessa carência. Elas são múltiplas, e sem dúvida, no passado, a mais determinante foi o preconceito positivista de que a história não se ocupasse senão com os “fatos”, e, por conseguinte, negligenciasse tudo o que lhe parecesse com perigosas “abstrações”. Mas gostaria de insistir um pouco mais em duas outras razões, sem dúvida mais importantes atualmente. A primeira é que os objetos da história das formas não estão ainda suficientemente libertos da “teoria” literária, que está ainda, ao menos na França, engatinhando: a redescobrir e redefinir as categorias formais herdadas de uma tradição muito antiga e pré-científica. O atraso da história reflete aqui o atraso da teoria, porque, em larga escala, e ao contrário de um preconceito freqüente, ao menos nesse domínio a teoria deve preceder a história, dado que é ela quem deve primeiramente libertar seus objetos. Uma segunda razão, talvez um pouco mais grave, é que, na análise das formas, tal como hoje está em curso de se constituir (ou reconstituir), reina ainda um outro preconceito que é aquele – para emprestar os termos de Saussure – da oposição, mesmo da incompatibilidade, entre o estudo sincrônico e o diacrônico, idéia que se pode teorizar apenas por meio de uma sincronia pensada ou praticada enquanto acronia:13 teoriza-se com freqüência as formas literárias como se essas formas fossem seres, não trans-históricos (o que significaria precisamente históricos), mas intemporais. A única exceção notável é aquela, como se sabe, dos formalistas russos, que muito cedo deram autonomia ao que chamavam de evolução literária. É Eichenbaum quem, em um texto de 1927 onde resume a história do movimento, escreve a propósito dessa etapa: “A teoria reivindicava o direito de tornar-se história.”

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Parece-me que há aí um pouco mais que um direito:

uma necessidade que nasce do movimento e das exigências do trabalho teórico. Para ilustrar essa necessidade, citarei simplesmente o exemplo de uma das raras obras “teóricas” publicadas até o momento na França, o livro de Jean Cohen sobre a Structure du langage poétique. Entre outras coisas, Cohen mostra que há na poesia francesa, do século XVII ao XX, um cruzamento concomitante da agramaticalidade do verso (isto é, do fato de que a pausa sintáxica e a pausa métrica não coincidem) e do que ele chama de impertinência da predicação,

O termo “acronia” é discutido em Discours du récit. Basicamente, trata-se de uma complicação das inversões temporais da prolepse (antecipação de ações posteriores àquelas em curso pelo discurso narrativo), como – e esse é um dos exemplos fornecidos – na associação de idéias que faz o narrador de Em busca do tempo perdido a partir do itinerário do comboio “Transatlantique”, ao término de Sodoma e Gomorra. Cf. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Op. cit. p. 77-83. [n.t.] 14 “La théorie de la méthode formelle”, 1925, in Théorie de la littérature, Seuil, 1966, p. 66. [Tradução brasileira: EIKHENBAUM, Boris. A teoria do método formal. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da Literatura - formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 3-38]. 13

isto é, principalmente a distância da escolha dos epítetos para com a norma estabelecida pela prosa “neutra” científica do fim do século XIX. Tendo demonstrado esse cruzamento, Cohen imediatamente interpreta-o não como evolução histórica, mas como “involução”: uma passagem do virtual ao atual, uma realização progressiva, pela linguagem poética, do que desde sempre se pensava ser sua essência oculta. Três séculos de diacronia encontram-se assim às voltas do intemporal: a poesia francesa não seria transformada ao longo desses três séculos, ela teria simplesmente empregado todo esse tempo para tornar-se o que ela já era virtualmente, e, com ela, toda poesia, desde sempre: para se reduzir, através de purificações sucessivas, à sua essência. Ou, se estende um pouco rumo ao passado a curva delineada por Cohen, observa-se, por exemplo, que a “quociente de impertinência” que tem no século XVII em seu ponto zero encontrava-se mais acima na Renascença e mais acima ainda na época barroca, e que, assim, a curva perde sua bela regularidade para descair num traçado um tanto mais complexo, aparentemente caótico, e em pouco imprevisível, que é precisamente aquele da empiricidade15 histórica. Esse é um resumo bastante grosseiro do debate,16 mas que bastará talvez para ilustrar meu propósito, a saber, que a certo ponto da análise formal a passagem à diacronia se impõe, e que a recusa a essa diacronia, ou sua interpretação em termos não históricos, traz prejuízo à própria teoria. Fique claro que, essa história das formas literárias que se poderia chamar por excelência história da literatura, não é senão um programa dentre outros, e que bem poderia acabar aonde chegou o de Lanson. Admitamos, todavia, por hipótese otimista, que ele se realize algum dia, e terminemos com duas observações, de pura antecipação. A primeira é que, uma vez constituída sobre esse terreno, a história da literatura encontrará problemas de método que são atualmente aqueles da história geral, isto é, aqueles de uma história adulta, por exemplo, os problemas de periodização, as diferenças de ritmo conforme os setores ou níveis, o jogo complexo e difícil das variantes e das invariantes, o estabelecimento de correlações; o que significa, necessariamente, um vai-e-vem do diacrônico ao sincrônico, posto que (são ainda os formalistas russos que têm o mérito de destacar essa idéia) a evolução de um elemento do jogo literário consiste na modificação de sua função no sistema de conjunto desse mesmo jogo: aliás, Eikhenbaum, na passagem que precede imediatamente a frase que citei mais acima, escreve que os formalistas encontraram a história quando eles passaram da noção de “procedimento” à de função. Isso, naturalmente, não é da alçada da história da literatura, e significa simplesmente que, ao contrário de uma oposição muito corrente, não há história verdadeira senão a estrutural. Segunda e última observação: somente uma vez constituída, a história da literatura poderá seriamente garantir seu lugar, bem como, com algumas chances de respondê-la, o lugar de suas relações com a história geral, isto é, com o conjunto das outras histórias particulares. Farei Neologismo do autor. [n.t.] Cf. “Langage poétique, poétique du langage”, in Figures II, Seuil, 1969, p. 123-153. [Trata-se de outro ensaio de Gérard Genette infelizmente sem tradução. Há, todavia, tradução de dois outros ensaios da coletânea: GENETTE, Gérard. Verossímil e motivação. In: BARTHES, Roland et al. Literatura e semiologia. Trad. Célia Neves Dourado. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 7-34; GENETTE, Gérard. Fronteiras da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2 ed. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1972.] 15 16

menção unicamente a esse respeito à declaração agora bem conhecida de Jakobson e Tynianov que data de 1928, mas que nada perdeu de sua atualidade: “A história da literatura (ou da arte) está intimamente ligada a outras séries históricas; cada uma dessas séries comporta um feixe complexo de leis estruturais que lhe é próprio. É impossível estabelecer entre a série literária e as outras séries uma correlação rigorosa sem haver previamente estudado suas leis.”

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“Les problèmes des études littéraires et linguistiques”, in Théorie de la littérature, p. 138. [JAKOBSON, R., TYNIANOV, J. Os problemas dos estudos literários e lingüísticos. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). Teoria da literatura - formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. p. 95-97.] 17

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