Populismo Penal: A Fé na Transcendência do Poder Punitivo Estatal

June 29, 2017 | Autor: L. Furtado | Categoria: Populism, Jacques Derrida, René Girard, Criminologia, Direito Penal, Processo Penal
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Populismo Penal: A Fé na Transcendência do Poder Punitivo Estatal Letícia de Souza Furtado

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e a violência é inerente ao ser humano, a primeira comunidade só pôde se estabelecer com o surgimento de alguma limitação sobre atos dessa natureza; de outra forma, os indivíduos conflitariam até a extinção do grupo. O ambiente onde a tensão está difundida é propenso à crise; contudo, caso todos atribuam ao mesmo indivíduo a culpa absoluta pelo caos – a um bode expiatório –, a agressividade coletiva é canalizada, desencadeando ato único de violência que agrega a comunidade, ao tempo em que permite a todos liberar a agressividade latente. A estrutura social, outrora desintegrada, se (r)estabelece. O fim das tensões melhora as relações interindividuais, “confirmando” a culpa integral do dilapidado.[1] Pensando em um contexto de origem da cultura, pode-se inferir que do ato inaugural de violência emerge a possibilidade de algumas significações, pois, responsabilizando a vítima por todo o mal e, depois, por todo o bem experimentados, os homens a investem de certas características. Atribuem-lhe poderes sobrenaturais – onipotência –, algo de sagrado: nela está a cura do que os abate. Tudo que a envolve haverá de ser representado em futuro ritual que vise efeitos curativos ou preventivos análogos[2] (GIRARD, 1990). Eis o medo e a esperança depositados no transcendental. O medo da devastação que um malfeitor “provoca”; a esperança 24

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de retomar a paz – repetição do resultado –, com a ritualização do assassinato originário, ou de que o antagonista se abstenha de prejudicar a comunidade. Exsurge a sistematização de condutas, com o mecanismo de contenção da violência pela canalização; a definição de valores – o indivíduo expulso consolida exemplo do que não deve ser feito –; e a definição de diferenças, do que é bom ou ruim, de quem deve compor a comunidade ou ficar à margem dela. A expulsão originária traça os contornos da comunidade. Muitas vezes, o ritual não observa proporções nem se funda em mais do que temor ou esperança. A religiosidade expressa a sensação de impotência do homem, que atribui o incompreensível ao transcendental; e a norma, com sua instância ritual, exprime a tentativa de solução: instinto do nosso estado puro de ser, suscetível ao misticismo. Os membros da comunidade se inclinam a explicar qualquer distúrbio interno pela conduta de algum indivíduo que não se comporte conforme a norma, pois ele ameaça o sistema, atraindo o temor de imitações desestabilizadoras. Os membros da comunidade realmente acreditam nas forças sobrenaturais do antagonista. No livro A Farmácia de Platão, DERRIDA[3] vincula duas palavras gregas: Pharmakós, denomina a vítima de sacrifícios gregos, prática recorrente em tempos de crise; Pharmakon, termo ambivalente, designa possíveis características opostas de um mesmo objeto ou pessoa, como, por exemplo, algo que, simultaneamente, é remédio e veneno. O Pharmakós se encaixa no conceito Pharmakon, compunha ritual que simulava um assassinato originário, atuando como bode expiatório – objeto este de estudo na tese girardiana. GIRARD aproveita tais conceitos linguísticos e desenvolve sua teoria da origem do signo, do surgimento da possibilidade de significação das coisas, aqui já exposta. Superado o cenário de origem,

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depois de estabelecidas algumas significações, existindo a noção de diferença, ela poderá ser percebida antes de o mecanismo vitimário se desenrolar. Na realidade, a diferença passará a ser um dos fatores que, intuitivamente, desencadearão a dilapidação. O caráter religioso da espécie de expulsão aqui tratada é evidente, e está presente nos rituais do sistema penal. Na seara da psicologia, JUNG[4] conceitua religião como a atitude do “espírito humano” frente a experiência pessoal que revela certos elementos – espíritos, ideias, leis... – “suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis” e que merecem “respeitosa consideração”. SEMINÉRIO[5] sustenta que crenças e processos sem fundamento empírico são desencadeados por intolerância à ambiguidade: “cada ser humano, perante a dúvida, é levado a efetuar uma ‘clausura’ interior, gerando hipóteses coerentes com sua infraestrutura de emoções e convicções”. AMATUZZI[6], fala de uma fé que “move o grupo”, favorecendo o surgimento de decisões coletivas. Ideia próxima às de DURKHEIM[7] e seus conceitos de consciências solidárias: a formada por estados sociais, estimulada pelos fins coletivos, e a constitutiva da personalidade individual. Da primeira decorre uma solidariedade que vincula os indivíduos pelas afinidades e os “classifica” como pertencente ao grupo. Situação diversa do antagonista expulso, cuja linguagem não se concilia com a da comunidade. A expulsão do antagonista se transforma em finalidade coletiva, imergindo o grupo naquela fé descrita por AMATUZZI. Ganha espaço, então, o efeito placebo, resultado de terapia que apenas sugere a cura: é inerte e simbólica [8]. Muitos elementos podem conceder efeito placebo: a fé, o carinho de alguém, uma vingança... Seja como for, o que se quer é a cura. ZANATTA afirma que o populismo – em gênero – tem natureza “genericamente reli-

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giosa”[9], denunciada pela devoção ao líder, e nos lembra de que o imaginário populista e também o religioso se inclinam a repelir os fundamentos legais e racionais da comunidade política. Apresenta, ainda, a ideia de uma “religión política”: “Al respecto, hasta se puede decir que el populismo es el vector mediante el cual el imaginario religioso tradicional se seculariza y transplanta en el terreno moderno de la comunidade politica. En este sentido, es una suerte de religión secular, o de “religión política”, con su “verbo” y su “profeta”, sus cultos y sus liturgias: pero todo esto no en nombre de Dios, sino del “pueblo”. O constante apelo pela criação de novos tipos penais, e o acatamento, que ignora o princípio da fragmentariedade, demonstram que a mentalidade do homem imperito ganha espaço. Não sendo devidamente sopesada a razão, voltamos à fase primordial do improviso fundado em pensamento mágico, metodologia íntima do transcendental. Sobre o Populismo Punitivo, ESTRAMPES adverte que as campanhas de lei e ordem se baseiam em dados que não guardam relação com a evolução das taxas de criminalidade, evidenciando artificialidade e influência da mídia. Nos dizeres do autor[10]: “... dota al Derecho Penal de un marcado carácter simbólico, utilizándolo para mitigar los niveles de ansiedade social frente al delito, esto es, con la finalidade de crear um efecto meramente tranquilizador em la ciudadania.” APOLINÁRIO[11] assinala que os meios de comunicação difundem a sensação de insegurança. Isso uniformiza o medo popular numa consciência coletiva, transformando a nação em uma grande aldeia. FERRAJOLI[12] observa que as doutrinas retributivas de Kant e Hegel, na realidade, dão sobrevida a antigas crenças mágicas que confundem direito e natureza. ESTRAMPES[13] destaca que o Direito Penal tem sido chamado para fazer as vezes de tratamento para determinados “problemas” sociais, como se fosse um remédio com “unas propiedades mágicas”. Diz que esses

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apelos são paralelos à sugestão constante da mídia pela criminalização de certos grupos sociais com alta carga estigmatizante. Por esta breve exposição, buscou-se mostrar que a sofisticação dogmática do Direito Penal tem sido deixada de lado, a simbologia está em voga, impregnada pelo pensamento mágico primitivo que dominava os indivíduos na origem do signo. Naquele tempo, os homens davam seus primeiros passos em comunidade, e tudo era surpresa e mistério. Tempo distante, essência idêntica. Ainda elevamos indivíduos à condição de superpoderosos, atribuindo a eles forças completamente desproporcionais a sua capacidade e, consequentemente, estamos sempre inclinados a dar respostas igualmente desproporcionais. Com a diferença de que temos sujado menos as mãos, pois, atualmente, há o Estado como instrumento que viabiliza a expulsão mítica. NOTAS

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[6] AMATUZZI, Mauro Martins. Fé e ideologia na compreensão psicológica da pessoa. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 16, n. 3, p. 569-575, 2003. [7] DURKHEIM, Émile. Da Divisão Social do Trabalho. Tradução de Eduardo Branção. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. [8] BALESTIERI, Filomena Maria Perrella. Quando a cura vem do coração e da mente: a fé e o efeito placebo. Religare – Revista de Ciências das Religiões. n. 6, set. 2009. [9] ZANATTA, Loris. El Populismo. 1. ed. Buenos Aires: Katz, 2014. p. 69. [10] ESTRAMPES, Manuel Miranda. El Populismo Punitivo. Jueces para la Democracia, n. 58, , mar. 2007, p. 63. Disponível em . Acesso em: 20/09/2014.

[1] GIRARD, René. O bode expiatório. Traduzido por Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.

[11] APOLINÁRIO, Marcelo Nunes. O populismo punitivo na era da informação eo direito penal como instrumento de pedagogia social. Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 2009-06, 2009.

[2] GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Traduzido por Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Editora Revista dos Tribunais, 2006.

[3] DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Editora Iluminuras Ltda, 2005.

[13] ESTRAMPES. Jueces para la Democracia.., p. 43.

[4] JUNG, C. G. Psicologia e Religião. Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 10. [5] SEMINÉRIO, F. A religião como fenômeno psicológico. Temas em Psicologia, v. 6, n. 2, p. 161-172, 1998. pp. 163-164.

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Letícia de Souza Furtado - Pós-Graduanda em Direito Público pela PUCRS. Integrante do Grupo de Estudos de Direito Público da OAB/RS. Advogada.

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