\"Porque sim\" não é resposta: um estudo dos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum

August 23, 2017 | Autor: João Paulo Hergesel | Categoria: Television Studies, Narrative, Stylistics, Media
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HERGESEL, J. P. 'Porque sim' não é resposta: um estudo dos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum. Revista Digital Samizdat, v. 43, p. 44-45, 2015.

“Porque sim” não é resposta: um estudo dos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum

Há duas décadas, estreava na televisão um programa educativo direcionado ao público infantil: Castelo Rá-Tim-Bum. Em noventa episódios, o cenário, o enredo e os personagens conquistaram crianças e adultos do Brasil. Vinte anos após a estreia, as situações lúdicas e as lições aprendidas ficaram na memória dos telespectadores da época e continuam agradando os jovens contemporâneos. É inevitável ouvir os famosos bordões da série e não se lembrar automaticamente do personagem que o utilizava. Por que “raios e trovões” as frases feitas para série se consagraram e mantêm seu valor estilístico ainda hoje? “Por quê? Por quê? Por quê?” É possível simplesmente responder: “Porque sim”, mas “‘porque sim’ não é resposta”. Para compreender melhor as causas desse fenômeno, é necessário recorrer a uma disciplina da Língua Portuguesa denominada Estilística, que estuda os fatos afetivos da linguagem. Grosso modo, é possível enumerar diversos fatores estilísticos, responsáveis por avivar, atenuar, exagerar ou enfocar determinada expressão. Entre eles, encontra-se o estilema, cuja definição gera certo atrito entre os estudiosos. Enquanto alguns autores, como Carlos Ceia, tratam-no como recurso unicamente literário, outros, como César Giusti, consideram-no um elemento subjetivo, a afinidade eufemística ou hiperbólica. Acredita-se, no entanto, que a ideia mais adequada é a de que o estilema é uma idiossincrasia, uma marca pessoal e exclusiva de um indivíduo, quer dizer, uma expressão (verbal, visual ou sonora) que remete o interlocutor ao seu respectivo usuário. Em outras palavras, é a menor unidade do estilo, um traço estilístico que torna desnecessária a identificação mencionada do seu falante, visto que esse reconhecimento é feito pelo processo cognitivo. Em Castelo Rá-Tim-Bum, muitos bordões se tornaram consagrados, bem como seus personagens. Nossa memória consolida a imagem do poderoso Dr. Victor ao ouvir a expressão “Raios e trovões!”, bem como a do maléfico Dr. Abobrinha, no momento em que a expressão “Este castelo será meu!” é pronunciada. Além disso, também há estrofes poéticas, como as ditas pelo Relógio, e as canções, como a interpretada pelos passarinhos, que também se tornaram uma espécie de registro. São os estilemas presentes na série. É comum que se confunda estilema com bordão. O dicionário eletrônico Aulete Caldas apresenta a seguinte definição para a palavra “bordão”: 1. Pau grosso ou vara que serve de apoio; cajado. 2. Fig. Arrimo, amparo. 3. Bastão com uma das pontas mais grossa que a outra; cacete; porrete. 4. Palavra ou frase que alguma pessoa repete frequentemente, na

HERGESEL, J. P. 'Porque sim' não é resposta: um estudo dos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum. Revista Digital Samizdat, v. 43, p. 44-45, 2015.

fala ou escrita, por hábito vicioso. 5. Bras. Rád. Telv. Palavra, expressão ou frase que um apresentador ou personagem repete frequentemente para efeito humorístico e/ou caricatural. Com isso, torna-se possível perceber que a relação entre estilema e bordão é muito próxima e que os termos, portanto, podem inclusive ser considerados sinônimos. Tendo em vista as opiniões de autores continuamente pesquisados e o prévio conhecimento estilístico derivado de outras pesquisas, defende-se aqui que o estilema é todo traço exclusivo de uma pessoa ou personagem; já o bordão é o traço peculiar de alguém que passa a ser reproduzido por outrem. Em outras palavras, todo bordão é um estilema, mas nem todo estilema pode ser considerado um bordão. Analisando o estilema mencionado acima, “Este castelo será meu, meu, meu!”, referente ao Dr. Abobrinha, notamos uma epizeuxe (ou palilogia, ou reduplicação) na repetição do pronome meu. Esse processo de insistência é eficaz para representar o forte desejo de possessão do imóvel. A ênfase em cada palavra – o primeiro meu é pronunciado normalmente; o segundo é emitido em som mais alto; o terceiro é praticamente um berro que se mescla com o riso prosseguinte – reforça a vontade do personagem. O próprio nome do personagem, Dr. Pompeu Pompílio Pomposo, já apresenta características estilísticas relevantes, especialmente na aliteração presente. A repetição do fonema /p/, oclusivo labial surdo, além de ser uma brincadeira com a sonoridade da língua, resulta simbolicamente na pompa, no luxo, visto que a boca “se enche” ao falar o nome completo. Também pode ser considerado um trava-língua tão confuso quanto as atitudes do personagem, assim como seu apelido, Dr. Abobrinha, cuja palavra é pronunciada com dificuldade pelas crianças, devido à repetição do /b/ e à colocação do /r/ posterior a um deles. Outro estilema famoso na série é o “Plift, ploft, still, a porta se abriu!”, marca característica do Porteiro. A expressão contém não apenas onomatopeias, representação escrita do som, como também a rima de “still” com “abriu”. A princípio, a primeira parte foca apenas a sonoridade, remetendo a porcas, parafusos e outros elementos que compõem um “homem robotizado”; já a segunda, além de ser uma declaração utilizada como homeoteleuto, ou seja, a provocação de um eco proposital, ainda apresenta a porta como sujeito, aproveitando-se de um pronome reflexivo, deixando subentendido, novamente, que os objetos mecânicos são agentes, têm vida própria. Além desses, outros estilemas são facilmente lembrados e associados a seus personagens; o mais interessante é que as figuras de linguagem, recursos estilísticos que zelam pela beleza da expressão, estão presentes em praticamente todos eles. Notam-se, por exemplo: a antítese, aproximação de elementos contrários, em “Porque sim não é resposta”,

HERGESEL, J. P. 'Porque sim' não é resposta: um estudo dos estilemas em Castelo Rá-Tim-Bum. Revista Digital Samizdat, v. 43, p. 44-45, 2015.

do Telekid; a anadiplose, repetição da palavra final de um verso no início do verso seguinte, em “Passa hora, / Hora inteira, / Meia hora, / Hora e meia”, além da gradação em clímax, enumeração de elementos em série de forma crescente, em “Está na hora do Dr. Victor chegar, o Dr. Victor está chegando, o Dr. Victor chegou”, ambas do Relógio; a aliteração do fonema /s/ em “Passarinho, que som é esse? / Esse som assim é o som da cítara”, cantado pelas Patativas. Seria possível escrever cada vez mais sobre a cintilação de maravilhas estilísticas presente na composição das marcas características dos personagens da série; entretanto, apenas com essa breve explanação, pode-se chegar a uma consideração plausível: os estilemas de Castelo Rá-Tim-Bum prevalecem cotidianos, mesmo após tanto tempo, porque os recursos da Estilística, quando aplicados em um produto midiático, elevam o nível de suscetibilidade, aproximam-no do poético e perenizam o objeto.

João Paulo Hergesel é mestre em Comunicação e Cultura e licenciado em Letras pela Universidade de Sorocaba. Membro do Grupo de Pesquisa em Narrativas Midiáticas (Nami), docente do Colégio Objetivo São Roque e administrador da Editora Jogo de Palavras. Dedicase à produção literária e à pesquisa na área de Narrativas Midiáticas, com enfoque no estudo do estilo. Contato: [email protected].

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