MAR: UMA ONDA DE PROGRESSO
11 - 14 DE NOVEMBRO 2014 COLÓQUIO PARA ESTUDANTES NA ESCOLA NAVAL
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História e Literatura
Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascai Da Antiguidade à Idade Moderna (I) MARCO OLIVEIRA BORGES Centro de História, Universidade de Lisboa
Introdução Já com uma longa tradição, o estudo de temas ligados às dinâmicas portuárias, aos naufrágios e à navegação na costa de Cascais para épocas recuadas tem vindo a ganhar significativos contornos em tempos recentes. Isso verifica-se não apenas por estar em curso o Projecto de Carta Arqueológica Subaquática do Concelho de Cascais (ProCASC), aprovado em Setembro de 2005, mas também por terem sido desenvolvidos trabalhos recentes de maior fôlego no âmbito de dissertações de mestrado1, ainda que um deles esteja associado ao referido projecto. De um modo inverso, para o caso de Sintra a tradição deste tipo de estudos é praticamente inexistente, se bem que se conheçam de uma forma geral as particularidades da navegação neste trecho costeiro e alguns dos naufrágios ali ocorridos. Aliás, durante muito tempo a navegabilidade do rio de Colares e o conhecimento da existência de um porto no interior de Sintra estiveram praticamente confinados aos investigadores locais, desconhecendo-se ainda hoje de uma forma geral estes dados. Para além deste rio e porto, outros locais tiveram a sua importância para a navegação no litoral de Sintra, território intimamente ligado a Cascais desde sempre e com importantes ligações a Lisboa. Sublinhe-se a importância estratégica desta costa, a qual se constituiu como uma área fulcral para a navegação com destino a Lisboa e igualmente de passagem para os navios que rumavam ao Norte da Europa e ao Mediterrâneo. Para além do Cabo da Roca como ponto importante para a navegação desde tempos remotos, refira-se a costa e o porto de Cascais enquanto fornecedores de abrigo e provisões aos navios antes de entrarem na barra do Tejo – entrada essa que nem sempre se fazia de forma directa –, bem como aos que rumavam ao Mediterrâneo e ao Norte da Europa2. Tendo como baliza cronológica um espaço de tempo que se estende entre o Período Romano e a Idade Moderna, ainda que este estudo acabe por incidir com maior pormenor no Período Romano,
os locais visados são o porto de Colares e o porto da Oliva, ambos no interior de Sintra, e a Enseada de Assentiz, situada junto ao Cabo da Roca. Face à escassez ou ausência de dados históricos que nos permitam compreender as dinâmicas humanas estabelecidas nos locais focados desde tempos recuados, este trabalho terá uma saliente componente hipotética/explicativa com base na sistematização e ligação de dados arqueológicos dispersos (nomeadamente no caso de Colares e do povoamento local). Ademais, o recurso a certas características geográficas e geomorfológicas em que se inserem esses locais também será importante.
1 Porto de Colares Situado no interior do território de Sintra, o porto de Colares era acessível por mar através da actual área da praia das Maçãs. É nesta praia onde actualmente desemboca o antigo rio de Colares (das Maçãs, de Galamares e do Lourel, consoante os povoados que atravessa), o qual nasce a c. 14 km da sua foz3, estando hoje em dia reduzido à condição de ribeira (fig. 5). Depois de Maria Teresa Caetano ter recolhido e explorado os dados dispersos sobre o rio e porto de Colares, aduzindo diversos elementos que apontam para a navegabilidade daquele curso de água em épocas recuadas4, um estudo recente permitiu aprofundar questões em torno deste rio e porto durante o período islâmico, ainda que lançando luzes quanto ao período romano5. Embora a ideia da existência de um porto interior em Colares remeta-nos para a Idade Média, é muito provável que o rio de Colares já fosse navegado durante o período romano ou até mesmo antes6. Existem importantes evidências arqueológicas romanas dispersas pela área da ribeira de Colares e arredores que, uma vez relacionadas com o rio, com a sua navegabilidade e com o povoamento local, permitem explorar diversas hipóteses. Em 2008, durante intervenções arqueológicas de carácter preventivo realizadas num pequeno outeiro situado do lado esquerdo da desembocadura da ribeira de Colares, o qual ainda conserva o topónimo Alto da Vigia (fig. 3), foram detectados importantes vestígios arqueológicos. Os primeiros vestígios a serem identificados estiveram relacionados com a torre de um facho, porquanto parte da sua estrutura ainda estava visível à superfície. No entanto, o decorCf. José de Oliveira Boléo, Sintra e seu têrmo (Estudo Geográfico), Lisboa, Minerva, 1940, pp. 85-87; José Alfredo da Costa Azevedo, Velharias de Sintra, VI, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1988, p. 102; Maria Teresa Caetano, Colares, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000, pp. 18-19.
3
Cf. Marco Oliveira Borges, O Porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à Navegação e Defesa Costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima (FL/UL), 2012; Jorge Freire, À Vista da Costa: a Paisagem Cultural Marítima de Cascais. Dissertação de Mestrado em Arqueologia (FCSH/UNL), 2012. 1
2 Sobre os condicionalismos da navegação nesta costa e o problema da entrada na barra do Tejo, cf. Marco Oliveira Borges, op. cit., pp. 61-81 e passim; Jorge Freire, op. cit., passim.
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4
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 13-23, 33-34, 40 e passim.
Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I – Em torno do porto de Colares”, História. Revista da FLUP, IV sér., vol. 2, Porto, Faculdade de Letras do Porto, 2012, pp. 109-128. 5
6
Cf. José de Oliveira Boléo, op. cit., p. 40.
História e Literatura
MENÇÃO HONROSA (2º ESCALÃO)
Cascais. rer dos trabalhos permitiu confirmar que foi neste local do litoral de Sintra que os romanos construíram o santuário dedicado ao Sol, à Lua e ao Oceano (datável do século II d. C.7) que foi representado – de forma conjectural – por Francisco de Holanda8 e que vinha referido em epígrafes votivas9. Durante as escavações foi identificado ainda um ribat10, o terceiro até ao momento a ser identificado em toda a Península Ibérica, isto depois das descobertas em Guardamar e na Arrifana11. O que importa aqui reter, por agora, é que na altura da construção do santuário romano, possivelmente integrado num vicus local12, o rio de Colares teria uma foz ampla por onde entrava o mar, constituindo-se assim como um canal privilegiado de comunicação e ligação naval com o interior do território13.
Figura 1 Praia das Maçãs (Colares)14.
José Cardim Ribeiro, “Soli aeterno Lvnae […]”, Sintria, vols. III-IV, Sintra, Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, 1995-2007, p. 609; idem, “Soli aeterno Lvnae: o santuário”, Religiões da Lvsitânia. Loquuntur Saxa, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2000, pp. 236-237. 7
Francisco de Holanda, Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, [Lisboa], Livros Horizonte, 1984, fl. 25r.
8
J. Cardim Ribeiro, “Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus”, Sintria, vols. III, t. I, 1982-1983, p. 166.
9
Patrícia Jordão, Pedro Mendes e Alexandre Gonçalves, “Alto da Vigia (Colares, Sintra). Relatório dos Trabalhos Arqueológicos [de 2008]”, 2009, p. 3. Depositado no Arquivo de Arqueologia do IGESPAR sob o código 2008/1 (584); http://www.museuarqueologicodeodrinhas.pt/escavacoes/1/alto-da-vigia.html (consultado em 25/09/2014). 10
Porém, em finais da década de 1980, na área da praia dos Coelhos (Galápos, Setúbal), junto à serra da Arrábida, Vítor Rafael de Sousa identificou vestígios arqueológicos que, posteriormente, levaram a pensar que naquela área terá existido um ribat (cf. António Rafael Carvalho e Vítor Rafael de Sousa, “A presença tardoromana e muçulmana na praia dos Coelhos. Notícia preliminar”, Al-Madan, II sér., n.º 12, 2003, pp. 187-188). 11
Jorge de Alarcão, O Domínio Romano em Portugal, 4.ª ed., [Lisboa], Publicações Europa-América, 2002, 1988, p. 80; Inês Nadal de Sousa Byrne, “A Rede Viária da Zona Oeste do Município Olisiponense (Mafra e Sintra)”, sep. de Al-Madan, II sér., n.º 2, 1993, p. 46. 12
Em conjugação com as indicações dadas por José de Oliveira Boléo, op. cit., pp. 40 e passim; José Alfredo da Costa Azevedo, op. cit., VI, p. 105; José Cardim Ribeiro, “Soli aeterno Lvnae: o santuário”, p. 236; Alexandre Gonçalves, A Necrópole Romana do Casal do Rebolo (Almargem do Bispo, Sintra). Dissertação de Mestrado em Arqueologia (FL/UL), 2011, p. 19; Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 118-119; idem, O Porto de Cascais […], pp. 37-38. 13
Outras evidências que devem ser exploradas em ligação com o rio de Colares dizem respeito aos materiais arqueológicos detectados na villa romana de Santo André de Almoçageme (fig. 3), nomeadamente os de importação marítima (Terra Sigillata e ânforas). Situada a c. 3 km da foz da ribeira de Colares, esta villa é aquela que, até ao momento, foi identificada como estando na posição mais ocidental do mundo romano. Ao que tudo indica, a primeira recolha conhecida de materiais nesta villa remonta a 1905, altura em que se procedeu aos trabalhos de exploração e levantamento de um mosaico polícromo15 que havia sido descoberto aquando das obras da Estrada do Rodízio, a qual permite o acesso às imediações da Praia Grande, Praia Pequena e Praia das Maçãs. A informação é conhecida através de uma relação de materiais que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia em Dezembro do referido ano. É de referir, por exemplo, 6 moedas romanas em bronze, diversos fragmentos de cerâmicas de construção, de armazenamento e de transporte, incluindo fragmentos de ânforas, 2 pondera de barro, 2 cossoiros, entre outros diversos materiais16. Entre 1977 e 1982 deram entrada no Museu Regional de Sintra três pondera e al-
Adaptado de https://www.facebook.com/AdoroSintra?fref=ts (consultado em 17/05/2014). 14
Manoel Joaquim de Campos, “Acquisições do Museu Ethnologico Português”, O Archeologo Português, XI, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906, p. 288; Élvio Melim de Sousa, “Ruínas Romanas de St.º André de Almoçageme”, Actas do Seminário O Espaço Rural na Lusitânia. Tomar e o seu Território, 17 a 19 de Março 1989, Tomar, Centro de Estudos de Arte e Arqueologia da Escola Superior de Tecnologia de Tomar, 1992, p. 85. 15
Manoel Joaquim de Campos, op. cit., pp. 288-289; Fernando Russell Cortez, “Mosaicos romanos da Estremadura”, Estremadura. Boletim da Junta da Província, sér. II, n.º 14, Lisboa, 1947, p. 62. Por compreender ficou a tipologia dos fragmentos de ânforas recolhidos, algo que também parece não ter sido referido pelos investigadores posteriores. 16
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guns fragmentos de dolia obtidos na villa romana de Santo André, isto em recolhas feitas à superfície17. Todavia, somente na Primavera de 1985 iniciaram-se escavações arqueológicas de forma metódica, motivadas pela descoberta ocasional de estruturas in situ no terreno de exploração agrícola voltado a Sul (“Terreno A”)18 e que abrange uma área aproximada de 1.200 m2. Após três campanhas de escavação arqueológica (1985, 1986 e 1987), concluiu-se estar perante um sector exterior à área residencial da villa, sendo classificável como olaria de cerâmica de construção e que, a certa altura, terá funcionado como lixeira, acabando assim por reunir materiais dos vários sectores desse povoado19. Entre todo o espólio recolhido nas três campanhas destaca-se o elevado número de fragmentos cerâmicos (c. 87% do total das peças recolhidas), sendo significativa a presença de cerâmica fina de importação20. Neste enquadramento, foram detectadas cerâmicas provenientes de quatro grandes centros exportadores no “Terreno A”: 1. Norte de África. O conjunto das cerâmicas Terra Sigillata Africana (Clara A, A/C, C e D) obtidas corresponde a um total de > 95% dos materiais recolhidos (1.378 fragmentos), constituindo esmagadoramente o centro exportador mais representado e quase que detendo a exclusividade da Terra Sigillata detectada neste sector da villa. 2. Hispânia. Representa apenas < 3% (= 36 fragmentos), percentagem que é dividida entre a Terra Sigillata Hispânica (> 1% = 20 fragmentos) e a Terra Sigillata Hispânica Tardia (1% = 16 fragmentos)21. A Terra Sigillata Hispânica Tardia, detectada em poucas estações portuguesas, era cerâmica fina de importação produzida na região central do Norte da Península Ibérica e que tinha “um circuito comercial essencialmente interior e fluvial”22. 3. Sul da Gallia. Detém somente perto de > 1% (= 19 fragmentos)23. 4. Mediterrâneo Oriental. Com a presença de Late Roman C Ware, detém < 1% (= 9 fragmentos) de toda a cerâmica fina registada no “Terreno A”24. Com base na presença de Terra Sigillata Sud-Gálica, Élvio Melim de Sousa remontou a construção e ocupação desta villa ao século II d. C., possivelmente à segunda metade. Contudo, foi ao longo do século III que os índices de ocupação aumentaram consideravelmente, registando o seu apogeu já na segunda metade dessa centúria e mantendo-se constantemente elevados por todo o século IV, conforme deixam perceber as altíssimas percentagens de Terra Sigillata Clara C e D25. O conjunto da Terra Sigillata Africana detectada (Clara A, A/C, C e D) revela “uma forte e intensa relação entre Olisipo e o Norte de África na segunda metade do séc. III d.C. e durante o séc. IV, à qual não estarão alheios, certamente, a grandeza e a poderosa rede de difusão comercial das fábricas norte-africanas, bem como o relevante papel do porto de Olisipo na recepção dos respectivos produtos e posterior difusão dos mesmos pelo ociden-
Outros dados arqueológicos importantes que podem ajudar a compreender melhor a presença romana naquela área e a fortalecer a ideia de navegabilidade do rio de Colares durante o período romano estão nas ânforas que foram encontradas nas imediações daquele curso de água. Num estudo publicado há pouco mais de trinta anos, Frederico Coelho Pimenta deu a conhecer a seriação dos materiais anfóricos entrados até finais do primeiro semestre de 1983 no Museu Regional de Sintra, todos provenientes de estações arqueológicas daquele concelho. Esses materiais reportam-se a 37 exemplares de ânforas, abarcando uma cronologia datável entre os séculos II-I a. C. e IV-V d. C., ainda que para o caso de 6 diversos fragmentos de ânfora não seja possível atribuir com segurança tais balizas temporais. Os materiais são provenientes, na sua esmagadora maioria, de recolhas de superfície, de achados fortuitos ou de antigas escavações. Neste sentido, é de salientar a ausência de dados estratigráficos sobre os materiais recolhidos, exceptuando para uma das ânforas encontradas no Faião (fig. 2), tal como para grande parte dos fragmentos provenientes dos trabalhos realizados nas ruínas de Cabanas (S. Marcos)28. Como é sabido, o estudo das ânforas é vital para a compreensão da economia antiga, das dinâmicas e das rotas comerciais, dos ritmos de consumo e dos hábitos alimentares, para além de ser fundamental para a obtenção de indicadores cronológicos29. Não sendo possível explorar todos os dados apresentados por Frederico Coelho Pimenta, focaremos, por agora, apenas aqueles que tiveram proveniência de locais situados nas imediações da ribeira de Colares. No caso do Mucifal (fig. 3), aldeia situada na margem direita da ribeira de Colares, foram descobertos alguns exemplares completos ou pouco fragmentados de ânforas romanas. A descoberta deu-se na década de 1950 durante a exploração de um areal localizado à saída Norte do Mucifal30. No total foram descobertos entre 5 a 7 exemplares, embora no seu estudo Frederico Coelho Pimenta apenas tenha tido oportunidade de apresentar duas das ânforas ali encontradas, as quais deram entrada no Museu Regional de Sintra em 1981. Uma ou duas, na altura da descoberta, tiveram como destino o Museu Nacional de Arqueologia, enquanto que duas ou três dispersaram-se por colecções particulares31. As duas ânforas provenientes do Mucifal que Frederico Coelho Pimenta teve oportunidade de estudar são do tipo Dressel 14 (fabricadas nos fornos do Vale do Sado), datáveis dos séculos I-II d. C., e estavam vocacionadas
17
Élvio Melim de Sousa, op. cit., p. 85.
18
Idem, ibidem, pp. 85-86.
26
19
Idem, ibidem, pp. 85-86.
Idem, ibidem, p. 90.
27
Idem, ibidem, p. 86.
Idem, ibidem, p. 90; idem, “Terra Sigillata Hispânica Tardia […]”, p. 17.
28
20 21
Idem, ibidem, p. 90.
Cf. idem, “Terra Sigillata Hispânica Tardia da Villa de Santo André de Almoçageme (Colares, Sintra)”, sep. de Artefactos, vol. I, 1992, p. 16. 22
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te da Lusitânia, e desde logo pelos seus Agri”26. A villa romana de Santo André de Almoçageme acabaria progressivamente por entrar em decadência, mas terá sido abandonada apenas em meados do século V d. C., ou até mesmo um pouco depois, a julgar pela detecção de cerâmica do tipo Late Roman C Ware e de Terra Sigillata Hispânica Tardia, sendo estes os materiais cerâmicos de cronologia mais recente que se encontraram até então27. Élvio Melim de Sousa acrescentou ainda que os resultados que se viessem a obter noutros sectores da villa, e através da análise de outros materiais, não modificariam substancialmente as conclusões que atrás foram avançadas.
Frederico Coelho Pimenta, “Subsídios para o estudo do material anfórico conservado no Museu Regional de Sintra”, Sintria, vols. I-II, t. I, pp. 117-119.
Victor Filipe, “Importação e exportação de produtos alimentares em Olisipo: as ânforas romanas da Rua dos Bacalhoeiros”, Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 11, n.º 2, 2008, p. 302. 29
23
Idem, “Ruínas Romanas de St.º André de Almoçageme”, p. 90.
24
Idem, ibidem, p. 90.
30
Frederico Coelho Pimenta, op. cit, pp. 135-137.
25
Idem, ibidem, p. 90.
31
Idem, ibidem, p. 137.
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Embora encontradas sem contexto, é possível que as ânforas do Mucifal – podendo fazer parte de um número mais elevado do que aquele que foi referido – estivessem associadas ao abastecimento de um habitat que terá existido nesta área. Se bem que Frederico Coelho Pimenta não tenha relacionado, logo em 1905, no âmbito das peças romanas provenientes de Almoçageme que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, também foi referida uma lista de objectos provenientes do Mucifal: 3 mós de pedra, 1 mediano romano de bronze, metade de um cossoiro, 1 machado de pedra, 25 pondera de barro e 1 capitel de calcário33. Ainda que não seja referido o local exacto nem o contexto em que foram encontrados estes materiais, julgamos que os mesmos indiciam claramente a existência de um habitat romano na área do Mucifal. Prospecções atentas nesta área poderão trazer novidades. Por sua vez, no Lugar do Marcador (Nafarros, fig. 3), próximo do Mucifal e também na margem direita da ribeira de Colares, uma recolha de superfície feita em 1977 permitiu identificar um fragmento de asa de ânfora. O fragmento fazia parte de um antigo exemplar do tipo Dressel 20, com origem na Bética, sendo datável dos séculos I-II d. C. Este tipo de vasilha/contentor destinava-se ao transporte de azeite34. Como teriam chegado os artigos de importação citados à villa romana de Santo André de Almoçageme, ao Mucifal, a Nafarros e a outros locais dos arredores? Por via terrestre? Por via marítima/ fluvial? A área ocidental dos agri Olisiponenses, na qual se insere o território em estudo, seria servida por uma rede de caminhos com alguma importância, isto se tivermos em conta a quantidade de vestígios de povoamento ali identificados. Para além da existência de uma rede viária secundária que ligaria todos os povoados da região entre si, ao mesmo tempo haveria uma conexão dessa mesma rede com a rede de estradas principal e que permitia a comunicação com Olisipo35. Como complemento, e tal como no caso da ribeira de Cheleiros, que seria navegável durante o período romano36 e
ainda em finais do século XII37, existiria uma articulação viária com o rio e o porto de Colares38. Assim, quanto às vias secundárias de acesso ao porto local, uma delas teria de passar algures pelo Mucifal, local onde terá existido um habitat romano. Face à proximidade, é possível que este habitat tenha mantido uma relação estreita com o porto local. De Almoçageme partiria outra via que permitia o acesso ao dito porto.
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para o transporte de pasta de peixe (garum). Tinham capacidade para 32-33 litros32.
Para além de Colares estar dotada de um porto e de um rio navegável, factor que ampliava e diferenciava as possibilidades de entrada e de saída da produção da região de Sintra, é preciso ter em conta que o transporte naval tinha maior rapidez e baixos custos quando comparado com o transporte terrestre39. Deste modo, embora os materiais de importação dos sítios referidos – bem como de outros povoados dos arredores – pudessem ter chegado ao actual território de Sintra através das vias terrestres que o ligavam a Olisipo, em carroças puxadas por animais, parece-nos importante continuar a explorar a hipótese de também poderem ter entrado no território por transporte naval40 e com apoio no porto de Colares41. Tendo em conta estarmos perante uma região com terrenos característicos pela sua fertilidade e pela produção de importantes recursos económicos que também excederiam o consumo local, é muito provável que no período romano também já houvesse um escoamento de certos produtos agrícolas (vinho, azeite, frutos e produtos hortícolas) para Lisboa e outros locais através do rio de Colares. Talvez alguns proprietários mais possantes e senhores das villae locais tivessem os seus próprios negócios com navios de média ou pequena dimensão envolvidos no transporte dos produtos agrícolas até Olisipo, sendo que, já no seu retorno, poderiam trazer produtos de importação provenientes das mais diversas origens. O provável escoamento pelo rio de Colares também deveria abarcar alguns dos minerais extraídos na região42, se bem que no caso das indústrias mineiras romanas a sua exploração também estives-
Cf. Guilherme José Ferreira de Assunção, Mafra. Efemérides do Concelho, Lisboa, Editorial Minerva, 1967, pp. 13-14; Paulo Almeida Fernandes, “Notas sobre o urbanismo da antiga vila de Cheleiros”, Boletim Cultural 2008, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 2009, p. 30 (n. 4). O topónimo Carvoeira, de acordo com a tradição oral, está associado ao carvão local que era escoado por esse curso de água, havendo mesmo a memória da existência de um cais perto da ponte da Carvoeira usado para essa finalidade (cf. Paulo Almeida Fernandes, op. cit., p. 30 (n. 4)). 37
Idem, ibidem, pp. 135-138 e 145-147. De uma forma geral, as ânforas Dressel 14 eram contentores largamente produzidos nas olarias da Lusitânia, mais concretamente no Algarve, nos vales do rio Tejo e do rio Sado, bem como em Peniche, entre meados do século I e inícios do século III d. C. Destinavam-se ao transporte dos preparados de peixe produzidos na Lusitânia, sendo estes contentores uma criação local que posteriormente seria imitada nos centros de produção bética (Victor Filipe, op. cit., p. 321). 32
33
Manoel Joaquim de Campos, op. cit., p. 289.
Frederico Coelho Pimenta, op. cit., pp. 135 e 145. Para além deste fragmento, o arqueólogo indica outros três fragmentos de exemplares de ânfora Dressel 20 recolhidos no concelho de Sintra: Cabanas-São Marcos, Ermidas-Assafora e S. Miguel de Odrinhas (cf. idem, ibidem, pp. 122, 130 e 138). Mais recentemente, detectaram-se também destes exemplares no Casal do Rebolo, no Telhal e, novamente, em S. Miguel de Odrinhas (vide infra, n. 61 e 62). 34
Inês Nadal de Sousa Byrne, op. cit., p. 41; Guilherme Cardoso, “Acerca das comunicações no Sudoeste do Ager Olisiponensis”, in Jean-Gérard Gorges, Enrique Cerrillo y Trinidad Nogales Basarrate (eds.), V Mesa Redonda Internacional Sobre a Lvsitania Romana: Las Comunicaciones. Cáceres, Facultad de Filosofia y Letras. 7, 8, y 9 de noviembre de 2002, Madrid, Ministério de Cultura, 2004, pp. 135-136; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 18. 35
36 Mario Saa, As grandes vias da Lusitania. O itinerário de Antonino Pio, t. III, Lisboa, Tipografia da Sociedade Astória, 1960, pp. 12-14; J. Cardim Ribeiro, “Estudos histórico-epigráficos […]”, p. 165; Inês Nadal de Sousa Byrne, op. cit., pp. 42 e 46; Maria José de Almeida e Ana Catarina Bravo Sousa, “O Povoamento Rural Romano no Concelho de Mafra”, Boletim Cultural ‘95, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1996, p. 213; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 16.
O estudo da relação entre portos e vias, algo que requer uma análise cuidada das características físicas do território e dos antecedentes do domínio romano, é um dos aspectos mais descurados no estudo das comunicações na Lusitânia (cf. Vasco Gil Mantas, “Vias e Portos na Lusitânia Romana”, in Jean-Gérard Gorges, Enrique Cerrillo y Trinidad Nogales Basarrate, op. cit., p. 429). 38
“Basta recordar que o transporte em carro por terra custava, em média, por cada milha, onze vezes mais que por via fluvial” (idem, ibidem, p. 439).
39
40 Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 118-119; idem, O Porto de Cascais […], pp. 37-38.
Contrariamente ao estudo da rede viária romana na Península Ibérica, para a qual existem vários trabalhos, o estudo dos portos ainda está numa fase de investigação recente, “necessitando, por isso, de algum tempo e de muito trabalho para atingir um grau de desenvolvimento equivalente” (cf. Vasco Gil Mantas, op. cit., p. 427).
41
José de Oliveira Boléo chega a remontar a importância do porto de Colares ao período pré-romano, dizendo que acaso os fenícios não viessem a este local, dado Sintra ser a região mais rica da Estremadura a nível de produtos minerais, era natural que os seus habitantes tivessem que se deslocar até Lisboa a fim de trocar esses produtos (cf. José de Oliveira Boléo, op. cit., p. 40). 42
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se associada a iniciativas municipais e estatais43. Ou seja, se no caso da exploração e do escoamento dos produtos agrícolas (e outros) teríamos uma iniciativa de tipo privado, envolvendo os próprios proprietários e senhores das villae locais, para o caso dos minérios tal situação torna-se mais discutível, podendo as cidades ou o Estado agir como proprietários e exercer directamente a exploração de minas e pedreiras ou arrendá-las a particulares. Porém, também haviam casos na Lusitânia em que as minas (sobretudo as de pequenas dimensões) eram de propriedade privada44. Face ao que tem vindo a ser exposto, durante o período romano existiria uma rede de compra/troca de produtos a nível regional que abrangeria os povoados da área do rio de Colares e arredores, isto numa teia de ligações com Olisipo. Esta é uma situação que até deve ser vista em paralelo com o caso da ribeira de Cheleiros45. Assim, muito embora se saiba que anteriormente a 1377 o escoamento da produção sintrense destinado a Lisboa, Sevilha e a outros locais, incluindo ao Mediterrâneo46, era feito através do porto de Cascais47, até porque o rio de Colares por essa altura já não era navegável, para o período romano (e ainda durante o islâmico48, se bem que Cascais já devesse ter alguma importância nesta altura49) a produção seria escoada por esse curso de água. Pela cronologia dos materiais arqueológicos que temos vindo a referir, e se, de facto, seguirmos a hipótese de que os mesmos tenham entrado no interior do território sintrense por via marítima/ fluvial, então teríamos um rio a ser usado por navios romanos pelo menos entre os séculos I-II e V d. C. Todavia, não queremos com este curto apanhado de sítios arqueológicos e materiais de importação identificados tentar demonstrar que todos eles tiveram entrada pelo rio de Colares e que só nessa cronologia focada o rio havia sido navegável. Por um lado, deveria haver uma conciliação ou alternância do transporte marítimo com os abastecimentos terrestres destinados a Olisipo e vindos daquela cidade, até consoante a época do ano. De facto, é de crer que fossem tidas em conta as melhores épocas do ano para se fazer o transporte por terra e por mar, tentando assim evitar os perigos e as dificuldades que as condicionantes climatéricas poderiam causar à circulação dos meios de transporte envolvidos e que até poderiam levar à destruição ou à perda de mercadorias. Por outro lado, outros elementos anfóricos detectados na região de Sintra são enquadráveis nos séculos II-I a. C., sendo que no caso específico de Cabanas-S. Marcos têm uma classificação neo-púnica (Dressel 18). Se para os casos de Cabanas-S. Marcos50 e de Colaride51 estamos perante achados já um pouco distantes do rio de Colares, estando ambas as povoações a c. 11 Jorge de Alarcão, “A Produção e a Circulação de Produtos”, in Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques (dir.), Nova História de Portugal, vol. I – Portugal das Origens à Romanização, Lisboa, Editorial Presença, 1990, pp. 413-417.
43
44
Cf. os exemplos aduzidos por idem, ibidem, pp. 413-417.
45
Vide infra, n. 66 e 67.
Sobre este assunto e teias comerciais envolvidas, cf. Marco Oliveira Borges, O Porto de Cascais […], pp. 94-102. 46
47
Vide infra, n. 90.
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 33-34; Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, p. 126.
48
Marco Oliveira Borges, O porto de Cascais […], pp. 208-209; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”. I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em História Medieval. Braga. 23 e 24 de Maio de 2013 (no prelo).
49
50
Frederico Coelho Pimenta, op. cit., p. 121.
Catarina Coelho, “Estudo preliminar da pedreira romana e outros vestígios identificados no sítio arqueológico de Colaride”, Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 5, n.º 2, 2002, pp. 300, 308, 314 e 320. 51
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km de Galamares (em linha recta), para o caso de Ermidas-Assafora (Dressel 1)52 os elementos anfóricos detectados poderão estar associados a uma entrada no interior do território pela ribeira de Cheleiros algures entre os séculos II-I a. C. Um dos produtos que durante a Antiguidade poderá ter tido destaque de produção no território do actual concelho de Sintra e sido escoado pelo rio de Colares é o azeite, sendo que a produção agrícola obtida nessa região constituía parte do hinterland abastecedor de Olisipo. A partir deste último porto a produção dos agri Olisiponenses também chegou a ser exportada para fora da Lusitânia, como terá sido o caso do azeite53. Contudo, este é um assunto que tem despertado sérias reservas quando pensado em paralelo com o caso dos alegados armadores Olisiponenses associados à exportação do azeite da região54. Para a área ocidental dos agri Olisiponenses também chegou a ser apontado um homem da região como estando ligado a naves caudicariae55 (barcas fluviais e de cabotagem56), sendo um barqueiro57 ou armador destes navios. O nome desse homem, L. Iulius Maelo Caudic(us) (nascido c. 10 a. C.), vem referido numa epígrafe presente no fontanário de Armês e noutra encontrada em Granja dos Serrões, villa situada c. 8 km a Nordeste do rio de Colares. No entanto, uma análise comparativa destas duas epígrafes feita por José Cardim Ribeiro permitiu interpretar CAVDIC não como abreviatura de caudicarius (barqueiro, armador de embarcações), mas sim como Caudicus, sendo este o seu provável segundo cognomen58. A possibilidade deste território produzir azeite em quantidade suficiente para exportação tem de ser pensada para uma época mais tardia. No seu estudo sobre o material anfórico conservado no Museu Regional de Sintra, Frederico Coelho Pimenta indicou 4 fragmentos de ânforas do tipo Dressel 20 todos provenientes de achados com origens geográficas distintas em território sintrense59. Com efeito, isto levou à conclusão de que o azeite que deu entrada naquele território entre os séculos I-II d. C. teve proveniência exclusiva da Bética, sendo esse o período áureo de fabrico azeiteiro naquela província. Porém, o investigador refere que “o ulterior desaparecimento do referido tipo anfórico, eventualmente não substituído, no território em estudo, por recipientes de origem norte-africana, acaso apontará para uma intensa exploração da oli52
Frederico Coelho Pimenta, op. cit., pp. 126 e 128.
Cf. José d’Encarnação e Guilherme Cardoso, “A villa romana de Freiria e o seu enquadramento rural”, Revista de Arqueologia da Assembleia Distrital de Lisboa, n.º 2, 1995, pp. 209-210; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II sér., n.º 3, 1994, pp. 88-90; Vasco Gil Mantas, “Navegação, economia e relações interprovinciais. Lusitânia e Bética”, Hvmanitas, vol. L, 1998, pp. 225-229; Amílcar Guerra, “Os mais recentes achados epigráficos do Castelo de S. Jorge, Lisboa”, Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 9, n.º 2, 2006, p. 281. 53
Cf. Jorge de Alarcão, op. cit., p. 433; Carlos Fabião, “O azeite da Baetica na Lusitania”, Conimbriga, vols. 32-33, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1993-1994, p. 240 (n. 22); José Cardim Ribeiro, op. cit., pp. 88-90; Alexandre Gonçalves, op. cit., pp. 20-21.
54
J. Leite de Vasconcellos, Religiões da Lusitania, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1913, pp. 318 e 321 (n. 2).
55
56
Vasco Gil Mantas, op. cit., p. 203 (n.13).
Emilio Hübner, Noticias Archeologicas de Portugal, Lisboa, Typographia da Academia, 1871, p. 16.
57
Cf. J. Cardim Ribeiro, “Estudos histórico-epigráficos […]”, pp. 175-181. Sobre este assunto, cf igualmente Jorge de Alarcão, op. cit., p. 433; Vasco Gil Mantas, op. cit., p. 203; Júlia Almeida, Contributo para o conhecimento das Elites Olisiponenses. Dissertação de Mestrado em História Antiga (FL/UL), 2011, p. 68. 58
59
Vide supra, n. 34.
Para além dos dados apontados e das possibilidades estabelecidas, alguns vestígios arqueológicos dispersos evidenciam a produção de azeite noutras partes do território Olisiponense (Sintra e Cascais)63. Ademais, os topónimos Chão da Oliva, Olival do Santíssimo, Zambujal, Zambujeiro e etc., permitem perceber que a existência de olivais/zambujais – ainda visíveis nalguns casos – e a possível produção de azeite cobriu uma área mais vasta nos actuais concelhos de Sintra e de Cascais. É de referir que a longevidade da oliveira estende-se por milénios, sendo o olival considerado a cultura mais estável que existe64, podendo na área ocidental dos agri Olisiponenses ainda subsistir árvores plantadas pelos romanos. A actividade naval lusitana, algo que não tem recebido atenção significativa por parte dos investigadores mesmo quando se procura compreender o papel da Lusitânia perante o comércio marítimo externo65, não seria estranha a outros locais desta região. É possível que alguns cursos fluviais situados mais a Norte e que antigamente seriam navegáveis pudessem ter tido semelhante papel ao rio de Colares para a entrada/saída de produtos do território. Refira-se, sobretudo, o caso da bacia hidrográfica do rio Lizandro/ribeira de Cheleiros (concelho de Mafra), que revela uma intensa ocupação romana, podendo este curso de água ter sido usado como porto e, consequentemente, para escoamento dos materiais extraídos das pedreiras da região (Lameiras e de Pero Pinheiro)66, ao mesmo tempo que poderia estar associado ao escoamento da produção agrícola local integrada numa provável rede de trocas regional67. Mas outros locais (portos e enseadas) dos concelhos de Mafra e de Sintra, e até mesmo de Cascais, terão tido alguma importância para a navegação regional e até de longo curso, sendo que para o caso 60
Frederico Coelho Pimenta, op. cit., p. 146.
Alexandre Gonçalves e Catarina Coelho, “Intervenção arqueológica no Casal do Rebolo (Sintra)”, Al-Madan, II sér., n.º 15, 2007, p. 2; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 20.
de Cascais subsistiram algumas evidências arqueológicas romanas e até pré-romanas. Assim, já para Sul do rio de Colares e do Cabo da Roca, refiram-se as evidências romanas e pré-romanas detectadas no Espigão das Ruivas/Porto do Touro68 (fig. 3), os vários cepos de âncora romanos recolhidos ao longo da costa cascalense (sobretudo na Costa da Guia69), uma âncora recolhida ao largo da Guia e que poderá ser de cronologia pré-romana70, bem como as cetárias romanas71 detectadas junto à torre (torre-porta) da muralha medieval (geralmente chamada castelo) de Cascais. Todavia, está ainda por compreender o real papel de alguns locais, portos e enseadas da área do estuário do rio Tejo com comprovada utilização na Antiguidade e “que podem ter detido uma relevância um pouco além da sua suposta complementaridade, casos de Colares, Cascais ou Cacilhas”72.
História e Literatura
veira nos Agri Olisiponenses (ou próximo), pelo menos a partir de inícios do séc. III d. C.”60. Assim, o provável incremento da produção de azeite a nível regional teria dispensado a sua importação a partir do referido período. Tal situação é pensável também com base no exemplo do Casal do Rebolo, local onde foram recolhidos vários exemplares de ânforas Dressel 20, estando ausentes – até 2011 – quaisquer contentores de conteúdo oleícola mais tardios61. A presença destes contentores com origem na Bética também foi detectada mais recentemente em trabalhos arqueológicos realizados no Telhal e, novamente, em São Miguel de Odrinhas62.
Figura 2 Pormenor de um mapa da Lusitania-Baetica73.
Para além do recurso aos dados arqueológicos (seja resultado de escavações ou de simples recolhas de superfície) que temos vindo a enunciar e do cruzamento de informação que é necessário fazer com dados históricos que surgem durante a Idade Média, a exploração da toponímia local também poderá ser um elemento importante para uma melhor compreensão do passado remoto desta área, a qual apresenta um enorme potencial do ponto de vista arqueológico. De facto, o estudo da toponímia poderá fornecer pistas para uma procura de superfície que possa levar a novos indícios de materiais ou de povoados antigos e a futuras escavações74.
61
Catarina Coelho, “Ruínas arqueológicas de São Miguel de Odrinhas: a propósito da campanha de 1997”, Arqueologia & História, vols. 58-59, 20062007, p. 133; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 20. Recentemente, nas imediações do Paço de Sintra também foram detectados 3 fragmentos de cerâmica que levaram à hipótese de um deles ser um fragmento de parede de ânfora do tipo Dressel 20, mas essa hipótese acabou por ser afastada a favor da ideia de fragmentos de anforetas de cronologia moderna (cf. Catarina Coelho, “Intervenção arqueológica no Hotel Netto: contributos para o estudo da evolução urbana da Vila Velha de Sintra”, Arqueologia & História, vols. 5657, 2004-2005, pp. 136-137). 62
José d’Encarnação e Guilherme Cardoso, op. cit., pp. 209-210; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo […]”, pp. 88-90.
63
Orlando Ribeiro, “Significado ecológico, expansão e declínio da oliveira em Portugal”, sep. do Boletim do IAPO, ano VII, n.º 2, 1979, p. 5.
64
65
Vasco Gil Mantas, “Navegação, economia […]”, p. [199].
Mario Saa, op. cit., pp. 12-14, 17 e 28-29; J. Cardim Ribeiro, “Estudos histórico-epigráficos […]”, p. 165; Inês Nadal de Sousa Byrne, op. cit., pp. 42-43 e 46; Maria José de Almeida e Ana Catarina Bravo Sousa, op. cit., pp. 213-214; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 16. 66
Maria José de Almeida e Ana Catarina Bravo Sousa, op. cit., p. 214; Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 16. 67
Guilherme Cardoso, Carta Arqueológica do Concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991, p. 31; idem e José d’Encarnação, “Sondagem no Espigão das Ruivas (Alcabideche, Cascais)”, Al-Madan, II sér., n.º 2, 1993, p. 150. 68
Cf. Jorge Freire et al., “A navegação romana no litoral de Cascais. Uma leitura a partir dos novos achados ao largo da Guia”, Al-Madan, II sér, n.º 19, t. I, 2014. 69
António Carvalho e Jorge Freire, “Âncora de pedra recolhida ao largo da Guia (Cascais)”, Al-Madan, II sér., n.º 15, 2007, p. 6.
70
Guilherme Cardoso, “As cetárias da área urbana de Cascais”, Setúbal Arqueológica, vol. 13, Setúbal, Junta Distrital de Setúbal, 2006, pp. 145-150. 71
Cf. Rodrigo Banha da Silva, As “Marcas de Oleiro” em Terra Sigillata da Praça da Figueira: uma contribuição para o conhecimento da economia de Olisipo (séc. I a. C. – séc. II d. C.). Tese de Mestrado em Arqueologia (ICS/U M), 2005, p. 258.
72
Adaptado de Richard J. A. Talbert (ed.), Barrington. Atlas of the Greek and Roman world, New Jersey, Princeton University, 2000, 26.
73
O Visconde de Juromenha chegou a relacionar o topónimo Banzão com Bassa, reportando-se a esta última como uma “antiga e hipotética povoação romana” existente naquela área do rio de Colares (cf. Visconde de Juromenha, Sintra Pinturesca, ou Memória Descritiva da Vila de Sintra, Colares e seus arredores, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1989-1990, p. 151). Contudo, como referiu Maria Teresa Caetano, o autor não apresentou “qualquer fun74
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Por compreender está o modo de utilização do rio de Colares pelos navios romanos, a extensão navegável deste curso de água, o seu enquadramento perante os povoados e as vias terrestres locais, bem como a localização exacta do porto. É com os autores muçulmanos que surgem as primeiras referências à existência de um rio em Sintra. Com efeito, Ibn Hawkal e al-Himyari mencionam um rio com desembocadura no mar sintrense75, mas nada referem quanto à sua navegabilidade e à existência de um porto76. No entanto, partindo das descrições de al-Himyari presentes na colectânea Portugal na Espanha Árabe, Maria Teresa Caetano identificou esse curso de água como sendo o rio de Colares, o qual terá funcionado como porto de Sintra ainda durante o período islâmico77. A própria construção do ribat (convento fortificado) na desembocadura do rio de Colares revela claramente uma necessidade estratégica de proteger um local que era acessível à navegação e que, no fundo, permitia o acesso ao interior do território78. A tradição diz que antigamente o mar chegaria até Galamares79 (fig. 3) e que o rio em estudo seria navegável até essa povoação80. Galamares está situada a c. 8,5 km da Praia das Maçãs81, sendo um dos locais onde foram assinalados (pelo menos dois) vestígios epigráficos romanos82. Contudo, é mais para jusante que nos surgem as indicações quanto à localização do porto de Colares. Os documentos conhecidos que aludem à existência de um porto neste local remontam a 1255 (“portum de Basam” e “portu de Bazam”)83 e 1362 (“porto de Colares”84, referência ao anterior porto85), se bem que os mesmos – naquela precisa altura – pudessem já nada ter a ver com um porto fluvial frequentado por navios. É que o termo “porto” podia significar também a passagem de um rio com passadeira ou pedras soltas, um caminho, um local de passagem para
damento filológico, histórico ou arqueológico” (Maria Teresa Caetano, op. cit., p. 19 (n. 31)). Ibn Hawkal, Configuracion del Mundo (Fragmentos alusivos al Magreb y España), Valencia, Anubar, 1971, p. 69; al-Himyari, Kitab ar-Rawd al-Mi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 233. 75
um povoado86, tendo um papel importante como nó de cruzamento entre as vias terrestres e a rede fluvial87. Para além disso, nenhum dos documentos acima citados alude à importância portuária local, apenas a delimitações territoriais relacionadas com a outorga do reguengo de Colares (concedida com a condição de que os beneficiários plantassem vinhas no terreno e que entregassem ¼ do vinho e demais frutos que obtivessem no dito reguengo) e com a doação de ¼ de uma vinha, respectivamente. Neste sentido, é possível que em 1255 o braço de mar que inundava a várzea de Colares apenas já só se estendesse até à área do Banzão, ou já nem isso, e que o “antigo ancoradouro colarense estivesse já completamente desactivado”88. Aliás, a própria existência de reguengos tão perto de uma área outrora navegável indicia que parte dos seus terrenos arenosos pudesse ocupar agora parte da antiga área ocupada pelo braço de mar, sendo que esses mesmos terrenos, característicos pela sua fertilidade, seriam passíveis de se tirar bom proveito agrícola. O documento de 1255 prevê mesmo a plantação de vinhas no terreno do reguengo de Colares. Em todo o caso, se seguirmos a ideia de que os documentos de 1255 e 1362 queriam aludir a uma passagem89 e não a um porto fluvial, o antigo porto naval estaria muito próximo dessa passagem. Para além do que já foi referido, note-se que Cascais funcionava como porto comercial e exportador dos produtos de Sintra anteriormente a 137790, muito embora em 1364 tenha conseguido libertar-se da sujeição a Sintra – sendo elevada a vila – e em 1370 tenha conseguido a criação do seu termo e senhorio. Assim, de facto, é muito provável que entre 1255 e 1362 o rio de Colares já estivesse bastante limitado pelo assoreamento não permitindo a sua navegabilidade, podendo apenas ter permanecido a tradição de um nome e a ideia de um porto (naval) que vinha de um passado recente, talvez porque as suas estruturas de aportagem ainda fossem visíveis91. João de Barros (1496-1570) é o primeiro autor que alude à navegabilidade deste rio e à existência de um porto em Colares, remontando os acontecimentos ao período de domínio islâmico, ainda que numa obra de “história fingida”92:
Sobre o problema das descrições de Ibn Hawkal e al-Himyari, cf. Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 114, 116 e 121-122 (n. 70 e 74).
76
“E armado [Clarimundo] com alguns criados de Fanimor, começaram a entrar por um rio, que vinha coberto daquelas maçãs e flores, em tanta quantidade, que impediam as naus, que vinham umas entre outras com vento mui brando e gracioso. E entrando já entre as terras começaram as antenas a tocar de quando em quando pelas pontas das
77 Cf. Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 33-34 e 40; Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 109-128; idem, O porto de Cascais […], p. 38. 78
Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 119-120.
“O nome Galamares variou com o tempo, e se corrompeu o vocabulo com alguma anteposição de letras; porque antigamente o sitio alli se chamava Alagamar, por causa de chegar a elle a maré, e na sua enchente succedia alagarse o Valle. Então era o rio caudaloso, e navegavel. Entrava no Oceano por hum canal fundo, e limpo, pelo qual as embarcaçoens mayores daquelle tempo se encaminhavão até a villa de Colares, onde havia sufficiente porto, em que surgião” (cf. Fr. Joseph Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Domínios, t. II, Lisboa, Na Officina dos Herdeiros de António Pedrozo Galram, 1751, p. 84 [sic], i. é, 86). A forma “Galamar” já vinha referida no foral de Sintra de 1154 (cf. Francisco Costa, O Foral de Sintra (1154), sua originalidade e sua expressão comunitária, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1976, pp. 25, 56, 80 e 103). 79
Cf. José de Oliveira Boléo, op. cit., p. 81; José Alfredo da Costa Azevedo, op. cit., VI, p. 103; Maria Teresa Caetano, op. cit., p. 14.
Cf. J. Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa. Tentame de Sistematização, vol. VI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1975, p. 646; José Pedro Machado, “Porto”, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, 3.ª ed., vol. IV, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 406; Maria Helena da Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos Finais da Idade Média, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, pp. 402-403; A. H. de Oliveira Marques, “A Circulação e a Distribuição dos Produtos”, in Joel Serrão e […] (dir.), Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 127. 86
87
Maria Helena da Cruz Coelho, op. cit., vol. I, p. 402 (n. 2).
88
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 19-21.
89
Idem, ibidem, pp. 19-20.
80
81
Seguindo o trecho da actual ribeira de Colares.
Visconde de Juromenha, op. cit., pp. 198-199; J. Cardim Ribeiro, op. cit., pp. 158-159.
82
83
ANTT, Chancelaria de D. Afonso III, liv. I, fl. 152v., 2.ª col.
Chancelaria de D. Pedro (1357-1367), Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1984, p. 348. 84
85
158
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 19-20 (n. 33 e 34).
MAR: UMA ONDA DE PROGRESSO
João Martins da Silva Marques, Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, sup. vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988, p. 59.
90
Marco Oliveira Borges, op. cit., p. 126; idem, O porto de Cascais […], p. 95 (n. 330).
91
A expressão é de Jorge A. Osório, “Algumas Considerações sobre a «Crónica do Imperador Clarimundo»”, Revista da Faculdade de Letras, 5ª sér., nos 13-14, 1990, p. 153. 92
E chegando somente a nau de Clarimundo a ela, ouviram tocar um sino mui grande, que na maior altura da torre estava; e acabando de o tocar entraram em uma fusta obra de vinte homens armados e vieram perguntar quem vinha nela […]”93. A descrição de João de Barros corrobora a ideia de que se estava perante um porto interior. Entre outros pormenores que podem ser retidos neste trecho, é de referir a ideia de o porto estar situado numa grande baía onde estava um castelo. Mais adiante, ao ter em conta as condicionantes causadas pela vazante, João de Barros dá a entender que o rio de Colares – pelo menos durante o período islâmico – só seria navegável durante a preia-mar: “porque a maré a este tempo vazava, ficaram algumas naus tão baixas na mãe do rio, e a terra tão alcantilada, que toda ficou igual com o bordo da nau”94. Embora João de Barros tenha fantasiado a história que conta na Crónica do Imperador Clarimundo (1522), teria de haver algum fundamento real para abordar a navegabilidade deste rio, que na sua época já não seria navegável, e a existência de um porto, que no seu tempo também já não estava em funcionamento. Porém, recorrendo apenas à descrição de João de Barros seria tarefa extremamente complicada tentar compreender com exactidão a possível localização do porto e do próprio castelo de Colir (supostamente construído durante o período islâmico). É fr. Joseph Pereira de Santa Anna que estabelece a localização do castelo. Com efeito, em 1751, seguindo a história de João de Barros, Santa Anna indicou que o castelo de Colir estava situado no lugar onde se veio a construir o palácio de D. Dinis de Melo de Castro95 (c. 1620)96. Ora, este antigo palácio ficava situado na área da vila velha de Colares, sobranceira à vila moderna, subsistindo ainda hoje uma antiga arcaria desse edifício97. Outros testemunhos devem ser aduzidos para se tentar compreender melhor este assunto. Em 1940, aludindo à navegabilidade do rio de Colares, José de Oliveira Boléo dizia que ainda subsistiam “restos dum antigo ancoradouro” na várzea local98. A própria memória popular ainda hoje mantém viva a ideia de ter existido um paredão na área da Quinta da Prezinha com argolas para amarrar João de Barros, Crónica do Imperador Clarimundo. Com pref. e notas de Marques Braga, vol. III, Lisboa, Livraria Sá da Costa – Editora, 1953, cap. I, pp. 74-75.
as embarcaçõe99, se bem que seja de desconfiar que tal memória e paredão possam estar associados a uma presença mais recente de pequenas embarcações na várzea de Colares (talvez a partir de meados do século XIX) que nada tinha a ver com a navegação a partir da foz da actual ribeira100. A entrada da Quinta da Prezinha está a c. 150 m da arcaria que resta do palácio de D. Dinis de Melo e Castro, sendo assim compatível com as afirmações de João de Barros quando mostra que o porto estaria muito próximo do castelo (estrutura de que não se sabe qual a extensão total de terreno que ocuparia). Porém, pelo perfil topográfico do local em que se encontra a Quinta da Prezinha parece-nos que o porto estaria situado numa área mais baixa, muito provavelmente nas imediações da entrada da Rua da Prezinha (área da várzea), e não propriamente na quinta, visto que a última encontra-se num local bastante elevado. De facto, o início da Rua da Prezinha é a área mais baixa das imediações, ficando mesmo em frente ao local por onde passa a ribeira de Colares101. Em suma, apesar das dificuldades e de não ser possível conjugar todos os dados que foram sendo aduzidos, o porto de Colares estaria situado na parte baixa da vila (fig. 3), nas imediações da entrada da Rua da Prezinha (área da várzea). Este local não fica muito longe da entrada do Banzão, daí a possível alusão documental ao “portu de Bazam”, posteriormente referido como “porto de Colares”. O porto estaria situado a uma distância de c. 4 km do mar (se seguirmos o trajecto da ribeira de Colares), mas atendendo a certos dados arqueológicos, às povoações estabelecidas nas imediações das suas margens e à possibilidade de navegação mais para montante, é muito provável que devam ter existido outros focos de aportagem ao longo do rio (fig. 3). Face ao crescimento da área urbana naquele local, que, como consequência, poderá ter levado ao desaparecimento das possíveis estruturas portuárias, não excluindo igualmente o seu possível encobrimento pelas areias e pela vegetação, somente um trabalho de prospecção naquela área e possíveis escavações arqueológicas poderiam revelar qualquer tipo de estruturas deste antigo porto. Poderá também ser o caso deste porto poder ter tido estruturas em madeira, daí que não tenham subsistido no tempo, ou de nem sequer as ter tido, algo que aconteceu nalguns portos até muito recentemente102. Se assim fosse, a dita memória popular estaria associada a um cais de origem mais recente e que nada tinha a ver com a navegabilidade do rio a partir da sua foz. Por outro lado, como foi dito, também é possível que as alusões documentais ao suposto porto não se reportassem a um local que recebia navios, até porque o rio por essa altura já não seria navegável, mas sim a algum tipo de passagem/ponte entre margens. Mantinha-se, porém, a proximidade com o antigo porto naval. O castelo de Colares, por sua vez, situado numa área bem mais elevada, teria uma visão privilegiada para o porto local e para o esteiro
93
94
Idem, ibidem, cap. II, p. 78.
95
Fr. Joseph Pereira de Santa Anna, op. cit., pp. 88-89.
96
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 60 e 102-108.
Pese embora a hipótese comummente aceite de que um dos castelos de Sintra referido por al-Himyari estaria edificado no sítio onde se encontra o actual Paço sintrense, Maria Teresa Caetano não deixou de mencionar que o autor poderia querer reportar-se ao castelo de Colir (cf. idem, ibidem, pp. 35-36 (n. 91)). Contudo, o local onde terá sido erguido esse suposto castelo durante o período islâmico terá sofrido diversas alterações ao longo dos séculos, pelo que nunca foi possível confirmar a sua existência. Desenvolveremos este assunto num outro estudo. 97
98
José de Oliveira Boléo, op. cit., pp. 80-81.
História e Literatura
ramas, e com a força que levavam sacudiam as flores e frutos, donde se causava ir o rio coalhado delas. Pois os rouxinóis e pássaros eram tantos sobre as enxárcias, mostrando o prazer daquela vinda, que venciam em número a todas as flores. Assim que foi esta entrada tão deleitosa, quanto triste daí a pouco espaço, porque chegando ao porto onde se fazia uma grande baía estava um castelo [castelo de Colir] de maravilhosa fortaleza, e nele uma torre mui alta, que descobria o mar daí a dez léguas.
99
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 20-21 (n. 35).
100
Vide infra, 108.
É curioso notar também que mais para o interior da vila velha de Colares, a c. 150 m da arcaria que resta do palácio de D. Dinis de Melo e Castro, consta na toponímia a Rua dos Marinheiros (Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, p. 123). Em todo o caso, não sabemos qual a antiguidade do nome deste arruamento. 101
“Os vestígios materiais de tipo portuário, ou seja, construções especializadas tais como cais, docas, rampas de varadouro […], poderão efectivamente nunca ter existido em locais com funções portuárias, na medida em que essas funções se verificavam muitas vezes na total ausência de estruturas, mesmo em épocas muito recentes” (cf. Maria Luísa Blot, Os Portos na Origem dos Centros Urbanos. Contributo para a Arqueologia das Cidades Marítimas e Flúvio-marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003 pp. 22-23, fig. I). 102
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de mar que invadia o vale de Colares, controlando toda a área em redor e a serra, tendo ainda contacto visual com o castelo dos Mouros ao mesmo tempo que teria visão singular para a área da actual Praia das Maçãs: o acesso naval ao interior do território. Da mesma maneira que acima foi referido, e na impossibilidade de se confirmar a veracidade da tradição sobre o castelo de Colir vinda de João de Barros e seguida por fr. Joseph Pereira de Santa Anna, somente a arqueologia poderá vir a trazer outras luzes sobre este local. O rio de Colares terá deixado de ser navegável durante os séculos XII-XIII, mais provavelmente ainda durante o século XII, podendo ainda ter servido de acesso ao interior do território quando Sigurd (jovem co-monarca norueguês) atacou Sintra (1109)103. Por esta altura a navegação do rio já estaria fortemente limitada, mas o baixo calado dos navios nórdicos – adaptados a cursos de água rasos – associado ao momento de preia-mar teria permitido o acesso ao interior de Sintra104. Algures num momento posterior o rio deixou definitivamente de ser navegável e o porto de receber a visita de navios. Contudo, isso não significa que se tenha perdido a ligação naval com o mar. Uma carta de quitação 1443 (na qual é referido o que recebeu e despendeu o tesoureiro das coisas de Ceuta entre 1 de Janeiro de 1440 e 1 de Janeiro de 1442) menciona que, tal como Lisboa e Cascais, Sintra era um dos locais que fornecia peixe para o abastecimento de Ceuta105. Talvez tenha subsistido na Praia das Maçãs algum tipo de actividade piscatória mesmo depois do rio de Colares já não ser navegável106. Durante os séculos XVII-XVIII surgem mesmo testemunhos históricos e cartográficos – embora com elevados exageros quanto ao recorte geomorfológico local e à profundidade da foz do rio – que revelam que a dita praia era um local de abrigo e desembarque107. Assim, a acostagem junto à praia era possível, apenas não seria praticável a subida do rio108.
Figura 4 Praia das Maçãs vista de uma área mais baixa do Alto da Vigia (foto: Marco Oliveira Borges).
Figura 5 Praia das Maçãs. Foz da ribeira de Colares (foto: idem, Dezembro de 2011).
2 Porto da Oliva
Figura 3 Vista parcial de Sintra com destaque para os principais locais do estudo em geral109.
Maria Teresa Caetano, op. cit., p. 41; Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, pp. 124-125; idem, O Porto de Cascais […], pp. 167-168. 103
104
Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, p. 125.
105
João Martins da Silva Marques, op cit., sup. vol. I, p. 523, doc. 951.
Por imagens de princípios do século XX ainda era possível avistar algumas embarcações na praia das Maçãs. 106
107
Maria Teresa Caetano, op. cit., pp. 16-18.
Deve ser salientado que apesar de ainda hoje, por vezes, se verem pequenos barcos na várzea de Colares, isso só é possível com a água acumulada pelo encerramento do dique que existe nas proximidades (o qual é aberto com a chegada das primeiras chuvas) e que permite passeios de pequenas embarcações. 108
Não sendo possível representar o rio de Colares (actualmente reduzido à condição de ribeira) tal como era em épocas recuadas, seguiu-se o trecho da actual ribeira como mero indicador desse antigo curso de água. Esse trecho de ribeira, porém, visualizado por imagem de satélite, perde-se na área da Cabriz. 109
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MAR: UMA ONDA DE PROGRESSO
Para além do porto de Banzão, porto de Colares e do porto do Touro110, documentação do século XIII revela que o território sintrense tinha ainda o porto da Oliva. Num documento de 1253 alude-se ao «portum Ollivae»111. De um outro documento, igualmente de 1253, salienta-se o seguinte trecho: «Parochia sancti Petri de Cintra teneat a [portu] Tauri usque ad Hermitagium Sancti Saturnini, et a sancto saturnino ad Hermitagium sanctae Eufemiae, et ad Eremitagio sanctae Eufemiae usque ad portu castri de Cintra, quae dicitur de Oliva, et deinde protendatur a castro ad Canaferrim, et a Canaferrim per viam, quae vadit extra villam ad Furcam, et deinde directe ad stratam, quae exit de Oliva»112. É de destacar a seguinte passagem: «portu castri de Cintra, quae dicitur de Oliva», ou seja, o porto do castelo de Sintra, ao qual chamam Oliva (azeitona)113.
Desde 1370 em território marítimo pertencente ao termo de Cascais. Porto do Touro é um dos locais que teremos oportunidade de abordar na parte II deste estudo. 110
ANTT, Livro Antigo do Priostado, fl. 321 (Espólio Silva Marques/Arquivo Municipal/Arquivo Histórico de Sintra); apud Maria Teresa Caetano, op. cit., p. 45. 111
“Treslado do Lemitte, e demarcação das Igrejas da Villa de Cintra”, Cartório da antiga Confraria dos Fieis de Deus, Igreja Paroquial de São Martinho (Espólio Silva Marques/Arquivo Municipal/Arquivo Histórico de Sintra); apud Maria Teresa Caetano, op. cit., p. 36. 112
A referência ao castelo da Oliva, identificando fora de Canaferrim, local onde existe outro castelo, ou seja, o castelo dos Mouros, acaba por ser mais um elemento em paralelo com o castelo de Colir para a discussão em torno
113
A localização deste porto levanta desde logo um enorme problema: o centro histórico de Sintra está situado a vários quilómetros do mar e não há qualquer dado de que o mar tenha chegado até às suas proximidades em épocas históricas recuadas. É verdade que a ribeira de Rio do Porto entronca com o antigo rio de Colares, sendo que este último teria sido navegável a partir da área da praia das Maçãs, mas presume-se que isso tivesse sido possível apenas até Galamares. Deste último local até à área de Rio do Porto distam c. 3 km (fig. 3). Para além disso, e como já foi referido, é preciso ter em conta que o topónimo “porto” nem sempre queria reportar-se a um “porto de mar” ou “porto fluvial” frequentado por navios. O termo podia relacionar-se com a passagem de um rio ou significar um caminho, um local de passagem para um povoado. Neste sentido, o mais provável é que o porto da Oliva tenha sido um local de acesso, uma passagem/ponte sobre a ribeira local para a vila velha de Sintra118.
seria possível navegar para além de Galamares, talvez a produção das imediações do local conhecido por porto da Oliva e da área circundante à vila velha de Sintra também fosse escoada em carroças até ao porto de Colares e daí fosse transportada por navio até Lisboa. Neste seguimento, seria lícito recuar até ao período romano119, altura em que, como anteriormente vimos, a produção obtida na região de Sintra já constituía parte do hinterland abastecedor de Olisipo.
História e Literatura
Em que sítio estaria situado este porto? Qual a tipologia em que se enquadrava e quais as funções que tinha? Os elementos disponíveis apontam para que este porto ficasse situado precisamente nas imediações do centro da vila velha, próximo do actual Paço de Sintra, o qual se encontra edificado no “morro da Oliva”114. É nesta área que se encontram os topónimos Chão da Oliva (já referido em documentação dos reinados de D. Dinis e D. Afonso IV115) e Rio do Porto (figs. 3, 5, 6 e 7). Antigamente, esta área denominada por Chão da Oliva estava integrada num olival, pelo que acabou por conservar esse topónimo. Quanto a Rio do Porto, este topónimo tinha despertado a nossa atenção já em Janeiro de 2010 aquando de uma visita de estudo a Sintra no âmbito da disciplina de “História Urbana Medieval”116. Embora fosse de pensar que o topónimo estivesse relacionado com o porto de Colares, visto que a ribeira de Rio do Porto é uma das duas ribeiras desta área que confluem com o rio de Colares117, tal não acontece. Neste sentido, o porto estaria situado algures no fundo da colina em que se encontra edificado o Paço de Sintra, numa área bastante baixa, local onde se situa precisamente o topónimo Rio do Porto (figs. 5, 6 e 7).
Figura 6 Planta medieval de Sintra120.
Embora o porto da Oliva deva ter sido apenas uma passagem sobre a ribeira local para a vila velha de Sintra, não deixa de ser significativa a existência de um olival (ou de mais) nas suas imediações, algo que poderia ser muito anterior a 1253. Se bem que não queiramos dizer que este local tenha ganho o seu nome devido a uma actividade económica relacionada com a produção e escoamento de azeite, possivelmente apenas pela sua proximidade perante um olival, é muito provável que esta área (fazendo parte de um panorama mais vasto) também contribuísse com produtos (incluiria o azeite?) no escoamento naval da produção da região sintrense, isto em ligação com o rio de Colares. Muito embora se pense que não de quais eram os dois castelos de Sintra referidos por al-Himyari (vide supra, n. 97). Francisco Costa, O Paço Real de Sintra. Novos subsídios para a sua história, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1980, p. 19.
114
115
Figura 7 Paço de Sintra visto das imediações da ribeira de Rio do Porto (foto: Marco Oliveira Borges).
Idem, ibidem, pp. 23 e 33.
Regida pela professora Manuela Santos Silva e uma das opcionais da licenciatura em História (FL/UL). 116
117
Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, p. 117.
Poderíamos pensar, ainda, que o porto da Oliva pudesse ter sido um “porto seco”, mas este tipo de portos é característico das áreas terrestres de fronteira com Castela, portanto, muito no interior do território. “Ao longo da fronteira terrestre foi-se construindo uma rede de portos secos e alfândegas; nesses postos, oficiais da Coroa ou rendeiros cobravam a dízima e a sisa dos produtos importados […]” (Luís Miguel Duarte, “O comércio proibido”, in Estudos em Homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001 p. 416). 118
Os dados arqueológicos romanos obtidos na vila velha de Sintra, ainda que até ao momento sejam escassos, tendo sido a maior parte deles encontrados fortuitamente e sem contexto, apontam para uma cronologia de ocupação entre os séculos II e V d. C. (José Cardim Ribeiro (coord.), Sintra. Património da Humanidade, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1998, pp. 253-254). 119
Adaptado de Sérgio Luís Carvalho, “Sintra”, in A. H. de Oliveira Marques, Iria Gonçalves e Amélia Aguiar Andrade (org.), Atlas de Cidades Medievais Portuguesas (Séculos XII-XV), vol. I, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, p. [71].
120
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junto à costa nos meses de Verão”, perigosidade que aumenta ainda com os ventos e o mar agitado típico daquela área125. Recuando até à Idade Média (cristã e islâmica), e até mesmo à Antiguidade Pré-Clássica e Clássica (púnico-fenícia e romana), é possível que esta área junto ao Cabo da Roca possa vir a permitir novos achados subaquáticos que venham a enriquecer o património cultural, visto que para épocas mais recentes já foram identificados e recolhidos alguns materiais, nomeadamente peças de artilharia e moedas de ouro126.
Figura 8 Placa toponímica alusiva ao Largo do Rio do Porto (foto: idem).
3 Enseada de Assentiz Ladeada do Cabo da Roca (imediatamente a Sul) e voltada a Oeste, a Enseada de Assentiz (figs. 3, 9, 10 e 11) apresenta um recorte geomorfológico que nos leva a crer que possa ter sido aproveitada como pequeno ancoradouro de abrigo no passado121. A própria situação em que se encontra face aos ventos dominantes daquela área, ou seja, abrigada da nortada devido à presença física do Cabo da Roca, é um elemento fundamental quando pensamos na hipótese de utilização naval desta enseada. Assim, estando desde sempre na rota do movimento marítimo entre o Norte da Europa e o Mediterrâneo, e vice-versa, faz todo o sentido que a Enseada de Assentiz tenha tido alguma importância ocasional para abrigo de navios em trânsito. Em todo o caso, esse possível uso desta enseada deverá ter sido mais activo pelos navegadores da região, certamente com melhores conhecimentos dos locais de abrigo e dos particularismos da geografia local. É preciso salientar que esta é uma costa marcadamente rochosa e que, para navegadores inexperientes ou que desconhecessem a geografia da região, poderia ser fatal. Na verdade, a área do Cabo da Roca é conhecida pelos diversos naufrágios que proporcionou ao longo dos tempos, inclusive o célebre naufrágio da nau da Índia Santa Catarina [de Ribamar] (1636), sendo que nos “circuitos” de caça ao tesouro este naufrágio é referido como um dos dez mais lucrativos ainda por detectar122. Situada c. 900 m a Noroeste daquele cabo encontra-se a Pedra da Arca ou Baixa do Broeiro, a qual estando submersa mas à flor da água representa um perigo escondido para a navegação, uma verdadeira armadilha. Junto desta pedra está mesmo um navio afundado e oito canhões submersos123. As Mesas, por sua vez, pedras emersas mas a pouca profundidade, situadas 200 m a Sul-Sudoeste do focinho do cabo, constituem perigo aos navios que navegam muito perto da costa, sobretudo durante a noite124. Para além dos perigos referidos, entre a Baixa do Broeiro e as Mesas existem várias pedras “tanto mais perigosas porque são frequentes os nevoeiros
121
Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira […] I”, p. 112 (n. 18).
Cf. Paulo Alexandre Monteiro, “Canhões na Roca. Análise preliminar de um conjunto submerso de peças de artilharia”, Al-Madan, II sér., n.º 15, 2007, p. 159.
122
Cf. idem, ibidem, pp. 158-160. Numa palestra recente, Alexandre Monteiro, “O património cultural subaquático da costa de Sintra” (02/08/2014), referiu que se tratava de um navio do século XIX, tendo inclusive citado a fonte que relata o embate com a pedra e o consequente naufrágio. 123
124
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Paulo Alexandre Monteiro, op. cit., p. 158.
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À semelhança do que poderá ter acontecido nas enseadas da Biscaia – nomeadamente no local chamado Porto do Touro –, é possível que a Enseada de Assentiz tenha sido um local estratégico para piratas e corsários que esperavam a passagem de navios, sobretudo os que vinham de Norte, ainda que a existência de rochedos nas imediações constitua enorme perigo para a navegação. As fontes históricas indicam que durante o século XVI a área do Cabo da Roca era frequentada por piratas e corsários que esperavam, sobretudo, a passagem das naus da carreira da Índia. Na verdade, à semelhança das Berlengas, o Cabo da Roca era a grande referência na aproximação à costa portuguesa para os navios que vinham dos Açores, pelo que é normal que a documentação dos séculos XVI-XVII mostre a presença destes salteadores de mares nestas imediações à espera de emboscar as naus que vinham ricamente carregadas. De facto, do ponto de vista geo-estratégico, a Enseada de Assentiz e as suas imediações teriam constituído um local ideal para uma emboscada, mormente em períodos de preia-mar. Em 2010, num trabalho de licenciatura realizado no âmbito do “Seminário de História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa” (FL/UL), colocámos a hipótese de que a emboscada à naveta Nossa Senhora da Conceição (feita por quatro navios argelinos a 17 de Dezembro de 1637) pudesse ter ocorrido na Enseada de Assentiz (ou nas suas proximidades), uma vez que os inimigos aguardavam junto à parte de terra, no Cabo da Roca127. Este era o local mais adequado naquela área que permitia aos inimigos fazer uma espera aos navios vindos de Norte sem serem vistos, uma vez que a Roca tapa a visão a quem vem de Norte, e lançar um ataque surpresa. Portanto, os navios que se tivessem a deslocar para Sul só saberiam da presença inimiga muito em cima dos acontecimentos. Foi nas proximidades da Enseada de Assentiz, no Alto das Entradas ou Calhau das Entradas (sítio caracterizado por uma área de penhascos e de altura considerável em relação ao mar), que após a Restauração foi edificado o Forte de Nossa Senhora da Roca (ou Forte do Espinhaço)128, do qual já só subsistem escassos vestígios das suas ruínas (fig. 11). De acordo com as investigações de Carlos Callixto, um inspector anónimo havia visitado o local em Abril de 1751, altura em que o forte já se encontrava bastante arruinado, ficando estimado que a sua reconstrução total orçaria pelos 1.300$00 réis. 125
Idem, ibidem, pp. 158-160.
Existe mesmo uma lenda, a lenda da velha Ricarda ou Ricardina, uma suposta habitante da aldeia da Azóia que, em tempo incerto, após as marés vivas e dias de tempestade recolheria imensas moedas de ouro numa praia do Cabo da Roca (cf. Paulo Alexandre Monteiro, op. cit., p. 158). Esta lenda foi dada a conhecer por João Pedro Cardoso, recentemente falecido.
126
José António Rodrigues Pereira, Grandes Batalhas Navais Portuguesas. Os Combates que marcaram a História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009, pp. 193-195; idem, Grandes Naufrágios Portugueses 1194-1991. Acidentes Marítimos que marcaram a História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 204-205 127
Carlos Callixto, Fortificações da Praça de Cascais a Ocidente da Vila, sep. da Revista Militar, Lisboa, 1980, pp. 4-5.
128
Em todo o caso, apesar da curta duração que teve e de se ter verificado a sua inutilidade para a defesa marítima dessa área, a verdade é que a intenção inicial que esteve por detrás da construção do forte estaria mesmo na necessidade de protecção dos navios que se abrigavam de corsários naquelas enseadas e imediações. Talvez o poder de fogo que o forte dispunha acabou por ter um efeito mais dissuasor para os navios inimigos que se aventuravam por aquelas paragens do que propriamente operativo. De qualquer forma, tal como nos deixam perceber vários tipos de fontes, não há qualquer dúvida de que se estava perante uma área movimentada e que era paragem frequente para piratas e corsários que aproveitavam as características geográficas desta costa para levar a cabo os seus ataques, embora algumas características deste trecho costeiro pudessem ser mais benéficas para os navios de menor porte que procuravam refúgio. De acordo com Manoel Pimentel, por exemplo, “na ponta desta Roca distante de terra o tiro de hum mosquete está huma baixa em que arrebenta o mar. Por entre a baixa, e a Roca tem ja passado navios pequenos fugindo dos Mouros, encostando-se mais à baixa que à Roca”134. Esta é uma referência à Baixa do Broeiro, ficando o contínuo testemunho quanto à presença de piratas e de esta área servir como refugio a navios de menor porte.
Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, As Fortificações Marítimas da Costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, p. 212. 129
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À primeira vista, a proximidade em relação à Enseada de Assentiz e a sua possível importância para abrigar os navios que por ali passavam, bem como a própria presença de corsários naquelas imediações e a necessidade de evitar que pairassem por ali, seriam argumentos mais que válidos para se erguer um forte naquela área. De acordo com o dito inspector que visitou o local em 1751, o Forte de Nossa Senhora da Roca estava “num dos sítios mais importantes daquela marinha pelo muito que ampara dos inimigos as embarcações pequenas que fazem viagem para o Norte”129. Não se sabe por quantas peças de artilharia estava dotado na altura, porém, anos mais tarde, entre 1763 e 1764, sabe-se que estava artilhado com 4 peças de ferro: 2 de calibre 9 e 2 de calibre 6130. Todavia, os relatórios levados a cabo nas décadas seguintes viriam a tirar a importância estratégica e a utilidade defensiva deste forte. Em 1777, um oficial alegou que o “Forte não he de nenhuma utilidade, e assim só lhe bastão duas peças para servir de vigia. O paiol da pólvora está em bom estado. Para guarnecer esta fortaleza em tempo de guerra, no cazo que seja acommetida por alguma frota inimiga, bastar-lhe-ha ao menos um Cabo e oito artilheiros; presentemente se acha guarnecida por hum Cabo e trez Soldados infantes”131. Em 1796, num novo relatório, a importância da fortificação foi considerada “quaze inútil pois não defende porto algum e os seus tiros são tão mergulhantes que não poderão fazer efeito, por estar levantado sobre o plano do mar alguns 300 palmos; e além disto todos os navios se apartão deste Cabo [da Roca] por não darem a Costa”132. Por fim, num relatório de 1831 foi referido que não era “possível com o fogo feito da bateria deste Forte incomodar o inimigo, devido à sua grande altura sobre o mar”133.
Figura 9 Cabo da Roca com vista parcial para a Enseada de Assentiz (foto: Marco Oliveira Borges).
Figura 10 Vista para o Cabo da Roca e Enseada de Assentiz.
Figura 11 Ruínas do Forte de Nossa Senhora da Roca (ou do Espinhaço) com vista para o Cabo da Roca e Enseada de Assentiz (foto: André Manique).
Carlos Callixto, op. cit., pp. 5-6.
Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, op. cit., p. 212. 131
132
Idem, ibidem, p. 213.
133
Carlos Callixto, op. cit., p. 8.
Manoel Pimentel, Arte de Navegar, em que se ensinam as regras praticas, e os modos de cartear, e de graduar a balestilha por via de Numeros e muitos problemas úteis à navegação, Lisboa, Officina de Francisco da Silva, 1762, p. 526.
134
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Conclusão Apesar de trazerem várias incertezas, as investigações desenvolvidas têm permitido a exploração de diversas hipóteses e significativos avanços no conhecimento, corrigindo e superando ao mesmo tempo ideias que abordámos no anterior estudo sobre o porto de Colares. A riqueza da presença romana nesta região, atestada através das diversas evidências arqueológicas enunciadas, bem como a existência de um curso de água outrora navegável e que no futuro terá de receber maior atenção por parte dos investigadores, comprovam a enorme potencialidade desta área e o provável aparecimento de novos materiais ou até mesmo de ruínas arqueológicas que permitam compreender melhor o povoamento local e a utilização naval do rio de Colares. De momento, fica reforçada a hipótese de navegabilidade do rio de Colares durante o período romano, sendo este um dos rios da região por onde fluíam navios e mercadorias envolvidas numa rede de ligações comerciais com Olisipo. Essa rede teria estado activa sobretudo entre os séculos I-II e V d. C., havendo ainda elementos anfóricos detectados na região de Sintra (embora mais afastados de Colares) datados dos séculos II-I a. C. Diversas ideias ficam ainda por explorar, algo que será necessário fazer em paralelo com um apanhado exaustivo dos dados arqueológicos obtidos na região. Será igualmente importante compreender melhor o enquadramento dos sítios e dados arqueológicos perante a rede viária local, bem como o estabelecimento de analogias com o povoamento romano nas imediações da ribeira de Cheleiros e com a sua navegabilidade. No cômputo global, tudo isto poderá permitir compreender melhor o povoamento romano da região e as relações socio-económicas em ligação com Olisipo. No caso do porto da Oliva, apesar de nos parecer que se trata de uma antiga passagem/ponte sobre a ribeira de Rio do Porto para a vila velha de Sintra, fica em aberto a possibilidade de que esta área, fazendo parte de um panorama mais vasto da região sintrense, também contribuísse com alguma produção que era escoada pelo rio de Colares. Não tendo conseguido, neste estudo, aduzir mais dados sobre este assunto de exploração muito recente, esperamos dentro em breve trazer novos elementos e poder aprofundar as questões em discussão. Por fim, os dados aduzidos em relação à Enseada de Assentiz e imediações mostram que esta área foi utilizada pela navegação, ora por navios que procuravam refugio, ora por corsários que fariam emboscadas aos navios que por ali passavam, tendo um potencial elevado no que diz respeito ao património arqueológico subaquático e que é preciso salvaguardar dos caçadores de tesouros que se movimentam nesta região. Um possível projecto de carta arqueológica subaquática da costa de Sintra, à semelhança do que acontece em Cascais, permitiria identificar novos materiais, recuperar e salvaguardar o património submerso e avançar no conhecimento.
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