Por uma Definição Contemporânea de Televisão / Looking for a Contemporary Definition of Television

August 16, 2017 | Autor: E. Cintra Torres | Categoria: Media Studies, Media and Cultural Studies, Television Studies, Estudos De Televisão
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2014 10 31 Revista LER - O Que É a Televisão

Por uma definição contemporânea de televisão Vejo uma reportagem televisiva no smartphone. Recebo no Twitter um link para um programa de TV. Vejo um vídeo televisivo no Youtube. No smartphone. Vou aos sites dos canais no PC ou Mac para ver extractos ou programas inteiros. Compro-os ou faço downloads piratas. Assino um canal pela Internet. Vejo televisão no televisor. Na sala. Na cozinha. No quarto. E no café, no restaurante, na taberna. No comboio, no aeroporto, no avião, no hotel. No consultório e na repartição de finanças. Em casas de amigos e no ecrã gigante no estádio ou num espaço público. Vejo canais generalistas. Vejo canais por cabo ou por Internet, nacionais, internacionais, generalistas ou temáticos. Vejo extractos. Segmentos. Cenas. Vejo imagens fixas de televisão. Vejo fluxo. Vejo séries num DVD. Vejo conteúdos informativos, de entretém, educativos, publicitários. Divertidos, dramáticos, trágicos, lúdicos, fúteis, religiosos, educativos, ordinários. Vejo imagens de TV com som, ouço som de TV com imagens, leio textos nos ecrãs de TV. Vejo conteúdos em directo, em diferido, gravados. Vejo televisão sozinho ou com familiares, amigos, desconhecidos, ou no meio duma multidão. Comento no Facebook e faço links. Voto pelo telefone ou pela Internet para manter ou expulsar alguém num concurso. Voto em consultas de opinião. Intervenho pelo telefone. Tento a sorte em sorteios de mil euros em barras de ouro ligando para um número 760. Faço o meu canal na plataforma de cabo. Vejo os canais doutras pessoas, da junta de freguesia, da câmara ou da minha associação na Internet e no cabo.



A televisão já não é o que era antigamente. Nem sequer o que era ontem. Pensar a televisão obriga a uma operação radical: definir o que é a televisão contemporânea, a partir do que ela é hoje. Só se assim se poderá compreendê-la e, para quem quer agir sobre ela, agir eficazmente. Comecemos, porém, por sobrevoar a história para ver como aqui chegámos. Da televisão-telefone... à televisão-telefone

A televisão começou como uma promessa de som e imagem, ainda no século XIX. Quando a tecnologia se desenvolveu, o seu devir não estava ainda traçado pela sociedade e pela política. Previu-se que viesse a ser um telefone com imagem. Venderam-se “kits” para se comunicar ponto a ponto, como os rádios amadores. Chegou a haver um serviço de telefone com imagem, entre Washington e Nova York. Depois, os Estados tomaram conta das ondas hertzianas. Pensou-se, e fezse, televisão para ser recebida em massa, em estações de comboio e armazéns, caso da Inglaterra, ou em salas como as de cinema, casos dos Estados Unidos e na Alemanha. A televisão tinha uma tecnologia própria e a sua recepção era cara. Só os mais ricos podiam ter televisor em casa.

As promessas da televisão enquanto media para as massas foram generosas: na Europa, “educar, informar, entreter”; nos Estados Unidos, “entreter, informar, educar”. A ordem dos factores não era arbitrária: na Europa, os Estados tomaram conta do media, para proselitismo sobre o povo; na América, o Estado decidiu que fazer televisão seria fazer propaganda e entregou-a a grandes empresas, para proselitismo sobre o povo. Ora pão e circo ideológicos, ora circo e pão ideológicos. Em ambos as margens do Atlântico, o Estado criou um “monopólio natural”, quer dizer, um monopólio não-natural: a TV é só minha; ou: a TV é só vossa. E em ambas as margens do oceano a televisão encaminhou-se para seguir o modelo da rádio, transformando-se nas primeiras décadas numa rádio com imagens. Como ela, tinha a força e o fascínio do directo. Os seus primeiros géneros foram colhidos na rádio: palestras, charlas, conversa, música ao vivo, teatro, variedades, concursos, notícias, serviços religiosos. Acrescentou-lhe os filmes, as séries e os seriados, os telefilmes, as novelas e, mais tarde, os reality shows.

Nos Estados Unidos, a televisão foi estrategicamente desenhada como um media para a família e para os subúrbios. Um “programa para toda a família” é uma autopromoção que nos persegue até hoje, quando a família já não vê televisão em conjunto e quando a família já não é o que era dantes. Depois do seu período pré-histórico, esta estratégia definiu a televisão como media 1

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durante décadas e sobrevive até ao presente. Convinha e ainda convém à televisão generalista, privada ou pública.

O cabo, nascido para distribuir o sinal dos canais existentes, logo se desenvolveu para aumentar a oferta de canais. Mais tarde, a televisão por satélite, de que a CNN International, o Sky Channel e o Eurosport foram as primeiras grandes estrelas, provocaram a primeira grande fragmentação das audiências “nacionais” antes reunidas — ou imaginadas — à volta do ecrã-lareira vendo os primeiros canais. O monopólio dos grandes canais generalistas sofreu o primeiro abalo. Na Europa, aberta a generalistas privados e a ao cabo, a concorrência privada rapidamente obteve a maioria da audiência. Ao proselitismo público, o povo preferiu o proselitismo privado, mais ligeiro e divertido e parecendo menos proselitista.

Acabaria com o cabo a TV generalista? Primeira morte anunciada. Um autor, David Marc, escrevia em 1980 um famoso texto com o título “What Was Broadcasting?”, “O que Era a Televisão a Generalista?”, como se ela já fosse passado. Chegou o receio de que, sem os canais agregadores do máximo número de espectadores da audiência nacional em cada país, se entraria num período de fragmentação da sociedade e de anomia, como se não tivessem existido sociedades unificadas antes da televisão e dos mass media nacionais. O grande público, as massas antes desprezadas, eram agora elogiadas, como no livro Éloge du grand public, de Dominique Wolton, de 1990, num argumento político pseudo-sociológico em defesa da TV generalista, em especial a do Estado. “And Deliver us from Fragmentation”, “E Livrai-nos da Fragmentação”, foi em 1996 o título de outro artigo famoso, de Eliuh Katz, um dos mais considerados sociólogos da comunicação. Entretanto, os grandes eventos televisionados, como os desportivos, os casamentos reais e tragédias como a explosão do vaivém espacial Challenger em 1986, a morte da princesa Diana em 1997 ou o 11 de Setembro de 2001 mostraram que a sociedade sabe reunir-se em torno da televisão generalista quando sente essa necessidade:a televisão é apenas o meio de o ter feito ou de o fazer num determinado período histórico. Outros meios haverá, agora que as plataformas de serviços de TV chegam a 4/5 da população portuguesa. A audiência dos canais não generalistas sobe ano após ano, mas os generalistas revelam uma grande resiliência, continuando a atrair o maior número de espectadores, precisamente por ainda produzirem os conteúdos que maior número de espectadores conseguem agregar.

Depois do cabo e do satélite, a grande revolução que tocou a televisão foi a digitalização dos conteúdos e dos suportes para a sua transmissão, a Internet, a TDT, a 3G, a 4G e aí por diante. Regressou a televisão-telefone, o aparelho manual permitindo ver televisão e vídeos, falar com imagem, gravar imagens e enviá-las. Mas esta revolução não se tratou apenas de chegar por mais meios e através de mais equipamentos a toda a gente em todo o lado — a principal alteração foi a unificação da linguagem técnica de todos os media escritos, orais e visuais numa só, permitindo a presença de todos os tipos de conteúdos num só meio e o seu acesso e criação também pelos utilizadores. Passou-se da dicotomia produtores e utilizadores para a possibilidade dos “produtilizadores”, produsers, no original inglês. Os produtilizadores tornaram-se capazes de impor conteúdos à televisão mundial, como na Praça Tahir em 2011 ou no Brasil em 2013.

A revolução digital motivou a crise dos jornais, com vatícinios da morte do jornalismo, e a alteração da realidade televisiva, com as mesmas previsões de mau-agoiro. Todavia, nenhuma das mortes se verificou. No caso da televisão, a explosão de meios de difusão e de recepção e a fragmentação da audiência não motivaram o fim do media. Pelo contrário, o consumo de conteúdos televisivos continua a aumentar, seja pelo tradicional televisor, seja pelos novos meios. A “velha” televisão ainda cresce incrivelmente, como na Índia e na China. E em países desenvolvidos, a televisão só pela Internet chega a muitos milhões. Assim, porquê as previsões da morte da televisão? A tríade da televisão: conteúdos, instituições e audiências

Para o entender, convém sobrevoar a área de investigação deste media, os Estudos Televisivos. Nasceram nos anos 80, mas antes já muito se escrevia sobre a televisão no mundo 2

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anglo-americano, sob dois pontos de vista: ou o da indústria, favorável ao media, ou dos intelectuais, quase sempre desfavoráveis e com tendência a falar da “televisão” em geral, como se tudo o que passasse no ecrã fosse um conteúdo indiferenciado. Convém reter esta ideia, pois a “morte da televisão” ainda traz esta marca de “caldeirada” de conteúdos.

Os Estudos Televisivos alteraram aqueles pontos de vista, considerando os conteúdos individualmente e submetendo-os a análise crítica como qualquer outra criação cultural. Os programas foram tomados como “textos” para perscrutar com o bisturi da close reading, ou leitura próxima. Esta área disciplinar tomou também em consideração duas esferas de acção fundamentais da televisão: a indústria ou instituições que, a montante, influem quase sempre decisivamente no enquadramento (político, empresarial, etc.) de produção os conteúdos; e, a jusante, as audiências, cujo “poder” sobre o media foi avaliado de dois modos: enquanto número, os espectadores podem decidir o destino de conteúdos; enquanto indivíduos, famílias, classes sociais, nações ou áreas culturais-geográficas do mundo, teriam o “poder semiótico” de interpretar os conteúdos a seu belprazer e de incluir-se em “comunidades interpretativas”.

Esta consideração tripartida da televisão — em textos ou conteúdos, instituições e audiências — foi muito inovadora nos estudos mediáticos, culturais e mesmo na sociologia. Nunca nenhuma área de estudos da cultura, da literatura ao cinema, tinha dado uma atenção elevada a áreas exteriores ao texto. Os Estudos Televisivos não se ficaram por aí: deram igualmente atenção à tecnologia da televisão (de produção, emissão e recepção) e à história do media, que, como em qualquer outro domínio, permite a contextualização e compreensão do presente.

A partir de um artigo famoso de uma investigadora britânica, intitulado “What Is the ‘Television’ of Television Studies?”, aquelas três áreas principais de estudo tornaram-se o cânone dos Estudos Televisivos. Nos últimos anos, porém, as evoluções e revoluções acima descritas, criaram uma instabilidade nos Estudos Televisivos, dificultando uma actualização da definição: o que é hoje a televisão? O que é ela hoje, se se fragmenta, espartilha, se não tem uma tecnologia exclusiva, se as audiências, ou melhor os indivíduos fazem o que querem dela, se somos ou podemos ser produtores de conteúdos, se o próprio conceito de “canal” — um dos fundamentos do media desde a sua origem — se esvai pela Internet, por plataformas só na web como o Netflix, se os “canais” se repartem entre canais generalistas e temáticos, se eles mesmos abandonam essa ontologia e decidem vender conteúdos isolados do seu stock, como a CBS — supra-sumo da TV generalista — e a HBO — supra-sumo da TV por cabo?

O espectro do fim da televisão agitou os estudos de comunicação. Eliuh Katz, de novo, dirigiu um conjunto de artigos sob o título The End of Television? em 2008. Outro autor, Toby Miller, escreveu, em tom irónico, o texto “A Televisão Acabou, A Televisão Virou Coisa do Passado, a Televisão Já Era” para concluir que ela “não está morta, está mudando”. O Fim da Televisão permanece, todavia, um belo título para um livro de 2014 que também procura ver para onde ela caminha, como sucede noutros livros colectivos recentes: Television as Digital Media; Relocating Television: Television in the Digital Context; e Television Studies After TV: Understanding Television in the Post-Broadcast Era.

Estas obras, porém, não parecem resolver aquela que deveria ser a questão central a abordar: o que é essencial na definição da televisão hoje? A meu ver, a tríade instituições-texto-audiências precisa de uma afinação. Sem deixarem de ser essenciais, as instituições e as audiências deixaram de estar ao mesmo nível dos conteúdos. Afinal, a Santíssima Trindade também tem um elemento acima dos outros dois. O texto televisivo na base da definição da televisão contemporânea

Como em qualquer media — intermediário usando uma tecnologia para levar conteúdos a um público —, na televisão as instituições mantêm ainda um peso de chumbo: os “canais” são empresas, as “plataformas” de conteúdos são empresas, as produtoras são empresas, são empresas os conglomerados mediáticos e os anunciantes. Acrescem as instituições do Estado e supranacionais, que constrangem a actividade televisiva, através de leis, regulamentos, reguladores, 3

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contratos de concessão, etc. A esmagadora maioria dos conteúdos televisivos resulta de actividade empresarial estruturada e, no caso de muitos canais, com uma história e até uma identidade de marca, como os generalistas e diversos temáticos. A importância de criar uma “imagem de marca” teve o seu expoente no famoso slogan da HBO que apresentava o canal como uma alternativa à própria ideia de televisão: “It’s not TV. It’s HBO”.

Todavia, verifica-se uma diluição da importância das instituições dada a multiplicação de entidades emissoras, a dispersão do mercado e da audiência e a nova facilidade de entrada de novos players no mercado — desde produtoras a criadores (pensemos no grupo cómico brasileiro Porta dos Fundos, por exemplo), desde o indivíduo que começa uma carreira de êxito no Youtube ao crescimento da importância de plataformas como os operadores de cabo e de Internet. A liberdade de escolha de conteúdos pelo espectador contribui para a perda de importância dos canais e marcas. Já para não falar de que o poder das instituições do Estado se afunda nesta diluição e dispersão, como o caso da RTP vem demonstrando. Sem perder de vista o seu lugar na cadeia mediática da televisão, torna-se assim mais difícil definir o media a partir das instituições.

Quanto às audiências, a fragmentação torna-as uma realidade fugidia e igualmente dispersa e difusa. Adeus, povo inteiro assistindo a Gabriela! Adeus, milhões discutindo o pontapé do Marco no primeiro Big Brother! Os quatro canais generalistas portugueses caminham para agregar apenas metade da audiência de televisão. A outra metade divide-se pelo cabo, pelo vídeo, pelos jogos digitais e por outras alternativas, como os conteúdos na Internet, incluindo televisivos, as redes sociais digitais. E há ainda que considerar os “desligados” da TV, o grupo em crescimento dos que preferem outras actividades, como a “velha” leitura, a rádio, a música, o desporto, a banda musical, o ginásio ou apenas “a noite” e apenas contactam difusamente com a televisão.

A audimetria, actividade conservadora por imposição de quem a paga — as empresas dos generalistas, as plataformas de cabo e os anunciantes — vê-se hoje a braços com o que medir: baseada numa amostra instaladas em lares, isto é, em famílias, a velha ideologia que serviu de base à TV de massas, o negócio da audimetria não consegue, não quer medir ou mede mal a audiência retardada, o timeshift, através das “gravações automáticas” nas boxes digitais; não mede a audiência fora do lar; não mede a audiência noutros equipamentos que não os televisores. Algumas destas realidades já poderiam ser medidas, mas os donos do negócio atrasam o seu conhecimento através de uma amostra representativa, dado que terá implicações gravosas para eles mesmos: cada ponto a menos na audimetria representa menos receitas. Este paradoxo de o negócio televisivo resistir a medir bem as audiências do negócio televisivo leva a que as plataformas de cabo, que fazem parte do núcleo duro dos “donos” da audimetria, já forneçam à socapa, aos canais seus clientes, dados de audiência de todas as boxes. Esses dados, embora sem afinação estatística e sem quaisquer consideração sócio-demográfica (a que classe pertencem os que viram?, quantos viram em cada box ligada?, quantos se esqueceram de desligar a box à noite?), são valiosos pelo peso numérico da realidade representada: no caso português, são muitas centenas de milhares de boxes, que dão informação valiosa, em especial sobre os pequenos canais, que, na amostra da audimetria oficial, caem dentro da margem de erro.

Os Estudos Televisivos têm a glória de ter alargado o conhecimento de audiências do media a imensos casos nunca antes explorados, como os das minorias rácicas, nacionais, imigrantes, o das crianças e dos idosos, o das classes sociais, o dos fãs de celebridades, séries ou seriados, caso das telenovelas, etc. O surgimento de novos instrumentos de comunicação e media, como as redes sociais digitais e os equipamentos que permitem ver TV em qualquer lado a qualquer hora motivam actualmente a avaliação de novas metodologias rigorosas de estudo das velhas e novas audiências.

Todavia, vejo nos Estudos Televisivos uma dificuldade em ultrapassar a sua definição através da tríade instituições-conteúdos-audiências, o que permite a dúvida sobre o desaparecimento da televisão, já para não falar do que a televisão é hoje. A resposta está no elemento da tríade que faz da televisão um media vibrante, em crescimento e até em expansão para outros media: os conteúdos, os programas, os segmentos de TV, em suma, os textos televisivos.

Como vimos, para os Estudos Televisivos não há “a televisão”, mas muitas “televisões”. A diferenciação passa pela variedade dos formatos institucionais que as proporcionam nos nossos 4

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ecrãs. Não é possível considerar como fatias do mesmo bolo conteúdos tão diferentes como um reality game show, reportagens em profundidade, programas da manhã para idosos e séries como os Sopranos, The Wire ou House of Cards, esta uma série de televisão transmitida apenas pela Internet. Não é a mesma coisa um programa de conversa e um documentário de base científica sobre animais ou o espaço sideral.

Os Estudos Televisivos não se fizeram rogados e têm estudado todo o tipo de conteúdos televisivos, desde o reality show mais grotesco até às séries ficcionais mais sofisticadas. A mudança de agulhas de muitos criadores do cinema para a televisão, ajudando a aumentar o nível de sofisticação de séries, atraiu muitos investigadores, que se renderam à “quality television” sem tomar em conta que a qualidade é um valor neutro, independente do valor que um grupo único, neste caso os intelectuais, lhe atribuem. Todavia, o interesse desses investigadores pelos únicos conteúdos de que realmente gostam — como se o gosto pudesse intervir na análise baseada na ciência e nos seus valores neutros de avaliação — nunca abafou a atenção a outros tipos de conteúdos, arrisco dizer a todos os tipos de conteúdos, da publicidade aos programas culturais, dos talk shows às grandes transmissões festivas ou trágicas.

A televisão baseia a sua riqueza e parte do seu presente e futuro nos conteúdos, isolados ou agregados em séries, na diversidade de géneros (outro conceito-chave) e de macro-géneros (os programas inserem-se em três grandes domínios: na esfera da realidade, como as notícias; na esfera da ficção, como as séries; na esfera do jogo, como o desporto; podem, porém, “misturar” elementos de duas ou das três esferas como os reality game shows).

Mas, a meu ver, a televisão destaca-se ainda por um traço fundamental de carácter ontológico que permite defini-la a partir dele: a televisão criou, desenvolveu e impôs uma linguagem própria, a linguagem televisiva. Os conteúdos de televisão distinguem-se; são identificáveis num segundo de zapping, tantas vezes apenas num fotograma, incluindo o de um filme de cinema, provavelmente o único género em televisão que se distingue da linguagem televisiva. As características da linguagem televisiva

A televisão apresenta reunidas ou isoladamente em cada momento, um conjunto de características a que podemos chamar um código, isto é, um conjunto de regras que são praticadas e reconhecidas pelos produtores, criadores, emissores e espectadores. É esse código que nos permite ver e ouvir um segundo de um programa e identificá-lo como conteúdo televisivo e até de um certo género e de um certo período da história da televisão.

Quais são essas características? Vejamos as principais.

Em primeiro lugar, o directo, que partilha com a rádio e, na última década ou década e meia, com a Internet. É o directo que “liga” o emissor e o receptor com a vibração da partilha no mesmo tempo real. Permite “viver” vicariamente os acontecimentos como se se estivesse “lá” (amiúde sem se querer “lá” estar). Cria a co-presença com a audiência à distância e a possibilidade da interacção: telefonemas que entram em directo, mensagens postadas em rodapé, votações, etc. É o directo que garante em boa medida o êxito do media, em especial na transmissão de eventos, como os desportivos e informativos, mas também de espectáculos e outros. Tal é a força comunicativa do directo que a televisão desenvolveu uma característica peculiar, muito sua: o directo gravado.

Em segundo lugar, o directo gravado, quer dizer, a criação de programas que, sendo gravados, partilham todas as características comunicacionais do directo excepto a real interacção e a partilha do mesmo tempo: o uso do presente do indicativo, o cumprimento dos espectadores, etc. Os concursos, muitos talk shows e os mais diversos programas dirigem-se ao espectador como se fossem em directo, como se partilhassem o mesmo tempo real, o agora, em simultâneo. Há talk shows portugueses em que os convidados têm de ser instruídos para não dizerem advérbios de tempo, porque o programa passará dias depois. Mesmo quando o espectador sabe que o programa é gravado (caso dos talk shows americanos gravados à tarde e transmitidos à noite, ou repetidos dias ou semanas depois), o directo gravado mantém grande parte do seu poder de atracção sobre os 5

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espectadores. A expressão inglesa do directo gravado capta muito bem este carácter: live on tape, ao vivo na fita gravada. Uma variante do directo gravado é o falso directo, dispositivo comunicacional de ética duvidosa pelo qual o telejornalismo pretende fazer passar como em directo participações gravadas de jornalistas fora do estúdio. Chega-se mesmo a apresentar em gravação a notícia que abre o noticiário, como se fosse um directo, apesar de gravada minutos antes.

Em terceiro lugar, a alocução em público ou trato público (public address, no original inglês). A televisão “fala” para ou com os espectadores como se eles estivessem presentes no local de onde emite ou gravou: o olhar para a câmara, isto é, para um olho de vidro, é fundamental para a interpelação do espectador, mas o discurso verbal e a performance igualmente contribuem. Os comunicadores — jornalistas, apresentadores, etc. — dirigem-se directamente aos espectadores, como o “você que está aí casa”, podendo mesmo inventar uma personagem, um ou uma espectadora, para reforçar esta característica, como a “Dona Maria, vá lá fazer o seu chichizinho”, de João Baião no Big Show SIC. O trato público reproduz a alocução perante uma audiência sem intermediação, pelo que recorre às mesmas técnicas da retórica codificadas desde a Antiguidade.

Em quarto lugar, o estilo excessivo, que distingue facilmente a televisão do cinema, da rádio ou de qualquer outro media audiovisual. Verifica-se na comunicação oral, como no grande débito de décibeis pelos apresentadores de talk shows, casos de Júlia Pinheiro ou Cristina Ferreira, mas também de jornalistas. A linguagem verbal e a comunicação não-verbal são efusivas e seriam exageradas em qualquer outro media. Fazem parte das técnicas de representação em televisão. O excesso também se verifica em cenários cheios e impactantes, na iluminação forte, capaz de atrair e manter o olhar, e nas cores quentes ou fortes. Os cenários são ainda excessivos na tentativa de preencher todo o espaço, o que não sucedia nas primeiras décadas do media, por razões técnicas, dado que a qualidade de emissão e recepção era inferior à actual, criando confusão visual. Todos estes excessos visam captar a atenção num ambiente muito concorrencial.

Em quinto lugar, a ênfase emocional. O directo, o trato público e o estilo excessivo coincidem numa importante característica da televisão: grande parte da comunicação no media fazse com todo o corpo, origem e espelho das emoções e afectos dos indivíduos. Provavelmente, a televisão foi a causa maior da emocionalização dos indivíduos em público, ocorrida, pelo menos em todo o mundo ocidental, nas últimas décadas. As emoções expressas, forma visceral de comunicação, já chegaram ao jornalismo, para criar empatia com o espectador, mas também como forma de exprimir opiniões sem as verbalizar.

Em sexto lugar, a ênfase na comunicação através da cultura da oralidade, em contraponto à cultura da escrita. Perdendo-se nos tempos, a cultura da oralidade vinha sendo contrabalançada pela expansão da cultura escrita, em especial desde o Renascimento, atingindo o seu apogeu no início do século XX. Essa caminhada foi paradoxalmente interrompida enquanto se erradicava o analfabetismo, pois a rádio e a televisão repuseram a oralidade na dianteira da comunicação social, impondo-a depois a inúmeras outras formas de comunicar (desde as máquinas que falam, como os computadores e elevadores, aos audio-livros, etc.). Uma das principais consequências do predomínio da oralidade na televisão é a sua resistência a comunicar ideias abstractas, transformando-as em narrativas, personagens e imagens concretas, como, por exemplo, uma doença através das suas vítimas, o desemprego através de desempregados concretos, etc.

Esta aversão pelo abstracto e acento no concreto corre a par com outras características da cultural da oralidade, como a preferência pela comunicação participativa (em oposição à solidão inerente à cultura escrita), pelo diálogo (em contraste com a reflexão proposta pela escrita e pela leitura), pela improvisação e pelo “combate”, pela repetição (em vez do convite ao raciocínio), pela circularidade nas narrativas (em vez da linearidade da argumentação), pela comunicação agregativa (em vez do pensamento analítico a que a cultura escrita convida).

Todas estas características da cultura da oralidade versus cultura escrita, a que se acrescenta a já referida proximidade do corpo na comunicação (comparando-se com a sua ausência no texto escrito), são elementos fundamentais para compreender que a televisão teria de ser como é e não como alguns gostariam que fosse: mais argumentativa, racionalista, reflexiva, fria, etc. Pura e simplesmente, a esmagadora maioria dos conteúdos televisivos, pela sua ontologia firmada na 6

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oralidade e por força da concorrência, tem de se inscrever neste tipo de comunicação, que a televisão levou mais longe do que qualquer outro media.

Dois exemplos podem ilustrar esta oralidade ontológica, que considero fundamental para a compreensão do media: o êxito do comentário de Marcelo Rebelo de Sousa deve-se não só à sua capacidade comunicativa oral, mas também ao dispositivo adoptado: um diálogo (por vezes, no passado, um pseudo-diálogo, como com Júlio Magalhães, na TVI) que contrasta com as charlas das primeiras décadas e as ironicamente chamadas “conversas em família” de Marcelo Caetano, o qual recorreu à pseudo-conversa precisamente por pretender uma proximidade com o espectador que Salazar jamais desejou; as notícias em televisão agregam aspectos da informação ou transformam os eventos noticiados em histórias, marcadas por isso pela circularidade narrativa e/ou discursiva, em vez de seguirem uma linearidade subordinativa — quando um jornalista diz numa notícia “tudo começou quando...” ficamos a saber que sentiu a necessidade de narrativizar o evento.

A cultura da oralidade coexiste com a visualidade, pois esta confirma-a, mostra-a. Acresce que, sendo a visualidade mais cara de produzir do que a oralidade, na televisão, que ainda por cima nasceu da rádio, a esmagadora maioria da comunicação televisiva assenta na oralidade, nomeadamente na conversa. A oralidade televisiva é, portanto audiovisual, sendo desde há décadas obrigatoriamente complementada pela escrita breve, em oráculos, títulos e rodapés.

Em sétimo lugar, e em consequência da cultura da oralidade e outras características indicadas, a televisão assenta na personalização de todas as esferas da vida. Os animais são antropormorfizados, ou o seu protagonismo nos teledocumentários é substituído pelos apresentadores, tratadores, veterinários ou apresentadores: que interessa a pantera das neves, em extinção, se podemos ver um dos “cientistas” do programa a chorar depois de ter gravado imagens de um exemplar? Muitos teledocumentários sobre arqueologia centram-se nos arqueólogos e suas emoções de pessoas vivas. Nos teledocumentários históricos, a história foi substituída em grande parte pela biografia histórica. Abundam os programas com celebridades ou famosos, havendo muitos que inventam, fabricam ou proporcionam novos famosos, como os reality shows do tipo Casa dos Segredos. A área mais significativa deste processo de personalização ocorreu com a política. A televisão contribuiu decisivamente para o fim das ideologias, para o fim da política programática, para a alteração do processo político e partidário. Por causa da televisão, a política transformou-se, em grande medida, nas pessoas dos políticos. O carisma tradicional, antigo, arrasou o carisma institucional que Max Weber atribuiu e desejou para a democracia. Carisma, credibilidade, aspecto, vestuário, sound bites, comportamentos e “simpatia” dos políticos são características que agora dominam a vida política.

Em oitavo lugar, a televisão, por defeito e depois por feitio, assimilou a sua própria comunicação imperfeita, nos enganos das pessoas em directo, nos erros gramaticais dos falantes ou dos rodapés, nas falhas de comunicação da imagem ou em especial do som, nos imponderáveis do directo (como a presença por trás do jornalista de uma figura paradigmática da TV portuguesa, o “Emplastro”) e principalmente na imagem tremida, em resultado do improviso nas reportagens, do movimento das pessoas interrogadas na rua, da agitação na rua, etc. Os vídeos de espectadores, primeiro com câmaras de filmar, depois com telemóveis, começaram a ganhar cada vez maior presença. Inicialmente, os apresentadores dos noticiários avisavam e os rodapés reiteravam que as imagens não tinham qualidade por serem vídeos amadores. Deixaram de o fazer e, mais, os espectadores são constantemente convidados a enviar vídeos para os canais. Há programas inteiros de entretenimento feitos com vídeos caseiros e amadores, como os de “apanhados”. A imperfeição tornou-se sinónimo de “verdade” e de tal forma uma marca identitária da televisão e do seu directo que o cinema a seguiu: há filmes inteiros em que a câmara não pára, mesmo em cenas “lentas” (ou precisamente por o serem), outros em que a imperfeição e a tremura servem para transmitir o carácter verista e transmiti-lo a narrativas de guerra, por exemplo.

Em nono lugar, o permanente convite à efervescência colectiva. Grande parte da comunicação televisiva (e não só) foi eventificada: tudo se transforma num evento; muitos eventos exteriores à televisão são transmitidos; e, à falta de eventos exteriores, criam-se eventos próprios, como as “galas” dos reality game shows (Factor X, Ídolos, Secret Story, etc.). Como se não 7

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chegasse, a eventificação com efervescência colectiva há muito que entrou nos próprios estúdios do quotidiano: dezenas de programas são apresentados com público em estúdio, de modo a criar a excitação resultante das palmas a pedido e da comoção do público em estúdio, com a resultante comoção vivida à distância pelo espectador, partilhando emoções e efervescência com esse público pago, gente que é em simultâneo uma mercadoria de comunicação. Curiosa inversão: a televisão nasceu com a promessa generosa, que cumpriu, de levar o teatro onde ele não existia, levando-o sem público no estúdio; mas, desde 1951, quando se estreou I Love Lucy na CBS, o primeiro programa gravado com público, não mais parou de efervescer os estúdios.

Em décimo lugar, a diversidade de géneros, superior à da rádio e do cinema e dos media jornalísticos ou informativos. Esta diversidade faz da televisão um ser omníparo, capaz de tudo criar e recriar, o velho e o novo, muitas vezes recorrendo a metamorfoses que alteram um pouco um género para que o essencial fique na mesma, mudanças necessárias num media que, excessivo, bombardeia os ecrãs com programas de êxito até os queimar, vencendo o espectador com a extenuação que lhe provoca.

Em décimo primeiro lugar, a segmentação dos conteúdos. Dado que a atenção do ser humano tem altos e baixos (em geral a atenção diminui ao fim de alguns minutos, recuperando depois e assim sucessivamente), a televisão desenvolveu com astúcia conteúdos caracterizados pela divisão em segmentos. Nos primórdios já havia os então chamados “programas de variedades”, com canções, danças e quadros de comédia, como na “revista” — hoje chamados sketches. Agora, uma parte significativa dos programas está segmentada em rubricas, enquadrando-se os intervalos publicitários nesta característica.

Em décimo segundo lugar, a originalidade de conteúdos próprios, incomparáveis com os de outros media, mesmo quando têm origem noutros media, como os noticiários, os concursos, as novelas.

Terminada esta caracterização da linguagem do media, podemos afirmar que a televisão tem “conteúdos próprios com uma linguagem própria”, a “linguagem televisiva, forma de comunicar específica, inconfundível com as linguagens desenvolvidas por outros media”, como escrevi em 2011. É, pois, a linguagem televisiva o elemento definidor do media, mais do que as instituições e as audiências, certamente muito mais do que a tecnologia. Uma linguagem local e global

A linguagem televisiva tornou-se uma língua franca, entendida por milhares de milhões de pessoas. A ela recorrem outros media (a rádio e os jornais já apresentam nos seus sites segmentos em linguagem televisiva; também o cinema a ela recorre, como referido). A ela recorrem as empresas no seu marketing, as instituições políticas, como os partidos, os candidatos, os parlamentos, os presidentes ou monarcas. A ela recorrem os que colocam no Youtube os seus vídeos. A ela recorrem os docentes, nas aulas que distribuem pela Internet. A ela recorrem as grandes religiões e as que quiseram passar-lhes à frente, como as dos evangelistas e igrejas dissidentes do cristianismo. A linguagem televisiva, que é uma construção cultural, que é um código técnico-cultural-ideológico, “naturalizou-se”.

Ao tornar-se “natural”, o que muito se deve à televisão norte-americana ao longo de décadas, a linguagem televisiva conquistou o mundo — não apenas geograficamente, mas também a cultura, a mente de milhares de milhões, mesmo os que não a vêem ou que dizem não a ver (contactando, porém, com conteúdos seus noutros media).

A televisão conquistou o mundo, também, pela globalização dos seus conteúdos, em especial os norte-americanos, mas igualmente os britânicos e brasileiros, e pela globalização dos seus formatos, que são esqueletos de programas para “glocalizar” em cada país, como Big Brother, Quem Quer Ser Milionário, Masterchef ou Shark Tank.

A linguagem televisiva detém o império. A sua expansão vê-se em todos os media, que a utilizam, em todas áreas da comunicação. Todos os países partilham várias linguagens, mas a mais importante das que partilham é provavelmente a linguagem televisiva. 8

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Este império da linguagem televisiva, a par da sua ubiquidade técnica, capacidade omnípara, democratização de “canais” e facilidade de criação e difusão, não serve apenas para definir a televisão na contemporaneidade. Deve servir também para a pensar institucional e politicamente. Consequências para a estratégia dos operadores e criadores televisivos

De facto, se o modelo histórico da televisão generalista e por cabo ainda prevalece por vontade dos espectadores, todos os elementos referidos permitem antecipar a crescente emancipação dos conteúdos avulsos e a sua crescente difusão. Os conteúdos, que sempre foram a razão de ser das instituições televisivas, vão-se sobrepondo em importância aos canais e plataformas. O problema central da televisão será, ou já começa a ser, como os dos jornais na Internet, o da distribuição: por entre a vertigem de milhões de conteúdos, como dá-los a conhecer, como chegar aos espectadores, como “oferecê-los” (com publicidade) ou vendê-los? Acresce que os espectadores tendem, como se vai verificando, a preferir conteúdos isolados ou em séries a canais e a plataformas: nos EUA crescem as desistências de assinaturas de cabo e também as desistências de toda a televisão pelo televisor, optando já uma parte dos espectadores por aceder a programas de TV exclusivamente descarregados da Internet.

Desta forma, a estratégia das instituições, e dos Estados proprietários de operadores de TV, deveria começar a dirigir-se para os meios de difusão de conteúdos concretos, isolados. E, por maioria de razão, deveria ir-se dedicando a conteúdos que valham pela sua qualidade criativa — os chamados programas de stock, como telefilmes, séries, documentários — diminuindo a obsessão com programas de fluxo, de continuidade, como os programas do daytime, concursos, etc. A BBC, por entre crise após crise desde há anos, avança devagar por esse caminho, temerosa e elefântica.

O que vemos, no caso do operador do Estado português, a RTP, é precisamente o contrário: uma estratégia virada para dentro, para a empresa, operadora de canais, obcecada com programas de fluxo e desinvestindo em programas de stock. Os resultados desta estratégia, que parece seguir no movimento contrário aos ponteiros do relógio, é a quebra de audiência, a fuga de minorias para o cabo, e principalmente o aumento da irrelevância social, cultural e até política do operador público. Já não se trata apenas de fazer conteúdos concorrenciais com os privados, idênticos — e, portanto, inúteis em termos de serviço público ou mesmo contrários ao serviço público, sem contar com o gasto perdulário do esforço dos espectadores no financiamento do operador do Estado. Trata-se de não fazer o que ainda lhe resta fazer, o que ainda pode fazer antes de desaparecer na irrelevância: programas diferenciados, educativos, cultos, informação alternativa, entretenimento, sim, entretenimento que realmente sirva o cidadão espectador nas suas capacidades cognitivas, informativas, de conhecimento.

Dentro de anos, os canais serão uma sombra do que são hoje. Nos grandes momentos de efervescência nacional ou internacional — grandes jogos de futebol, Olimpíadas, grandes cerimónias, tragédias nacionais ou internacionais, grandes eventos — os canais generalistas, mas também temáticos, conseguirão ainda reunir audiências significativas, se bem que mais pequenas, dado que as mesmas transmissões estarão disponíveis em vários canais e vários sites, dado que os receptores poderão optar por outros meios para segui-los, como jornais, etc. Mas, no rame-rame quotidiano dos media, com o desaparecimento das gerações mais velhas, o conceito de canal, de ligação a essa marca e o conceito de fluxo irão morrendo. Aumentará a importância de conteúdos avulsos ou seriados, em linguagem televisiva. As instituições manterão os canais (enquanto for negócio próprio ou impulsionador de outros negócios) mas deverão concentrar-se em conteúdos que possam viver independentes. Se hoje já não interessa se um jogo da Selecção Nacional de Futebol passa na RTP, na SIC ou na TVI, já começa a não interessar se a série tal é da Fox, da HBO ou da CBS. O que interessa é a série, chegar até ela por qualquer tecnologia que a distribua, o canal pouco interessa. E o mesmo deverá acontecer com grande parte dos conteúdos. A televisão generalista será cada vez mais o media dos mais idosos, mas, não gerando receitas suficientes, o investimento dos canais na programação generalista será menor. A relevância dos generalistas diminuirá também por opção dos seus próprios proprietários, que terão de divergir investimento para os seus canais por 9

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cabo e, quando estes sentirem também a dispersão das audiências, para conteúdos concretos. Será, pois, a linguagem televisiva o elemento comum desses conteúdos, que circularão, como já circulam, pela comunicação digital, a porta de todo o futuro. Eduardo Cintra Torres O autor rejeita o chamado “Acordo Ortográfico”.

Sugestões de leitura Bennett, James, e Niki Strange, eds. 2011. Television as Digital Media. Durham e Londres: Duke University Press. Bourdon, Jérôme, e Cécile Méadel. 2014. Television Audiences Across the World: Deconstructing the Ratings Machine. Houdmills: Palgrave. Butler, Jeremy G. 2010. Television Style. New York, NY, e Londres: Routledge. Carlón, Mario, e Yvana Fechine, orgs. 2014. O Fim da Televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento. Gray, Jonathan, e Amanda D. Lotz. 2012. Television Studies. Cambridge e Malden, MA: Polity Press. Gripsrud, Jostein, ed. 2010. Relocating Television: Television in the Digital Context. Londres: Routledge. Jost, François, dir. 2014. Pour une télévision de qualité. Paris: INA. Katz, Elihu. 2008. “The End of Television?”. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, 625. Lotz, Amand D. 2014. The Television Will Be Televised. 2ª ed. New York e Londres: New York University Press. Miller, Toby. 2009. “A Televisão Acabou, a Televisão Virou Coisa do Passado, a Televisão Já Era”. In A TV em Transição, org. João Freire Filho, pp. 9-25. Mittell, Jason. 2004. Genre and Television. From Cop Shows to Cartoons in American Culture. Londres: Routledge. Newman, Michael Z. 2014. Video Revolutions: On the History of a Medium. New York, NY: Columbia University Press. Torres, Eduardo Cintra. 2011. Televisão e Serviço Público. Lisboa: FFMS. Turner, Graeme, e Jinna Tay. 2009. Television Studies After TV: Understanding Television in the Post-Broadcast Era. Londres: Routledge.

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