Por um cinema interacional: filmes, emoções e espectador

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Por um cinema interacional: filmes, emoções e espectador1 Clark Mangabeira – Museu Nacional/UFRJ/RJ

Resumo: O presente trabalho é uma tentativa teórica de entendimento do cinema com vistas a equacioná-lo a partir de uma perspectiva que leva em consideração, ao mesmo tempo, filme, espectador e a interação de ambos. Partindo das características estéticas do filme e com base na teoria literária de Wolfgang Iser, as emoções que o cinema desperta só ocorrem graças a uma comunhão de intenções e interesses entre o pólo artístico – a obra – e o pólo estético – o espectador.

Palavras-chave: Cinema; Estética da Recepção; Emoção.

O cinema, enquanto forma de arte, sempre é experimentado em conjunto: desde a criação dos filmes (com as produções dirigidas ao público) até a ida ao cinema – o que envolve sentar ao lado de estranhos e sentir emoções com eles –, assistir a uma reprodução audiovisual coletivamente implica significados completamente novos. Embora este fato possa parecer um detalhe, tal experiência em conjunto é o que dirige toda a produção fílmica, sendo a partir dela que podemos ressaltar suas conseqüências para a coletividade. O teórico do cinema Christian Metz percebeu a possibilidade analítica do cinema e se referiu a ela dizendo que: O cinema é assunto amplo para o qual há mais de uma via de acesso. Considerando globalmente, o cinema é antes de mais nada um fato, e enquanto tal ele coloca problemas para a psicologia da percepção e do conhecimento, para a estética teórica, para a sociologia dos públicos, para a semiologia geral. Qualquer filme, bom ou ruim, é em primeiro lugar uma peça de cinema no sentido em que se fala da peça de música. Enquanto fato antropológico, o cinema apresenta uma certa quantidade de contornos, de figuras e de estruturas estáveis, que merecem ser estudadas diretamente. Vemos a todo momento o fato fílmico ser considerado, na sua realidade mais geral, como coisa natural e óbvia; e no entanto há ainda tanta coisa por dizer a respeito... 2

Para o autor, um filme não se extingue somente enquanto assunto de teóricos do cinema: embora para eles os filmes constituam seu universo total de análise, há (e deve haver) outras abordagens teóricas a seu respeito. A leitura que a sétima arte faz da 1

Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. 2 METZ, Christian. A Significação no Cinema. Ed. Perspectiva. São Paulo. 1972. pg. 16.

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realidade é fundamental para as ciências sociais e seus diversos ramos, pois constitui uma ida direta a alguns setores antes invisíveis da sociedade. O público e suas reações são uma parte importante para a compreensão do “fato fílmico”. Por outro lado, a trama e as imagens também se transformam em estruturas sociológicas na medida em que contam algo a respeito do mundo em que vivemos. A história ali contada é parte de uma realidade. Mesmo em se tratando de um filme de ficção, há uma correlação entre ele e a sociedade na qual está inserido, seja para passar idéias e valores já aceitos, seja para despertar sensações no público. Tais sensações e a possibilidade de reconhecê-las complementam outros ângulos do quadro analítico do cinema. Diversas atividades ocorrem em nossa mente e a atenção, a emoção e muitos outros aspectos da experiência individual entram em operação quando se assiste a um filme. O ponto central ao redor do qual construímos nossos argumentos é a idéia de que o cinema não se resume a um conjunto de filmes, mas, antes, revela toda sua potencialidade na interação que estabelece com o público: o cinema é a interação entre obra e espectador, através de recursos estilísticos e artísticos que garantem a efetividade desta interação, ou seja, que garantem ao público alguma experiência que não acontece no seu dia a dia, sendo somente possível na sala escura. Sendo o público um importante elemento na discussão sobre o cinema, surgem várias possibilidades de considerá-lo, metodologicamente. Seja como voz de uma parte da sociedade, seja como protagonista definidor do gosto social, a entidade público decompõe-se em uma infinidade de espectadores que, lado a lado, compartilham a experiência cinematográfica. Aliás, é exatamente esta característica do cinema, que consegue atingir diversos tipos de pessoas tão diferentes entre si, que torna o fator público um problema metodológico. Antes de definirmos como pensaremos sobre os espectadores, convém ressaltar que o que propomos não é uma análise fílmica, mas sim uma análise cinematográfica que privilegia, simultaneamente, o filme em si, o público que o recebe e a mensagem que ele passa. Como o cinema, para nós, é interação – cinema interacional –, tratá-lo sem quaisquer um daqueles elementos é reduzi-lo a um campo de interesse distante das ciências sociais. *** O cinema é uma forma de arte. Tal classificação, embora possa gerar controvérsias acadêmicas, adquire, pelo menos, uma possível veracidade se a 2

colocarmos no plano das funções da arte, para além da mera análise conceitual. Enquanto arte, em sentido lato, o cinema representa uma possibilidade de vislumbramento da realidade social, da qual advém sua força e características principais. Nesse aspecto, a realização plena do cinema como instrumento de leitura do mundo parte menos do conteúdo das histórias que conta e mais da forma como as conta. Segundo Jorge Luiz Barbosa, a arte é um instrumento que nos permite visualizar o espaço social, um instrumento de percepção e reconhecimento da realidade. As obras apresentam perguntas e respostas sobre a vida inventando uma linguagem que nos mostra lados ignorados de nossa própria existência e tornando-se um modo de entender e agir no mundo: as representações interpretam nossa vida social e intervêm nelas. Sua função é criar uma nova linguagem a partir de um distanciamento do real para melhor interpretá-lo, fornecendo aos indivíduos a possibilidade de conferirem novos significados para sua existência: torna-se um modo de entender e de agir no mundo3. Por sua vez, em termos de forma estética, a maior potencialidade do cinema em relação às demais artes está na redefinição das relações entre espaço e tempo, na plasticidade que a narrativa cinematográfica impõe a estes elementos, resultando no reviver do imaginário social e no despertar da sensibilidade intelectual para uma nova leitura do mundo, refazendo pulsões e memórias com uma carga de realidade ímpar. Assim, A escritura cinematográfica se exprime como um pedaço do mundo que nos olha e nos representa. Construindo ficções visíveis, o cinema se apropria de modo particular do espaço e do tempo através das texturas do cenário, montagem, luz, som e edição. Neste sentido, representações são construídas através da escrita cinematográfica como arquivos e narrativas da diversidade do espaço social.4

Entrar na sala escura é mergulhar em um novo mundo. Um mundo sugerido pelo diretor e comprado pelos espectadores acostumados com a linguagem de uma visão quase sempre diferente das suas próprias. Qualquer espectador de O Senhor dos Anéis, por exemplo, pode perceber as diferenças entre o filme e o livro mas, mesmo assim, entende (ou, pelo menos, deveria entender) que são duas linguagens diferentes. O que atrai, outrossim, uma multidão em direção às salas escuras e o que, por outro lado, muitas vezes desperta críticas negativas, é exatamente este novo formato da história que há muito já foi contada. Materializam-se todas as personagens, cada cenário, todos os 3

BARBOSA, Jorge Luís. A arte de representar como reconhecimento do mundo: o espaço geográfico, o cinema e o imaginário social. GEOgraphia, Ano II, n°3. Niterói, 2000. p. 69-122. 4 Ibid. p. 81.

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medos, desesperos, angústias daquela terra distante, e é papel do espectador entender esta mensagem e perceber a nova linguagem. De qualquer maneira, a experiência fílmica é mais do que a história, o roteiro; é mais do que um suposto conteúdo que se apresenta no papel: o cinema existe somente quando se coloca na tela o que foi escrito e, daí, ser uma experiência completamente diferente da leitura da história: O conteúdo de um filme é muito mais que o conteúdo de um roteiro, por mais perfeito que ele seja. Se aqui ele é pura literatura, ali ele vai ser reelaborado por outra linguagem, essencialmente mais ambígua e abstrata. São as imagens criadas pelo cineasta que dão às letras mortas de um roteiro a consistência de um conteúdo que vai ser absorvido pela platéia. Esse conteúdo não existe, nem preexiste, às formas que o fazem nascer. E essa é a razão pela qual, um mesmo roteiro, filmado por dois cineastas diferentes podem levar a “conteúdos” bastante diferentes, quando não mesmo antagônicos.5

No contexto deste novo mundo, as raízes do cinema podem ser entendidas a partir do teatro: a vontade humana de contar histórias é mais antiga, porém é o teatro que nos trouxe a encenação, a ação de homens imitando homens. No plano teatral, apresentam-se duas estéticas diferentes a fim de permitir maior amplitude sobre a análise da realidade no cinema. O teatro não tem características similares às do cinema, entretanto, também pretende efetuar experiências que contenham relações com a realidade. Duas estéticas foram então construídas a partir dessa finalidade: de um lado, a estética aristotélica, que leva os espectadores a “mergulhar” na peça e a senti-la como realidade que está sendo contada, mesclando-se às personagens e sentindo o que elas sentem. Por outro lado, a estética desenvolvida pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht prega um teatro que retire o espectador da inércia em que o espetáculo pode colocá-lo se tentar mesclar o público às sensações e emoções das personagens. Segundo Gerd Bornheim, para Brecht, o fundamental é distanciar a platéia (efeito distanciamento), de modo a reiterar, no próprio corpo da peça, elementos que atestem que aquilo é apenas teatro, não é real, possibilitando ao público reações autônomas, nas quais ele reflete sobre as ações e sensações, com uma atitude crítica6. O teatro aristotélico é o ponto de partida teórico para entendermos como a ficção é capaz de atrair tantas pessoas. Anatol Rosenfeld explica que tal forma dramática do teatro se caracteriza pela imitação de acontecimentos como se estivessem ocorrendo em plena atualidade, verdadeiramente, com um desenvolvimento autônomo sem 5

MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. Cinema: imagem e interpretação. Tempo Social. Rev. Sociol. USP. Out. São Paulo, 1996. p. 83 – 104. p. 91. 6 BORNHEIM, Gerd. Brecht: A estética do teatro. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1992.

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intervenção do autor. É aqui que o espectador compra o pacote de informações que o espetáculo mostra e mergulha na história, observando atentamente cada movimentação das personagens e se imaginando no seu lugar, sentindo o que elas sentem7. Para Giba Assis Brasil, é exatamente o “grau de realidade” que caracteriza os filmes baseados nesta estética aristotélica: eles “têm de corresponder ao esperado: o ator que encarna o sujeito deve fingir escorregar na casca de banana, e o espectador deve fingir acreditar que isso ocorreu”8. O outro lado desta estética, e que a complementa em termos de significado para o espectador, é a famosa proposição de Samuel Taylor Coleridge da willing suspension of disbelief, publicada pela primeira vez no livro Biographia Literaria, em 1817. Coleridge monta seu conceito definindo dois tipos de poesia, uma que se baseia em personagens e histórias sobrenaturais, e outra que busca inspiração nos fatos do dia a dia. Quando Wordsworth e ele publicaram Lyrical Ballads, Coleridge comentou que, ao contrário de Wordsworth, seu trabalho era baseado no primeiro tipo de poesia, e definiu a aptidão da leitura a partir da suspensão da descrença In this idea originated the plan of the Lyrical Ballads; in which it was agreed that my endeavours should be directed to persons and characters supernatural, or at least romantic; yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith.9

Tal fé poética, que é a suspensão voluntária da descrença, baseia-se na premissa de que o espectador da obra de arte, por vontade própria, suspende provisoriamente sua descrença, aceitando como real as premissas da obra de ficção, mesmo que fantásticas ou impossíveis de acontecerem. A suspensão da descrença é defendida, aqui, como um fluxo que deve ser mantido pela própria estrutura narrativa da obra em questão. Assistir um filme é um jogo. Toda a mágica do cinema depende da aceitação, da imersão, da compra de um pacote de luzes e sons que nos transporta para outro mundo. Trata-se de um jogo de percepção: “é mediante a percepção que podemos compreender a significação do cinema: um filme não é pensado e, sim, percebido”10, e, neste jogo, o filme influencia o público a partir de determinados elementos que caracterizam a comentada realidade que ele propõe. Logicamente, há vários caminhos de análise do material fílmico, porém, na 7

ROSENFELD, Anatol. Teatro Moderno. 2° ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1973. BRASIL, Giba Assis. Graus de realidade no audiovisual. Interseções – R. de Est. Interdisc., UERJ, ano 5, n° 1, Rio de Janeiro, 2003. p. 81-89. p. 84. 9 COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria. Londres: J. M. Dent, 1993. p. 168/169. 10 MERLEAU-PONTY apud MENEZES, Paulo Roberto Arruda de. Op. cit. p. 86 8

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opção pela análise cinematográfica, que leva em consideração mensagem, imagem e espectador, aqueles que para nós são os mais importantes são os que definem a impressão de realidade: o tempo, o espaço, o movimento e a atenção. A inovação que o cinema trouxe, no plano da arte em geral, foi a introdução do movimento nas reproduções visuais. O movimento acabou se tornando o catalisador a partir do qual a evolução dos filmes foi possível, sendo agregado a ele novos elementos, como o som, as formas dinâmicas de filmagem (o close, por exemplo) e, atualmente, a alta qualidade dos efeitos especiais. No entanto, a conseqüência do movimento é a realidade, a percepção deste movimento como real, o que garante, outrossim, a sensação de realidade do filme como um todo: para Christian Metz é exatamente a conjugação do movimento com a clareza das imagens e aparência das formas que leva à percepção da realidade e da concretude dos objetos. Para além da movimentação, as imagens oferecidas pelo cinema abrangem dois níveis que sempre atuam em conjunto e também são base da impressão de realidade: a redefinição do espaço e a construção do tempo. Com relação à redefinição do espaço, Menezes elucida que o cinema trabalha com duas “ordens” de espaços: há nos filmes a mera reprodução de espaços físicos e, paralelamente, a produção de espaços singulares. O primeiro grupo envolve os espaços que aparecem, obedecendo, somente, às leis físicas, uma reprodução pura e simples de espaços (uma montanha, uma rua e uma casa, por exemplo), enquanto o segundo grupo abrange os tipos de espaço que obedecem às leis psicológicas das personagens, construídos através da montagem do filme, com uma plasticidade apenas possível por meio de jogos de câmera (a exemplo das deformidades espaciais, retratadas como conseqüência de um surto psicótico de uma personagem). O espaço no cinema, então, se identifica com a realidade em dois patamares: por um lado, o espaço físico mais facilmente se sugere como real por causa das suas próprias características, que não invocam do espectador qualquer atividade imaginativa. Do outro, os espaços psicológicos, embora impossíveis de existir, são identificados com a realidade a partir da introspecção do espectador na história e do seu envolvimento emocional com ela, com a percepção da plausibilidade daquele espaço, considerando a carga fictícia que o deformou. Além do espaço, a construção do tempo no filme é outro elemento que fornece base à impressão da realidade sugerida pelo cinema. A temporalidade injeta um grau tão intenso de identificação com a realidade que conseguimos relacionar o modo como nós sentimos o tempo com o tempo que nos é mostrado pela sétima arte. A maneira como 6

nós o sentimos varia de acordo com a relação psíquica que estabelecemos com o evento naquele momento, e o “tempo sentido” é sempre diferente da temporalidade medida pelo relógio. Como todo e qualquer espaço fílmico é produzido pelo cinema, a relação estabelecida entre tais espaços, os atributos psicológicos das personagens (que modificam aqueles espaços), a justaposição dos espaços (comandada pelo tempo do filme, também criado) e a própria carga da história, resultam em uma experiência temporal próximo do nosso “tempo psicológico” registrado na memória. Assim, ainda conforme Menezes, a sucessão de espaços assimétricos e plásticos dos filmes é subordinada a uma construção temporal, e o estágio final dessa relação, as imagens mostradas, transformam o cineasta em um construtor de sensações. O ritmo do tempo e do espaço é comandado pela história contada. Nesse contexto, como o processamento do sentido e do grau de realidade ocorre no espectador, sua atenção é fundamental para a percepção do filme ser efetivada. Hugo Munsterberg define que graças à atenção somos capazes de selecionar e definir o que é importante e significativo, e organizar as impressões em experiências11. Se até agora defendemos o cinema como forma de leitura do mundo, e a impressão da realidade sugere o filme como real, trazendo-nos experiências novas ou impossíveis de existir fora da tela, a atenção adquire, no cinema, a mesma função que tem na vida: ela destaca o significativo. Percebe-se, assim, a atenção como um dos seus elementos mais importantes, pois a cada cena que observamos estamos relacionando-a a experiências anteriores próprias, mobilizando sentimentos e emoções e gerando idéias e pensamentos, que se aliam à continuidade da trama que, por sua vez, conduz a atenção. Desse modo, para Munsterberg, existem dois tipos de atenção que entram no jogo da arte: a voluntária e a involuntária. Na voluntária, o foco da atenção é interno, sendo nosso interesse pessoal quem a dirige; aqui, a escolha antecipada do objetivo nos faz excluir tudo que não nos satisfaça. Já na involuntária, o que define sua direção são fatores extrínsecos, cujo foco é dado pelas coisas externas, como objetos, por exemplo. A diferença do cinema em relação às outras artes é que, nos filmes, idealmente, prevalece a atenção involuntária sobre a voluntária. Quando assistimos a um filme, para o grande público que busca diversão e sensações com base na identificação e suspensão da descrença, não deve haver interesse preconcebido a nos guiar. Embora possamos

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MUNSTERBERG, Hugo. A Atenção. In: XAVIER, Ismail (org.). A Experiência do Cinema (Antologia). Col. Arte e Cultura, Vol. 5. Rio de Janeiro: Ed. Graal: Embrafilme, 1983, p. 27-54.

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assisti-lo interessados apenas em determinado ator, ou em alguma peculiaridade qualquer, o objetivo do cinema, a princípio, não é esse. Com o mergulho no filme e as técnicas de câmera (close up e cut back, por exemplo), são as imagens que conduzem nossa atenção e, assim, nos mostram, esteticamente, o relevante para a história, já que o movimento subjetivo de excluir, na mente, o irrelevante, é recriado diretamente na tela, pelas imagens, e reformula o próprio espaço fílmico: o mundo objetivo molda-se aos interesses do discurso cinematográfico, o que garante a profundidade do cinema e da experiência a ser uma arte de sensação, reforçando a realidade ficcional sugerida a partir da identificação do nosso modelo psíquico com a imagem projetada. A partir do momento em que, plasticamente, o filme, por exemplo, dá um close up apenas na arma do crime que está sendo mostrada pela personagem, a focalização do detalhe converge toda nossa atenção para ele e, assim, a narração continua: o cinema monta o espaço e o tempo, por conseguinte, da mesma forma que o fazemos cotidianamente na nossa mente (guardamos o relevante e excluímos o irrelevante). Nossas idéias, sentimentos e impulsos se organizam ao redor do privilegiado na tela (atenção involuntária), e a eliminação estética de tudo o que é supérfluo para a trama é intensificada pela própria característica da imagem cinematográfica. *** O cinema é uma construção feita a partir da realidade, uma construção que se dirige para nosso imaginário. Contudo, analisá-lo como se fosse uma experiência ilusória, uma ilusão da realidade, é uma forma superficial de perceber caráter da sétima arte. Não podemos representar todas as características cinematográficas como ilusão, visto que, como entendemos, tal termo encobre em si uma falsidade perceptível no momento em que se constitui o fato, condições que não correspondem à realidade que está impressa nos filmes, haja vista a suspensão da descrença que a organiza. É inegável a realidade das sensações que o cinema desperta nos espectadores, bem como a realidade das características que ele apresenta na tela: nenhum movimento, por exemplo, é uma ilusão; ao contrário, ele é percebido como real exatamente porque, com a projeção em 24 quadros por segundo, ele é real, idêntico à nossa velocidade cotidiana. Da mesma forma, os usos da câmera lenta ou acelerada não são uma ilusão em relação à realidade, mas expressam de forma idêntica o modo como nós relacionamos mentalmente o tempo: materializa-se nossa ação mental, nossas sensações. Nenhum cineasta pretende fazer um filme de ficção para fingir uma ilusão 8

mágica; na estética aristotélica, o objetivo é efetivamente apresentar tal situação – ela vira uma situação real na tela: não somos iludidos, mas viramos testemunhas do filme. É Metz quem fornece tal subsídio teórico. A impressão de realidade nos filmes é a responsável pelo encontro do cinema com o grande público, em um número muito maior do que nas outras artes. Tal impressão desencadeia a credibilidade usando o convincente argumento do “é assim” na relação que estabelece com a platéia. Qualquer irrealismo no cinema apresenta-se como um acontecimento e não como uma ilustração, como algo inventado, nunca como ilusão. Dessa forma, para nós, o universo ficcional que o cinema cria demanda não apenas que o espectador se desligue da realidade. Ele tem que se ligar a outra coisa, “mergulhar” no filme, ou seja, em outra realidade. São os elementos fílmicos analisados (tempo e espaço plásticos da mesma forma que são construídos na nossa mente, o movimento real e a tela que reproduz nossa ação mental de prestar atenção) que garantem tal transferência, e o papel ativo do espectador fecha o ato. De um lado, o cinema garante a realidade dos materiais usados, e por outro, o espectador tem a impressão da realidade a partir da sua ação de transferência para o filme. Desta forma, o cinema interacional se define não a partir de um espectador passivo, mas, antes, o cinema é a interação entre o filme e o espectador, demandando de ambos atitudes ativas: o filme que traz uma realidade e o espectador que se transfere para ela. E o que é essa realidade? A percepção da realidade é sempre realizada a partir da relação com o mundo mediada pelo cérebro, de modo que a representação que nosso aparelho psíquico faz do mundo em qualquer ocasião é sempre diferente do mundo real, já que nós o acessamos através dos sentidos, cheios de limites e barreira. Como a construção psíquica da realidade é mediada pelo sistema nervoso, qualquer momento da atividade de observação e percepção traz consigo um papel ativo do observador, resultando na criação de modelos mentais do mundo que nos cerca, impossível de ser realmente verificável tal qual realmente é. Ademais, “normalmente, não nos damos conta de que grande parte daquilo que percebemos quotidianamente é uma construção ativa do nosso sistema nervoso” 12. A participação ativa do nosso aparelho psíquico na construção das percepções, para além das sensações puramente orgânicas, não é um fato que ocorre só na arte, caso este que, se assim fosse, transformaria o cinema em uma ilusão. A construção psíquica 12

BALDO, Marcus Vinícius C. & HADDAD, Hamilton. Ilusões: o olho mágico da percepção. Rev. Brasileira de Psiquiatria., vol.25 supl.2, 2003, p. 6-11. p. 08.

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acontece diariamente, nas mais diversas atividades e momentos do nosso cotidiano. Deste modo, acreditar na ficção no momento da projeção não a transforma em uma ilusão, tendo em vista a suspensão da descrença e a própria identificação que o filme sugestiona. No mergulho do filme, no momento em que estamos imersos nas sensações que estão passando, o objetivo da estética aristotélica não é despertar dúvidas, mas reforçar a crença naquela história, naquela realidade psíquica na qual mergulhamos. A apreensão da arte, assim, depende tanto da obra, quanto do seu apreciador, que opta por acreditar naquela realidade, de modo que toda a realidade está sempre em nós mesmos – uma realidade psíquica. Dessa forma, há diferentes ordens do real plausíveis em si mesmas, que William James chama de “subuniversos”, e “cada um desses mundos, enquanto desperta nossa atenção, é real a seu próprio modo, e qualquer que seja a sua relação com nossa mente, se não houver uma relação mais forte com a qual se conflitue, bastará para tornar este objeto real”13. Ora, o que se percebe até o momento, com base na suspensão da descrença e na estética aristotélica, é que o cinema constituise como uma realidade, um “subuniverso” se preferirmos, que no momento da sua apreensão monta-se como real por não haver nenhuma outra ordem mais forte com a qual conflitue: novamente, estamos argumentando este caráter de realidade enquanto a suspensão da descrença está operante, partindo da noção de que, neste momento (e só neste momento), o cinema é sensação, ao contrário do momento posterior, quando saímos da descrença e confrontamos o que sentimos com a realidade da vida cotidiana. O cinema é um limite, uma fronteira. Uma divisa entre o aqui e agora de um tempo e espaço que conhecemos muito bem, e outra realidade construída para a qual nos transportamos, tendo em vista que “o liminar nos oferece uma visão do mundo, que normalmente não enxergamos, cegados pelas estruturas usuais da vida social e cultural”14. Para além do écran, há outro mundo com o qual nos deliciamos e, aquém, estamos nas poltronas, sentados. A magia do cinema ocorre exatamente porque durante o filme, idealmente, não percebemos nossa condição de espectadores. Durante o filme, não há cognição da nossa condição de público: busca-se o instante, o momento de sensação profunda que nosso dia a dia pouco oferece, ou melhor, que apenas a partir da sua construção psíquica nós experimentamos. *** 13

JAMES, William apud SCHÜTZ, Alfred. Dom Quixote e o Problema da Realidade. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da Literatura em suas Fontes. Vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed., 1975. pp. 191-213. p. 192. 14 CRAPANZANO, Vincent. Horizontes imaginativos e o aquém e além. Revista de Antropologia , v. 48, n. 1, São Paulo, 2005. p. 363-384. p. 380.

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Voltemos ao começo. Já discutimos como o filme é percebido pelo público, pelas suas qualidades técnicas e estilísticas: como uma realidade psíquica. Contudo, o modo como esta realidade se mantém e se forma ainda não foi exaurido suficientemente do ponto de vista da interação entre público e filme, apesar das já citadas características da suspensão da descrença e da estética aristotélica de identificação. De acordo com Wolfgang Iser, a oposição entre real e ficção deve ser traduzida na forma de uma tríade, pois “como o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição deste real, então o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de um imaginário”15. Interessante é ressaltar que, embora para Iser a literatura seja um “fingimento” (atos de fingir), nós vivenciamos experiências nesse reino ilusório. Ora, esta conceituação da literatura não nos parece distante do nosso entendimento do cinema como realidade psíquica: enquanto Iser discute a literatura no momento da constituição da interação entre fictício e imaginário chamando este contexto de atos de fingir, e, afinal, até mesmo no cinema há um acordo para vivificar a obra e torná-la plausível de exercer influência sobre nós (a suspensão da descrença), a conseqüência desta interação, no plano sensitivo, é a experimentação de uma realidade psíquica, o que potencializa e garante, outrossim, a realização daquela experiência. Parece-nos, portanto, que estamos no mesmo contexto, com abordagens e ângulos diferentes, mas que permitem diálogo. Aliás, é o próprio Iser quem afirma que “há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional”16, realidades, portanto, psíquicas. O ponto fundamental é que tais realidades que estão presentes no texto ficcional se referem à ordem do real sem se esgotar nessa referência: ao contrário, a repetição da realidade cria novas finalidades anteriormente não existentes. O fictício das obras literárias (e cinematográficas) é uma fronteira que articula o mundo ultrapassado, o real que elas incorporam, com um mundo que não existe, mas que é encarado como se estivesse presente. A experimentação do texto/filme ocorre, contudo, quanto o fingir se transforma em signo, aliando-se ao imaginário. Enquanto no dia a dia o imaginário manifesta-se difuso e fluido diretamente na nossa experiência, como sonhos, fantasias e devaneios, os atos de fingir da literatura estabelecem uma determinação especial que transladam o imaginário a um objetivo específico: “no ato de fingir, o imaginário ganha 15

ISER, Wolfgang. O Fictício e o Imaginário: Perspectivas de uma Antropologia Literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. p. 12. 16 Ibid. p. 14.

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uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um atributo de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real”17. Dessa forma, o ato de fingir é uma transgressão de limites, diante do qual o imaginário realiza-se saindo de um estado de difusão para um de determinação. No cinema, os atos de fingir mantêm-se da mesma forma como na literatura. De um lado, na ficção cinematográfica, há a seleção e combinação de elementos retirados do contexto do mundo empírico e recriados em um mundo fictício que, ao se apresentar como fictício sem dissimular seu caráter, possibilita o acontecimento de situações que, de outra forma, não poderiam ocorrer. O imaginário realiza-se na finalidade do fictício, e voltamos, aqui, à percepção do cinema como uma realidade psíquica (porque existente apenas na mente do espectador). Para Iser, O fictício depende do imaginário para realizar plenamente aquilo que tem em mira, pois o que tem em mira só aponta para alguma coisa, alguma coisa que não se configura em decorrência de se estar apontando para ela: é preciso imaginála. O fictício compele o imaginário a assumir forma, ao mesmo tempo em que serve como meio para a manifestação deste. O fictício tem de ativar o imaginário, uma vez que a realização de intenções requer atos de imaginação (imaginings). A imaginação, como se sabe, não é um potencial auto-ativável. Não a chamaria de faculdade, porque o termo já subordina a imaginação a um tipo especifico de discurso que determinou o que ela é, de Aristóteles a Kant. Como não constitui um potencial auto-ativável, o imaginário precisa ser impelido a agir, precisa ser direcionado e moldado. A intencionalidade não pode produzir por si mesma aquilo que tem em mira. Tal produção só ocorre quando o imaginário é estimulado e com isso ativado. O que se quer dizer com forçar o imaginário a assumir forma, considerando-se que o fictício precisa do imaginário para encontrar sua realização adequada? A resposta é que os atos de fingir descortinam um horizonte de possibilidades para o que é, permanecendo, nesse sentido, ligados a realidades.18

Paralelamente, o processo de leitura, tal qual Iser propõe, desenvolve-se entre dois pólos em constante interação: a estrutura da obra e seu receptor, o pólo artístico – o texto desenvolvido pelo autor –, e o pólo estético – a concretização da obra pelo leitor –. A obra é sempre virtual, não podendo ser resumida nem a um pólo nem a outro, mas edificada a partir da interação entre texto e leitor, de onde provém a realização do seu sentido. As estruturas do sentido preenchem seu significado à medida que afetam o leitor, sendo ao mesmo tempo estrutura verbal, que dirige a reação, e estrutura afetiva, cumprimento do que é estruturado verbalmente. Contudo, as estruturas que a obra 17 18

Ibid. p. 15. Ibid. p. 70.

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fornece e que se atualizam na leitura não são fechadas ou imunes à atuação do leitor, mas antes recebem influência e participação desse: Podemos admitir sem nenhuma dificuldade que esses atos de apreensão são orientados pelas estruturas do texto, mas não completamente controlados por elas. Aqui se pressente a arbitrariedade. É preciso, no entanto, levar em conta que os textos ficcionais constituem seu próprio objeto e não copiam objetos já dados. [...] Em conseqüência, a objetividade constituída pelos textos ficcionais não se confunde com a definição dos objetos reais; os textos contêm elementos de indefinição. Essa indeterminação não é um defeito, mas constitui as condições elementares de comunicação do texto que possibilitam que o leitor participe na produção da interação textual.19

A possibilidade de comunicação no cinema se consolida também à medida que o público participa da constituição de sentido da obra. Da mesma forma que Iser coloca, os atos de apreensão fílmica possuem arbitrariedade, muito embora a suspensão da descrença coloque um tipo ideal de absorção do filme que, durante os momentos de exibição, se solidifica em torno das sensações. Ao longo da exibição, a conseqüência da interação entre a estrutura do texto, com a definição das estruturas do sentido, e a estrutura imaginativa do leitor, que fecha o ciclo narrativo do filme, resulta na comunicação entre obra e espectador, tendo, outrossim, como cerne, a mensagem que o filme quer passar, a significação discursiva do sentido apresentado referencialmente no texto. Logicamente, trata-se de um tipo ideal de apreensão (o espectador pode, por exemplo, não mergulhar na suspensão da descrença), no qual o momento interpretativocognitivo habita o instante posterior ao momento sensitivo do efeito estético. Similarmente aos filmes, [...] o texto literário estrutura de “antemão” esses resultados, de modo que, na fase de realização, o receptor os atualiza de acordo com seus próprios princípios de seleção. Assim considerando, podemos dizer que os textos literários ativam sobretudo processos de realização de sentido. Sua qualidade estética está nessa “estrutura de realização”, que não pode ser idêntica com o produto, pois sem a participação do leitor não se constitui o sentido. Em conseqüência, a qualidade dos textos literários se fundamenta na capacidade de produzir algo que eles próprios não são.20

Segundo Hans Ulrich Gumbrecht, comentando a obra de Iser, a comunicação a que ele se refere deve satisfazer as condições do leitor e do texto de compartilharem um certo número de convenções tematizadas neste, além de que o emprego da convenção deve ser feito de maneira a adequar-se a aceitações daquele. Continua Gumbrecht 19 20

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura – Uma Teoria do Efeito Estético. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1996. P. 57. Ibid. p. 62.

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afirmando que, no pólo textual, o repertório do texto como um sistema de sentido adquire vivacidade a partir do mundo extratextual, em especial o sistema de sentido da época e os padrões literários anteriores. No texto, tais segmentos estão isolados do contexto social que lhes dá base estando dispostos e recombinados com outros conhecimentos, o que Iser chama de “valor estético”. Ao leitor compete a formulação de uma nova combinação levando em conta seu sistema de referências, dos segmentos apresentados pelo texto, o que Iser denomina “objeto estético” 21. O ponto nevrálgico de Iser é a concepção de que o texto, ao montar seu repertório, extrai elementos de diversas partes do saber social, reunindo-os novamente em uma configuração desconhecida, enquanto estrutura coerente, pelo leitor. Além dessa reprodução de saberes sociais, há uma problematização dos mesmos à proporção em que o texto encoraja a assimilação de configurações ali não presentes. O texto traz, assim, a possibilidade de experimentação de situações excluídas do saber social. A estética do efeito advém, destarte, das investigações sobre o que ocorre ao leitor no momento do ato da leitura. O texto transforma-se num evento, “uma ocorrência que ultrapassa todos os sistemas de referência existentes, não podendo portanto ser subsumida sob a categoria do familiar, do já conhecido”22, cujo interesse traduz-se nas indagações sobre como as estruturas textuais prefiguram o processamento do texto pelo leitor. Ademais, subjaz a esta proposta uma estrutura de texto permanente, imutável historicamente (a obra não muda com o passar do tempo), que se traduz no leitor implícito. Neste sentido, o leitor implícito não é o leitor empírico, aquele que verdadeiramente lê o texto. Trata-se de uma estratégia textual que já prevê, no texto, um leitor sem necessariamente defini-lo; um leitor fictício que compõe o papel do leitor. O texto, outrossim, é uma experiência de transformação do leitor empírico. Decorre desta conceituação de que o leitor implícito representa um ponto de vista que se constrói no e pelo texto. O leitor implícito “não tem existência real; ele materializa o conjunto de preorientações que um texto ficcional oferece, como condição de recepção, a seus possíveis leitores”23, fundado, portanto, no texto. Como este só adquire realidade ao ser 21

GUMBRECHT, Hans Ulrich. A Teoria do Efeito Estético de Wolfgang Iser. In: LIMA, Luis Costa (org.). Teoria da Literatura em suas Fontes. Vol. 2. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. pp. 417-441. p. 421 segs. 22 ISER, Wolfgang. Teoria da Recepção: reação a uma circunstância história. In: CASTRO ROCHA, João Cezar de (org.). Teoria da Ficção: Indagações à Obra de Wolfgang Iser. VII Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1999. pp. 19 – 35. p. 26. 23 ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura – Uma Teoria do Efeito Estético. Vol. 2. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 73.

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lido, suas condições de atualização já estão previstas em si mesmo, permitindo a constituição do sentido pelo leitor. Como o texto propõe aos leitores papéis, o leitor implícito resolve a tensão entre obra e leitor empírico, pois havendo necessidade de sintonia entre o leitor real e as estratégias e efeitos do texto, no momento em que assumimos o papel proposto, o leitor implícito cumpre sua função. O leitor implícito proposto pelo texto tem uma definição dupla: primeiro, definese como estrutura do texto, e, segundo, como estrutura do ato. Em relação à primeira definição, cada texto apresenta uma perspectiva de mundo criada pelo autor e, em si, o texto, ele próprio, é uma figura de perspectiva, que determina a possibilidade da sua compreensão enquanto constructo. Narrador, personagens, enredo, falas, todos são perspectivas textuais que não contêm em si o sentido do texto; ao contrário, são orientações que devem ser relacionadas para a formação do quadro de referências, de modo que a estrutura textual impõe ao leitor um ponto de vista – resultado da perspectiva interna do texto – que permite a integração daquelas perspectivas. “Só quando todas as perspectivas do texto convergem no quadro comum de referências o ponto de vista do leitor torna-se adequado”24. O papel do leitor (ou leitor implícito) delineado no texto permite que o leitor empírico, real, assuma o ponto de vista previamente dado, conseguindo juntar as perspectivas, atribuindo sentido a cada uma delas. Quanto à segunda definição, as perspectivas do texto agem como instruções visando um quadro comum de referências que, contudo, não existe no texto, mas apenas na imaginação do leitor. Como estrutura do ato, é a função primordial do leitor implícito despertar a imaginação do leitor empírico para reunir a diversidade de perspectivas do texto no horizonte comum do sentido, sentido este que não é dado de imediato no texto, mas atualizado somente na consciência e imaginação do leitor. “A estrutura do texto e a estrutura do ato se relacionam da mesma maneira como intenção e preenchimento”25, muito embora seu cumprimento total seja uma forma idealizada de se encarar a questão, da mesma forma que o cumprimento total da willing suspension of disbelief também se traduz numa possibilidade ideal, como o próprio Iser argumenta e como nós mesmos a encaramos ao longo deste trabalho. O leitor implícito, porém, nunca é completamente assumido no seu ato de apreensão do texto: a teoria de Iser e a suspensão da descrença não significam um completo anestesiamento do leitor, 24 25

ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura – Uma Teoria do Efeito Estético. Vol. 1. p. 74. Ibid. p. 76.

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mas uma maneira específica de apreender a obra, na qual disposições do leitor e papéis do texto estão em equilíbrio. O leitor implícito, enquanto uma estrutura do texto que conduz nosso ponto de vista, baseia-se sempre no nosso acesso perspectivístico ao mundo – perspectivístico porque seleciona o importante para nós naquele momento, excluindo o que não retém nosso interesse –, nossas realidades psíquicas sendo construídas e reconstruídas segundo o ponto de vista imperante naquele momento. O papel do leitor tem a função de, primeiro, situar o leitor empírico no texto e guiá-lo na constituição do horizonte de sentido das perspectivas presentes; e, segundo, estimular a imaginação do leitor, única instância capaz de captar e dar sentido a algo não existente, focando transferir para a mente a estrutura do texto. Por sua vez, no campo cinematográfico, o espectador implícito surge similarmente ao leitor implícito, como um conjunto de preorientações da narrativa fílmica na formulação de um ponto de vista criado no e pelo filme, no qual narrador, protagonista, demais personagens, diálogos e todas as imagens são perspectivas fílmicas que devem ser relacionadas em um quadro de referência responsável pelo ponto de vista que está sendo mostrado. É tarefa do espectador implícito, destarte, despertar a imaginação do espectador empírico, instruí-lo na conformação dos elementos do filme em uma perspectiva textualmente construída. Construímos, portanto, o sentido de um filme a partir do quadro de referências e ponto de vista propostos pelo espectador implícito, e, de maneira imaginativa, articulando as lacunas que o filme tem em si, conectando as informações dadas. O espectador implícito monta o filme para nossa apreensão. Como toda realidade é sempre psíquica, o filme assim se mantém. No entanto, além de psíquica, qualquer realidade é sempre perspectivística26, eis que se atém aos elementos que definimos como prioritários em relação a outros. A construção do mundo fílmico pelo espectador implícito leva em consideração que o horizonte de expectativas fílmico é uma perspectiva de um ponto de vista. A construção dessa realidade psíquica e perspectivística (porque deixa de lado uma série de outros elementos) exige a participação do espectador empírico, dos seus atos imaginativos que articulam o sentido do filme reflexivamente: na interação da obra com o espectador, do fictício com o 26

Classificamos como realidade perspectivística nossa interação com o meio que nos cerca: duas pessoas, por exemplo, testemunhando um mesmo fato, não o descrevem da mesma maneira. Mentalmente, cada uma constrói sua memória de maneira diferente, levando em conta aspectos que, para a outra, são menos importantes. É nesse sentido, e somente nesse, que usamos a noção de perspectiva.

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imaginário, suspendemos as dúvidas, críticas, desconfianças, mas não nossa consciência e horizonte imaginativo, fundamentais para que se estabeleça a comunicação com o filme. Os sentidos dos filmes se constroem e se mantêm reflexivamente exigindo dos atos imaginativos do espectador, durante a exibição, constante apreensão dos elementos e perspectivas fílmicos importantes para sua compreensão e interpretação no sentido da disposição seqüencial, elaboração da correlação entre todos os elementos a partir das instruções do espectador implícito – o que mantém a estrutura fílmica controlada e não arbitrariamente construída –, e entendimento das razões da história como um todo. *** Por fim, o imaginário deve manifestar-se na ficção: eis o objeto (ou seria função?) do cinema. Mas a pergunta é: a partir de onde o imaginário deve manifestarse? Ou melhor, sobre qual aparato o imaginário apóia-se na sua manifestação? Segundo Benjamin, o cinema traz uma descrição da realidade mais significativa para o homem moderno ao narrar todo o condicionamento de sua existência, pois a técnica, inerente ao cinema, permite criar um aspecto da realidade que não sofre nenhuma manipulação dos aparelhos técnicos (precisamente porque integram a própria construção do filme), além de que, através deles, penetramos na profundidade escura da realidade. Essa possibilidade do cinema adquire um aspecto psicológico funcional e importante na sociedade de hoje. A câmera e seus recursos múltiplos abrem passagem para percebermos o “inconsciente ótico”, ou seja, aquelas forças invisíveis ou os detalhes que normalmente, por nossa própria visão, não seríamos capazes de perceber27. Os aspectos da realidade exibidos nos filmes situam-se, em grande parte, fora da percepção sensível normal e podem, assim, alterar profundamente nossa percepção através das deformações que o mundo visual sofre no filme. Surgem nossos sonhos; materializam-se nos filmes nossas angústias, felicidades e tristezas. O público partilha coletivamente de imagens antes colocadas no sonho, na imaginação ou no manicômio; são reintroduzidas as sensações que a civilização não nos permitiu ter ou extravasar, e o público pode, por conseguinte, experimentar as imagens antes estagnadas na mente dos psicóticos ou sonhador. Benjamin vai mais longe. Para ele, além de retratar essas situações, o cinema adquire a função de inibi-las. Ele mostra as repressões trazidas pela modernidade à civilização, e que funcionam como uma “explosão terapêutica do inconsciente”: todas 27

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1935/36). In: Magia e Técnica, Arte e Política: Obras Escolhidas, Vol. 1, 6° ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 165-196. p. 165 e segs.

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as sensações reprimidas em grande ou pouca quantidade surgem no cinema, e a criação virtual delas impede seu “amadurecimento perigoso” para a sociedade. A função do cinema aparece, também, como controle: de um lado, serve de apaziguadora das pulsões destrutivas dos indivíduos, seus impulsos inatos, mostrando-nos realidades terapêuticas ao nosso inconsciente, às nossas pulsões que não conseguem espaço para realizarem-se no dia a dia; de outro, reafirmam que a própria repressão, lembrando-nos que a explosão do inconsciente só pode acontecer em locais e momentos adequados para tal. Desta forma, o cinema surge com a função de substitutivo para as nossas pulsões e controle das mesmas. Sentir emoções proibidas é possível na arte, e essa sensação, tão real, reafirma sua proibição na sociedade. A relação entre o cinema e a civilização ocorre, portanto, nesses dois níveis: sob este aspecto, essa explosão terapêutica apazigua nossos impulsos e reafirma seu controle. Por outro lado, a experiência cinematográfica amplifica, em relação às outras artes, as sensações, sendo percebidas como realidades psíquicas graças aos seus recursos estilísticos. Além disso, por ser construída com base na maneira como experimentamos o mundo na modernidade, traz, enfim, as sensações a que ou não estamos acostumados na vida real, ou quase não sentimos, construindo uma linguagem emocional. As sensações produzidas pelo cinema nos levam, por conseguinte, a três formas complementares de experimentação da modernidade: ou aquelas sensações trazem de volta as sensações perdidas no nosso cotidiano; ou aquelas sensações apaziguam os sentimentos que reprimimos, sob pena de destruirmos a ordem; ou são sensações novas, que nunca antes havíamos experimentado. Da qualquer maneira, os filmes possuem a função de nos fazer sentir o que não podemos através de nossos atos na vida real, e reafirma o controle sobre estes atos, ao dar um local para aquelas sensações sem necessidade de atitudes do sujeito para obtê-las. Hans Robert Jauss chega a conclusões similares na teoria literária. Segundo o autor alemão, a experiência estética não é um consumo passivo, mas depende de aprovação e recusa do público. O importante na arte é a “frustração de expectativas”, mostrando caminhos até então desconhecidos na práxis diária da vida social. Tal qual Benjamin formulou a explosão terapêutica do inconsciente, para Jauss A experiência da leitura logra libertá-lo (o leitor) das opressões e dos dilemas de sua práxis de vida, na medida em que o obriga a uma nova percepção das coisas. O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquele da práxis histórica pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço

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limitado do comportamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos caminhos para a experiência futura.28

Tanto Jauss quanto Benjamin, o primeiro sobre a literatura, o segundo sobre o cinema, defendem as duas artes como uma forma de extravasar repressões conscientes e inconscientes que a civilização nos impõe. O cinema transforma-se, contudo, em uma maneira civilizada de apaziguamento das pulsões, um aparato que nossa sociedade construiu com esse fim, que impede a manifestação na vida real dos perigos aos laços sociais. Ademais, o cinema não só apazigua pulsões inconscientes como apresenta novos caminhos, novas possibilidades: trata-se de campo de experimentação de um enorme leque de possibilidades de atitudes sociais, retratadas com fidedignidade cada vez maior na tela na tentativa de criar uma identificação com o público mais forte, rompendo a atitude blasé a que estamos acostumados no dia a dia. Segue Jauss afirmando que o conceito de prazer na experiência estética envolve a possibilidade de dar livre curso às paixões despertadas sentindo-se aliviado, como se participasse de uma cura – katharsis: tal é uma explicação plausível do porquê a contemplação das coisas horríveis nos causa prazer. Apesar da atual crítica que alguns dirigem para o prazer estético, de modo que “a experiência estética só é vista como genuína quando se priva de todo prazer e se eleva ao nível da reflexão estética” 29, para Jauss, contrário à idéia do prazer estético como um instrumento da classe dominante, este deve ser visto como fruto da atividade imaginativa do espectador, o que lhe atribui um caráter revolucionário e significativo. E é aqui que reside a diferença fundamental entre o prazer dos sentidos e o prazer estético: com relação ao primeiro, “enquanto o eu se satisfaz no prazer elementar, e este, enquanto dura, é auto-suficiente e sem relação com a vida restante, o prazer estético exige um momento adicional, ou seja, uma tomada de posição, que exclui a existência do objeto e, deste modo, o converte em objeto estético”30, de modo que: Face a isso, a atitude estética exige que o objeto distanciado não seja contemplado desinteressadamente, mas que seja coproduzido pelo fruidor, à semelhança do que se passa no mundo imaginário, em que entramos como co-participantes – como objeto imaginário. Conforme mostrou Jean-Paul Sartre, em sua análise fenomenológica do imaginário, na experiência

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JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. . Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ed. Ática, 1994. p. 52. 29 JAUSS, Hans Robert. O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, asthesis e katharsis. In: LIMA, Luís Costa (org.). A Literatura e o Leitor: Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ed., 1979. p. 63 – 83. p. 71. 30 Ibid. p. 75.

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estética o ato de distanciamento é, ao mesmo tempo, um ato formador da consciência representante. 31

Destaca-se que o objeto não é belo em si mesmo, não contém em si os elementos fundamentais da sua significação mas que, ao contrário, é o espaço aberto para realização do imaginário. Diferencia-se aqui percepção de imaginação, pois na primeira transparece a atitude puramente contemplativa, enquanto a segunda incorpora a atividade estética de co-produção do objeto pelo fruidor. No cinema, a realização do espectador acontece através da sua construção mental, da sua co-produção ou participação na constituição de sentido da obra cinematográfica. Apenas no seu imaginário, o filme ganha vida e serve à função social de apaziguamento das pulsões, dependente, logicamente, da construção do fluxo fílmico e do preenchimento dos espaços vazios na consecução de uma realidade psíquica prazerosa. Ademais, o prazer que sentimos é um prazer de transferência de nós mesmos para a experiência do outro, como afirma Jauss: A determinação do prazer estético como prazer de si no outro pressupõe, por conseguinte, a unidade primária do prazer cognoscente e da compreensão prazerosa, restituindo o significado, originalmente próprio ao uso alemão, de participação e apropriação. Na conduta estética, o sujeito sempre goza mais do que de si mesmo: experimenta-se na apropriação de uma experiência do sentido do mundo, ao qual explora tanto por sua atividade produtora, quanto pela integração da experiência alheia e que, ademais, é passível de ser confirmado pela anuência de terceiros. O prazer estético que, desta forma, se realiza na oscilação entre a contemplação desinteressada e a participação experimentadora, é um modo da experiência de si mesmo na capacidade de ser outro, capacidade a nós aberta pelo comportamento estético.32

É nessa possibilidade de experimentar-se no outro que a explosão terapêutica do inconsciente, através da realização do imaginário, acontece. O próprio cinema pode ser entendido, em um plano mais radical, como uma aventura melancólica de liberação de desejos reprimidos, pois a realização dessa experiência lembra-nos que apenas e somente ali, na sala escura, ela pode acontecer.

31 32

Loc. Cit. Ibid. p. 77.

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