Por um olhar transversal nas artes da cena

July 27, 2017 | Autor: Matteo Bonfitto | Categoria: Performing Arts, Theatre
Share Embed


Descrição do Produto

Por um Olhar Transversal nas Artes da Cena: o Espetacular e a dialética como palimpsesto Matteo Bonfitto1

O Colóquio como gatilho Após participar em julho de 2013 do Colóquio “Pensar a Cena Contemporânea” organizado pelo PPGT/Ceart - UDESC, que teve como convidados os Professores Marvin Carlson e Patrice Pavis, muitas questões me acompanham até hoje, algumas respondidas, outras abordadas parcialmente e outras ainda latentes. Apesar do conceito de ‘pós-dramático‘ ter funcionado como eixo de reflexão desse colóquio, muitas outras problemáticas emergiram em diferentes níveis. Assim, ao refletir sobre o que abordar nesse caso, busquei resgatar o que mais me mobilizou durante os debates que aconteceram nesse colóquio e cheguei, após um processo de destilação, a uma relação que me interessa particularmente e que faz parte da constelação de aspectos que examino em minhas pesquisas nesse momento. Trata-se da relação entre a noção de ‘espetacular’ e a noção de ‘evento-acontecimento’. Considero tais noções particularmente importantes na medida em que elas permitem uma incursão transversal no campo das artes da cena, abrindo espaço não somente para uma reflexão sobre o pós-dramático, mas envolvendo também outras noções igualmente relevantes. Sendo assim, começo essa reflexão a partir de um dos elementos da relação escolhida: o ‘espetacular’.

Repensando o ‘Espetacular’: Debord, Barroco, Opsis Durante os anos em que vivi experiências diretas com alguns dos atores de Peter Brook, vim a saber que certos espetáculos dirigidos pelo diretor inglês não haviam sido escolhidos por certos festivais de teatro em função de terem sido considerados “insuficientemente espetaculares”. Deixando de lado o aspecto anedótico deste fato, considero-o extremamente importante uma vez que ele abre espaço para a exploração de inúmeras questões e implicações. Nesse sentido, a ausência de detalhes em torno a tal fato - não sei quais foram os espetáculos em questão - não representa um obstáculo para o desenvolvimento das reflexões que dele podem emergir.

Matteo Bonfitto é ator-performer, diretor de teatro e pesquisador na área de Artes da Cena. Cursou a Escola de Arte Dramática da USP e o DAMS da Università degli Studi di Bologna, Itália. É Mestre em Artes pela ECA-USP e Doutor (PhD) pela Royal Holloway University of London. Além do trabalho artístico, apresentado no Brasil e no exterior, é Professor Livre-Docente do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas e Coordenador do Programa de Pós-graduacão em Artes da Cena do IA/Unicamp. Publicou inúmeros artigos sobre o trabalho do ator e do performer, bem como os livros “O Ator Compositor” (Perspectiva, 2002), “A Cinética do Invisível” (Perspectiva, 2009); e “Entre o Ator e o Performer” (Perspectiva, 2013). Desenvolveu recentemente pesquisas junto ao The Graduate Center - CUNY, New York City (2010), e Freie Universität, Berlim (2012). É um dos fundadores do Performa Teatro - Núcleo de Pesquisa e Criação Cênica - www.performateatro.org. 1

1

Gostaria aqui de buscar escavar o aparentemente já conhecido, a fim de relativizá-lo e de problematizá-lo, tendo como ponto de partida não conceitos mas um fato concreto, já mencionado. Pois bem, o que pode estar envolvido nesse juízo: insuficientemente espetacular? Ao resgatar as minhas memórias pessoais dos espetáculos dirigidos por Brook, aqueles examinados em video e outros vivenciados presencialmente, tento rastrear momentos e materiais que podem de alguma forma contribuir para o entendimento desse juízo. Esse exercício de alteridade demonstra-se mais árduo que o previsto. Chamo em causa as minhas percepções de espetacular mas as dificuldades permanecem. Percebo que devo abandonar temporariamente o que me é familiar nesse caso e portanto recorro a algumas referências que marcaram e contribuíram de alguma forma para a construção e transformação da noção de espetacular. Um caminho começa a se delinear. Guy Debord, o Barroco, Aristóteles, os últimos espetáculos vistos... . O espetacular na sociedade, que permeia as relações sociais. Sem deixar de enfatizar de maneira reconhecível alguns aspectos políticos vistos através do filtro marxista, Guy Debord nos faz perceber um entrelaçamento de processos de diferentes naturezas que geram a processualidade das relações sociais em determinados contextos. O espetáculo e o que percebemos como realidade produzem uma espécie de amálgama, um processo alienante onde as relações sociais são mediadas por imagens que potencializam a aparência das coisas. Valorizando somente o que é midiatizável, tal processo leva inevitavelmente a uma fetichização de tudo o que deve ser percebido coletivamente, uma fetichização de todas as mercadorias. Tento fazer com que a impressão ‘datada’ de algumas observações e o excesso de utilização de tais termos em incontáveis estudos não produzam em mim uma resistência a priori em relação as elaborações de Debord. Assim, ao tentar perceber a especificidade de suas colocações, ao tentar capturar o que resistiu ao desgaste do tempo, reconheço um olhar que capta do espetacular as suas potencialidades como dispositivo gerador de dinâmicas relacionais e como modelador de nossas percepções. Para além das intencionalidades e das estratégias manipuladoras do capitalismo há o reconhecimento dessa dupla potência do espetacular. Ao refletir sobre essa dupla potência, navego entre diferentes momentos históricos e contextos. Penso mais atentamente sobre o Movimento Barroco. Independentemente das especificidades ocorridas nos diferentes países, esse movimento desencadeia uma rede de aspectos importantes ligados ao espetacular. Não por acaso o Barroco é considerado como o gerador da noção moderna de imagem. Penso sobre as máquinas teatrais. Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) e Ferdinando Galli da Bibbiena (1657-1743) criaram inúmeras máquinas que produziam efeitos e ilusões dentro e fora do teatro. Complexas mudanças de cenografia, seres inefáveis que voam pelo espaço, batalhas navais que ocorrem em páteos cheios de água, cidades tranformadas nos mínimos detalhes para celebrações políticas, tudo levava a uma turbulência dos sentidos. Mas o espetacular no Barroco não se limita à utilização e à criação de tais máquinas. Na verdade uma rede de associações emerge. Reflito sobre o infinito. De fato, o espetacular do Barroco buscou dentre outras coisas a materialização do infinito, através de um tensionamento vertiginoso entre o infinitesimal e o incomensurável. O microscópio foi inventado por Zacharias Janssen em 1590 mas foi em torno de 1665 com a publicação da obra de William Harvey sobre a circulação sanguínea que a descoberta ganha força. O telescópio foi inventado segundo consta 2

por Giambattista della Porta em 1586 mas foi com Galileu em 1609 que o primeiro telescópio produziu as primeiras observações astronômicas.

Exemplos de projetos de máquinas teatrais - interna e externa - Biblioteca Nacional de Turim

Essa vertigem entre o infinitesimal e o incomensurável habita o coração do Barroco e nos permite perceber a conexão entre as suas diversas manifestações. Giordano Bruno, citado em Wofflin coloca: “Amem uma mulher se quiserem, mas não esqueçam de ser adoradores do infinito” (Bruno apud Wölfflin, 2010: 96).2 O julgamento de Galileo coincide com a explosão do Barroco em Roma em 1632. A sua capitulação não impede que a possibilidade de existência de um universo infinito continue a produzir seus efeitos. Ao mesmo tempo, os exercícios de Santo Ignacio de Loyola, que exploram o infinito na espiritualidade, são cada vez mais difundidos pelos Jesuítas. Não somente, portanto, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande mas também a conexão entre o infinitamente externo e o infinitamente interno. O espetacular no Barroco envolve necessariamente esses aspectos, ele permeia em níveis diferentes de manifestação, a escultura, a pintura, o teatro, a filosofia, etc... É importante observar, nesse sentido, que se a complexidade do espetacular no Barroco envolve por um lado a producão de um impacto visual gerado pela intenção de ‘maravilhar‘, por outro o Projeto Barroco emerge de uma rede de tensões que envolve a articulação entre descobertas científicas, modos de existência específicos, vontades políticas, e experimentações artísticas que catalisaram tais tensões. Em contraste com as colocações que definem o Barroco como a ‘arte do efêmero’, a questão da materialização do infinito e de suas vertigens parecem capturar de maneira mais consistente a sua especificidade. Algo que se dá em um instante não é necessariamente efêmero, como nos mostra Proust, dentre muitos outros. Interrompo as minhas reflexões e consulto diversos dicionários. Não porque eles esgotem as questões mas porque os dicionários revelam a communis opinio, o senso comum em relação a

2

Versão em italiano: “Amate una donna se volete, ma non dimenticate di essere adoratori dell’infinito”. 3

alguma coisa. O senso comum, longe de ser algo banal, é um indício do que prevalece perceptivamente em um determinado contexto e momento histórico. Após consultar vários em várias línguas reconheço uma convergência de quatro adjetivos: “grandioso”, “impressionante”, “catártico” e “maravilhoso”. Mais do que sintetizarem as características associadas aos aspectos colocados por Guy Debord e presentes no Barroco, tenho a percepção de que esses adjetivos capturam somente o que é aparente, o que é imediatamente perceptível e reconhecível. Esses adjetivos captam algumas qualidades que estão presentes, por exemplo, no ‘aroma do chá’, sem abarcar ou fazer qualquer referência ao que está envolvido na producão e na existência desse chá. Utilizo a metáfora do chá assim como poderia utilizar outras, mas a questão aqui está relacionada com a complexidade e a verticalização dos processos perceptivos que são mobilizados pelas diferentes noções de espetacular. Retorno à dupla potência do espetacular: no caso do Barroco o espetacular foi reconhecidamente utilizado, ainda que de maneira radicalmente diferente em relação às elaborações de Debord, como dispositivo gerador de dinâmicas relacionais e enquanto modelador de nossas percepções. Há também no Barroco, claramente, a utilização do espetacular como estratégia de fortalecimento das estruturas de poder. Mas esses vetores comuns não devem cancelar as diferenças apontadas até aqui: o espetacular como procedimento de fetichização de mercadorias arquitetatado pelo capitalismo se difere radiacalmente do espetacular que funcionou como catalisador de infinitos do Barroco. Mas em que medida a reflexão sobre Debord, sobre o Barroco e a consulta dos dicionários pode ser útil para lidar com a questão colocada inicialmente sobre a insuficiência espetacular? A questão da plasticidade perceptiva que envolve a questão do olhar parece ser uma possibilidade promissora. Após voltar a examinar a noção de opsis, me intriga cada vez mais a amplitude que o ‘olhar’ parece ter adquirido para os gregos antigos. Ver, enxergar, reconhecer, perceber, capturar, absorver, mas também criar: o olhar parece fazer convergir todos esses processos, simultanealmente. E a cada releitura que faço dos diáolgos platônicos, por exemplo, Sócrates aparece como agente dessa amplificação. Em suas conversas com as pessoas as mais variadas, ele não se contenta com as primeiras impressões, ele cria condições para a emergência de um olhar processual, que vai aos poucos se desvelando. O olhar como ação! O olhar não como captador de estímulos simplesmente, mas como intervenção dinâmica; não como receptáculo do já existente, do que já é dado, mas como percurso de construção e de desvelamento. As pistas dadas pelo percurso Debord-Barroco-dicionários-opsis, uma vez desdobradas, me fazem intuir uma possibilidade de retorno à questão da insuficiência espetacular. Tal insuficiência me coloca antes de mais nada em uma perspectiva de continuum, ou seja, se o espetacular pode ser suficiente ou insuficiente, isso implica a existência de “graus de espetacularidade”. No que diz respeito às artes da cena, haveriam obras mais e menos espetaculares?

4

Os Fragmentos de Brook Nesse momento, resgato a memória das experiências vivenciadas com alguns dos atores de Brook, resgato a memória de A Tempestade, em Verona, A Conferência dos Pássaros, Mahabharata... e percebo que seria interessante nesse caso escolher, dentre essas experiências, uma que pudesse remeter ao menor grau de espetacularidade manifestado pelo espetáculo. Escolho então uma das partes apresentadas em Fragments de Beckett, trabalho apresentado em 2006 no Les Bouffes du Nord: Cadeira de Balanço. Busco fazer, assim, um exercício de alteridade. Tento adotar a lógica de um programador de um festival internacional de teatro que tem como um dos critérios escolher espetáculos suficientemente espetaculares. Imaginemos que no continuum ‘grau de espetacularidade’ haja um ponto que diferencie o ‘suficiente’ do ‘insuficiente’ nesse caso. Experimento utilizar como parâmetro desse ponto os adjetivos mencionados anteriormente ligados ao espetacular, tais como “grandioso”, “impressionante”. Penso sobre o que posso achar grandioso e impressionante, em um primeiro momento em geral e mais tarde relacionando com as artes da cena. Novas dificuldades surgem na medida em que tais adjetivos são extremamente subjetivos, mesmo esses adjetivos, utilizados frequentemente no dia a dia, não são absolutamente consensuais. Volto a pensar sobre o Fragments e particularmente sobre Cadeira de Balanço. Busco ver em que medida a memória consegue representificar a experiência vivida em 2006. Lembro que após ver o trabalho, achei corajosa a opção de Brook por deixar o Cadeira como último fragmento do espetáculo. Achei corajoso em função da maneira como o material foi tratado. Seguindo indicacões do próprio Beckett esse material foi tratado.

Geneviève Mnich em Cadeira de Balanço. Direção de Peter Brook. 2006.

5

Um som começa a ser ouvido cada vez mais claramente. A luz aumentando aos poucos. Lentamente, percebemos a silueta da cadeira de balanço que se desloca timidamente, em movimento constante. A voz invade o espaço, mas não em função do volume - inicialmente me inclinei para frente para discernir o som que era produzido - mas de uma espacialização que passava por uma qualidade aspirada, quase como se as palavras fossem sussurradas nos ouvidos, palavras que eram carregadas pelo compartilhamento de um segredo. Palavras que falam sobre a espera e sobre o tempo, e sobre a espera e sobre o tempo... Aos poucos uma cadência vai sendo instaurada, como se as variações rítmicas tivessem incorporado uma lógica, um ponto de vista sobre a existência. Sou aos poucos envolvido nesse processo em que a passagem do tempo passa a ser ela mesma o foco da ação, não o que, mas o como da passagem do tempo, sem buscar preenchê-lo de fazeres, mas como se a temporalidade tivesse sido capturada e passado a ser o foco único de atenção. A própria atenção foi aos poucos sendo destilada, a qualidade do silêncio cada vez mais densa. A passagem de tempo trabalhada dessa forma criou uma espécie de espelho, onde o espectador passa a ter acesso ao que não pode ser visto imediatamente. Ao fim do espetáculo, a luz da platéia acendeu lentamente. Mesmo após os aplausos havia uma qualidade diferenciada no espaço. Muitas pessoas falavam em voz baixa não havia pressa. O resgate dessa experiência me permitiu em alguns momentos retroceder no tempo. Apesar de estar consciente das possíveis alterações produzidas pela memória, poderia mesmo dizer que essa versão de Cadeira de Balanço é grandiosa. Penso se o programador-avatar virtual veria esse trabalho da mesma forma. De qualquer maneira, a questão aqui - mais do que nos fazer retornar ao ponto de partida e aceitar o lugar comum segundo o qual a subjetividade que envolve a apreciação dos fenômenos artísticos é intransponível - é tentar ir, nesse caso, além da mera diversidade de opiniões. Nesse sentido, ao invés de adotar um relativismo apaziguante, gostaria de refletir sobre uma outra possibilidade, que está relacionada ao reconhecimento da existência de diferentes tipos de espetacularidade. Em que medida é possível reconhecer a existência de diferentes tipos de espetacularidade? Voltando ao Barroco e considerando o impacto visual reconhecível nesse movimento artístico, deve-se limitar a reconhecer tal característica como única no caso das artes da cena? A espetacularidade está limitada à demonstração de habilidades como aquela produzida pelo Cirque de Soleil? Ou no plano mais ampliado, extra-artístico, o espetacular é ligado necessariamente ao fulgurante, ao mágico faz-de-conta, ou ao catastrófico? A queda das torres gêmeas de Nova Iorque, produtora de um impacto visual único, foi considerada como algo espetacular? E com relação ao impacto visual visto como traço do espetacular? Tal impacto é algo que pode se dar de maneira ‘neutra’, transcultural, ou é sempre determinado por momentos históricos e especifidades culturais? O espetacular seria a resultante da relação dinâmica entre teatralidade e performatividade? O espetacular se mantém como noção irremediavelmente fugidia? Essas são algumas das muitas questões que podem emergir em torno do espetacular. Tal proliferação de perguntas, ao invés de funcionar como um desestímulo, evidencia a força do espetacular como elemento que atravessa as artes da cena e vai muito além, e desestabiliza percepções consolidadas. Dentre as perguntas levantadas até esse momento, continuarei com uma: em que medida é possível reconhecer a existência de diferentes tipos de espetacularidade? 6

E para tentar desenvolver, ainda que brevemente, uma reflexão a partir dessa pergunta estabelecerei uma relação entre as noções vistas aqui de espetacular e aquela de eventoacontecimento. A escolha da noção de evento-acontecimento feita aqui não é casual.3 Tal escolha é vista como uma possibilidade de reduzir a qualidade genérica que permeia o espetacular a fim de reconhecer nele algumas diferenças internas. Percorrerei assim, alguns aspectos extraídos de elaborações feitas por alguns pensadores relevantes nessa matéria. Deleuze, por exemplo, descreve o evento como ‘uma vibração que veicula uma infinidade de harmônicos ou submúltiplos, tal como uma onda sonora, luminosa, ou ainda como espaço cada vez menor percebido durante um tempo cada vez mais curto’ (Deleuze, 1992: 77-78). Para ele, os eventos são vistos como linhas de intensidade que abrem possibilidades de vida e ação. Eles formam uma espécie de tela, uma membrana elástica disforme, um campo eletromagnético (ver Deleuze, 1992: 76). Já para Lyotard, o evento está intrinsecamente relacionado à forças não-racionais que propiciam a emergência do não-representável (ver Bennington, 1998; Lyotard, 1989). Já de acordo com Badiou, ‘um evento é o que define a zona de indiscernibilidade enciclopédica’ (Badiou, 2006: 147). Em outras palavras, um evento envolve a nomeação de algo em relação ao qual a ‘enciclopédia de conhecimentos’ não possui linguagem. Nesse sentido, Badiou se refere, por exemplo, ao evento copernicano de nomear o sistema solar heliocêntrico, que contradizia o conhecimento da época o qual afirmava que o sol girava em torno do planeta terra (ver Badiou, 2006: 148). Além disso, segundo Badiou a emergência de eventos leva à produção de novas verdades. Elas não representam a Verdade, mas abrem caminho para certas verdades. Ou seja, a emergência de uma verdade particular está associada à produção de um evento particular. Desse modo, não haveria ‘a Verdade’ segundo Badiou, mas ‘uma verdade’, que é produzida por um processo dinâmico. Ao gerar uma verdade, o evento ao seu ver faz emergir uma reação em cadeia que reorganiza o saber assimilado precedentemente, uma vez que ‘uma verdade é sempre aquilo que produz um buraco no conhecimento’ (Badiou, 2005: 327). Já Žižek, ao mesmo tempo que admite a existência de diferentes tipos de evento reconhece neles alguns aspectos recorrentes, tais como a “interrupção do fluxo normal das coisas” e a manifestação de “um efeito que parece exceder as suas causas” (Žižek, 2014: 2-3). Para ele esses aspectos funcionariam como elementos diferenciadores, que demarcam a emergência da pluralidade de eventos. A partir dessas considerações feitas sobre o evento, podemos retornar uma vez mais à noção de espetacular a fim de perceber quais intuições podem ser produzidas através dessa relação. Tendo tal relação como horizonte, em que medida a manifestação do espetacular pode ser ao mesmo tempo produtora de eventos nos termos referidos acima? Seria possível dizer que no campo das manifestações espetaculares há aquelas que interrompem o fluxo normal das coisas e aquelas que mantém esse fluxo? Há o espetacular que funciona como intensidade produtora de vida e outro que não? Há o espetacular do qual emana forças não-racionais e outro que se mantém nos limites da razão? Há o espetacular que produz um ‘buraco no conhecimento’ Proponho aqui o termo composto ‘evento-acontecimento’ em função da utilização alternada desses dois conceitos que no entanto remetem aos mesmos fenômenos em muitos estudos desenvolvidos hoje na área de ciências humana e na área de artes em geral. Uma vez feito tal esclarecimento, utilizarei a partir desse ponto de meu discurso somente o termo ‘evento’. 3

7

e outro que ao contrário, o reforça simplesmente? Há o espetacular que se manifesta como celebração do efêmero e outro que provoca mudanças de registro perceptivo? Essas perguntas talvez representem uma possibilidade para que se consiga retirar o espetacular do território do genérico subjetivizante. Uma vez associadas essas duas noções espetacular e evento - um espaço pode ser aberto a fim de levar a novos desdobramentos nesse sentido. E assim, olhares transversais poderão ampliar as possibilidades de espetacularização no campo das artes da cena.

A dialética como palimpsesto Ao chegar nesse ponto do texto, o leitor pode legitimamente se perguntar de que maneira a dialética pode ser reconhecida nas “escavações” feitas aqui. Trata-se de uma boa pergunta, sobretudo porque a dialética é normalmente reconhecida a partir de forças opostas perceptíveis e reconhecíveis. Nesse caso, ao falar sobre transversalidades nas artes da cena, penso sobre oposições não evidentes e óbvias, considero tensionamentos latentes, muitas vezes quase imperceptíveis. Nesse sentido, a própria ausência de consenso sobre a noção de espetacular e de espetacularidade faz delas catalisadoras de tensões, tensões deslizantes, oposições instáveis. Trata-se portanto aqui de escavações que revelam não oposicões claras e definidas mas tensões deslizantes, onde as percepções emergem e são negadas, abandonadas... e reemergem de outra forma e são novamente desconsideradas. Apesar da processualidade contínua da dialética hegeliana, há nela uma sequência de resoluções que levam a novas contradições. Nesse caso, podemos reconhecer camadas que se cobrem mas não se cancelam, há rastros de já sabido entrelaçados com o não sabido, e tal processo me parece claro no caso do espetacular e da espetacularidade. Há, assim, em torno dessas noções, uma dialética que chamarei de ‘dialética do palimpsesto’. Mesmo contendo uma superfície dada visualmente, o palimpsesto traz consigo em diferentes níveis, os próprios rastros. Não há aqui, na transversalidade do espetacular, um momento de repouso e de síntese mas tensões que se sobrepõem, sincrônica e diacronicamente. Há nesse caso uma 'luta' constante pela localização do ponto do continuum examinado. Trata-se de uma luta antropológica, intercultural, ético-estética, financeira e política. Na dialética como palimpsesto não há, aparentemente, qualquer superação de conflito.

8

Bibliografia - Badiou, Alain; Being and Event. London and New York: Continuum, 2005. -----------------; Theoretical Writings. Editado por Ray Brassier and Alberto Toscano. London and New York: Continuum, 2006. - Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. - Deleuze, Gilles and Félix Guattari; A Thousand Plateaus. Capitalism and Schizophrenia. Translated by Brian Massumi. London: The Athlone Press, 1988. - Deleuze, Gilles; The Logic of Sense. London: The Athlone Press, 1990. -------------------; The Fold: Leibniz and the Baroque. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. -------------------; Francis Bacon: The Logic of Sensation. London: Continuum, 2003. - Lyotard, Jean-François; The Differend: Phrases in Dispute. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1989. - Wölfflin, Heinrich. Rinascimento et Barocco. Milano: Abscondita, 2010.

9

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.