Por uma Política da Contracafetinagem

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11/8/2015

Revista Mesa | Rodrigo Nunes

EDITORIAL

THINK PIECE

ESTUDOS DE CASO

ARTIGO

VIDEOENTREVISTA

ENSAIO FOTOGRÁFICO

31ª Bienal de São Paulo – Sarau Moinho Vivo. Vermelhão – Favela do Moinho. Após três meses de reforma do maior espaço público da Favela do Moinho, o campo de futebol, os movimentos Comboio e Moinho Vivo convidam a todos para a inauguração do espaço. 06/12/2014. © Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo.

CONTRIBUIDORES

Por uma política de contracafetinagem

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CRÉDITOS E AGRADECIMENTOS

PORTUGUÊS ENGLISH

Rodrigo Nunes O modo como este artigo se insere numa discussão sobre o “sentido do público” (publicness) na arte é parcial em dois sentidos. Primeiro, por não tentar dar conta do problema da dimensão pública da arte como um todo, mas abordá-lo desde um ângulo bastante específico: a tendência observada em práticas artísticas, curatoriais e institucionais na última década em direção a um envolvimento com questões políticas, ou o que se pode chamar “ativismo artístico contemporâneo”.2 Segundo, por indagar-se sobre a relação desse tipo de iniciativa com os públicos diretamente mobilizados pelas questões políticas e sociais com que dialogam. Isto é: por ocupar-se principalmente da interface entre esse tipo de prática e aqueles para quem os processos políticos em questão estão diretamente em jogo – aqueles que se encontram implicados neles por algum investimento individual ou coletivo, da ordem do interesse, do desejo, da empatia, da solidariedade etc. O que interessa aqui, então, não é a unidade virtual de algo que se poderia nomear no singular (o público), mas o modo como a arte pode intervir naquelas situações em que esta unidade já se encontra partida – quando uma determinada questão social ou política já constituiu ou está em vias de constituir um público particular como parte em tensão com a totalidade virtual que o “discurso público” inevitavelmente pressupõe. Pode-se dizer, então, que se trata aqui da relação com “contrapúblicos”.3 É verdade, como observa Michael Warner, que contrapúblicos tendem a se constituir a partir dos mesmos requisitos de extensibilidade indefinida da circulação e do alcance do discurso (a ideia de que qualquer um poderia em princípio participar do debate) que são característicos do discurso público em geral. Optar por falar em contrapúblicos plurais em detrimento do público em geral, assim, não é uma simples opção por privilegiar o particular diante do universal, mas deriva de uma tomada de posição em relação ao lugar que a arte deve ocupar ao intervir em um processo social e político. Este não é, acredito, o lugar supostamente neutro de um mero canal de mediação entre contrapúblico e público, pelo qual a visibilidade ou audibilidade do primeiro junto ao segundo seria ampliada. Ao invés de falar para o público a respeito do contrapúblico, o papel politicamente mais relevante que a arte pode assumir envolve um compromisso com ampliar a capacidade que o contrapúblico pode ter de falar por si mesmo e de agir sobre suas condições de existência e de fala, transformando-as. Este seria um outro sentido em que este texto é parcial, e duplamente assim: ele toma o partido da parcialidade, assume o lado do tomar lado. Assumir tal compromisso, entretanto, é uma possibilidade que não existe em abstrato, mas que pode crescer ou diminuir conforme as condições materiais. Por este motivo, pensar a capacidade que campos como a arte e a academia podem ter de se comprometer passa necessariamente por pensar a capacidade de transformar as condições materiais destes mesmos campos – o que exige, por sua vez, que se visibilizem e problematizem estas condições por meio do debate público e aberto entre os trabalhadores destes campos. Se isso evidentemente não estabelece um padrão pelo qual medir todo trabalho artístico, não deixa de levantar questões que se esperaria vir à tona em relação a qualquer arte que pretenda para si o rótulo de política. Enunciando o problema de maneira clara: quando adicionamos política a arte, o resultado exige critérios adicionais de juízo ou deve-se julgar arte política exatamente pelos mesmos critérios que arte, de onde se conclui que a qualificação não acrescenta nada àquilo que qualifica? Vê-se aí em que direção aponta a discussão proposta aqui: uma expansão dos critérios segundo os quais deve-se julgar a arte política. E se, por um lado, esta expansão pode ser identificada com um dos lados do velho debate sobre engajamento e autonomia – a linhagem que, de Brecht e Benjamin até gente como Glauber Rocha e JeanLuc Godard, transformou a questão da arte política no problema do fazer arte politicamente –, é

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Luc Godard, transformou a questão da arte política no problema do fazer arte politicamente –, é importante que notemos de que modo, como espero mostrar, ela solapa esse debate ao mesmo tempo.4

Intervenção, mediação, transdução A aproximação de artistas, curadores, instituições com processos sociais e políticos é, como não se deixou de notar, sem dúvida bastante ambígua.5 Por um lado, eles oferecem capital social e cultural, visibilidade e suporte institucional a investigações sobre fenômenos de exploração, opressão, violência, exclusão e/ou inclusão diferencial; às práticas de resistência que se opõem a eles; e, embora não tanto quanto se poderia esperar, aos atores diretamente engajados nesses processos. Fazendo isso, tais iniciativas incorporam demandas históricas e dão continuidade a experiências tanto de movimentos sociais quanto das vanguardas do século XX pela politização daquilo que normalmente não é questionado e pela eliminação das fronteiras entre arte e vida. Por outro lado, é sempre grande o risco de que, ao invés de uma abertura real ao “outro como presença viva” e àquilo que está politicamente em jogo, esses experimentos não produzam mais que uma apropriação superficial e simbólica dos “significantes da alteridade”6 e um verniz de “responsabilidade social”. Isto é, que não sejam mais que exercícios naquilo que Suely Rolnik chamou de “cafetinagem”, em que tanto tendências históricas quanto processos sociais presentes são instrumentalizados com o propósito de extrair um quantum de autenticidade capaz de impulsionar carreiras, gerar valor a partir da criação de “novas tendências”, figurar em relatórios que atestam o bom funcionamento de mecanismos de governança e legitimar instituições e seus patrocinadores. Demos o nome genérico de intervenção a esse tipo de iniciativa. Essas intervenções são práticas de mediação: elas existem na medida em que processos políticos e instituições (galerias, museus e a academia, mas também meios de comunicação, apoiadores etc.) entram em contato desde a perspectiva de diferenças que elas devem negociar. Tal contato exige mediadores, que podem vir tanto “de baixo para cima” (chegando à instituição em consequência do desenrolar do próprio processo) quanto “de cima para baixo” (buscando conectar os espaços institucionais a que têm acesso ao processo em questão). Dizer isso não implica qualquer juízo de valor; não se trata de vilipendiar toda mediação em nome de um ideal de total ausência de mediação, nem de distinguir a priori toda mediação “de baixo para cima” como “boa” e toda mediação “de cima para baixo” como “má”. Justamente, não se entende “mediação” aqui como uma situação em que um mediador (artista, curador, acadêmico) se coloca como representante ou porta-voz de um contrapúblico diante do público em geral; este seria apenas um caso fraco e pouco produtivo de mediação – para tomar emprestada a terminologia de Gilbert Simondon, apenas um vínculo [rapport] e não uma verdadeira relação [relation]. Os casos fortes de mediação, cujas condições de possibilidade interessa pensar aqui, seriam aqueles em que a relação que se estabelece é da ordem do que Simondon chama de transdução: não um encontro “arbitrário, fortuito”7 entre dois termos que permanecem os mesmos quando seu contato se encerra, mas uma relação em que algo de real se passa entre eles e os (re)constitui ambos. A “verdadeira mediação”8 seria então uma relação entre duas relações: a operação pela qual se estabelece uma reciprocidade entre uma transformação que ocorre de um lado e uma transformação que ocorre do outro.9 Assim entendida, a mediação não apenas não deixa de ter um sentido necessariamente negativo (uma má mediação é apenas um caso pobre da verdadeira mediação, pela qual a novidade se produz) como se generaliza (há mediação em toda parte, o que torna “opor-se” a ela um gesto sem sentido). Boas mediações podem existir; cumpre perguntar, então, sob quais condições. O que está em jogo aqui, portanto, é pensar os critérios segundo os quais a posição de mediador pode ser bem ocupada, mesmo aquela “desde acima” (em que este texto se concentra, dado que seu público é essencialmente um público de arte). Para fazer isso, é preciso evitar dois extremos: um idealismo que denuncia toda mediação como uma forma de recuperação (rechaçando toda possibilidade de intervenção) e um cinismo que reduz tudo ao mesmo nível de cooptação (se eximindo de pensar como uma intervenção poderia ir além). Não se trata de negar que toda mediação sempre inclui um elemento de captura. O erro está em tratar a captura como uma questão de tudo ou nada ao invés de algo que pode existir em graus – um jogo de soma zero ao invés de, ao menos potencialmente, um jogo de soma um. Fazendo isso, fecha-se o espaço onde o verdadeiro problema se colocaria: como fazer para que aquilo que excede a captura seja mais forte que a força de captura. O segredo da resiliência das relações que nos envolvem está no fato de que a reprodução social como um todo, e portanto também nossa própria reprodução enquanto indivíduos, depende, na maioria dos casos, da reprodução de tais relações: a necessidade de sobreviver sob condições capitalistas nos compele a participar do capitalismo e assim por diante (parafraseando Hamlet, “de todos faz capitalistas ter de pagar o aluguel”). Se reconhecemos que porquanto nos reproduzirmos sob as atuais condições (econômicas, sociais, políticas, interpessoais) estaremos em certa medida implicados em sua reprodução, estamos em condições de discutir – coletivamente, publicamente – quanto as reproduzimos naquilo que fazemos, como reproduzi-las o mínimo possível, em que medida aquilo que estamos fazendo pode servir para transformá-las. O cínico para quem tudo é cooptação evita perguntar-se como é possível uma intervenção que não apenas reproduza as condições existentes, mas que produza ou fortaleça condições capazes de problematizar ou tensionar aquelas que existem. O idealista, por sua vez, só pode assumir a pureza de um ponto de vista externo porque denega seu envolvimento inerente na reprodução das relações existentes, e portanto o fato de que sua própria posição – aquela que efetivamente ocupa, não aquela, imaginária, de onde fala – lhe exigiria pensar em termos de “mais ou menos” ao invés de “tudo ou nada”.

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“Contracafetinagem”, portanto, não deve ser entendido simplesmente como “anticafetinagem”; o prefixo “contra”, aí, está mais próximo da contraespionagem ou do contrabando. As situações de que a contracafetinagem se ocupa habitam os “turvos espaços de encontro [entre] as posições outrora

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Revista Mesa | Rodrigo Nunes contracafetinagem se ocupa habitam os “turvos espaços de encontro [entre] as posições outrora conhecidas como “Insider” [e] “Outsider”10, e é por isso que ela parte da suposição de que uma intervenção sempre necessariamente envolve algum grau de captura – ao mesmo tempo que algum potencial para ir além da mera cafetinagem. Assim, ao invés de estabelecer oposições absolutas ou buscar preservar a pureza diante da contaminação, ela trata de medidas; ela é uma “arte das dosagens”11 cuja finalidade é encontrar soluções que fortaleçam a transformação em detrimento da reprodução. Não uma questão de bem e mal, mas de melhor ou pior. Uma vez que esses encontros existem e são, num certo sentido, necessários – potencialmente úteis para os processos políticos e frequentemente buscados pelas instituições –, a questão se torna pragmática: como estabelecer relações transversais em que a composição entre os dois lados sirva para transformá-los, aumentando o poder de ação em ambos?

Política: micro e macro A posição a partir da qual este debate seria possível é, então, aquela que reconhece ao mesmo tempo os riscos e os potenciais desse tipo de intervenção. Explorar tais potenciais na prática – a única maneira de realmente responder às questões que a possibilidade da contracafetinagem coloca – passa necessariamente por avaliar os riscos e como eles agem sobre nós. É apenas se identificamos aquilo que “aqui e agora, implica uma ameaça de cooptação” que podemos nos indagar sobre os “dispositivos que se opõem à micropolítica da cooptação” a serem estabelecidos.12 Colocar o problema em termos de micropolítica supõe que a ameaça é algo que já se encontra ativo em nosso desejo: uma força cuja atração já sentimos e da qual somos chamados a nos tornar conscientes. Perguntar-se sobre “dispositivos”, por outro lado, significa que os elementos que resistem à captura precisam ser fortalecidos por meio de construções coletivas deliberadas. Assim como a força da captura não está somente em nossos desejos, mas é mantida e reforçada pelos arranjos macropolíticos (institucionais, econômicos, sociais) em que estamos inseridos, resistir a ela micropoliticamente passa pela instituição de arranjos macropolíticos que cancelem seu poder de atração.13 Três perguntas seguem daí: como garantir que as intervenções em que assumimos o papel de mediadores reproduzam o mínimo possível a micropolítica da cooptação? Como garantir que reproduzam o mínimo possível as condições macropolíticas que produzem essa micropolítica da cooptação? Como garantir que produzam e/ou fortaleçam as condições macropolíticas que reforçam e dão consistência a uma micropolítica que resiste à cooptação? Para começar a responder a essas perguntas, a primeira coisa a reconhecer é que, no tipo de intervenção que está em questão aqui, os mediadores estarão sempre – na melhor das hipóteses (isto é, se não tiverem abraçado por completo o cinismo) – fazendo um jogo duplo ou pensando com duas cabeças. Por um lado, como aliados ou participantes de um processo político; por outro, como trabalhadores no campo pelo qual fazem esse processo passar: arte, academia etc. Quais seriam, então, as condições estruturais nesses campos – daquilo que podemos genericamente chamar de “trabalho imaterial criativo” – e quais são seus efeitos sobre os que nele se encontram inseridos? Que tipo de atração micropolítica elas exercem? O trabalho imaterial criativo se caracteriza por um excesso da atividade produtiva sobre a atividade “de trabalho” no sentido estrito; a segunda é apenas uma fração do tempo de “produção”, aquela “unidade indissolúvel de vida remunerada e não remunerada, trabalho e não trabalho, cooperação social emersa e submersa”.14 O trabalho “de verdade”, num mundo laboral de organização eminentemente reticular e cada vez mais precarizado, tende a ser apenas a mobilização, condensação e reconfiguração temporária, mediante um input de recursos financeiros, das redes de relações que os trabalhadores imateriais estão permanentemente constituindo e mantendo.15 A “atividade” efetiva – verdadeira “inércia non-stop”16 – consiste, antes de tudo, na produção e circulação de capital social e afetos (relações de confiança, amizade, respeito, reconhecimento, prestígio), no networking e na administração de uma “marca pessoal” como o cultivo constante de um potencial que pode a cada tanto atualizar-se como trabalho remunerado. A “instabilidade crônica”17, a colonização progressiva da vida pela “produção”, a erosão da fronteira entre tempo de lazer e tempo de trabalho – tudo contribui para a internalização do ethos de “empreendedor de si mesmo” e de um sistema de incentivos positivos e negativos que seleciona comportamentos que indiquem disponibilidade, flexibilidade e a capacidade de “jogar o jogo” contra tudo que possa contar como questionamento, “balançar o barco”, “morder a mão que alimenta”… Some-se a isso a promessa de altas recompensas associadas a um elusivo sucesso18 e a glamorização do “estilo de vida criativo” (não por acaso um dos principais modelos de “boa vida” em nossos tempos), e entende-se o porquê de uma ironia pouco sublinhada na literatura sobre a organização pós-fordista do trabalho. Se, por um lado, o trabalho imaterial criativo é aquele que objetivamente manifesta a maior propensão à auto-organização colaborativa (“o potencial para uma espécie de comunismo espontâneo e elementar”19), é também, por outro, aquele em que o apelo subjetivo da “cafetinagem” é mais forte. De onde que, quando a política é trazida para os espaços rarefeitos da arte e da academia, os mediadores normalmente se encontram expostos ao mesmo tempo a uma forte atração micropolítica no sentido de instrumentalizar a intervenção em favor de sua “marca” pessoal (abrir portas, ganhar visibilidade, fortalecer relações…) e de minimizar os riscos que a mediação pode representar para a instituição (ter suas limitações expostas, ser acusada de tomar partido, ter o ímpeto crítico do processo voltado contra si, indispor-se com parceiros ou financiadores…). Em um caso como no outro, evidentemente, o que tende a sair perdendo é a política, que é assim neutralizada, “representada” (reduzida à aparência externa de seus significantes de alteridade, separada de seus efeitos e protagonistas), “estetizada” (se por isto entendemos subtraída a toda funcionalidade e circulação ordinárias, transformada em objeto de contemplação).20 Não conheço descrição mais direta e adequada desse fenômeno que a metáfora do “pôquer do mentiroso” de Brian Holmes – em que o blefe essencial é, por um lado, apresentar o simulacro mais convincente de

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Revista Mesa | Rodrigo Nunes incorporação da política no próprio trabalho, sem, por outro lado, fazê-lo para valer (ou ostensivamente), a fim de não afugentar público, financiadores e pares. Em ambos os casos, o artista tem que blefar até o fim, ou invocando um engajamento político para se dar bem dentro do cubo branco, ou escondendo este engajamento a fim de extrair dinheiro, recursos e publicidade que possam ser usados por um movimento social. Ocasionalmente, quando a mentira é excessivamente grotesca, o público “paga para ver”, neste caso, o artista perderá algum capital cultural. Ainda mais raramente, descobrir-se-á que o artista realmente está envolvido em um movimento social, em cujo caso ele ou ela estarão fadados mais cedo ou mais tarde a desaparecer do museu.”21 É sempre possível para um mediador resistir ao apelo da cafetinagem em certa medida – por força da firmeza de seu comprometimento, de uma oportunidade favorável, do simples poder de interpelação de um processo político ou das redes de apoio que lhe sustentam outras identidades que não a de “artista”, “curador” etc. No fim das contas, porém, é o nexo entre condições materiais de existência e desejo que precisa ser atacado. Reforçar a capacidade de resistir requer investir desejo na transformação dessas condições, de modo que sua transformação, por sua vez, torne possíveis outros investimentos de desejo. Deixar de investir na construção de alternativas concretas e duráveis sempre acabará por nos levar de volta ao ponto de partida: uma situação em que cada indivíduo enfrenta o mundo como um átomo em competição direta com os demais. E como tais alternativas devem por definição ser coletivas, este investimento deve ele mesmo ser coletivo, que é o motivo pelo qual a contracafetinagem exige um debate público e aberto, nem cínico, nem moralista. A aposta por trás de um tal debate seria que é possível, de dentro das condições existentes, ampliar o espaço disponível para mediações que sejam relações de duas mãos: processos transdutivos em que uma intervenção contribua para um processo político fora da instituição ao mesmo tempo em que contribua para transformar o campo em que a instituição está situada. Uma “relação entre duas relações”, o impacto de uma intervenção desse tipo sobre o campo seria ao mesmo tempo um desaprendizado (uma problematização consciente daquilo que se presume normalmente ser “o modo como as coisas são feitas”) e um aprendizado em fazer as coisas diferentemente (criando condições para outros fazeres no futuro). Foi para pensar a possibilidade dessa relação de mão dupla que Walter Benjamin tomou emprestado o conceito brechtiano de Umfunktionierung – a “refuncionalização” expressa no imperativo de “não abastecer o aparelho de produção sem modificá-lo o máximo possível”.22 Uma vez que “o aparato burguês de produção”, no qual se incluem os campos da arte e da academia, é capaz de “assimilar uma quantidade espantosa de temas revolucionários, e mesmo propagá-los, sem colocar em questão sua própria existência”23, fazer política não pode se reduzir a comunicar conteúdos políticos. Uma intervenção não é apenas o que ela faz, mas como ela o faz – o que ela reproduz, o que ela transforma, ou a medida em que ela faz cada uma dessas coisas. Como diz Benjamin, a questão não é como uma intervenção se situa, por meio de seu discurso explícito, diante da política e das relações de produção de seu tempo, mas “como ela se situa dentro delas”24 – isto é, o que ela faz de suas próprias condições de existência. Não se trata de falar de política, mas de politizar os próprios meios pelos quais é possível falar – o que passa, com efeito, por questionar o próprio papel de mediador e as desigualdades que o produzem e mantêm. Se as condições em que nos reproduzimos ordinariamente são aquilo que sustenta a força de atração que é capaz de mobilizar até mesmo nosso desejo por transformação em favor de sua própria cafetinagem, resulta que nossa própria reprodução, como a reprodução social como um todo, deve tornar-se objeto do esforço coletivo de dar forma aos desejos de transformação.

Orientar-se na prática De que maneira essa posição solapa o debate entre autonomia e engajamento, como fora sugerido na introdução? Ela o faz na medida em que pensa o trabalho de arte como mais que um objeto de contemplação: como um nó numa rede de relações que cercam seu fazer, sua circulação, etc., ao invés de apenas algo que existe para uma consciência. É claramente em termos de impacto sobre uma consciência individual que Adorno compreende o efeito de uma obra de arte, de modo que, quando ele fala em “efeitos sociais da arte”25, isto só pode significar um agregado de indivíduos impactados e não uma série de resultados práticos no mundo. É por isso que a obra de arte pode então ser julgada segundo um critério estético (o que ela é) e, dado que “falsidade política mancha a forma estética”26, também pela política que subscreve (sobre o que ela é); uma vez que é concebida como não fazendo mais que comunicar algo a uma consciência, entretanto, o que ela faz pode ser reduzido a o que ela é – em última análise, sua dimensão formal. Daí pode seguir que “não é a função da arte chamar atenção para alternativas, mas resistir por meio de sua forma apenas ao curso do mundo”27, e que nenhuma “arte engajada” possa ser tão poderosa quanto aqueles trabalhos que respondem à “abstração da lei que objetivamente domina a sociedade” com uma abstração que vai ao limite do “total deslocamento, … da falta de mundo”28. Pois o que pressupõe a oposição entre “chamar atenção para alternativas” (ou seja, mostrá-las) e “[despertar] o medo do qual o existencialismo apenas fala”29, se não uma redução de “aquilo que a obra faz” a “quais efeitos um objeto de contemplação tem sobre a consciência”?

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31ª Bienal de São Paulo – Obras. Instalação sem título de Projeto Comboio e Movimento Moinho Vivo. Registro das obras na 31ª Bienal. São Paulo, 11/11/2014. © Leo Eloy / Fundação Bienal de São Paulo.

O que está faltando aí é a possibilidade de julgar a arte política não apenas por aquilo que ela é, e portanto aquilo que faz como objeto de contemplação estética, mas também por aquilo que ela faz como política. Não apenas por aquilo que é e por aquilo sobre o que é, mas também por como ela se realiza como um meio pelo qual consequências políticas são produzidas (seus efeitos práticos, não contemplativos).30 Podemos ilustrar esse tipo de problema de critério com um exemplo escolhido de maneira relativamente arbitrária entre os debates que cercaram a Bienal de São Paulo de 2014. Ao criticar a inclusão de cartazes de protestos organizados pela comunidade da Favela do Moinho na exposição – por não terem “relevância fora de seu contexto”, não serem “elaborações estéticas” e estarem ali “não por sua potência individual, mas por condescendência” e identidade ideológica com os curadores31 –, uma resenha deixava por completo de perceber que, justamente, aquele não era o trabalho. O “verdadeiro” trabalho fora o envolvimento de dois anos do Grupo Comboio com a comunidade do Moinho, do qual os cartazes eram apenas uma representação visual, reconhecidamente pobre, no interior do espaço expositivo. O ponto cego da crítica é revelador: ao focar-se nos projetos que “tentam sair do circuito da arte contemporânea”, vê apenas resultados pobres; mas aquilo que está enxergando é somente o que o circuito da arte contemporânea consegue representar dessas propostas, enquanto o que há de mais importante nelas, mas acontece em outra parte, permanece invisível para o crítico. Com isso, tudo que havia de interessante na experiência se perde, inclusive as questões mais estritamente estéticas que ela enseja; por exemplo, a da tradução desse tipo de trabalho para o contexto expositivo, e mesmo a da possível validade de usar representações visuais pobres como maneira de problematizar a inevitável pobreza dessa tradução. À guisa de conclusão, o que segue são algumas ideias que podem funcionar ao mesmo tempo como contribuições no sentido de desenvolver tais critérios adicionais de juízo com os quais abordar intervenções do tipo que estamos discutindo aqui, e como princípios ou máximas que possam oferecer alguma orientação útil à sua prática. Sem pretender serem exaustivas ou universal e absolutamente válidas – é somente na relação com problemas e situações concretas que elas podem ser aplicadas –, elas oferecem um esforço preliminar de mapeamento daquilo que poderia ser o território de uma política da contracafetinagem. a) Uma intervenção deve ser regida por algo que está em jogo32 Quando mesmo os procedimentos disruptivos do Situacionismo e do Acionismo podem ser integrados ao repertório da publicidade, e mesmo os movimentos políticos mais contestatórios podem ser incorporados pelo marketing ou integrados a mecanismos de governança neoliberal, torna-se cada vez mais difícil identificar a ruptura com gestos isolados. Vivemos numa era de polivalência tática dos gestos33 e da representabilidade neutralizante da política. A referência a Benjamin é irônica, mas não arbitrária. Se a reprodutibilidade técnica despia a obra de arte de um elemento aurático cujo fundamento estava na relação original da obra com o ritual – ou seja, com um suplemento que a implicava num processo vivo de produção de sentido34 –, a representabilidade neutralizante da política consiste em destacar gestos, palavras, imagens e mesmo pessoas dos processos em que estão implicados, isolando-os dos pontos de referência e vetores que lhes emprestam significado e direcionalidade, e com frequência mesmo de seus protagonistas. O que se produz, então, é “conteúdo político sem consequência política”35: representa-se a política sem fazer política. Para que uma intervenção mantenha sua relação com este suplemento, é preciso que ela seja atravessada por algo que está em jogo. Aquilo que está em jogo funciona como um vetor que, tendo sua origem no processo político em questão, vem de fora da instituição e aponta para além dela, de forma que a passagem pela instituição é apenas um momento em seu desdobramento temporal e um movimento tático em seu desenvolvimento estratégico. O que está em jogo deve portanto ser aquilo que determina a natureza de uma intervenção (seu conteúdo, forma/formato, relação com a instituição) em última instância. Não existe motivo pelo qual “determinação em última instância” necessariamente implicaria resultados “simplistas”, “tendenciosos” ou “panfletários”. Pelo contrário, equilibrar aquilo que está em jogo com todos os outros fatores que a sobredeterminam é qualidade essencial a uma obra. Segue daí que, no jogo duplo que o mediador faz a partir de duas perspectivas, “interna” e “externa”, deve recair sobre esta última (do processo) a iniciativa de apresentar problemas que à primeira (da instituição) caberá solucionar. Isso não quer dizer que a única política que possa existir numa instituição acadêmica ou artística seja aquela que vem de fora, pelo contrário: como espaços potenciais de refuncionalização, eles devem ser pensados também segundo sua própria política. Em geral, porém, é exatamente a fricção gerada no contato entre uma instituição e um processo político que funciona como o melhor analisador de seus bloqueios micro e macropolíticos, elucidando aquilo que nela pode e deve ser transformado.36 b) A definição e consecução daquilo que está em jogo numa intervenção depende da temporalidade do

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Revista Mesa | Rodrigo Nunes envolvimento “Envolvimento” dá outro significado a inter-vir: não mais “situar-se entre dois”, mas “situar-se no meio” – no meio, no caso, de um processo político. A intervenção, se ela é portadora de algo que está em jogo, é parcialmente produzida pelo processo que a envolve ao mesmo tempo que o retroalimenta. Ela é, assim, um ponto dentro de uma linha contínua que a convoca por um lado e a ultrapassa por outro (já que intervir não é um fim em si, mas uma forma de produzir novas condições, de transformar o futuro da situação). A própria distinção entre sujeito e objeto da intervenção, ou entre a intervenção e o processo, aí se esfuma de certa maneira. Neste sentido, aquilo que está em jogo é também um vetor temporal. O que isso acarreta é um movimento complexo entre escutar e agir, ou aquilo que os zapatistas conhecem pelo lema “mandar obedecendo”. Uma intervenção não envolvida é externa e unilateral como um “ataque relâmpago”. Ela não se constitui a partir de algo que está em jogo, mas de um “interesse” puramente especulativo, um “palpite” não fundamentado em qualquer tentativa de compreender a situação internamente, um “sentimento” não comprometido com as eventuais consequências da intervenção. Uma intervenção envolvida, por outro lado, nunca é “autônoma”, e somente em circunstâncias muito especiais consiste em gestos isolados; seu suporte é o tempo e, na maioria dos casos, ela depende de uma temporalidade cuja materialidade se costuma esquecer. Envolver uma comunidade ou (contra)público é um trabalho demorado, que demanda a construção de relacionamentos ao longo do tempo, a composição de desejos e interesses, o cultivo da confiança mútua. Tornar um problema manifesto, identificar e construir aquilo que está em jogo requer um paciente trabalho coletivo de análise. Produzir efeitos, por último, tem a ver tanto com a intervenção em si quanto com as formas materiais de sua conservação, comunicação e circulação; a quem ela se dirige, como ela os envolve e que eventuais estruturas precisam ser implementadas para dar seguimento às suas consequências. “Ser político” não é uma simples função da importância do tema ou do processo social implicados numa intervenção, mas depende das relações que esta é capaz de criar e das medidas que ela institui para dar consistência e durabilidade aos efeitos que produz. c) A visibilidade não é um fim em si A centralidade daquilo que está em jogo não quer dizer que cada aspecto de uma intervenção deva ser saturado por um cálculo de resultados a serem obtidos, não deixando espaço para o contingente e o inesperado. Pelo contrário: responder àquilo que está em jogo passa por criar espaços suficientemente produtivos para absorver os acidentes que possam acontecer. Por outro lado, a subordinação da intervenção ao vetor de algo que está em jogo deve servir como inoculação contra certos automatismos, dos quais o fetiche da visibilidade é um excelente exemplo. A justificativa mais comum e corriqueira para mediações entre processos sociais e instituições de arte ou da academia é o argumento de que estas “trazem visibilidade”. No entanto, deve-se perguntar: quem exatamente se beneficia dessa visibilidade? Que tipo de visibilidade é necessária, para quem, com que finalidade? A visibilidade por si só não é um valor. Ela o é, aliás, apenas em áreas como a governança, que se legitima criando simulacros de participação, e a produção cultural, cujas condições estruturais criam o imperativo constante de interagir, ser visto, ser lembrado. Para um processo político, a visibilidade tem serventia restrita se não há um esforço para extrair as consequências da visibilização. Dar consequências políticas à visibilização é bastante distinto de transformar a luta política em “objeto de prazer contemplativo” e “artigo de consumo”, extraindo dela “novos efeitos para entreter o público”.37 d) As condições de produção da intervenção também são um objeto da intervenção O enunciado pode ser entendido em dois sentidos distintos. Em primeiro lugar, que uma intervenção do tipo que estamos tratando aqui deve, tanto quanto possível, tornar visível seu processo de construção – tematizar abertamente as condições (econômicas, políticas, institucionais, etc.) sob as quais ela se torna o que é naquele caso específico. Este tornar o fazer visível tem uma função pedagógica evidente: revelando as marcas que tais condições impõem ao produto final, ele expõe aquilo que é normalmente apagado do resultado, incluindo, assim, as forças sociais que dão forma ao trabalho como parte de seu conteúdo. Apenas tornar visível não é suficiente, no entanto – o que nos leva ao segundo sentido em que o enunciado pode ser entendido. Uma intervenção deve ser pensada não em termos contemplativos – como aquilo que representa um certo conteúdo ou o torna transmissível a outras consciências –, mas materialista e performativamente. Todo o material que a compõe pode, em princípio, tornar-se expressivo da política que ela encarna, e a política pode ser colocada em prática em cada aspecto seu, não como um mostrar, mas como um fazer que age sobre suas próprias condições para transformá-las. Esta consideração pode ser generalizada a tudo, do uso de recursos financeiros (mais dinheiro revertido para a construção de infraestrutura coletiva permanente do que para a montagem de uma mostra temporária) à divisão de trabalho (derrubando as barreiras entre mediadores e participantes) e às relações externas que resultam da intervenção (que não devem ficar centralizadas nos mediadores para que os envolvidos no processo possam acessá-las independentemente). É fundamental que uma intervenção política produza formas de subjetivação que se oponham às tendências subjetivantes dominantes na sociedade; mas, ao invés de se esgotar na simples experimentação dessas formas, é igualmente fundamental que ela busque estabelecer ou fortalecer as condições macropolíticas necessárias para sua expressão e consistência. É preciso, em resumo, que ela deixe um saldo organizativo atrás de si: novas relações, novos saberes, infraestrutura etc. que sejam, tanto quanto possível, objeto de apropriação coletiva. Isso vale tanto para as contribuições que ela pode fazer ao processo político no qual intervém, quanto às instituições ou ao campo profissional por onde passa.

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Revista Mesa | Rodrigo Nunes e) Deve-se resistir ao impulso da autoria e ao pathos heroico Fazer-se autor é um impulso micropolítico estruturalmente sustentado pela necessidade de acumular capital social em que trabalhadores imateriais criativos se encontram permanentemente. De certa maneira, o pathos heroico seria seu equivalente no âmbito da política: o desejo de “deixar uma marca” em um processo, de associar o próprio nome a ele de maneira indelével; de acrescentar-lhe algo “notável” ou “inesquecível”, de carimbá-lo com o próprio protagonismo. À ilusão narcisista de “dar a última palavra” ou à ânsia por gratificação imediata, a contracafetinagem opõe a valorização das “tarefas não glamorosas”38 que, mais que grandes declarações ou dramáticos coups de thêatre, contribuem para criar e dar consistência aos efeitos políticos de uma intervenção. Aos lampejos dramáticos dos grandes gestos, ela opõe a temporalidade paciente do processo, na qual o importante é aquilo que contribui para o seu desenvolvimento. À apropriação privada, ela opõe a construção de um comum que não é desinteressado, mas se funda em um interesse que não é individual, mas comum. Evidentemente, qualquer ação política está sempre exposta aos cálculos incertos do “aproveitar o momento” (kairós, virtù). Sempre haverá, portanto, espaço para o acirramento do antagonismo e para o conflito aberto. Resistir ao pathos heroico não significa evitar esses momentos a todo custo, mas considerá-los com três coisas em mente. Primeiro, que o vetor determinado por aquilo que está em jogo é o que dá a última palavra sobre se vale a pena engajar-se neles ou não. Segundo, que o valor de uma intervenção se mede por suas consequências duradouras mais que por qualquer impacto pontual, por mais espetacular que este seja; e se obviamente nada impede um impacto espetacular de ter consequências duradouras, tampouco nada em si o garante. E terceiro, que o apelo ao heroísmo é, ele mesmo, sintoma da atual estetização da política: uma supervalorização dos efeitos superficiais que produzem o simulacro de uma “Grande Noite”39 em detrimento do trabalho paciente das “pequenas manhãs”; uma glorificação do líder/autor (mesmo quando este permanece anônimo) por sobre o modesto organizador/participante. Há uma estetização da política própria à estética, que transforma a política em um objeto de consumo para o campo da arte sem preocupar-se com seus fins ou com aquilo que nela está em jogo; e há uma estetização da política própria à política, que valoriza os gestos mais que as consequências. A contracafetinagem deve opor-se a ambas. _ 1

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no evento Radical Education, na Moderna Galerija, Ljubljana, em novembro de 2009. Sou grato a Bojana Piškur e Gašper Kralj, curadores daquele evento, por oferecerem-me a ocasião para escrevê-lo; a Janna Graham, Susan Kelly, Manuela Zechner, Valeria Graziano e Francesco Salvini, entre outros, pelos debates que informaram sua redação e se seguiram a sua apresentação; e a Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara, pelo convite que me levou a tirá-lo da gaveta depois de tanto tempo e revisá-lo para esta publicação. 2

Ver Boris Groys, “On Art Activism”, e-flux 56 (2014). Ver também a réplica de Jens Kastner, “Art And Activism (Against Groys)”, EIPCP blog. 3

Michael Warner. “Publics And Counterpublics (Abbreviated Version)”, Quarterly Journal Of Speech, 88/4 (2002): 413-425. 4

No Brasil, o debate sobre engajamento e autonomia voltou à baila recentemente em consequência das controvérsias em torno da Bienal de São Paulo de 2014. Retomarei um dos fios daquela conversa na conclusão. 5

Entre as análises desta deriva, desde a “virada pedagógica” na arte até as discussões mais recentes sobre “social practice art”, pode-se citar: Paul O’Neill e Mick Wilson (eds.), Curating and the Educational Turn (London: Occasional Table, 2010); Pablo Helguera, Education for Socially Engaged Art (New York: Jorge Pinto Books, 2011); André Mesquita, Insurgências Poéticas. Arte Ativista e Ação Coletiva (São Paulo: Annablume, 2011); Claire Bishop, Artificial Hells: Participatory Art and the Politics of Spectatorship (New York: Verso, 2012); Nato Thompson (ed.), Living as Form: Socially Engaged Art From 1991-2011 (Cambridge, MA: MIT Press, 2012). 6

Suely Rolnik “Geopolítica da Cafetinagem”, Tranversal (2006)

7

Gilbert Simondon, L’Individuation à la lumière des notions de forme et d’information (Grenoble: Jerôme Millon, 2005), 68. 8

Ibid., 46.

9

Ibid., 83-4. “Entre duas relações”, para Simondon, significa que a relação entre dois indivíduos medeia a relação de cada indivíduo com aquilo que ele carrega de pré-individual, ainda-por-individuar. 10

The Committee For Radical Diplomacy, “Radical Diplomacy”, Vocabulaboratories, ed. Paz Rojo e Manuela Zechner (Amsterdam: Lisa Stichting, 2008), 100. 11

Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux (Paris: Minuit, 2003), 198.

12

Félix Guattari e Suely Rolnik. Molecular Revolution in Brazil, trad. Karel Clapshow, Brian Holmes e Rodrigo Nunes (Los Angeles: Semiotext(e)/MIT Press, 2008), 218.

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Como diz Guattari: “A última coisa que gostaria de sugerir (…) é que o microfascismo possa ter uma solução individual.” Félix Guattari, “Molecular Revolutions”, Chaosophy. Texts and interviews, 1972-1977, trad. David L. Sweet, Jarred Becker e Taylor Adkins (Los Angeles: Semiotext(e), 2009), 280. 14

Paolo Virno, A Grammar of the Multitude. For an Analysis of Contemporary Forms of Life, trad. Isabella Bertoletti, James Cascaito, Andrea Casson (Los Angeles: Semiotext(e), 2004), 104. 15

Ver Luc Boltanski e Eve Chiapello, The New Spirit of Capitalism (London, England: Verso, 2005); Maurizio Lazzarato, “Immaterial Labour,” trad. Paul Colilli e Ed Emery, Radical Thought in Italy, ed. Paolo Virno e Michael Hardt (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996), 132-146. Embora Lazzarato tenha criticado o conceito de “crítica artística” de Boltanski e Chiapello, suas descrições originais do trabalho imaterial, especialmente no tocante ao funcionamento de sua estrutura reticular, estão muito próximas da “cidade projetiva” dos outros dois. Ver Maurizio Lazzarato, “Les Malheurs de la ‘Critique Artistique’ et de l’Emploi Culturel”, Tranversal (2007). A situação na academia é distinta, embora a tendência observada na Europa e nos Estados Unidos seja de uma convergência cada vez maior entre academia e arte – não por um aumento da circulação de indivíduos entre os dois mundos, embora este também seja o caso, mas pela precarização crescente do trabalho acadêmico. Ver, por exemplo, Marc Bousquet e Cary Nelson, How the University Works: Higher Education and the Low-wage Nation (Nova Iorque: New York University Press, 2008). 16

Ivor Southwood, Non-Stop Inertia (Ropley: Zero, 2011).

17

Virno, A Grammar of the Multitude, 87.

18

Parafraseando Marcel Duchamp, trabalhadores imateriais criativos de todas as eras “são como jogadores em Monte Carlo”. Ver a carta a Jean Crotti, 17 de agosto de 1952, citada em Dalia Judovitz, Unpacking Duchamp. Art in Transit (Berkeley: University of California Press, 1995), 182. 19

Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001), 294. Sendo este um tipo de atividade em que os trabalhadores tendencialmente já detêm os meios de produção (não apenas capital fixo como computadores, celulares, conexão de internet etc., mas também capacidades comunicativas e afetivas) e em que a comunicação e a cooperação são “completamente imanentes à própria atividade laboral”, a figura do capitalista – cuja função seria de arcar com o custo do capital fixo e organização o processo de trabalho – tenderia a tornar-se supérflua e, no limite, parasitária. Conforme argumento em outra parte, tanto a generalizabilidade dessas características para além daquilo que opto por chamar trabalho imaterial criativo quanto os potenciais políticos que delas se esperam são passíveis de questionamento. Ver Rodrigo Nunes, “‘Forward How? Forward Where?’: (Post-)Operaismo Beyond the Immaterial Labour Thesis”, ephemera. Theory & Politics in Organisation, 7(1) (2007): 178-202. 20

Este seria o segundo dos sentidos de “estetização” considerados por Groys quando ele situa o “ativismo artístico contemporâneo” na interseção entre uma tradição estetizante proveniente do design (cujo propósito é “mudar a realidade, o status quo – melhorar a realidade”) e outra, “muito mais radical e revolucionária”, oriunda da arte moderna (que “aceita o status quo como disfuncional, como já fracassado – ou seja, desde a perspectiva revolucionária, ou mesmo pós-revolucionária”). Há nesta análise uma grande ambiguidade que provém, em primeiro lugar, do emprego escorregadio da referência a um “status quo” que se refere ora a vestígios presentes daquilo que um processo revolucionário tornou passado (o Antigo Regime para a França revolucionária), ora a um processo histórico em andamento (a modernização para o fascista Marinetti), ora a um projeto político de Estado por construir (o socialismo para as vanguardas russas). É evidente que aceitá-los como “disfuncionais” e “fracassados” implica coisas bastante distintas em cada caso. Em segundo lugar, Groys parece presumir que a única coisa que arte poderia desfuncionalizar por meio da estetização seria o próprio status quo (entendido principalmente no segundo sentido), e não, como sugiro aqui, aquilo que o contesta internamente. Esta segunda possibilidade evidencia, por sua vez, que Groys faz uma associação demasiado apressada entre estetização como desfuncionalização e perspectiva “pós-revolucionária”. Ver Groys, “On Art Activism”. 21

Brian Holmes, “Liar’s Poker”. Unleashing the Collective Phantoms. Essays in Reverse Imagineering (Nova York: Autonomedia, 2008), 85. 22

Walter Benjamin. “The Artist as Producer”. trad. John Heckman, New Left Review 62 (1970): 89. (Note-se a linguagem implicando medidas e dosagens: “o máximo possível”). Se omito o telos que Benjamin estabelece para a transformação na frase original (“na direção do socialismo”) é por duas razões. Primeiro, porque o conteúdo concreto (e mesmo nome) que Benjamin ou quem quer que seja possam atribuir a esse telos estão fora do escopo desta discussão. Em todo caso, a noção de Umfunktionierung é suficientemente independente do ponto de vista lógico para que possamos associá-la a uma gama de diferentes nomes e conteúdos concretos. Segundo, porque o telos não pode ser inteiramente preexistente ao próprio movimento do Umfunktionierung: mesmo que não seja difícil enxergar algumas das coisas que este envolve (maior autonomia produtiva por meio de auto-organização, menos dependência em relação a mecanismos de mercado e a finança em particular), a direção em que ele aponta só pode tornar-se mais determinada na medida em que segue-se nela.

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23

Ibid, 90.

24

Ibid, 85.

25

Theodor Adorno, “On Commitment”, Aesthetics and Politics (Londres: Verso, 1980), 185.

26

Ibid., 186.

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26

Ibid., 186.

27

Ibid., 180.

28

Ibid., 190-191.

29

Ibid., 191.

30

Ouvi uma vez a objeção de que isso pareceria um argumento em favor do tipo de prática no qual os esboços mais inócuos e vazios de programas pedagógicos ou trabalhos com comunidades são acrescentados a exibições ou trabalhos de arte como lembranças de última hora. Mas a questão é justamente que a qualidade política daquilo que “vem junto com o trabalho” deve ser julgada como parte do trabalho – de maneira que, se é vazio, inócuo ou “para inglês ver”, isso conte como um defeito intrínseco e não externo. Não é que deva sempre haver alguma política acompanhando a arte, mas que aquilo que passa por boa arte política deve incluir boa arte e boa política. 31

Tiago Mesquita, “Megaexposições, Adesão e Figuração”, Blog do IMS, October 28 (2014).

32

“Algo que está em jogo” traduz aqui o inglês stake – que, assim como seu equivalente francês, enjeu, não se deixa traduzir com exatidão pelo português “aposta”. 33

A referência aqui é à “polivalência tática dos discursos” em Michel Foucault. Histoire de la Sexualité I. La Volonté de Savoir (Paris: Gallimard, 2001), 132-5. 34

Walter Benjamin. “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”. Illuminations (Londres: Pimlico, 1999), 217. 35

Cf. Graham, J. “Between a pedagogical turn and a hard place”. Curating and the Educational Turn, 127.

36

“Analisador”, termo do campo da análise institucional originalmente introduzido por Horace Torrubia e amplamente utilizado por figuras como Ferdinand Oury, Félix Guattari e Georges Lapassade, é definido por René Lourau como “fenômenos sociais (…) que produzem, por sua própria ação (e não pela aplicação de uma ciência qualquer), uma análise da situação”. René Lourau, L’Analyseur Lip, (Paris: UGE, 1974), 13. 37

Benjamin, “The Artist As Producer”. 90, 92.

38

Nora Sternfeld. “Unglamourous Tasks: What Can Education Learn From Its Political Traditions?” e-flux 14 (2010). 39

Curiosamente, a imagem milenarista do Grand Soir, segundo o estudo de seu uso na literatura política francesa feito por Tournier, evolui em direção à mesma desfuncionalização própria à estetização artística da política segundo o esquema de Groys – “[s]eu fogo não … mais o símbolo de uma fé na justiça, mas imagem em si da negação”, da “revolta pura”. Maurice Tournier, “‘Le Grand Soir,’ un Mythe de Fin de Siècle”, Mots, 19 (1989): 85.

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