Postais Ilustrados: souvenirs íntimos e publicitários

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Postais ilustrados, souvenirs íntimos e publicitários Maria da Luz Correia Universidade do Minho/ CECS - Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade Université Paris Descartes, Sorbonne/ CEAQ - Centre d’Étude sur l’Actuel et le Quotidien Resumo Combinando uma mensagem massiva e reproduzida com uma outra íntima e singular, o postal é um cartão-prenda frequentemente guardado nas gavetas da nossa memória. Se a publicidade é hoje a mitologia que nos resta, como defende Baudrillard, as imagens publicitárias veiculadas pelos postais (e que podem referir-se a cidades, produtos, obras de arte, museus) têm a particularidade de ser tão colectivas e repetidas como íntimas e singulares. Imagem apropriável, o postal torna-se pretexto para uma abordagem a autores como Warburg, Benjamin e Agamben, que, a partir de diferentes nomenclaturas, vêem na imagem "órgão da memória social e núcleo das tensões espirituais de uma cultura" (Agamben, 2004).

Os postais são isso, eles vão, eles vêm, lembramo-nos deles, esquecemo-los (...) são como a vida. Há isso que fizemos e isso que não fizemos, isso que poderíamos ter feito, isso que não pudemos fazer, isso que sonhámos fazer e isso de que nos esquecemos.

A simplicidade desta observação do escritor e artista plástico Pierre Tilman (1992: 122, 124) serve-nos para apresentar o postal, uma face imaginada e um verso timbrado que combinam quotidianamente duas vidas: a nossa vida e a vida das imagens. Os postais, espécie de imagens em movimento, são um trabalho com imagens. Nem exactamente um medium, nem objecto de arte, nem simples objecto de consumo, o postal combina uma técnica de envio com uma técnica reprodutiva do mundo, é um objecto de correspondência cujo caminho é da ordem do possível e é um suporte de imagem reprodutível cuja natureza é sempre do ‘separado’. Como suporte de imagens e objecto de correspondência, o postal é um objecto de estudo pobre... Meio de comunicação popular, o postal tem essa concretude extrema que Walter Benjamin tanto estimava e que numa carta a Scholem em 1928 atribuía aos jogos de crianças, a um edifício, a uma situação da vida. (Tiedemann, 2006: 13). Ele é um detalhe, nos sentidos que Benjamin e Aby Warburg lhe deram. No que respeita à face, as criações visuais que lhe foram especialmente dedicadas são expressões menores que vão da fotografia popular, às figurações gráficas da art nouveau até à publicidade e

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ao design gráfico contemporâneos. Neste sentido, podemos invocar de novo Warburg que além de ter sempre insistido na importância (formal, antropológica e simbólica) de artes menores como a gravura, não descobriu enquanto historiador diferenças entre o design de um selo e um grande quadro (Gombrich, 1970: 317). Se Bourdieu em Un Art Moyen faz corresponder a fotografia popular àquilo a que Kant chamou o gosto bárbaro, o postal é sem dúvida um seu belo exemplar. O postal é como essas pinturas idiotas, capitéis, cenários, telas de saltimbancos, tabuletas, iluminuras populares que Arthur Rimbaud elogia em Une saison en enfer (Rimbaud, 1960: 228) . Pequeno pedaço de carta, reproduzindo desde não-lugares (como Martin Parr o inventariou à exaustão em Boring Postcards) a célebres obras de arte, o postal é sempre objecto de rien du tout (como o definia Paul Eluard, coleccionador de postais), um mediador mundano da nossa relação quotidiana com as imagens.

O postal recto-verso O postal viaja e viajar é perder países como escrevia Fernando Pessoa: perder as referências, orientações, identidades... Enquanto objecto de correspondência, o postal, como escreve Jacques Derrida (1980: 206) espera sempre o destinatário que pode sempre porventura não chegar. Enquanto atravessa o seu trajecto, o postal torna-se numa coisa entre infinitas coisas, toma parte dessa voragem, dessa passagem sem pausa de que fala Jean Luc Nancy (1997:1) e a sua permanência está no seu movimento (mesmo se nele, nada ou quase nada se move, como lança brilhantemente a Saturani, (1992:107) Roland Vuadens, um artista de mailart que escreveu no verso de um dos postais que lhe enviou: rien ne bouge ici dans la carte postale.) . Sujeito a envio e sujeito ao outro, o postal é sempre tributário de um trajecto não assegurado e imprevisível, no qual o acaso joga em grande parte. Antonia Birnbaum (1997:66) insiste neste aspecto, no seu breve elogio do postal ilustrado: o postal, por atravessar um caminho incerto, participa, segundo a filósofa, nessa invenção da prosa do mundo. Birnbaum (1997:67) entende na prosa a recusa de uma continuidade homogénea, de uma unidade, vendo nela a possibilidade de rupturas, descontinuidades, associações inesperadas, anacronias. Mesmo se o destinatário recebe fisicamente esse suporte insuportável que é o postal para Jacques Derrida (1980), a sua leitura não é uma

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destinação concluída. Em Derrida, o postal é um modelo de transmissão, isto é, a ideia de que uma mensagem está permanentemente aberta a correspondências secretas não diz respeito só ao postal mas a todo o processo de transmissão (de textos, de imagens, de figuras...). No entanto, no caso do postal, esta destinação jamais concluída tem segundo o filósofo uma simetria na sua própria estrutura formal (que Derrida define como innanalysable, indivisible, illisible).1 Ora, é precisamente de transmissão de imagens (massivas e reproduzidas) de que o postal também trata. Aparecido no séc. XIX, ele é um pioneiro da propagação indefinida das imagens. Contemporâneo do aparecimento da fotografia e filho da era da reprodutibilidade técnica, o postal envia tanto quanto dispersa (no tempo e no espaço) figurações do mundo. Entre o nascimento do bilhete-postal simples e branco em 1869 na Áustria e a edição dos primeiros postais com imagens, os postais ilustrados, contamse apenas alguns anos. Concebido pouco depois da invenção da fotografia e nas vésperas da arte das imagens em movimento (o cinema), o postal, no seu marginal anonimato, foi logo suporte e difusor dessas imagens de uma humanidade sem nome que Walter Benjamin (1996:9) tanto apreciava nas primeiras fotografias. Com épocas de ouro, crises, revitalizações e metamorfoses, o postal não parou até hoje de deslocar um dos mais exaustivos tanto quanto fragmentários inventários visuais. Cidades, mulheres, flores, anúncios publicitários, criações humorísticas, símbolos religiosos, obras de arte, imagens eróticas, criações gráficas... – o postal, de uma forma um tanto caleidoscópica, foi sendo um democrático transmissor de imagens bem como dos paradigmas destas. Paisagem e retrato, documentário à Lumière (reflectido nos primeiros postais de vistas) e ficção à Méliès (aplicada aos chamados cartões-fantasia) – estas distinções vindas das artes plásticas, da fotografia e do cinema, tiveram uma sintonia e um eco significativos no postal e a partir dele.

O postal é uma janela que abre ou uma porta que fecha?

1

Ce que je préfère dans la carte postale c’est qu’on ne sait ce qui est devant ou ce qui est derriére, ici ou lá, prés ou loin, (...) Ni ce qui importe le plus, l’image ou le texte, et dans le texte, le message ou la legende ou l’adresse. (Derrida, 1980: 17).

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Na sua repetição massiva, o postal é também a origem de muitos déjà-vus colectivos: é sem dúvida em grande parte por causa dele que a imagem de um pôr-dosol nos suscita frequentemente essa sensação de perceber qualquer coisa de presente como se isso já se tivesse passado e de perceber como presente qualquer coisa que já se passou (tal é a definição de déjà-vu dada por Agamben, 2004: 92). Peça fundamental desse Museu Imaginário que Malraux anunciou, o postal foi como escreve Gombrich (2006: 227) um dos principais responsáveis para que já não consigamos ver a Mona Lisa com um olhar novo. Os postais são assim, enquanto transmissores de imagens reproduzidas, parte de uma certa febre das imagens, que é também o signo de uma certa febre de arquivo (Derrida, 1995). Na violência das imagens no que se refere à sua propagação, levada nomeadamente a cabo pela matraquage publicitaire (Nancy, 2003: 35), o postal é um precursor. Kitsch, mimicry d’art (Birnbaum, 1997), se ele nasceu com a fotografia, o postal, como ela tem cada vez mais frequentemente uma função publicitária mesmo se esta função não é imediatamente discernível (Gisèle Freund, 1974:7). Os postais, que popularizaram as Exposições Universais e que faziam parte dos souvenirs vendidos nas passagens de que Walter Benjamin (2006) nos fala, sempre fizeram sempre parte, pelas suas imagens, desse sonho e sono colectivo, da fantasmagoria da mercadoria criticados por Benjamin. Serge Daney (1994: 72) referese a um postal progressivamente postalizado, no que respeita à sua imagem. Birnbaum (1997: 64), que o cita, vê também nos mais recentes postais, com os seus enquadramentos, slogans e efeitos especiais, uma imagem cada vez mais autónoma, uma unidade artificial que já não nos dá acesso ao mundo porque se quer substituir ao mundo. Mas se a imagem publicitária do postal concorre para a dysneylandisação (Nicolas Hossard, 2005: 84) do mundo, muito se deve à natureza de toda a imagem: desde logo, porque tem imagem, o postal cristaliza essa força intrínseca de um mundo separado que para Moisés de Lemos Martins (2009) existe em toda a imagem. È por se fundar apenas em si própria, que a imagem foi tratada por Jean-Luc Nancy na sua afinidade com a violência. Foi ainda também neste sentido que Aby Warburg viu na imagem o ponto de partida para o diagnóstico da esquizofrenia da civilização ocidental (Gombrich, 1970: 253, 303) . Se a imagem sempre foi motivo de desconfiança, muito se deve a essa espécie de hermetismo que a cobre e que a faz auto-suficiente. Condensação

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de um mundo, a imagem parece-nos às vezes dar apenas para fora do mundo. Giorgio Agamben (2005: 67) estabelece neste sentido uma comparação entre as imagens e as estrelas, lembrando que olhar o céu sempre foi em certo sentido uma maldição: as estrelas são o signo do destino e da sujeição dos homens a ele. Por um lado, então, o postal, reproduzindo e conduzindo-nos através de cantinhos de beleza universal, participa nessa superfície inventada e separada das imagens, sujeitando-nos a elas (no que estas têm de mais superficial). Por outro lado, o postal, porque é enviado quotidianamente, participa no mundo mais visivelmente do que qualquer outro suporte: imagem inscrita e enviada por nós, com uma estrutura aceite ou transgredida (como o são os postais cifrados, os postais das colagens da mail art), com um trajecto geográfico contingente, o postal está aberto às singularidades de um contexto em mutação constante. O postal é então imagem massiva e uma situação singular, cristalizando neste sentido velhas querelas: a dualidade entre a poesia e a prosa, diz Birnbaum (1997), ou a oposição entre o mito e a literatura, a língua e a palavra, o destino e a fortuna, como o diz de outro modo Agamben (2005)... Parece-nos que Aby Warburg e Walter Benjamin procuraram ver o conflito entre estes termos e o intervalo que os une, não através dos postais como é evidente, mas como um processo tensivo que atravessa toda a imagem.

A imagem também tem recto e verso A imagem era definida por Warburg como um organismo enigmático (DidiHuberman, 2002: 302) dotado de uma energia vital e foi sendo aproximada por Warburg a partir de conceitos como as fórmulas de pathos e os dinamogramas. Na imagem cristalizava-se, através de uma fórmula repetitiva a vida em movimento, ela era uma intricação de uma carga emotiva com uma fórmula iconográfica (Agamben, 2005: 11, 42): a imagem apresentava-se em Warburg como um nó de matéria e de forma que não permitia já considerá-las separadamente. Para o historiador a imagem era, segundo Didi_Huberman (2002: 201), um híbrido de movimento e suspensão, um enlace tensivo de paixão com fórmula, de energia com engramme, de movimento com marca, de singularidade dinâmica com fixidez esterereotipada, de energia vital com imobilização fóssil. Jean-Luc Nancy (2003: 178) não nos define aliás muito diversamente a imagem:

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A imagem é da ordem da suspensão (a forma, o presente, a representação) e da ordem do movimento (a força, o aparecer e desaparecer). (...) Por isso ela envolve tanto a proliferação indefinida de imagens como seu isolamento, a moldura na parede.

No Livro das Passagens, Walter Benjamin (2006: 478, N2a, 3) definia a imagem dialéctica como o ponto onde um Outrora encontrava um Agora produzindo um clarão e formando uma constelação . Logo, a partir daqui, podemos intuir, tal como já o faz Giorgio Agamben , uma semelhança entre as fórmulas de pathos de Warburg, que entrelaçavam de modo opaco matéria e forma, e estas constelações que são o movimento dialéctico no acto da sua imobilização. O Agora de Benjamin poderia ser pensado como um instante de prosa na sua viva singularidade, que Warburg vê na carga emotiva, na energia vital, na matéria. O Outrora (que é o Outrora de sempre, como nos diz Benjamin, 2006: 481, N4, 1) é por nós entendido como a perpetuidade suspensa que há em toda a imagem, essa semelhança que não se assemelha a nada segundo o postulado de Maurice Blanchot, e que para Warburg se cristalizaria na imobilização, na forma. È por isso que, também para Nancy (2003: 26) a imagem compreende tanto um acontecimento como uma eternidade: estes, tal como o Agora e o Outrora de Benjamin, tal como a matéria e a forma de Warburg, tal como o verso e o recto no postal, não são de todo separáveis, e se nos os opomos na nossa exposição, fazemo-lo apenas com o intuito de esclarecê-los do modo mais claro possível. Esta tensão entre movimento vivo e imobilização no interior de toda imagem, e que tem uma curiosa simetria no formato do postal (além da sua imagem no recto, chegado à nossa caixa de correio, o postal é também como objecto de correspondência um fóssil de movimento), pode ser ainda pensada como atravessando a transmissão e a história das imagens, para que este objecto de correspondência ilustrado também concorre. Imagem de movimento, por um lado, a imagem é já um fotograma de que nos falta o filme (Agamben, 2004: 90). Imagem em movimento, por outro lado, ela é um fotograma que vai mudando e sendo mudada pelo filme onde vai sendo remontada sem cessa. Este filme, tal como foi pensado por Warburg ou por Benjamin, não tem, como tradicionalmente, um princípio seguido de um meio seguido de um fim: ele está cheio de rewind’s, e de pause’s, fastforward’s, missing links, que se manifestam em cada imagem, em cada fotograma... Como Didi-Huberman (2002:202) sublinha, a partir do

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conceito de Nachleben (sobrevivência) introduzido por Warburg, as imagens não seriam só fósseis de movimento, mas fósseis em movimento. Que espécie de movimento é este que Warburg atribuiu às imagens? Por um lado, é um movimento que escapa à sequência cronológica. Para Warburg, a imagem é um organismo enigmático, que longe de ser inerte e inanimado (Agamben, 2004: 49), é dotado de uma vida reduzida: ao longo da sua transmissão histórica, ela é ora transmitida, ora esquecida, ora redescoberta, ela atravessa períodos de latência e de crise, repete-se e metamorfoseiase. Com uma ambivalência latente não polarizada, a imagem é polarizada conforme a vontade selectiva de uma época (Gombrich, 1970: 248); história de sobrevivências e renascenças, a história que Warburg quis contar era um enlace tensivo e híbrido entre o ritmo da vida das imagens e o ritmo da sua sobrevivência: a repetição, a sobredeterminação e os componentes históricos formavam uma intricação com os contratempos, as metamorfoses e os componentes não históricos. Para Benjamin, de modo semelhante, a imagem dialéctica, que é simultaneamente o objecto e o objectivo do historiador, pode ser vista como o instante em que dinamitamos o curso da história (Benjamin, 2006: 493, N10a, 1) e em que explodimos a homogeneidade de uma época (Benjamin, 2006: 492, N9a, 6)) para abrir um espaço onde as relações entre um agora e um outrora não são sequenciais, lógicas ou temporais, mas sim figurativas’ (bildlich) (Benjamin, 2006: 480, N3,1). A iconologia de Warburg produz qualquer coisa como uma imagem dialéctica das relações entre as imagens (Didi –Huberman, 2002: 495) ao longo do tempo. Não só depois de Warburg mas depois de Benjamin também, a história já não pode ser vista como o fluxo de um rio contínuo que vai da nascente à foz mas como um conflito tensivo entre o curso do rio e os seus próprios turbilhões (Gertrud Bing citada por Didi-Huberman, 2002: 93). A cadência deste movimento tensivo e anacrónico só pode ser entendido a partir do jogo indivisível entre inconscientes e conscientes, entre latências e crises, entre o que é esquecido e o que é lembrado, o que é relembrado e reesquecido. Em Benjamin (2006: 489, N8, 1), este aspecto é ainda particularmente claro no seu conceito de rememoração (conceito que tinha também para o filósofo um carácter teológico que não nos interessa discutir ou desenvolver aqui). A história que se servia da rememoração, além de se montar (ou desmontar, mais exactamente) através da tensão e do conflito entre o que é esquecido e lembrado2, não 2

A rememoração parte também da ideia da memorização espontânea e involuntária, que Benjamin via à

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compreendia apenas o consciente mas também o inconsciente: a tarefa do historiador devia ter algo análogo à tarefa de interpretação de sonhos (Benjamin, 2006: 481, N4,1). As ideias de imagem dialéctica em Benjamin, bem como o conceito de imagem em Warburg são em ambos os autores indissociáveis das suas concepções de história. A imagem é para Warburg uma teia de resíduos vitais da memória (Didi-Huberman, 2002: 310),

constituindo-se como o órgão da memória social. Para Benjamin (2006: 494:

N11, 4) similarmente a história desagrega-se em imagens e não em histórias. Isto corresponde, servindo-nos da nomenclatura de Antonia Birnbaum, a ver a imagem não só como imagem recortada do mundo (combinando por isso tanto a dinâmica viva de um instante como esse mesmo que retorna sempre e que petrifica a imagem numa forma repetível) mas também como imagem que se vai reinscrevendo no mundo e que vai sendo reinscrita por ele ao longo da sua transmissão histórica.

Um atlas de postais para adultos: de caixa em caixa de correio, de imagem a imagem Folha morta da paisagem anónima como o definiu Serge Daney (1994: 72), o postal é uma espécie de imagem que dá para outra imagem. Moldura de uma representação visual, ele apresenta uma imagem que por si só é já o cruzamento de um movimento e instante singulares com uma imobilização reprodutível. Marca de uma viagem singular, o postal chegado às nossas caixas de correio é, por outro lado ainda, a cristalização (imóvel, petrificada) de um percurso geográfico e de um movimento dinâmico que o carregou de tempo. Por outro lado, marcas que viajam desde o séc.XIX os postais foram desde aí tecendo um vaivém entre os fragmentos da nossa narrativa privada, da nossa vida singular e os fragmentos de uma outra narrativa, a história colectiva (tal como ela foi entendida por Warburg ou por Benjamin). Quando o etnólogo português Rocha Peixoto (1975: 403) em 1908 define os postais como atlas complementar de uma memória, é compreensível que facilmente

obra em Marcel Proust onde nas suas palavras a recordação era a embalagem e o esquecimento era o conteúdo. A rememoração toma em conta o tecido de lembranças, no que este também tem de trabalho de Penélope. (cf. Zum Bilde Prousts, GS, II/1: 311 in Walter Benjamin, "Zum Bilde Prousts," GS: II/1: 310 – 324)

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nos recordemos de Mnemosyne, o último e inacabado projecto de Aby Warburg, um atlas de imagens que reunia em diferentes painéis reproduções dos seus temas favoritos da história da arte, mas também imagens publicitárias, selos, fotografias de imprensa... À semelhança de um imaginário atlas de postais, este atlas figurativo que ilustrava a história da expressão visual (segundo a definição de Gertrud Bing citada por Agamben, 2004: 22) integrava documentos visuais tão díspares à partida quanto um excerto da Tentação de Cristo e um cartaz publicitário de uma companhia de navegação. Tal como nesta nossa ideia abstracta de um atlas de postais, o único denominador comum das imagens de Mnemosyne é a escala de reproduções fotográficas, que permite ao historiador reunir objectos entre si afastados no tempo e no espaço (Didi Huberman, 2002: 455). Georges Didi-Huberman (2002: 452) insiste que este projecto, que Warburg definiu como teoria da função da memória humana através de imagens (Agamben: 2004: 67), se distinguiria absolutamente de um inventário e que reflectiria nesse sentido a natureza da história das imagens pensada por Warburg. Mnemosyne não seria um aide-mémoire, um arquivo (hypomnema) mas um trabalho de anamnese (mneme, anamnesis). Quais eram então os aspectos formais que conferiam a Mnemosyne esta dinâmica? As cerca de 2000 imagens sem legenda estão aglomeradas sem qualquer critério claro (o desdobramento das suas relações não é no entanto arbitrário, reflectindo à maneira de Benjamin relações figurativas e não lógicas ou temporais entre diferentes momentos da história da expressão visual), estas imagens estão presas aos ecrãs com pinças que são manipuláveis, o fundo destes ecrãs é negro abrindo intervalos que não são só uma superfície onde se dispõe o puzzle mas são parte do próprio puzzle. DidiHuberman (2002: 496) vê este intervalo negro como servindo de fundo e de passagem às imagens entre elas – ele é o meio das imagens, uma atmosfera visual que se reflecte nelas. È a armadura visual da montagem, o tecido que engendra as ligações entre as diferentes imagens (com todos os esquecimentos e inconscientes que também as determinam). Ora, num imaginário atlas de postais, tudo se passa como se este tecido intervalar fosse duplo. Por um lado, o intervalo negro poderia ser visto como o espaço que une e que separa as imagens criadas, editadas e publicadas no recto do postal desde o séc. XIX. Mas por outro lado, este fundo corresponderia ainda ao intervalo criado pelo imprevisível vaivém de um postal entre remetente e destinatário: todos os incidentes da

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viagem, nesse fluxo contingente dos correios e ainda todas as associações inesperadas e correspondências secretas entre eles, nas suas histórias e contextos provisórios. Derrida (1980: 222, 223) ilustra neste curioso parágrafo a particularidade deste imaginário atlas de postais: Os coleccionadores de pedras não podem comunicar entre eles, enviando-se a pedra. Nem mesmo os coleccionadores de selos. Eles não podem escrever na coisa mesmo, no suporte mesmo, eles não podem acumular escrevendo-se sobre a acumulação. Enquanto que quando enviamos postais para comunicar sobre postais, a colecção torna-se impossível, não totalizamos mais, não cercamos mais. Isto convém ao ar intempestivo dos MP’s, dos Maîtres-Penseurs e dos Maîtres de Poste, eles gostam da anacronia, eles morrem por ela . Os postais que como Salvador Dali dizia numa entrevista em 1930 ofereciam

aos surrealistas uma base experimental para o estudo do pensamento inconsciente moderno e popular (Chéroux, 2007: 203) são meios de difusão de imagens privados e públicos, são souvenirs íntimos e colectivos, combinando neste sentido dois tecidos de lembranças. Pierre Tilman (1992: 133) aproxima-se desta percepção quando afirma: Um postal pode esconder outro, prolongá-lo, desvelá-lo. Pelo seu formato, pela sua utilização, pelos clichés que veicula, ele evoca outros postais. Ele faz parte do panorama dos outros postais, esses que vimos, esses que recebemos. Por mais lisa que seja, de papel imprimido, de cartão, anónima, a imagem reproduzida no recto do postal tem nela uma espécie de espessura. Ela é um espelho que se lembra e que guarda num incessante fundo encadeado o espectáculo dos outros postais fantasmáticos.

As relações de um postal com outro postal são assim tecidas não só pelos clichés que veicula ou seja pela história das imagens que eles contam no seu recto (inventada, re-inventada por fotógrafos, artistas plásticos, editores...), mas também pela sua utilização, isto é pelas histórias particulares da sua apropriação, do seu envio, dos seus remetentes e dos seus destinatários. Assim, se no Mnemosyne a unidade cromática desse intervalo negro permitia como nos diz Didi-Huberman (2002:455) pôr em cena todas as heterogeneidades visuais possível, este atlas de postais (que é inconcretizável, que é uma ideia em abstracto) através do um formato standard também as poria. Na mesma medida em que em Mnemosyne se poderia relacionar a imagem de uma ninfa com a fotografia de uma jovem jogadora de golf, também neste atlas se poderiam por exemplo desdobrar as relações tensivas entre essas figuras femininas com ar angelical dos anos 20 e as actuais Lolitas de David Hamilton, ou ainda, entre os instantes e possíveis incidentes do olhar

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na captação de uma paisagem e o que há de contínua repetição e déjà-vu nestas (Le paysage est changeante et la carte postale en fixe un instant; mais en même temps n’englobe-t-elle pas LE coucher de soleil, LE ciel bleu des vacances, LE temps immobile? (Marie-Pierre Zufferey, 2009: 114).

Um imaginário atlas de postais poderia enfim, por exemplo, ainda ilustrar a tensão entre o que há de déjà-vu nas fotografias da Tour-Eiffel (a imagem mais reproduzida do mundo) e o que nela se metamorfoseia numa Distorsion Optique de Robert Doisneau hoje em voga entre os postais-souvenirs de Paris. Porque são suportes de imagens colectivas desde o séc. XIX, tão passageiros nas suas figurações à la mode como repetitivos nas suas fórmulas estereotipadas, os postais desdobram na história das imagens os enlaces desse repetitivo céu azul com a sempre imprevisível mutação das nuvens. Este enlace tem o ritmo daquilo que Agamben designava pelo kairos inexprimível da moda, essa hesitação entre um demasiado tarde que é um demasiado cedo, entre um já que é também um ainda não (Agamben, 2008:26), e que no fundo corresponde ao jogo de sobrevivências e metamorfoses, de períodos de latência e períodos de crise que Warburg via como atravessando as imagens, a história e a memória social delas. Por outro lado, como suporte escolhido, enviado, recebido, assinado e guardado por nós, um postal estabelece relações incalculáveis com outros postais, com outras imagens, desdobrando estas relações ao longo do trajecto e contexto singulares de cada envio. Por exemplo, num episódio do último romance do escritor norte-americano Don DeLillo (O Homem em Queda), um postal com uma reprodução de um poema de Shelley intitulado A Revolta do Islão é recebido por coincidência dois dias depois dos atentados de 11 de Setembro. A sua destinatária, uma nova-iorquina, cujo ex-marido foi dias antes vítima da queda das torres, estabelece então uma ligação (figurativa e anacrónica) entre o postal enviado de Roma por uma amiga duas semanas antes dos aviões e os atentados. Partidos, chegados, esquecidos, lembrados, sonhados, entregues ao destinatário ou perdidos no fluxo contingente dos correios, subitamente reencontrados, os postais estendem na contingência de um envio as relações inesperadas de uma reprodução massiva e repetitiva e de um contexto que é a cada instante singular. Com recto e verso, colectivo e singular, intricando imagens massivas com souvenirs pessoais, o postal sugere então que o ritmo da trama que Benjamin e Warburg pretendiam conferir à memória colectiva das imagens tem a mesma cadência dos nossos

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souvenirs íntimos: um ritmo onde anacronias, conscientes e inconscientes, esquecimento e lembrança se juntam, enlaçam, intricam indissoluvelmente. Mas um abstracto atlas de postais não nos revelaria apenas a sintonia do trânsito destas molduras móveis na memória individual e na memória colectiva. Mais do que isso, porque este atlas também acompanharia essa espécie de garrafa com mensagem lançada ao mar que o postal também é, ele poria a nu que as relações provisórias entre todos os pontos do mundo (que não são mais do que o mundo ele mesmo), nos seus percalços, acasos e no seu permanente devir, têm uma simetria com a anacronia, a tensão e a complexidade das relações engendradas pela memória, tal como ela foi entendida por Benjamin e Warburg. Porque combinaria intricadamente a reviravolta das imagens na memória colectiva e singular com as reviravoltas dos instantes e lhes revelaria uma sintonia, este atlas de postais sugeriria porque é que esse órgão da memória que é a imagem deveria tanto para Warburg e para Benjamin orientar a ciência histórica. Concluindo, à semelhança de Mnemosyne que foi definido por Warburg como uma história de fantasmas para adultos (Didi-Huberman, 2002: 88; Agamben, 2004: 22; Gombrich, 1970: 287), este atlas de postais também se destinaria a pessoas muito adultas. A definição que Warburg atribuía ao seu atlas faz a nosso ver referência a esse poder de toda a imagem de criar um mundo separado e de nos sujeitar a ele, que já desenvolvemos aqui. No caso de um atlas de postais, além disto, teríamos de ter em conta que a vida das imagens (íntimas, colectivas) que eles movimentam corre o risco de ser progressivamente controlada pelas indústrias publicitárias e de consumo, como já referimos brevemente na segunda parte deste texto. Estas indústrias, como nos dizia Klossowski (2008: 23) interceptam a génese dos fantasmas individuais para os desviar para os seus próprios fins, desfazer-se deles e dispersá-los no interesse das instituições. Os postais, como outros suportes publicitários e meios de comunicação, circulando imagens produzidas no interesse da indústria do turismo, tendo uma técnica de envio que é controlada e policiada pelo sistema dos correios e obedecendo a uma técnica de arquivo que é administrada progressivamente pelas instituições, arriscam-se não só a sujeitar-nos a um mundo separado mas também a pôr este mundo separado ao serviço de moradas que não são as dos remetentes e dos destinatários de todos os dias.

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De qualquer modo, mesmo que só para adultos, este imaginário atlas de postais desdobraria sempre um duplo trajecto: destinos mas também destinações, cartões imaginados mas também imaginantes, cruzando a nossa vida com a vida das imagens, estes postais em movimento ecoariam o ritmo atribulado que une os instantes do mundo às imagens da memória.

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