Polícia e ladrão (Livro: Escritos transdisciplinares - homenagem a Nilo e Vera)

July 16, 2017 | Autor: Clécio Lemos | Categoria: Policia, Criminologia, Criminología Crítica, Politica Criminal
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LEMOS, Clécio. Polícia e ladrão. In: PEDRINHA, Roberta Duboc; FERNANDES, Márcia Adriana. (org.) Escritos Transdisciplinares de Criminologia, Direito e Processo Penal: homenagem aos Mestres Vera Malaguti e Nilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

POLÍCIA E LADRÃO Clécio Lemos1

PARA NILO E VERA

Tive a imensa alegria de ser orientado pelo professor Nilo Batista no mestrado. Suas palavras soavam para mim de uma forma verdadeira e corajosa desde as minhas primeiras leituras. A genialidade que advém de um compromisso real com seu campo de trabalho, juntamente com o incrível conhecimento adquirido após uma longa vida profissional de dedicação constante, fazem de Nilo o grande pai vivo do enfoque crítico nas Ciências Criminais brasileiras. Meu grande inspirador, meu eterno orientador, o artigo que segue tem que ser dedicado a ele.

Igualmente, as poucas linhas que escrevo a seguir são em homenagem à querida professora Vera Malaguti Batista. A paixão com que se dedica aos alunos, a alegria de suas ponderações, o jeito firme com que lida diante das concessões feitas ao sistema punitivo, tudo isso me faz guardar as melhores lembranças. Reconheço em cada parágrafo que escrevo a influência direta de suas aulas. Por isso, nada mais justo que dedicá-los a ela.

INTRODUÇÃO

Eu tinha nove ou dez anos e vivia na minha cidade natal (Colatina/ES), cidade pequena de interior, daquelas em que as crianças ainda costumam brincar nas ruas. Dentre as diversões prediletas da garotada, estava a chamada “polícia e ladrão”.

1

Mestre em Direito pela UERJ. Professor de Direito Penal e Criminologia. Coordenador do IBCCRIM no Estado do Espírito Santo.

Era bem simples, reuníamo-nos à noite no meio da rua de paralelepípedo e decidíamos, bem aleatoriamente, a metade do grupo que seria de policiais e a metade que seria de ladrões. Cada um optava rapidamente de que lado queria estar e logo os ladrões tinham seus dois minutos para a fuga.

Nossa grande animação consistia no seguinte: os policiais tinham que capturar os ladrões e levá-los a um determinado local previamente combinado, então chamado de “cadeia”. Por sua vez, a aventura dos ladrões era fugir e se esconder o máximo possível, podendo eventualmente resgatar os ladrões já presos.

Com papéis bem definidos, divididos em paridade de forças, toda a adrenalina girava em torno do conflito ali existente. As missões eram diametralmente opostas, logo, cada parte dava um jeito de se unir em torno de estratégias (quase sempre previsíveis) para conseguir o objetivo. Incrível como nesses momentos se podia sentir uma união maior até perante aqueles vizinhos com quem não se tinha tanta afinidade.

Claro, o sucesso de um grupo era a derrota do outro. Essa oposição era o que nos animava, o combustível de nossa correria, gás de união e desunião.

Éramos todos do mesmo bairro, tínhamos formações bem parecidas, quase todos estudantes da mesma escola, compartilhávamos predileções similares, até mesmo a nossa condição financeira era bem semelhante. Mas, uma vez deflagrada a brincadeira, formávamos dois grupos rivais plenamente incompatíveis.

Até onde me lembro, a rodada durava cerca de meia hora, terminando na maioria das vezes sem que um grupo se desse por vencido. Ao fim de cada rodada, trocava-se o lado de atuação. Em outras palavras, era a vez dos policiais se tornarem ladrões e os ladrões se tornarem policiais. Engraçado pensar em como tal mudança era facilmente aceita por todos. Mais correria.

Uma coisa é fato, enquanto corríamos descalços pelas ruas, os nossos pais mantinham-se tranquilos nas respectivas casas. Sabiam que estávamos brincando e não era preciso se preocupar conosco durante as horas em que ficávamos tão compenetrados no “combate”.

Filho em casa é sinônimo de trabalho. Enfim, mesmo considerando o carinho típico dos nossos progenitores, inegável que a presença do filho significava indicar o momento de estudar, tomar banho, dormir, quase todas essas etapas acompanhadas de resmungos e gestos indignados.

Exercer o poder sobre os filhos é atividade normal dos pais, sempre ensinando como se deve comportar, como se deve falar, ou, em outras palavras, como se encaixar dentro do padrão de conduta desejada. Sim, isso é condicionar, e se a aceitação não é prontamente acatada, as consequências vêm a cavalo.

Considerando as variações de humor entre os diversos tipos de pais do nosso bairro, certo é que para todos eles a presença do filho em casa representa, ao mesmo tempo, uma alegria e um desgaste. O exercício do poder cansa.

Sem muito exagero, creio seja possível concluir que, naquelas horas que gastávamos brincando de “polícia e ladrão”, nossos pais curtiam uma paz preciosa em casa, até por estarem convictos de nossa localização e nossa atividade. Momentos de bonança paterna.

Claro, nós crianças (quase sempre hiperativas) não estávamos conscientes da paz que nossa brincadeira trazia aos nossos pais. Estávamos muito preocupados em correr e pular atrás dos inimigos, não havia muito tempo para pensar. Pensar também não era bem a nossa predileção.

Hoje, vinte anos mais tarde, eis que descubro que vários adultos também gostam de brincar de “polícia e ladrão”: “Se considerarmos que os criminalizados, os vitimizados e os policizados (ou seja, todos aqueles que sofrem as conseqüências desta suposta guerra) são selecionados nos estratos sociais inferiores, cabe reconhecer que o exercício do poder estimula e reproduz antagonismos entre as pessoas desses estratos mais frágeis, induzidas, a rigor, a uma auto-destruição.” 2

1 – PERCEBENDO O CONFLITO

2

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 58.

Sim. Curioso pensar nessa metáfora, curiosas semelhanças.

A realidade social brasileira se nos apresenta afogada numa violência constante, cujo ensejo sempre vem embotado de dois lados bem distintos: o lado do “bem” (polícia) e o lado do “mal” (ladrão).

Muito pouco se pensa nessa mecânica social. Tanto a polícia quanto o crime acabam sendo representados por atores da mesma classe. Em outras palavras, a criminalização e a policização recrutam seres humanos bem semelhantes. Pinçar os “homens de bem” nas classes subjugadas parece passar ao largo de qualquer análise de Ciência Criminal(izadora), a moldura se apresenta quase como um acaso, como um prenúncio de que ainda há esperanças com relação aos pobres.

Mas qual é a nossa desesperança em ver esse quadro bem decorado. Policiais e criminosos, todos originados de uma mesma gente pobre, por vezes até vizinhos, acabam esquecendo de todo o enredo ao colocarem armas nas mãos. Ambos os lados compostos “pelos pobres tão pretos, ou os pretos de tão pobres” 3, as baixas vão se alternando, é dizer, os soldados e os bandidos vão sendo substituídos por outros de mesma qualidade, em um ciclo vicioso alimentado do mesmo material.

Um correndo atrás do outro, num engenho animado e arriscado, esquecem-se todos de quando optaram por começar a “brincadeira”, aliás, parecem não conseguir ver que tudo é uma grande brincadeira séria. Jogo que prende e mata.

A brincadeira dos adultos também possui suas estratégias, suas cadeias. Amigos e inimigos são escolhidos entre comuns. Mas, as coincidências não param por aí.

3

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 52.

Não é difícil imaginar que tal conflito tem uma função (negativa). Uma funcionalidade que mantém certo status quo, certa estrutura social, postando-se sempre fora do alcance dos vitimizados, dos criminalizados e dos policizados. Corpos tão dóceis. 2 – OS CRIMINALIZADOS

Com o acolhimento da Criminologia da reação social, e a inevitável superação da Criminologia etiológica, é natural conceber que não existem “criminosos”, mas apenas “criminalizados”.

O giro ortográfico não é fruto de mero capricho. Trata-se da aceitação definitiva de que, perante a evidência de que o sistema punitivo se opera de forma estruturalmente seletiva e elitista, os poucos que são afetados pelas garras do poder institucionalizado são os “escolhidos” dentre uma multidão de criminalizáveis. Não seria muito frisar, portanto, que desde a inaugural “expropriação” do conflito no século XIII4, o poder punitivo constituído sempre procedeu de forma política e socialmente direcionada.

Ninguém melhor do que Becker pode explicar o fato de que a criminalização nada mais é do que um rótulo, uma manobra de poder fruto de empreendedores morais: “Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Deste ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um ‘infrator’. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.” 5

Portanto, todo sistema punitivo é seletivo, desde a fixação guiada do que constitui um “delito” até o momento em que as garras do Estado se estreitam sobre um dentre os muitos infratores.

4 5

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008, p. 37. BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 21.

Constatar a seletividade seria o que Salo de Carvalho chama de “primeira ferida narcísica do Direito Penal” 6. O aparato estatal funciona de forma a criminalizar certa parcela, sendo óbvio que sempre o fez guiado por estereótipos e características socioeconômicas. A isonomia legal soa como folclore, um mito de igualdade nunca verificado.

Ora, sendo assim, a majoritária captação dos pobres nesse processo não se dá de forma estrutural, não conjuntural, mas por conta de uma reprodução do tecido social, pesando o martelo das penas sobre um único lado, o lado dos desfavorecidos de recursos. A seleção é quantitativa e, não se pode esquecer, qualitativa.

A impossibilidade física de se alcançar todos os crimes cometidos é evidente em toda estrutura social. Muitas foram as teorias de famosos estudiosos que acreditavam na redução da criminalidade por meio do fim da “impunidade”, isso pode ser lido nas linhas de Beccaria 7, Montesquieu, Carrara e outros tantos.

Mas a tal impunidade jamais pode ser afastada. A cifra oculta é imanente. Um Estado que pretenda alcançar todos os que incorrem na criminalização primária certamente está fadado ao insucesso, sobretudo em tempos de inflação legislativa, como a atual.

A impunidade, portanto, figura mais como um discurso de ocultação da seletividade qualitativa, procurando pregar certa solução que em verdade não corresponde à função do sistema. Nunca correspondeu.

No mesmo passo, quanto mais distante do poder, quanto mais submerso na massa, mais suscetível está o indivíduo a ser o próximo criminalizado. 8 Por trás disso, uma única verdade: a sede punitiva carrega quem não está apto a direcionar o poder.

6

CARAVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 82. A se lembrar a expressão: “Um dos maiores freios aos delitos não é a crueldade das penas, mas sua infalibilidade.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 91. 8 KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996, p. 81. 7

Cabe aqui uma brilhante afirmação de Baratta: “O crime, neste sentido, é comportamento político, e o criminoso torna-se, na realidade, um membro de um ‘grupo minoritário’, sem a base pública suficiente para dominar e controlar o poder de polícia do Estado.” 9

Perante uma comunidade tão desigual, onde tantos carecem do mínimo necessário para subsistir, a ilegalidade pede passagem necessária. Enfim, o conceito de “legalidade” é uma das ferramentas políticas; a principal delas em tempos de “Estado de Direito”.

Confrontando a farta legislação penal e um seio social onde a regra é a infração das normas, resta a alguns agentes optarem por quem vai ser abraçado pela larga estatística punitiva. Apenas uma coisa é certa: tais desafortunados são quase sempre “achados” em meio a um mesmo povo pobre.

Qualquer pessoa que já tenha tido a oportunidade de visitar os cárceres brasileiros sabe bem do que estamos falando. Atrás das grades, há miséria, pele escura e baixa escolaridade, tudo isso invariavelmente.

Mediante processos punitivos os mais variados, a sujeição condiciona todo um grupo, num processo cada vez mais normalizado, feito normal. O Capitalismo precisa da existência de pobres, e este condicionamento se dá em todas as esferas.

O Estado de Direito moderno se funda sobre três pilares com funções fundamentais nesse mecanismo de submissão em massa. As políticas econômica, social e punitiva fornecem os eixos programáticos que, juntos, operam a criação/manutenção da divisão de classes tão interessante aos poderosos. Perceba-se, o setor criminalizante é constitutivo e fundamental para a preservação das próprias incongruências tão típicas do capitalismo.

Por isso, para manter a estrutura social que nos envolve nos dias de hoje, o Estado se agarra ao poder de criminalizar. Não há outra forma de preservar esse status quo. A grande proposta, doravante, é abster do status quo, é ansiar uma nova organização social.

9

BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crítica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 128.

Ainda no ensejo desta rede de estigmatização constituída pela “questão criminal”, a análise empírica aponta que igualmente os selecionados para serem policiais cumprem papel importante na manutenção da estrutura posta. A preservação da (des)organização social nos moldes atuais também depende disso. 3 – OS POLICIZADOS

Desde o surgimento dos Estados Nacionais, a precária organização política se socorria de um corpo responsável pelo uso da força, inicialmente representado pelos exércitos. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, o embrião da instituição policial podia ser bem localizado na Europa Ocidental, cabendo-se destacar especificamente as ordens da França e Inglaterra. 10

Entretanto, quando se fala em policiamento ostensivo, resta evidenciada a concomitância deste tipo de aparato de poder com o Iluminismo, sendo sua atuação principalmente aprofundada com a ascendência política de uma nova classe: a burguesia.

A existência desses aparatos de segurança nas cidades é uma permanência que se mostrou bem adequada ao desejo de preservação dos privilégios burgueses. Os bens de consumo não são para todos, muito menos os meios de produção.

Anitua registra muito bem essa passagem histórica, segue em suas palavras: “As polícias nacionais, tais como funcionam hoje, difundiram-se no século XIX, muito embora tenham sua origem na França, antes e durante o Antigo Regime, com o objetivo de delação e total controle terrorista. A França pósrevolucionária organizou sua polícia em 1798 conforme o modelo centralizado absolutista, com o acréscimo da legalidade típica da dominação burocrática. A Irlanda criou uma polícia nacional em 1823, em Londres foi criada a Polícia Metropolitana em 1829, e em 1844 apareceu a Guarda Civil na Espanha.” 11

10

DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e Segurança (entre pombos e falcões). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 69. 11 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008. P. 212.

A polícia amanhece com alvo certo, pronta a atender uma demanda por controle social e vigilância das cidades, que concentravam cada vez mais súditos. É uma consequência do cercamento dos campos, do êxodo rural, da acumulação primitiva de capitais, da infância industrial, do capitalismo.

Indispensável a contribuição de Nilo Batista e Zaffaroni sobre o ponto histórico: “Quando os comerciantes, industriais e banqueiros se estabeleceram no poder, a concentração urbana dos extremos de riqueza e miséria provocava situações altamente conflituosas. Seu controle demandou a criação de uma nova e poderosa agência: a polícia, encarregada do disciplinamento urbano, que logo desenvolveu um incipiente discurso sobre os desajustados da nova ordem, tachados de classes perigosas.” 12

A grande novidade é o monopólio da violência física legítima nas mãos do Estado (nem sempre tão legal). A violência autorizada ganha fardamento e disciplina, seu objetivo está muito bem definido: quem não tem propriedade deve ser contido.

Também Vera Malaguti Batista contribui de maneira fundamental neste ponto, fazendo-nos entender a polícia como ente central na biopolítica do capital. Levantando muros e concentrando o povo nas cidades, o espaço público se torna terreno perigoso que precisa ser contido: “A prisão e a polícia se instituem, se constituem para o controle punitivo da mão de obra, contra as movimentações, sedições e revoltas populares. A própria ideia de polícia surge como polícia médica, na perspectiva biopolítica de uma governabilidade das populações, que vai engendrar o higienismo. A concentração de pobres na cidade vai ser lida por sua patologização, pelas pretensões corretivas e curativas.” 13

Logo, tanto as milícias armadas dos arrendatários ingleses do sec. XVI, quanto os capitães do mato dos coronéis proprietários brasileiros no sec. XVIII, são antecedentes históricos do que 12

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 281. 13 BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 4142.

seria a polícia institucionalizada em cada país. Contudo, convém notar, a funcionalidade se mantém intacta.

No Brasil, a oficialização de uma polícia ostensiva (militar) nacional surge com o Corpo Militar de Polícia, em 1809. Nosso déspota esclarecido, D. João VI, mal havia transferido a corte portuguesa para terras tupiniquins e já criava seu primeiro batalhão.

Seguindo a orientação europeia, a entidade brasileira foi tradicionalmente criada e executada com métodos desenvolvidos pelo exército para combater guerrilhas, numa lógica de enfrentamento do inimigo. Tal concepção seria reforçada no regime militar e na doutrina de segurança nacional, como indica Cerqueira14.

Com estrutura hierarquizada, verticalizada, talvez a experiência brasileira possa ser destacada como um ícone da policização. O pobre entra na polícia e se vê numa espécie de condicionamento reacionário, aprendendo a pauta de que se deve combater (e eventualmente eliminar) os pobres insubmissos.

Interessa-me aqui notar, pelo momento, que o ingresso na polícia igualmente se insere na ideia de contenção das massas subalternas, seja porque ali estão devidamente fichados e controlados pelos seus superiores, seja porque os novos policiais perdem sua identificação com a classe sofrida. Ao incidir um rígido código de conduta, fardamento e larga previsão de punições 15, o etiquetamento policial extrai do pobre, na maior parte do dia, aquele sentimento de outsider. Ao mesmo tempo em que se forma nele uma subjetividade que nada tem a ver com as angústias das classes baixas, treina-o para ser “cão de guarda” do mesmo sistema que subjuga seus vizinhos.

Então o salário modesto e a baixa exigência na formação prévia conduzem boa parte dessas pessoas de baixa condição financeira ao trabalho na corporação policial. O que parece uma

14

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Políticas de segurança pública para um estado de direito democrático chamado Brasil. In: Discursos Sediosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996, p. 193-205. 15 A se lembrar o Código Penal Militar, no alto de seus 410 artigos.

livre opção aos olhos inocentes, mostra-se como mais um processo de seletividade perante a visão macrossociológica: “Embora convenha descartar uma vez mais qualquer tentativa de explicação conspiratória, há poucas dúvidas acerca de que também a policização é um processo de assimilação institucional violador dos direitos humanos e tão seletivo quanto a criminalização e a vitimização, que recai preferentemente sobre homens jovens das camadas pobres da população, vulneráveis a tal seletividade na razão direta dos índices de desemprego.” 16

O mecanismo não é apenas controlar os pobres, mas fazer com que eles mesmos se controlem. Técnica de dominação. Nesses termos, ser polícia ou ser ladrão não faz muita diferença. 4 – A BONANÇA CAPITALISTA

Retomando a metáfora inicial, ficou destacado que enquanto nós crianças brincávamos na rua, nossos pais relaxavam calmos em casa.

Agora, visualizando o conflito real permeado pela criminalização e a estrutura social, pode-se suspeitar que seja possível procurar onde estão os “pais” de tais adultos brincalhões. Pais que nunca entram no jogo e aproveitam um bom descanso dos seus subalternos.

Eis o sistema punitivo brasileiro em preto e branco (ou bem mais preto do que branco), na explicação de Juarez Cirino dos Santos: “A legitimação do Direito Penal pela criação de símbolos no imaginário popular é simbólica, porque a penalização das situações problemáticas não significa solução social do problema, mas solução penal para satisfação retórica da opinião pública; não obstante, possui efeito instrumental, porque legitima o Direito Penal como programa desigual de controle social, agora revigorado para a repressão seletiva contra favelas e bairros pobres das periferias urbanas, especialmente contra a força de trabalho marginalizada

16

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 56.

do mercado, sem função na reprodução do capital – porque, pelo menos no nível simbólico, o Direito Penal seria igual para todos.” 17

A realidade criminal é política e seletiva, mesmo que os sujeitos façam isso de forma inconsciente. Há muita inconsciência envolvida, não se pode negar.

Tanto o quartel quanto a prisão formam corpos dóceis, mas há um grupo que simplesmente não entra nessa corrida, insiste Foucault: “Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação a formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição.” 18

Com a arquitetura e a estética social em curso, os “progenitores” da sociedade repousam invictos sem muito esforço. A engrenagem já está em movimento e a inércia agora está a seu favor. Mais recentemente, tal violência estrutural também tem a mídia como forte aliado, como anota Zaffaroni: “Como resultado do autoritarismo cool contemporâneo, produto da difusão midiática do sistema penal dos Estados Unidos, a América Latina impõe um tratamento penal diferenciado às suas classes subalternas, de onde extrai os criminalizados, os policizados e os vitimizados, que se neutralizam politicamente em suas contradições internas, exacerbadas pelo discurso vingativo dos meios de comunicação de massa.”19

Por tudo, o campo de batalha tem lugar determinado e clientela certa. Numa automática reprodução do “normal”, tudo parece muito natural diante do discurso repetido. Combatentes alimentados por uma vitória que nunca vem.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. 4. Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 450. 18 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 182. 19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p 82. 17

Enquanto um grupo (majoritário) se destrói, o outro se perpetua no poder. Quase não há riscos nesse “jogo” instituído, ou melhor, o risco real fica todo de um lado só.

A luta de classes está presente na tortura dos vadios na Inglaterra pré-industrial (sec. XVI), no grande internamento francês (sec. XVIII), na calmaria dos anos dourados do Welfare State nos EUA (pós II Grande Guerra) e na agitação do neoliberalismo brasileiro (a partir da década de 1990). Todos estes períodos apenas indicam oscilações no ritmo e na forma de se conter as massas por meio de punições, em outras palavras, são variações do mesmo tom. Música de uma nota só.

Não são poucos os que demonstram essa correlação entre economia, criminalização e policização. As curvas de elevação e diminuição seguem em fluxo compassado, ditando o nível de violência que o controle dos subalternos exige. 20

Registra Foucault que tal submissão veria um giro fundamental no findar do sec. XVIII, tendo havido uma mudança do objeto da pena, passando do corpo à alma. O fim dos suplícios com o predomínio do cárcere indica mais uma transição marcante, uma constatação de que as formas de controle vão se tornando mais complexas e silenciosas. 21

Mas a estrutura engendrada parece sempre separar claramente dois grupos: os que lutam e os que descansam. Nos Estados absolutistas, nos Estados modernos, nos Estados previdenciários e nos Estados neoliberais, essa linha nunca deixou de existir.

Policizados (polícia) e criminalizados (ladrão) saem juntos do gueto e são convencidos a se matar. Ao mesmo tempo em que se ocupam, também se destroem. Enquanto aos ricos, bem, os ricos não pegam em armas.

São estas anotações de um tempo de conflito pobre. A guerra entusiasmada dos subjugados é a paz dos poucos poderosos, numa ordem bem ditada. Momentos de bonança capitalista.

20

Ver: MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006. YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan/ICC. 2002. RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. 21 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 18.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e crítica do direito penal. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 5. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CARAVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Políticas de segurança pública para um estado de direito democrático chamado Brasil. In: Discursos Sediosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.

DORNELLES, João Ricardo W. Conflito e Segurança (entre pombos e falcões). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 28. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediosos, ano 1, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1996.

MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política – livro I. 23. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006.

RUSCHE, George; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. 4. Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010.

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

______. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

______. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda punitiva]. 3. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

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