Por trás das grades havia uma biblioteca

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POR TRÁS DAS GRADES HAVIA UMA BIBLIOTECA 1 por Catia Lindemann 2

Esta é a história de Daniel Tiago Vieira, 35 anos, ex-presidiário que cumpriu doze anos de cadeia em regime fechado. Passou por várias instituições penais da região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Filho de pai homicida, traficante e com vasta ficha criminal, passou sua infância e adolescência no submundo da criminalidade, seguiu a trajetória do pai e foi parar atrás das grades. Daniel relata que: Quando criança, eu sempre convivi com o crime. Dentro de casa havia drogas e armas, o linguajar era totalmente diferente das pessoas normais.

Preso e condenado com base nos Art. 157, 155 e 14, ele lembra o episódio que lhe “tirou o chão”. Por uma destas ironias da vida, Daniel, que praticava roubos à mão armada, teve sua mãe morta por um ladrão em um assalto ao coletivo onde ela era trocadora. Ele lembra emocionado: Ela foi vítima de um ladrão... Um ladrão, irônico né? Perdi o chão... Na mesma época a mãe dos meus filhos me abandonou, fiquei cinco anos sem visitas, sem contato com meus filhos. Ou eu me reconstruída ou me destruía de vez. Escolhi a primeira opção.

Mas atrás das grades também estava a presença de uma biblioteca, e foi dentro dela que ele buscou a reconstrução e encontrou os livros pela primeira vez na vida. Trabalhando dentro da biblioteca do Complexo Penitenciário de Segurança Máxima de Minas Gerais, ele se apaixona pela literatura, como ele mesmo cita: Apaixonei-me por literatura, comia todas as literaturas disponíveis. Li tudo em sete anos... De Lígia Fagundes Telles a Fedor Dostoievski... E nos livros, descobri que tinha talento pra criar.

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Texto publicado originalmente no Facebook do MURAL INTERATIVO DO BIBLIOTECÁRIO. Seção Biblioteconomia Social, 04 ago. 2015. 2 Bibliotecária da Universidade Federal do Rio Grande. Linha de pesquisa na área de Ciência da Informação, com ênfase em Biblioteconomia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: Direitos Humanos e a Informação, Biblioteca Prisional.

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Com o Ensino Fundamental incompleto, mas completamente maravilhado pela presença dos livros em sua volta, Daniel decide voltar a estudar. Com o apoio dos educadores dentro do cárcere, ele completa o Ensino Médio. Enquanto estudava e trabalhava no cárcere, Daniel também escrevia: Escrevi cinco livros de próprio punho, 200 páginas, 300 e até 400 páginas de histórias inspiradas nos livros e na realidade que eu vivia atrás as grades.

Seu trabalho na biblioteca consistia em distribuir os livros nos pavilhões, preencher ficha de cadastro dos presos para os empréstimos das obras e até catalogação junto da bibliotecária. Lendo, estudando e buscando respaldo nas obras do conhecimento, Daniel faz suas conjecturas sobre as pesquisas científicas, pois ele e vários outros colegas apenados já foram objeto de estudo dentro do cárcere, preenchendo questionários, dando entrevistas e colaborando com as áreas que buscam estudo nas cadeias. Ele é enfático ao afirmar: Espero que pesquisas realizadas no cárcere sirvam para o meio acadêmico ver que é possível investir na recuperação de seres humanos, que tiveram de certa forma uma dificuldade de ter tido uma família que passasse princípios e bons exemplos. Claro que isso jamais pode servir de subterfúgios para cometer "crimes", mas não deixa de ser um fator contribuinte.

Na ausência de papel para seguir escrevendo, Daniel reciclava o lixo da cadeia e o transformava em folhas que não tardavam em ganhar suas palavras. Da bibliotecária ele lembra apenas que se chamava Tânia Maria; no entanto, ele se lembra dela com carinho e nos

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conta que ela comprou material para seu segundo livro com recursos próprios, pois ao ler “Paradoxos de Vidas” (primeiro livro) Tânia encontrou em Daniel um potencial que não poderia ser desperdiçado, além de perceber o quanto os livros haviam mudado aquele rapaz. E não foi apenas esta bibliotecária que se comoveu com a garra e talento de Daniel. A professora de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Alessandra Vieira, recebeu uma carta de Daniel quando ainda preso e divulgou sua luta, sua história e fez campanha para que seus livros pudessem ser publicados. O material está disponível no site “Sociedade sem Prisões”.3

Quando passou para o presídio José Martinho Drumond, em Ribeirão das Neves (MG), Daniel não encontrou a presença da biblioteca. Infelizmente, essa ausência ainda é realidade em grande parte das prisões brasileiras, mas vale ressaltar que a existência de bibliotecas em penitenciárias não é um privilégio, e sim lei! Para ratificar esta afirmação, amparamo-nos na nossa Constituição Federal,4 a qual assegura tal direito no Art. 5º, inciso XIV, ao prever o direito à assistência educacional aos presos, sendo o Ensino Fundamental obrigatório e recomendada, ainda, a existência de Ensino Profissional e a presença de bibliotecas nas unidades prisionais.

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Web site Sociedade sem Prisões: Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2015. DEPEN – MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2015.

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Temos a Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 11 de novembro de 1994, publicada no DOU de 02 de dezembro de 1994, Título 1, Capítulo XII, Das instruções e assistência educacional, Art. 41 que afirma: Os estabelecimentos prisionais contarão com bibliotecas organizadas com livros de conteúdo informativo, educativo e recreativo, adequados à formação cultural, profissional e espiritual do preso.

O exemplo de Daniel ilustra o quanto a literatura é capaz de alavancar a autoestima dos encarcerados e lhes devolver os sonhos até então enclausurados tanto quanto o detento. Por meio da leitura, homens e mulheres, a quem foi imposta uma medida restritiva de liberdade, provam ser, sobretudo, indivíduos que permanecem com suas potencialidades intelectuais. Independente do delito cometido, é possível comprovar que por meio da educação literária o apenado encontra o “combustível” necessário para que sua identidade seja salvaguardada e passa a nutrir o alento de que mudar é possível, e os livros podem e devem ser o caminho que o levará de volta para a liberdade. O conhecimento pode tornar-se uma diretriz para seguir sem que o estigma de ser um ex-detento lhe seja um fardo tão pesado que o faça sucumbir ao delito novamente. Para quem acompanha nosso projeto de Biblioteconomia Social em parceria com o Mural Interativo do Bibliotecário e está agora se perguntando o que isso tem a ver com o nosso tema, eu lhes afirmo: tudo! A Biblioteconomia é o bibliotecário, e se o papel do profissional da informação consistir em mostrar a relevância pertinente dos livros e o quanto eles são capazes de resgatar vidas, então isso é Biblioteconomia Social.5

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Confira maiores detalhes em: . Acesso em: 05 ago. 2015.

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