Por uma epistemologia do uso

May 30, 2017 | Autor: Arley Moreno | Categoria: Philosophy Of Language, History of Philosophy, Ludwig Wittgenstein, Epistemology of Use
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Por uma epistemologia do uso

Wittgenstein e a elaboração do campo pragmático

1-

A idéia de uma epistemologia do uso tem sua origem, sobretudo, no
pensamento de Wittgenstein e também no de Gilles-Gaston Granger. Iremos
considerar, no que segue, apenas a origem wittgensteiniana dessa idéia. [1]
Um dos temas centrais é o das relações complexas entre o campo
pragmático da significação lingüística e a função transcendental, tal como
introduzida por Kant para caracterizar certos princípios que orientam o
pensamento na constituição dos objetos de conhecimento. Como diz Kant a
este respeito:

Um princípio transcendental é um princípio pelo qual é representada a
condição universal
a priori, sob a qual apenas objetos (Dinge) podem tornar-se em geral
objetos de nosso
conhecimento. (K.U.Einleitung, V, XXXIX).

A atividade de descrição, realizada por Wittgenstein, da diversificada gama
de regras elaboradas no processo de uso das palavras, apesar de cumprir uma
tarefa exclusivamente terapêutica do pensamento, segundo o próprio autor,
parece-nos cumprir também uma outra tarefa, não menos importante, embora
não esperada ou almejada por ele. Ela amplia o horizonte da função
transcendental ao indicar a presença de princípios constitutivos da
objetividade em um domínio tradicionalmente relegado ao âmbito dos
conteúdos empíricos e psicológicos. É um domínio em que intervêm elementos
do mundo exterior e interior – como objetos empíricos e estados psíquicos
-, e ações entre interlocutores que utilizam a linguagem em contextos
públicos e institucionais dominados pela atividade lingüística. Poderíamos
denominá-lo, na falta de melhor termo, o domínio do pragmático.

2 – Epistemologia e significação

A sugestão que gostaríamos de apresentar é que a descrição terapêutica
dos usos das palavras, através do procedimento de variações metodológicas
de suas aplicações diversificadas, sugere uma série preciosa de elementos
que permitem explorar o conceito de uso como indicativo de um campo
esclarecedor da natureza epistêmica do processo de constituição da
significação, através do trabalho com a linguagem e elementos do mundo
extralinguístico. Desta perspectiva, a atividade epistêmica não se
limitaria a elaborar modelos cognitivos, mas deveria ser entendida como
constitutiva da significação em geral, sendo as formas cognitivas um
capítulo apenas, ainda que importante, da atividade mais geral de
constituição que define o que é o objeto – ou melhor, define o seu sentido.
Ao sugerir uma reflexão epistemológica a partir da concepção de uso
das palavras, estamos retirando o foco da função terapêutica que o conceito
de uso possui em Wittgenstein e centrando nossa atenção sobre a função
epistêmica do processo de constituição da significação. Como consequência,
introduzimos uma ideia de conhecimento que não é defendida como uma tese
por Wittgenstein, embora esteja presente explicitamente em todos os
processos terapêuticos de descrição dos usos. Trata-se de conceber o
conhecimento como o conjunto das atividades correlativas de construção de
relações internas de sentido e de sua aplicação, sob a forma de regras.
Esta ideia de atividade epistêmica é colocada por nós como uma tese
filosófica – o que Wittgenstein, como dissemos, não faria.
Construir regras de sentido significa, em outras palavras – e, aliás,
segundo o procedimento da descrição wittgensteiniana dos usos – inventar e,
mesmo, criar relações internas entre os objetos no interior de contextos
técnicos que são os jogos de linguagem, desde relações de inferência lógica
presentes nas demonstrações e provas matemáticas, até relações entre
objetos sensíveis, como aquela que mantêm entre si duas cores, de mais
claro ou mais escuro, ou de um objeto consigo próprio, como a identidade,
ou das palavras com seu número de letras, etc. Não são relações empíricas
ou causais - por que se interessa a descrição do uso das palavras - mas de
sentido, criadas na atividade linguística que envolve os mais diversos
elementos das situações de interlocução e está, ao mesmo tempo, nelas
envolvida - ou, como Wittgenstein os denomina, os jogos de linguagem. Estas
relações de sentido são instituídas e aplicadas à experiência que é assim
organizada significativamente: um algo se torna objeto de pensamento ao ser
expresso linguisticamente através de conceitos – p.ex., manchas de cor
passam a manter relações de sentido entre si, filiações e exclusões,
combinações permitidas e outras excluídas formando uma verdadeira geometria
de um espaço das cores; dados dos sentidos passam a ser expressos por
conceitos e proposições relativos à percepção atual ou do passado, com os
diversos graus de imprecisão inerentes ao seu sentido, formando, o que
podemos denominar, também, verdadeiras geometrias do espaço visual e da
percepção mnemônica; da mesma maneira que fatos futuros passam a ser
antecipados por estados mentais, como expectativas, intenções, previsões,
desejos, etc., formando assim verdadeiras geometrias de modalidades, do
possível, provável, virtual e necessário. Deste ponto de vista, a própria
indução empírica, p.ex., não repousa sobre causas, mas sobre razões, p.ex.,
os relatos das pessoas sobre a dor e as eventuais experiências pessoais de
dor são as razões – e não a causa – para que eu tenha a certeza de que
sentirei dor caso coloque, agora, assim como no futuro, a mão no fogo
(IF§472 e sgs.). Em todos os casos, não se trata de relações empíricas
entre pensamento e seus conteúdos, mas de relações internas, ou de sentido,
entre pensamento e realidade – relações que possuem a marca da necessidade,
e não da contingência.
Esta atividade de organização linguística da experiência por
constituição do sentido perpassa todas as descrições do uso que realiza
Wittgenstein, e é ela que qualificamos, neste texto, de atividade
cognitiva: conhecer é construir regras de sentido e operar com elas,
aplicando-as aos objetos de pensamento.
Ora, o solo pragmático em que são realizadas as descrições do uso da
linguagem, através de aplicações das palavras, é um solo que foi construído
lentamente, após o Tractatus, onde a explicitação da ideia de ação com
palavras ocorre apenas na época das aulas de Cambridge, entre 1934-1935,
ditadas a seus alunos e vindo a ser publicadas no livro Caderno Marrom.

3 – Aprender a agir com palavras – o contato da linguagem com o mundo

De fato, é possível distinguir dois aspectos na atividade filosófica
de Wittgenstein, aspectos complementares que, embora naturalmente
imbricados entre si, exercem funções bastante distintas em sua filosofia.
São eles, por um lado, a elaboração de conceitos teóricos e de um método,
e, por outro lado, a aplicação dos conceitos e do método terapêutico. São
aspectos elaborados ao fio dos anos por Wittgenstein, cujos resultados
influenciam-se mutuamente – e são concomitantes ao seu esforço em praticar
exclusivamente a terapia do pensamento e evitar a construção de um sistema
de teses.
Vejamos alguns dos conceitos operatórios elaborados por Wittgenstein
para enfrentar as dificuldades presentes no Tractatus, e como ele chega,
com isto, a uma concepção pragmática de significação e de linguagem – ou, o
que ele próprio caracteriza como sendo a « práxis da linguagem »: matéria
da descrição dos usos e finalidade da apresentação panorâmica.
Wittgenstein organizou a parte inicial do álbum em torno e na mesma
sequência de apresentação dos dois temas complementares herdados do
Tractatus, que são dois aspectos do processo de organização lingüística da
experiência através de atribuição de nomes. Não sendo linear o discurso do
álbum, estes temas são entremeados com outros, como o da natureza da
atividade filosófica e a auto-terapia. Assim, encontramos nas
Investigações, em primeiro lugar, o tema dos pontos de contato entre a
linguagem e a realidade, ou, como diz o Tractatus, as antenas com que a
proposição toca a realidade (Tr.2.1515), até por volta do §64 – o que
corresponde no Tractatus a todos os aforismos da seção 2 cujos números
comportam a cifra zero; em segundo lugar, o tema da natureza e constituição
da significação proposicional, a partir do §134 – o que no Tractatus
corresponde à exposição da teoria da figuração, a partir do aforismo 2.1.
Estes dois temas são retrabalhados nas Investigações nesta mesma sequência,
sendo que o tema da nomeação será desmembrado em dois aspectos: o ensino
ostensivo das palavras (hinweisendes Lehren der Wörter), ou adestramento
(Abrichtung) e o esclarecimento ostensivo, ou definição (`hinweisende
Erklärung` oder ´Definition´ (IF §6).

Quanto ao primeiro aspecto da nomeação, os pontos de contato
elementares da linguagem com a realidade são, agora, esclarecidos através
de técnicas de ensino ostensivo, ou de adestramento, inseridas em contextos
que orientam sua aplicação, i.e., fornecem lições (Unterricht) (IF§6).
Estas lições permitem interpretar os gestos ostensivos e as repetições de
palavras e aplicá-los seja para adestrar o comportamento, seja para
associar imagens mentais a objetos, seja mesmo para facilitar a compreensão
da palavra. Note-se que, nesta etapa elementar, compreender uma palavra
significa apenas agir de acordo com a regra que faz parte da lição, como,
p.ex., obedecer à ordem que foi dada ao se pronunciar a palavra (IF, ibid.,
id.) - o que pode ser obtido por adestramento, como no caso dos animais,
através de estímulos e recompensas (cf BB I,1). Assim, a mesma técnica
cumprirá funções diferentes de acordo com a lição em que for apresentada. A
ênfase é dada aqui ao fato de que o aprendiz já deve dominar algumas das
diversas atividades que podem ser realizadas com o nome, além da função
referencial que lhe é tradicionalmente atribuída – deve, p.ex., agir
adequadamente com palavras que tenham diferentes funções, como ordenar,
pedir ou alertar, no interior da lição - para saber o lugar da palavra na
sua aplicação como etiqueta - p.ex., para nomear a forma e não a cor, mas,
também, para agir de acordo com uma ordem, ou exprimir uma impressão, etc.
(IF §§7-27). Compreender corresponde, nesta fase elementar de introdução do
aprendiz à linguagem, a saber agir com palavras no interior de contextos
pervadidos pela linguagem - e não a compreender o sentido.
A substituição do objeto pelo nome é o resultado, pois, de complexa e,
certamente, longa atividade envolvendo gestos, objetos, palavras, assim
como instruções a respeito de sua coordenação no interior de um contexto
linguístico já estabelecido – no qual, entretanto, não se pode ainda
perguntar pelo sentido. A simples etiquetagem do objeto pelo nome é uma
técnica que consiste em um jogo de linguagem no qual a palavra funciona
como etiqueta e não mais como ordem, pedido ou alerta, etc. – etiquetar é
uma forma de agir apoiada em lições que o aprendiz já deve dominar. Os
pontos de contato da linguagem com a realidade são construídos na ação do
aprendiz com palavras no interior de técnicas de aplicação da linguagem,
desde as mais elementares até as mais complexas. Este parece-nos ser o
passo decisivo que permite a Wittgenstein transpor a ponte do domínio das
relações internas lógicas para o domínio das relações internas pragmáticas
de sentido.
O segundo aspecto da nomeação diz respeito à definição do nome, ou,
ainda, à pergunta pelo sentido. Da mesma maneira, a ênfase é aqui colocada,
por Wittgenstein, no fato de a definição só esclarecer o uso do nome quando
o aprendiz já dominar diversos jogos com a respectiva palavra, i.e., quando
já lhe for claro o papel que a palavra desempenha na linguagem, ainda que
sem conhecer explicitamente suas regras - p.ex., ao olhar e imitar pessoas
jogando (IF§§28-34).
A exposição destes dois aspectos da nomeação precede, nas IF, a
questão que fora central no Tractatus, da essência da proposição e do
pensamento (IF §§65-94), inserindo-a, assim, no contexto pragmático do uso
da linguagem. Esta ordem de apresentação parece-nos corresponder ao esforço
de Wittgenstein para enfrentar dificuldades legadas pelo livro de
juventude, reconhecendo sua importância e respeitando sua prioridade
conceitual. Note-se que os conceitos pragmáticos aqui introduzidos
correspondem ao novo sistema de referência adotado, a noção de jogo de
linguagem, em que o objeto logicamente simples, caro ao modelo lógico,
desfaz-se, enquanto referência do nome, em ações diversas no interior das
lições aprendidas nos jogos. Nos dois casos, os sistemas de referência – o
espaço lógico e os jogos de linguagem – fornecem as regras para analisar,
ou para descrever, segundo o caso, os objetos e, com isto, para dar unidade
e completude à tarefa filosófica.
Este é o novo arcabouço teórico que permite a Wittgenstein esclarecer
a situação que permaneceu ambígua anteriormente em seu livro, das relações
entre linguagem e realidade, e inexplorada em seus dois aspectos, a saber,
a substituição dos objetos por nomes e a identificação de objetos através
de seus nomes. Os jogos de linguagem são o contexto que dará sentido ao
equivalente pragmático do logicamente simples no Tractatus, permitindo
esclarecer tanto as ligações elementares entre nome e objeto quanto as
diversas formas de sentido presentes no uso das palavras como nomes de
objeto.
Os dois temas tractarianos centrais, do contato entre linguagem e
realidade e da possibilidade de representação do mundo pela proposição
significativa, que é o pensamento, serão posteriormente considerados sob o
aspecto pragmático da construção e aplicação de técnicas envolvendo a
linguagem e as situações de interlocução. Tais técnicas ganham o estatuto
de fundamento da própria vivência da significação, tendo em vista sua
expressão linguística. Como diz Wittgenstein, referindo-se às vivências de
aprender a perceber aspectos e expressá-los:

O substrato desta vivência (Erlebniss) é o dominar (Beherrschen) uma
técnica (IF, II, xi).

Cabe, então, ao filósofo terapeuta descrever e comparar aplicações
das palavras em diversos jogos, segundo as várias técnicas a nosso dispor
e, mesmo, inventá-las, e apresentar panoramicamente as suas regras de uso
sem levantar hipóteses e nem colocar teses explicativas.

4- Sugestões epistêmicas

Ora, a descrição terapêutica chama-nos a atenção para duas funções
características que essas técnicas apresentam nos jogos de linguagem:
introduzem normas para incorporar significativamente elementos do mundo à
linguagem, apresentando-os como candidatos à aplicação de nomes: "isto se
chama verde"; e, por outro lado, definem o sentido do que é ser um objeto,
apresentando-o como o contexto da aplicação do nome: "verde é uma cor". No
ambiente pragmático pós-tractariano, estas duas funções das regras serão
incorporadas pelo aprendiz através do adestramento, ou ensino ostensivo de
associações entre signos, e da definição ostensiva de sentidos, no interior
de jogos de linguagem. E isto, como assinalamos acima, tendo como pano de
fundo o trato prévio com o uso das palavras, o domínio prévio e mesmo
informal, ou prático, de outros jogos de linguagem (p.ex., IF, §6), como
condição lógica para aprender novas regras, para ser capaz de fazer
comparações com familiaridade, enfim, para ter a vivência do sentido –
i.e., de aspectos ou relações internas (cf. IF. II, xi).
As ligações elementares entre linguagem e mundo continuam a ser
consideradas como condição de possibilidade da proposição, mas deixam de
ser consideradas como relativas exclusivamente a processos empíricos por
serem inexploráveis formalmente, como no Tractatus. O novo ambiente
pragmático permite detectar aspectos formais antes insuspeitados no uso da
linguagem, e indicar aí técnicas de integração do mundo ao sentido e ao
conhecimento, i.e., de práticas linguísticas que poderão ser, doravante,
exploradas e esclarecidas (erklären) - o que a exigência de pureza da
análise lógica interditava. Todavia, as próprias concepções de objeto e de
proposição serão reformuladas.
É assim que podemos apreciar, a partir do pensamento de Wittgenstein,
uma nova concepção do conceito de condição de possibilidade que emerge dos
processos de integração lingüística da realidade e de definição do objeto.
Como salientamos no início, esta concepção conserva, do conceito kantiano,
a necessidade assim como a independência daquilo que condiciona, mas o
torna relativo aos usos da linguagem: são condições normativas criadas a
partir da aplicação de outras normas e durante o processo de uso das
palavras – como diz Wittgenstein, "jogamos e - `make up the rules as we go
along´" assim como "as alteramos – `as we go along´" (IF §83). Conserva o
estatuto de condição formal e a priori, relativamente ao que condiciona, e
revela o seu modo de elaboração e de funcionamento, que é a parte post,
i.e., no decurso do uso da linguagem.
As duas etapas elementares de articulação do sentido - i.e., a
atribuição de nomes como etiquetas e a definição de seu sentido -
correspondem a um nível exclusivamente convencional de introdução de
normas, sem qualquer necessidade – é sempre possível aceita-las ou não
(Moreno, 1993). A etapa seguinte será o resultado do que Wittgenstein
denomina de "cálculo com a linguagem" (IF, §§449, e cf.27,33), a saber, a
criação de expressões linguísticas portadoras da necessidade – é o nível
propriamente proposicional em que as proposições nada descrevem e são
usadas, exclusivamente, como normas de sentido. É quando a significação
parece soar como uma definição de essência - i.e., quando parece não poder
ser negada, nem, muito menos, pensada de modo diferente. É o caso das
proposições analíticas e o das proposições sintéticas a priori: não apenas
aceitamos que nomes sejam atribuídos a objetos, a números, a cores, etc.,
mas passamos a afirmar com certeza que "todo objeto é idêntico a si –
próprio", que "2+2=4", ou que "o branco é mais claro do que o preto";
aceitamos as definições de ponto e de reta, e passamos a afirmar com
certeza "por um ponto fora de uma reta, passa apenas uma paralela a essa
reta"; aceitamos a definição de certos estados psicológicos, e afirmamos
com certeza que "sensações são privadas", etc. Começamos aceitando
convenções iniciais e passamos a pensar relações necessárias. É neste nível
de elaboração do sentido que surgem, segundo Wittgenstein, as confusões
conceituais: a necessidade aqui presente faz-nos esquecer, ou perder de
vista, a profundidade das convenções que é o seu solo de origem. Como diz
Wittgenstein:

À profundidade que vemos na essência corresponde a necessidade
profunda da convenção. (BGM, I,§74).

É deste nível que parte a terapia, em sua descrição filosófica,
conduzindo-nos, por assim dizer, retrospectivamente, ao nível anterior, de
exploração das convenções preparatórias, que aparece, então, como sendo
condicionante com relação àquele da necessidade absoluta. Esta relação de
condicionamento diz respeito, portanto, à formação e elaboração da
significação conceitual. No interior deste contexto é que estão situadas as
proposições descritivas, ou significativas, dentre as quais aquelas que
expressam a atividade epistêmica. A construção e aplicação de conceitos
epistemológicos supõe, neste sentido, e, de certa forma, encobre o seu solo
de origem, a saber, a complexa atividade de organização simbólica da
experiência que já é uma atividade epistêmica – pois tem, com a construção
do signo, uma de suas mais importantes etapas.
A visão panorâmica dos usos permite apreciar as relações internas de
condicionamento estabelecidas no campo de ação com a linguagem entre os
diversos níveis de articulação do sentido, mostrando o trajeto efetuado,
como que em um cálculo, a partir das convenções iniciais e preparatórias do
sentido até a sua expressão proposicional – seja de normas do sentido seja
como descrição de fatos. Ao mostrar o fundamento linguístico e convencional
da necessidade, seu solo original, a descrição filosófica substitui a idéia
de fundamento absoluto pela idéia de condição de possibilidade, agora, em
um contexto pragmático. De fato, assim como há jogos de linguagem
condicionando outros – como, p.ex., os conceitos de simulação e dúvida têm
suas condições de possibilidade fornecidas pelos jogos da expressão
espontânea e da certeza – da mesma maneira, e mais amplamente, o conceito
de necessidade supõe os mesmos processos de articulação lingüística da
experiência – preparação das posições dos signos e constituição de seus
sentidos - que conduzirão à forma proposicional de expressão, tanto da
necessidade quanto dos fatos. É o percurso a que nos leva o cálculo com as
palavras, no contexto pragmático pós-tractariano: toda significação
necessária é, antes, uma significação já constituída – p.ex., para afirmar
que o branco é mais claro do que o preto, é preciso saber previamente que
estamos falando de cores; para afirmar que as palavras têm um número
determinado de letras, é preciso saber previamente identificar palavras.
São estes processos, ou técnicas, diversos que nos mostra a descrição
terapêutica, assim como sua função condicionante, formal e a priori para a
necessidade – função que não é, todavia, dada previamente, mas, pelo
contrário, é elaborada durante o processo de aplicação das regras.
O fundamento absoluto é, assim, substituído por processos de natureza
pragmática que, ao criarem normas convencionais de sentido, ou ligações
internas, entre as diversas situações de aplicação da linguagem,
fundamentam firmemente o sentido. Processos, todavia, cuja estabilidade é
sempre precária e sujeita às intempéries das formas de vida, assim como os
telhados de uma construção que dão mais firmeza às paredes do que os
alicerces, mas que podem ser destruídos por vendavais.
Neste sentido, parece-nos, a terapia destrói enormes construções, como
diz Wittgenstein, verdadeiros castelos de areia, ao liberar os seus
fundamentos linguísticos (IF §118) exibindo-os ao olhar, a saber, relações
lógico-gramaticais de condicionamento entre técnicas convencionais
envolvendo palavras, os jogos de linguagem. Não se trata, pois, de uma
reflexão pragmática como ramo dos estudos empíricos da linguagem. Pelo
contrário, o conceito wittgensteiniano de uso apresenta, de nosso ponto de
vista, uma vasta perspectiva para a exploração de atividades epistêmicas
relacionadas à constituição do sentido.

5 – Condicionamento entre níveis de constituição do sentido

Eis alguns resultados importantes, parece-nos, para além da terapia
filosófica, mas que se encontram virtualmente presentes no arcabouço
teórico da descrição dos usos, tal como apresentado nas Investigações
Filosóficas.
De fato, apesar de Wittgenstein se referir explicitamente, e por
várias vezes, nas Investigações, à ideia de condicionamento entre níveis
distintos de elaboração do sentido (cf. p.ex., IF§§6,26,27,28,29,30, sobre
a precedência do ensino ostensivo com respeito à definição ostensiva; §49,
sobre o denominar como preparação (Vorbereitung) ao descrever, etc.), ele
não o faz como teses filosóficas a respeito de fatos do uso da linguagem. A
apresentação panorâmica dos usos não levanta qualquer hipótese sobre a
gênese das confusões filosóficas; todavia, ao apresentar diversas situações
a serem comparadas entre si, mostra diferentes níveis de articulação do
sentido nos jogos de linguagem – assim como o condicionamento entre esses
níveis. Eis alguns resultados esclarecedores da terapia, mas que não são
apresentados como teses filosóficas, e que, ao mesmo tempo, unificam as
descrições de usos das palavras.
De fato, estas duas ideias asseguram unidade ao método de busca e
apresentação panorâmica de conexões intermediárias, sempre que o sentido
possa estar excluído de um jogo pela ausência daquilo que ele pressupõe –
como, p.ex., a dúvida pressupõe a certeza, a simulação pressupõe a
sinceridade, a descrição pressupõe a nomeação. Da mesma maneira, e mais
amplamente, o jogo da nomeação, que é uma preparação para o uso das
palavras, pressupõe, por sua vez, o longo treinamento para agir com
palavras – através de várias técnicas de adestramento e de treino
envolvendo sons, ações e objetos, no interior de contextos que orientam a
aplicar sons como palavras – p.ex., para ordenar, chamar, comunicar, pedir,
executar tarefas, tagarelar etc. É tudo isto que o aprendiz da linguagem
deve saber para ser capaz de colar uma etiqueta sobre algo. (cf. I.F. §25 e
sgs.). A capacidade de nomear supõe, assim, um vasto e longo percurso por
atividades envolvidas com palavras e no interior de situações que orientam
a ação de acordo com as instruções aí vigentes. A partir de então, i.e.,
uma vez dominada a técnica da etiquetagem com palavras, tornar-se-á
possível ao aprendiz perguntar pelo sentido.
O conjunto de conceitos teóricos que conduz à esta ideia, de
condicionamento entre jogos de linguagem relativamente às suas diferentes
maneiras de elaborar o sentido, substitui o modelo lógico que, no
Tractatus, conduz às insondáveis ligações elementares entre nome e objeto,
entre linguagem e realidade. Os novos conceitos introduzem algo que está
excluído do campo da lógica transcendental, a saber, a prática com a
linguagem através do ensino e do aprendizado do sentido, no interior dos
jogos – tomados, agora, como parâmetros de comparação com nossa linguagem,
e não como normas do que deve ser. É uma nova concepção de aplicação
(Anwendung) do simbolismo linguístico e da lógica – relativamente ao
Tractatus (cf. Tractatus 3.262, 5.557) - que vemos surgir durante os anos
30 no pensamento de Wittgenstein, e que já é explicitada no Caderno Marrom,
através da ideia de ensino da linguagem por adestramento. Este conjunto de
conceitos teóricos é elaborado gradativamente e ganha forma acabada no
texto do "álbum". A forma lógica do nome e a da proposição, assim como a
simplicidade absoluta do objeto tractariano passam a enfrentar, a partir de
então, o atrito do uso da linguagem.
Assim, durante o processo terapêutico, apreciamos diferentes formas
de se introduzir normas na linguagem – o uso nominal das palavras, a
introdução de amostras como regras para a aplicação de palavras, as provas
e demonstrações matemáticas e lógicas aplicadas como paradigmas do sentido.
De nosso ponto de vista, esta diversidade é importante porque aponta para
uma relação de condicionamento entre níveis distintos na elaboração do
sentido conceitual: primeiro, aquele em que apenas lugares para as palavras
são preparados, e, segundo, aquele em que são preparados os lugares das
proposições – ou melhor, das funções descritiva e gramatical da linguagem.
O segundo nível é condicionado relativamente ao primeiro, porque tem como
material inicial normas reguladoras da experiência simbólica, anteriormente
introduzidas, que preparam as aplicações iniciais das palavras. É apenas no
interior do segundo nível que serão construídos conceitos epistêmicos, como
certeza, dúvida, conhecimento e crença – e será definido o sentido dos
objetos pelas proposições gramaticais, como condição para que possam ser
descritos pelas proposições significativas. Vislumbramos, assim, para além
da terapia, diversas formas de organização simbólica da experiência, como
criação de normas e sua aplicação - desde as mais elementares ligadas à
própria construção do signo, ou melhor, da correlação do reenvio simbólico
entre as suas funções de significante e de significado - do ponto de vista
do conceito wittgensteiniano de uso da linguagem.
Eis um resultado terapêutico que nos parece ter uma importância
particular para além da terapia, ao permitir que se conceba a apresentação
das questões filosóficas de maneira clara – como diz Wittgenstein a
respeito dos legítimos problemas fenomenológicos a serem tratados sem o
castelo de areia de um sistema fenomenológico na qualidade de fundamento
(B/F I, §53; III, §248) - e, por assim dizer, preventiva por ser,
justamente, um resultado virtual da terapia.





Arley R. Moreno
Agosto 2014
Morada do Moinho Velho
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[1] A respeito da origem grangeriana desta idéia consultar 'La description
grammaticale et sa fonction transcendantale' em Grammatical ou
Transcendental? Cahiers de Philosophie du Langage, vol. 8, 2012, Ed.
L'Harmattan, Paris.
Algumas passagens deste texto retomam parcialmente e desenvolvem
trechos da Apresentação ao livro Apontamentos para uma epistemologia do
uso, coletânea de artigos redigidos entre 2004 e 2012, publicada pela
Editora Quarteto, na Coleção Empiria, Salvador, Bahia em 2013. E também de
Introdução a uma pragmática filosófica, cap.6, Ed.Unicamp, 2005, Campinas,
S.P., Brasil/ Introduction à une épistémologie de l'usage, cap.6, Ed.
L'Harmattan, 2011, Paris, França.
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