Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Reservas Extrativistas

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Siqueira, D. & Fernandes-Pinto, E.: 2007. Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Reservas Extrativistas. In: Anais do XIII Congresso Brasileiro de Sociologia. Recife/PE. 13p

XIII Congresso Brasileiro de Sociologia 19 de maio a 01 de junho de 2.007, UFPE, Recife (PE) Grupo de Trabalho 17: Questões Étnicas, Raciais e Ação Afirmativa. Título do trabalho: Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Reservas Extrativistas. Autoras: Deis Siqueira e Érika Fernandes-Pinto Instituições:

Sociologia/UnB

e

DISAM-Diretoria

de

Desenvolvimento

Socioambiental/IBAMA e-mail para contato: [email protected] e [email protected]

Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Reservas Extrativistas. Deis Siqueira1 e Érika Fernandes-Pinto2 Introdução De que lugar nós falamos? Sobretudo a partir da experiência profissional vivenciada na construção da Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental (DISAM) no IBAMA3, na reestruturação do Centro Nacional de Populações Tradicionais e Desenvolvimento Sustentável - CNPT/IBAMA e na representação deste Instituto na Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, responsável pela construção da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT4. O CNPT, instituído em 1992, foi responsável pela criação e gestão das Reservas Extrativistas (RESEX) até 2006, quando se torna um Centro Especializado da DISAM. As Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) representam uma categoria de unidade de conservação criada com o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – Lei Federal Nº. 9985 de 2000) e até a criação da DISAM, não havia nenhum setor no IBAMA responsável pela criação e gestão de unidades desta categoria. A partir da instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), o CNPT assume o conceito de populações tradicionais como equivalente ao de povos e comunidades tradicionais, definido nesta política. 1

Departamento de Sociologia da UnB; Pesquisadora do CNPq. Etnobióloga, Msc. em Ecologia e Analista Ambiental do IBAMA. 3 Esta diretoria foi incorporada na estrutura regimental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA em março de 2006, através do Decreto Nº.5718 e representa uma importante conquista dos movimentos sociais e do socioambientalismo no Brasil. 4 Instituída pelo Decreto Presidencial Nº 4060, de 07/02/2007, fruto de dois anos de trabalho da Comissão constituída paritariamente por entes governamentais e movimentos sociais organizados. 2

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Os

conceitos

de

Populações,

Povos

e

Comunidades

Tradicionais,

são

problemáticos. E neste sentido vamos tentar seguir duas indagações consideradas centrais. a) Quem define ou definiu a tradição, a partir de que lugar e com qual legitimidade; e, portanto, como se construíram historicamente os processos de sua transmissão? b) Como se dá o movimento entre as especificidades e a formulação de conceitos gerais, tais como o de populações, povos e comunidades tradicionais e a dinâmica entre movimento social e políticas públicas? Estas nortearão as reflexões que seguem. I. A construção sócio-histórica de categorias e conceitos. A “gentalha” brasileira. Comunidade. Umas das conseqüências da modernidade líquida, segundo Baumann (2001) seria a ênfase que vem se dando à idéia de comunidade. Afinal, a idéia de sociedade enquanto uma totalidade histórica concreta (noção fundamental para a modernidade sólida), estaria em declínio. Por um lado, fala-se crescentemente em comunidades. Por outro, cada vez fica mais raro encontrar-se comunidades reais. Neste sentido, A comunidade, muitas vezes, aparece como uma realidade abstrata, neutra, mas não se conhece ou se discute sua dinâmica singular. A existência da comunidade é apenas postulada, no plano discursivo aparece como uma “comunidade imaginada”, numa metáfora com a idéia de nação, onde pressupõem-se que os laços sociais entre os indivíduos são sólidos, duradouros e no seio do qual encontra-se aconchego e segurança (VELOSO, 2006, pg. 08). Modernidade: pensada como relação, a modernidade existe quando o presente se apresenta como novidade, ancorado no julgamento & qualificação do passado. Modernidade, pressupõe uma valorização do presente: momento de apreensão da história pensada de forma ascendente, a partir de uma escala valorativa que vai do passado para o futuro. Portanto, a modernidade se refere a um Outro, é relacional. Por sua vez, então, tradição tende a se remeter a sociedades pré-modernas. Portanto, ainda segundo GIDDENS (2001, p. 35), “...a questão do que é uma „sociedade tradicional‟ permanece sem solução”. Ou seja, não se pode afirmar muito mais de que se trata de uma sociedade onde a tradição exerce um papel dominante. Neste sentido, as sociedades modernas se destradicionalizam. De fato, no Brasil, tradicional, em termos de representação social hegemônica, articula-se a passado, a conservadorismo, a velho, a ultrapassado. A qual corresponde à representação social também dominante de que tabaréus, caipiras, brejeiros, sertanejos, ribeirinhos,

peões,

sertanejos,

caboclos,

caiçaras,

bugres,

dentre muitas

outras

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denominações regionais, as quais se equivalem, porque são desqualificadoras, dizem respeito à “estorvo” ao progresso, à industrialização, à modernização. Como tais, na ideologia constitutiva da nação, devem ser substituídos, colonizados pela modernidade, pela disciplina do trabalho, pelo consumo, pela mercantilização e monetarização geral. Eles povos foram referidos, até bastante recentemente como “gentalha” inclusive em documentos oficiais. E a “modernização conservadora” do regime militar (transformação do talifúndio em empresa, expulsão campo-cidade e concentração de terras), a partir da década de 1970, é um bom exemplo da atualização desta representação social e das políticas públicas nela ancoradas. Afinal, a sociedade brasileira tem como um de seus eixos constituintes, a luta em torno da propriedade da terra, onde, historicamente, foi ganhadora a elite, seja a propriamente latifundiária (Lei de Terras de 1850, “transformando” a terra em mercadoria, já criando dificuldades ao acesso a ela, sobretudo para os escravos que seriam libertos, e a constituição de um campesinato livre), seja a empresarial (agro-negócio) mais recente. E, na atualidade, não obstante o crescimento dos movimentos sociais, há inúmeros entraves políticos, burocrático-administrativos, os quais obstaculizam o efetivo

reconhecimento

jurídico-formal das “terras tradicionalmente ocupadas” (WAGNER, 2007). E se assiste a uma seqüência de políticas sociais assistencialistas. Para estes povos, a não cidadania: a sopa, as migalhas. Afinal, como são estruturalmente excluídos, estão próximos à mendicância. E também a manutenção de práticas sociais nada “modernas”, tais como o trabalho escravo, a botina em troca do voto. Os conceitos são problemáticos. Mas as elites não têm qualquer dúvida sobre quem é a população, povo ou comunidade tradicional no país. Elas têm usufruído desta agregação de denominações desqualificadoras & não-identidades, desde sempre. Porque, de forma correspondente, enquanto práticas sociais e econômicas, estas populações podem ser subjugadas e exploradas. O poder das elites e o poder local têm sido poderosos em sua capacidade de manipular a “tradição”, a memória coletiva, o patrimônio, as identidades locais. O conceito de Povos e Comunidades da PNPCT não é menos problemático do que os anteriores. Mas o fato que queremos destacar aqui foi sua apropriação, enquanto identidade, por parte do movimento social.

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II. O movimento extrativista-seringueiro & origem do conceito de Populações Tradicionais. Populações, povos e comunidades tradicionais.

II. 1. Histórico e Processo de institucionalização das RESEX

As Reservas Extrativistas (RESEX) são um modelo de área protegida, genuinamente brasileiro criadas como resultado de lutas de movimentos sociais de extrativistas da Amazônia - principalmente de seringueiros nas décadas de 1970 e 1980 - pelo direito à terra e um modelo de desenvolvimento compatível com a conservação e uso sustentável das florestas. Nascem do confronto pacífico (“empates”) contra as frentes de expansão incentivadas pelo governo, interessadas em ocupar os “vazios territoriais” e ampliar as “fronteiras agrícolas”. Movimento este em que Chico Mendes, de líder tornou-se símbolo da luta pela reapropriação da natureza, pela afirmação da cultura e pela construção de um modelo próprio de sustentabilidade. Em 1985 a luta dos seringueiros do Acre ganha repercussão nacional, é formada a Aliança dos Povos da Floresta e realizado o I Encontro Nacional dos Seringueiros, em Brasília. A Portaria INCRA Nº 627 de julho de 1987 instituiu os Projetos de Assentamento Extrativista (PAEXs), no contexto do Plano Nacional de Reforma Agrária. Criados em contraposição ao modelo convencional de assentamento, centrado na distribuição individual de lotes e destinados à produção agrícola, os PAEXs representam o marco inicial da institucionalização das Reservas Extrativistas. Diferiam das RESEX fundamentalmente por terem a natureza de um assentamento fundiário5 e por terem sido instituídos por um instrumento jurídico de grande fragilidade. O movimento seringueiro, já representado pelo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), com apoios e assessorias diversas, conseguem incluir as RESEX na Lei Federal Nº. 7804 de 1989, a qual alterou a Política Nacional de Meio Ambiente (instituída pela Lei Nº 6938 de 1981), compatibilizando-a com as novas disposições da Constituição Federal de 1988. Desta forma, as RESEX passam a ser reconhecidas como espaços territoriais especialmente protegidos e institucionalizadas como áreas de conservação, abrindo-se a possibilidade de normatização via decreto.

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Os PAEXs destinavam-se à “exploração de áreas de riquezas extrativistas, através de atividades economicamente viáveis e ecologicamente sustentáveis, a serem executadas pelas populações que ocupem ou venham a ocupar as mencionadas áreas”. Foram criados 10 PAEXs na Amazônia, nos estados do Acre, Amapá e Amazonas.

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É o que se coaduna em janeiro de 1990 com o Decreto Nº. 98.897, o qual define RESEX como “espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por população extrativista” e atribui ao IBAMA a competência para supervisionar e acompanhar o funcionamento destas unidades. Neste mesmo ano são criadas as quatro primeiras Reservas Extrativistas, Chico Mendes no Acre, Rio Cajari no Amapá, Rio Ouro Preto em Rondônia e Alto Juruá, também no Acre. Em fevereiro de 1992 é criado o CNPT através da Portaria 22-N, com a função de, entre outras atribuições, gerir as Reservas Extrativistas. Seu regimento é aprovado pela Portaria 22-A, também em 1992. Neste mesmo ano são criadas mais cinco RESEX, nos estados do Maranhão, Tocantins e Santa Catarina, diversificando o modelo das RESEX para outros biomas e ecossistemas brasileiros, notadamente as matas de babaçu do centro-oeste e a zona costeiro-marinha. Também em 1992 é proposto o Projeto de Lei Nº. 2892, que visava instituir um Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). O histórico de tramitação da Lei do SNUC e as discussões surgidas durante o processo de elaboração legislativa, entre socioambientalistas e preservacionistas reforçam a dialética destes grupos. Apesar da resistência de alguns preservacionistas, que viam as RESEX como instrumento de reforma agrária, e não como unidade de conservação, esta categoria foi incluída no sistema. Lei Federal Nº. 9985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), classifica as RESEX como unidade de conservação de uso sustentável, tendo por objetivos principais “proteger os meios de vida e a cultura de populações tradicionais extrativistas e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais”. As RESEX são mantidas como áreas de domínio da União com uso concedido às populações tradicionais. Entretanto, a Lei do SNUC institui uma nova instância de gestão das RESEX, o Conselho Deliberativo; e um novo instrumento, o Plano de Manejo. Apesar de claramente exposto neste texto legal em diferentes trechos, não consta nenhuma definição legal de população tradicional. O artigo que conceituava populações tradicionais no SNUC (inciso XV do Artigo 2º)6 foi vetado pelo poder executivo, sob a justificativa de que “o conteúdo da disposição era tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil”. Não obstante a falta de uma 6

A definição estabelecia como populações tradicionais “grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável.”

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definição legal, a existência de “populações tradicionais” passa a ser legalmente reconhecida, inclusive no interior de áreas de proteção integral. II.2. As RESEX e a PNPCT As Reservas Extrativistas federais totalizam hoje 51 unidades de conservação decretadas, distribuídas em 13 estados brasileiros. O total de área abrangida soma mais de 10 milhões de hectares e estas unidades beneficiam diretamente mais de 45 mil famílias. A criação destas unidades é motivada por demandas de populações tradicionais, que na sua luta por justiça sócio-ambiental e um modelo de desenvolvimento condizente com suas especificidades culturais, atuam muitas vezes no centro dos principais conflitos sócio-ambientais brasileiros - como a grilagem de terras públicas, a expansão de grandes empreendimentos excludentes, exploração madeireira não sustentável, o avanço da fronteira agropecuária e desmatamentos ilegais, processos de especulação imobiliária e ocupação urbana e turística desordenada da costa, entre outros. A criação de novas RESEX objetiva promover o desenvolvimento sustentável e a inclusão social de populações tradicionais. É uma forma de reconhecimento do direito destas comunidades aos seus territórios originais - garantindo sua permanência e reprodução social - bem como de seu importante papel na conservação ambiental dos principais biomas brasileiros. Desde 1990 – quando foram criadas as primeiras RESEX - até os dias atuais, 16 anos se passaram e muitas questões se transformaram e evoluíram no âmbito da criação e gestão destas áreas. As particularidades desta categoria demandaram o estabelecimento de procedimentos e instrumentos de gestão pautados no fortalecimento da organização comunitária e no reconhecimento da importância dos saberes e sistemas de gestão tradicionais dos espaços e dos recursos naturais. As RESEX representam um dos mais bem elaborados exemplos de mudança do modelo de desenvolvimento econômico, a partir de experiências “nativas” inteiramente diversas dos padrões da racionalidade tecnológica. Porto-Gonçalves (2003) ressalta que a Reserva Extrativista é uma invenção no campo do direito que expressa uma territorialidade construída no terreno movediço da história, de uma história materializada em “habitus”, que tenta construir um novo “habitat”. Uma categoria de unidade de conservação totalmente inovadora, onde pela primeira vez se explicita o caráter intrínseco da relação entre interesse social e ecológico. É o conhecimento que estas populações detém a respeito dos ecossistemas, com os quais desenvolveram práticas ao longo do tempo, que as qualifica para exercerem as

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finalidades estabelecidas pelo poder público no decreto. É o que Porto-Gonçalves chama de “manipulação produtiva da natureza” O fortalecimento desta categoria de unidade de conservação e sua crescente difusão e divulgação, somados ao reconhecimento das populações tradicionais e o esforço para se instituir políticas públicas voltadas para este segmento da sociedade brasileira levaram à intensificação das demandas por criação de RESEX em todas as regiões do País. Em um contexto onde as pesquisas recentes indicam a existência de um contingente de mais de 45 milhões de pessoas consideradas parte de grupos definidos como povos ou comunidades tradicionais, as Reservas Extrativistas ganham expressão e importância como modelo alternativo de desenvolvimento compatível com a realidade sócio-ambiental brasileira. A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais foi criada inicialmente através do Decreto 10.408/2004, com a finalidade de estabelecer a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais, articulando e qualificando as ações do governo e demais políticas públicas. Inicialmente, foi formada por oito instituições públicas – seis Ministérios, a SEPIR e a Fundação Cultural Palmares. Ela é presidida pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e secretariada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). A Comissão passa a ser denominada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais a partir do Decreto de 13/07/2006 (que revoga o anterior) e sua composição inclui 15 representantes de órgãos e entidades da administração pública e 15 de organizações não governamentais. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais foi instituída pelo Decreto 6.040/2007. Define Povos e Comunidades Tradicionais, territórios tradicionais e desenvolvimento sustentável e tem como objetivo principal “promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia de seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização e suas instituições”. Povos e Comunidades Tradicionais são essencialmente os grupos sociais para os quais as RESEX e RDS são voltadas, especificamente aqueles que se comprometem com o uso sustentável dos recursos naturais. A definição de limites destas Unidades de Conservação deve se basear nos territórios tradicionais destes grupos, garantindo-lhes a posse e o uso das áreas através da concessão do direito real de uso. Os objetivos das RESEX e RDS coadunam com as noções de desenvolvimento sustentável, conforme

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definida na Política, como estratégia para promoção da melhoria da qualidade de vida das comunidades, respeitando seus modos de vida e suas tradições. Em seu Art 3º. III está explícito como objetivo da PNPCT estimular a criação de unidades de conservação de uso sustentável. Estabelece também que nos projetos e programas de inclusão social devem ser garantidos recortes diferenciados para estas comunidades e o reconhecimento e adequação às suas especificidades, garantindo e valorizando as práticas e conhecimentos tradicionais. Com a criação da Comissão e, posteriormente, com a instituição da PNPCT, deflagra-se um processo de dar voz e rosto aos povos, comunidades, populações, que emergem da sua invisibilidade histórica mostrando que “os vazios demográficos” tem gente. Sabemos que nenhuma identidade social é uma simples decorrência de condições objetivas, sejam elas econômicas, jurídicas ou relacionadas a espaços geográficos. Algumas começaram como uma referência de para onde não se quer ir. Contrapondo um dos princípios do direito liberal – o de ir e vir, buscam a afirmação do direito de “ficar”. Lembrando, como bem nos ressalta Porto-Gonçalves (2003, pg. 549), “a defesa do direito de ficar não significa se isolar do mundo”. Assim como a identidade seringueira foi criada e moldada a partir de um contexto histórico, que remonta aos idos de 1870 e vai “da territorialidade seringalista à territorialidade seringueira” (Porto-Gonçalves, 2003, pg 10), outras identidades surgem, configuram-se e moldam-se em diferentes contextos. Mas os seringueiros não são simplesmente seringueiros, nem tão pouco apenas extrativistas. Esta multiplicidade de identidades reflete também o uso múltiplo dos recursos naturais. 7 Neste modelo de desenvolvimento rural onde o direito de propriedade vira direito do proprietário, ressurgem grupos sociais - que apesar de novos para a sociedade brasileira hegemônica, sempre estiveram lá – numa luta social que não é por terra, mas por um território. E que não é apenas pelo acesso aos recursos naturais, mas por um modo particular de se apropriar e interagir com estes recursos. O território é conformado pela cultura; uma cultura que co-evolui com a natureza definindo uma identidade; identidade esta que em grande parte se constitui em 7

Neste sentido vale lembrar que foi aplicado um questionário, respondido por representantes de quase a totalidade das RESEX E RDS presentes no Encontro Nacional de Lideranças Comunitárias, realizado em dezembro de 2006, em Brasília, pelo CNPT/DISAM/IBAMA.. As respostas indicam que as identidades são várias e múltiplas, considerando-se que 47 Reservas indicaram 220. As mais indicadas foram: agricultores e pescadores tradicionais. Mais de três quartos (78%) das populações destas Reservas incluíram a identidade de agricultor e a de pescador artesanal. Essas identidades foram seguidas por agro-extrativistas, coletores de frutas, ribeirinhos e seringueiros (as demais são pontuais, numericamente). “Seringueiro” foi indicado apenas por 34% das Reservas. Digo apenas porque as florestais compõem cerca de 60% do total de RESEX já criadas.

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confrontação com os “de fora”. O território que enlaça o real, o imaginário e o simbólico. Dar conta de articular estas diferentes territorialidades e conformar pactos que garantam seu espírito constituinte configuram-se como os desafios maiores das Reservas Extrativistas. III. As dinâmicas: específico ↔ geral e movimento social ↔ política pública.

A PNPCT também utiliza o conceito de povos e comunidades tradicionais em um sentido agregador. Mas na contra-mão do anterior. Por isto, em sua definição, este se refere à cultura, à organização social, ao território, a recursos naturais, a religião, a ancestralidade, a práticas produtivas8. E agrega identidades qualificando, positivando. É por isso que ... a definição do que viria a ser população tradicional assustava e assusta (RODRIGUES, 2007, pg 01). Afinal, ela saiu, como movimento social, dos seringais e está em muitos cantos e recantos, até aqui esquecidos, do país. Mas este autor sugere que ... Essa definição assusta por trazer em si o risco perigoso: o da desmistificação do extrativismo e, mais grave, do seringueiro. E pergunta: os seringueiros estão aí? Sim. Eles estão ai. Em sua construção contribuíram, além dos seringueiros, pomeranos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, faxinais (uso coletivo da terra) e tantos outros, que por primeira vez puderam se conhecer e participar da construção de políticas públicas que lhes dizem respeito. E sua existência poderá possibilitar a visibilização de muitas outras identidades, silenciadas durante cinco séculos. Movimento do geral para o particular e vice-versa. O fato é que se está falando de ações pró-ativas e de construção coletiva de políticas públicas, a partir de movimentos sociais. Não apenas dos seringueiros. Condições específicas possibilitam a gestação de conceitos, nos limites postos pela história. Nem Marx com todo seu brilhantismo deu-se conta da “questão ecológica” que o modo de produção capitalista, por ele destrinchado, levaria às últimas conseqüências. E a PNPCT optou pelo conceito de povos e comunidades tradicionais. Ao mesmo tempo em que recupera o conceito gerado pelo movimento social orquestrado pelos seringueiros – extrativistas, avança, incluindo o conceito de comunidade, o qual nos parece mais próximo da “referência cultural”. Segundo Wagner (2007, pg. 02), o “tradicional” como

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Segundo a PNPCT, povos e comunidades tradicionais são definidas como: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

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operativo foi aparentemente deslocado no discurso oficial. Em verdade o termo “populações”, denotando certo agastamento, foi substituído por “comunidades”, que aparece revestido de uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés da categoria “povos”... Ainda segundo este autor, a categoria de populações tradicionais tem sofrido deslocamentos de significado desde 1988 (WAGNER, 2007, pg. 04), “... sendo afastada mais e mais do quadro natural e do domínio dos “sujeitos biologizados” e acionada para designar agentes sociais, que assim se auto-definem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição”. E o termo “povos” reconheceria a existência de sociedades organizadas & identidades próprias, em lugar de agrupamentos de pessoas que compartem algumas características raciais ou culturais. Outras reflexões podem sugerir conceitos mais precisos ou adequados. Mas neste caso qual é o critério da “verdade”? A gestão por parte dos movimentos sociais ou um conceito alimentado por reflexões mais detidas e críticas? Afinal, trata-se de vivências coletivas. E entre elas e a capacidade narrativa há uma relação que deve ser lembrada. Simultaneamente, ao se autonomearem como tradicionais, estes grupos sociais incorporam a representação social hegemônica de tradição como “gentalha”, mas negando-o. Visibilizando-o pelo positivo. Reafirma problematizando. Da mesma maneira há, a nosso juízo, problemas com o conceito de raça, o qual também é utilizado no referido texto. Este é velho, construído pelas elites colonizadoras, não reflete todas as reflexões acumuladas em torno do conceito de etnia, ou pelo menos de étnico-racial. Sobretudo porque a Política foi construída por e para ciganos, indígenas, quilombolas, pomeranos, dentre muitos outros. E o conceito de “referência cultural” é fundamental. Ele remete à produção, às relações sociais entre produtores, ao repertório simbólico de um determinado grupo social, de um povo. Destaca o seu processo de produção e reprodução, sinalizando a existência de um universo simbólico específico e compartilhado (VELOSO, 2006, pg 07). Mas o conceito de raça se fez hegemônico no texto da PNPCT, porque estava atrelado ao crescimento e a visibilização do movimento social dos negros nos últimos anos, o qual se reflete no atual Governo, de forma similar ao do seringueiro, via movimento social organizado. Aquele movimento se impôs na formulação da PNPCT e em outras formulações de políticas públicas. Em termos conceituais, há um retrocesso, quando se enfatiza a raça (entendida, no geral, como equivalente, na atualidade, à população negra) e se desconsidera o conceito de etnia, muito mais rico, menos colonizador, menos biologizado, mais plural, mais ancorado na cultura, mesmo que não se trate de digamos, três ou mesmo dez gerações como

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referência. E isso, mesmo considerando que o conceito de etnia não resolve todas nossas dúvidas e dificuldades para se construir conceitos mais genéricos. Há perdas na utilização do conceito de raça na PNPCT? Sim, há. Mas estamos pensando em termos da articulação de sociedade civil & sociedade política. Os movimentos sociais mais robustos impõem-se na formulação de políticas públicas, ao Estado. Então há ganhos porque há avanços político-institucionais. E o que dizer do conceito de territorialidade? Também é problemático. Como agregar, conceitualmente, as relações tão distintas dos ribeirinhos e a dos seringueiros com “a floresta”? O fato é que estamos falando de ações pró-ativas, construção coletiva de políticas públicas, ainda que possam consideradas como conceitualmente equivocadas. Ou quase equivocadas. Segundo Wagner (2007, pg. 21), mais do que uma estratégia de discurso, trata-se do advento de categorias ...que se afirmam através de uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida cotidiana, mas também um certo modo de viver e suas práticas rotineiras no uso dos recursos naturais. Nesse sentido, a complexidade de elementos identitários foi trazida para o campo das relações políticas. As Ciências Sociais partem de uma noção metodológica mínima: o rico movimento que há entre particularidade e generalidade e, ademais, de que o processo de incorporação das demandas sociais pelo Estado é lento, conflituoso. A ancestralidade parece-me, num país que vem há muito negando sua conformação dominante indígena e negra (lembremos as discussões em torno do que seria a “identidade brasileira” na passagem e início do século passado, após 1988), ser um conceito que em princípio também assusta, até porque não é usual, mas o qual incorpora, à sua maneira, muitas formas de não inclusão histórica, nesse sentido “ancestral” (ainda que se fale em termos de apenas cinco séculos), de pessoas, de trabalhadores, de comunidades, de identidades específicas e de povos, à modernidade capitalista. Não é demais lembrar que a “morada” (versão tupiniquim da corvéia medieval) foi a relação de trabalho dominante no Nordeste até a década de 1940) e o trabalho escravo ainda é uma realidade. A ancestralidade pode ser lida como a possibilidade de visibilização de identidades plurais não vistas, não lidas, legadas ao esquecimento e à correspondente exploração econômica. Bibliografia citada BAUMAN, Z.. 2001.Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. DIEGUES, A. C. & ARRUDA, R. 2001. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente.

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FELIPPE, L. D. 1993. Reserva Extrativista: definição institucional e procedimento de criação. Brasília: IEA – Instituto de Estudos Amazônicos e Konrad Adenauer Stiftung. GIDDENS, A.. 2001.Em defesa da sociologia. São Paulo: Editora Unesp, 2001. PORTO-GONÇALVES, C. W. 2003. Geografando: Nos varadouros do Mundo. Brasília: IBAMA. RODRIGUES, E. Colocaram um bode no Seringal, http://www.ambiente brasil.com. br/noticias/ index.php3? action=ler&id=30019&js=1&js=1 (14/03/2.007) SANTILLI, J. 2005. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo:Ed. Peirópolis. VELOSO, M.. O Fetiche do Patrimônio. Brasília: Departamento de Sociologia, mimeo.

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