Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul

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Práticas corambreras na Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul Mário Maestri*

O Corambre em Buenos Aires nos séculos 16 e 17 Nos anos 1580 a 1640, o porto de Buenos Aires exportava algum trigo, lã, sebo, carne seca, etc. para a costa do Brasil. Com o fim da União Ibérica (1580-1640) e a perda do mercado luso-brasileiro, até o final do século 17 as exportações bonaerenses reduziram-se sobretudo aos couros embarcados nos “navios de registro”, que ali aportavam espaçadamente – por vezes, após vários anos. Quando os navios não chegavam, deprimia-se fortemente a já frágil atividade econômica da região. Em 1680, a fundação da colônia do Sacramento pelos portugueses, no outro lado do rio da Prata, diante de Buenos Aires, contribuiu para a ativação do comércio bonaerense, por meio da troca clandestina de couros, de prata, etc. por cativos, manufaturados ingleses, fumo, açúcar, aguardente e outros produtos do Brasil.1 * 1

Professor do PPGH da UPF, Doutor em História pela UCL, Bélgica. Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937; PRADO, Fabrício Pereira. Colônia Sacramento: o extremo sul da América portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: 2002; DOMINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacramento e o Sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1973; DE SÁ, Simão Pereira. História Topográfica e bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio do Prata. Porto Alegre: Arcano 17, 1993.

Em 1674, ocorreria a maior exportação do porto de Buenos Aires do século 17, quando quarenta mil couros teriam sido embarcados, em três navios, por 361 “vizinhos”. Os 111 couros exportados em média por vizinho registram o caráter episódico daquela produção. Apenas em inícios do século 18 as exportações regionais de couros assumiriam caráter sistemático, dando um indiscutível impulso à economia seminatural regional.2 A falta de mão-de-obra foi importante entrave à expansão das atividades mercantis do Prata. A população livre espanhola e crioula exigia remuneração relativamente elevada para assalariar-se, em razão da abundância relativa de terras e de gados, que lhe permitia se estabelecer como produtores livres, ainda que à margem da sociedade oficial. A exploração mercantil da força de trabalho dependia fortemente do braço escravizado e servil. Porém, escasseava população aborígine passível de ser reduzida à servidão, de forma plena ou parcial. Os nativos pampas resistiram fortemente à redução, impedindo por longos anos a progressão dos colonos para além do rio Salado, a pouco mais de quatrocentos quilômetros de Buenos Aires . Os nativos trazidos de Córdoba, de Santiago del Estero, La Rioja, Mendonza, do Chile, do Paraguai e do Peru não supriam as necessidades de mão-de-obra. A União Ibérica facilitou o ingresso de africanos embarcados nos portos portugueses da África, ensejando que a vida em Buenos Aires e nas chácaras e fazendas próximas dependesse fortemente do trabalho africano feitorizado, dirigido por administradores – capataces e mayordomos – espanhóis e crioulos. Tamanha eram a escassez e carestia do trabalhador livre que africanos e afro-descendentes se ocuparam na direção de estâncias. A carência de braços constituiu grave

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MONTOYA, Alfredo Juan. Como evolucionó la ganaderia en la época del Virrinado. Buenos Aires: Plus Ultra, 1984. p. 16-19. Mário Maestri

handicap negativo à ocupação mercantil em ambas margens do Prata. Em 1640, com a guerra de independência portuguesa, a introdução do cativo no Prata sofreu forte golpe. As duras condições de trabalho, as epidemias de varíola, de febre tifóide, etc. – com destaque para 1651-1653 – dizimavam os cativos, que os escravizadores substituíam com dificuldade, deprimindo relativamente a agricultura e o pastoreio nas chácaras e estâncias. Como visto, realidade amenizada desde 1680, com as trocas permitidas por Sacramento, que sempre se orientou para a venda de cativos.3 Na própria expedição de fundação da feitoria, com os duzentos homens de armas chegaram sessenta cativos para trabalhar nas obras da fortificação e da cidadela e serem comerciados.4 Em 1763, quando a Colônia foi ocupada pelos espanhóis, 342 africanos foram levados para Buenos Aires, junto com os prisioneiros portugueses.5

Por alguns couros Já em fins do século 16 e inícios do 17, nos campos próximos a Buenos Aires, “mozos perdidos”, vivendo nas franjas da sociedade ibérica local, subsistiam da caça ao gado selvagem. Os animais eram laçados ou boleados, executados e carneados. Tratava-se de prática extrativista realizada por produtores independentes detentores dos meios de produção – cavalo, laço, arreios, boleadeiras, etc., – destinada à satisfação direta ou indireta das necessidades de subsistência, através do consumo da carne e uso do couro, graxa, sebo, etc. dos animais e

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Id. ib. p. 41-48. Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. p. 45. volume 1. Cf. SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul: século XVII, São Paulo: Companhia Editora Nacional; INL, Fundação PróMemória, 1984. p.30.

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da venda ou troca desses produtos nas pulperias, por sal, erva-mate, tabaco, bebida, fazenda, ferramentas simples, etc.6 Os couros, sebo e graxa destinavam-se essencialmente à produção local. Inicialmente, os couros não integraram a limitada pauta de exportação do porto de Buenos Aires, sob o duro maniete restritivo da administração colonial. Eles tinham múltiplos e fundamentais usos: confecção de sacos para o transporte de erva-mate, de fumo, de açúcar, de trigo, de algodão, etc.; construção de móveis – cadeiras, baús, catres, etc.; matéria-prima na produção das moradias – portas, janelas, tetos, dobradiças, etc. –; confecção de roupas, de arreios, de cordas; embarcações; etc. A graxa substituía o azeita vegetal na cozinha e o sebo era utilizado no fabrico de velas e de sabão.7 Referindo-se às múltiplas serventias do couro, André Ribeiro Coutinho explicava, quando da fundação de Rio Grande: “[...] se fizeram muitas casas, oficinas, aparelhos dos carros, cestos para a condução de terra, laços para a contextura das trincheiras e outras infinitas obre de couro.”8 Nas longas viagens oceânicas, as embarcações consumiam tiras finas de carne, salgadas e secadas para mais longa conservação – cecina. Matéria-prima fundamental do artesanato, das manufaturas e, mais tarde, das indústrias europeias, o couro tornou-se, desde fins do século 18, um dos poucos produtos exportados abundantemente desde o Prata. Ainda que a produção individual e isolada dessa matériaprima jamais tenha cessado, as necessidades do comércio exterior ensejaram o surgimento das vaquerias, ou seja, de operações extrativistas de animais e de couros, de maior volume e produtividade, pelo emprego de trabalhadores dire6

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CASAL, Juan Manuel. El modo de producción colonial en el Río de la Plata. Montevideo: Nuevo Mundo, 1987. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina: ocupación, poblamiento, explotación. De la Conquista a la Crise Mundial. (1550-1930). Buenos Aires: Solar, 1989. p. 64-65. MONTOYA, Como evolucionó la ganaderia en la época del Virrinado, p. 41-48. Apud BOXER, C. R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 259. Mário Maestri

tos, conchavados por capitalistas, empregados em atividades coordenadas.9 As primeiras capturas maciças de gado chimarrão teriam se realizado em 1602, em Córdoba, e, em 1608, em Buenos Aires. Tratava-se mais de arreadas do que vaquerias, já que os gados capturados se destinavam principalmente a abastecer as necessidades de carne das principais povoações locais e ao povoamento das fazendas.10 Concomitante a essas expedições, descendentes dos proprietários das primeiras terras distribuídas por Juan de Garay, quando da definitiva fundação de Buenos Aires (1580), reivindicaram à municipalidade o direito aos gados cimarrones, originários dos gados escapados suas fazendas.

Monopólio patrício Em 1606, o cabildo de Buenos Aires proibiu e reprimiu a caça livre ao gado, concedendo licenças (acciones) monopólicas aos proprietários patrícios (accioneros), limitadas à quantidade do gado declarado como perdido a certas regiões, em geral colidentes com as propriedades dos requerentes, e a certas épocas, sobretudo janeiro-julho. Nesses meses, os mais quentes do ano, os animais agrupavam-se às margens dos arroios, rios e lagunas; os terneiros haviam desmamado; os couros secavam com maior facilidade. A primeira licença teria permitido a captura de pouco mais de 1.400 animais. 11 Os accioneros negociavam, junto com as propriedades, os direitos de captura e apropriavam-se das áreas em que tinham 9

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CASAL. El modo de producción colonial [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina. p. 64-65. Cf. DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero: de la explotación primitiva a crisis actual. Montevideo: La Banda Oriental, 1974. p. 23. DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero. p. 23; PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 30.

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permissão para recuperar gado. Originalmente, o objetivo precípuo dessas expedições foi o gado vivo, para povoar fazendas e abastecer a cidade.12 Concedendo os direitos aos requerentes, o cabildo bonaerense outorgou-se o poder de legislar sobre os gados chimarrões, retirando-os do domínio público e da própria alçada da administração real. O direito de concessão do Estado da propriedade plena da terra limitava já fortemente a possibilidade do homem livre pobre de estabelecer-se como produtor. Ao arrogar-se, em nome do Estado, o direito de legislar sobre os gados selvagens, o cabildo de Buenos Aires estabeleceu a forte contradição que o oporia ao homem livre (gaúcho) e aos nativos dos pampas. O núcleo central do poder econômico e social bonaerense consolidou-se em torno do comércio portuário, das exportações de couros, dos latifúndios pastoris. Em 1607 e 1609, partiram do porto de Buenos Aires apenas cinquenta e oitenta couros, respectivamente. Entre 1600 e 1625, no total, foram exportados 27 mil couros, ou seja, pouco mais de mil unidades por ano. Menos animais do que os abatidos para a subsistência da cidade, chácaras e fazendas. Porém, como visto, na segunda metade do século 17 a produção para a exportação tornar-se-ia a principal atividade econômica do comércio bonaerense, com expatriação média anual de vinte mil couros.13 De 1748 a 1753, o porto despacharia, por ano, em torno de 150 mil peças.14 E, como veremos, os couros da região conheciam outros escoadouros. Aos couros enviados de Buenos Aires, agregavam-se os vendidos aos piratas e corsários ingleses, franceses, holandeses, etc. que abundavam na costa atlântica e, sobretudo, os expedidos através de Sacramento para o Rio de Janeiro. Os 12 13

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Loc. cit. CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66; GAIGNARD, Romaní. La pampa argentina. […]. p. 64-65 GIBERTI, Horacio C.E. Historia económica de la ganadería argentina. Act. e corr. Buenos Aires: Solar, 1976. (1 ed. 1954). p. 39 Mário Maestri

couros que partiam legalmente de Buenos Aires eram embarcados nos navios de Registro e nos barcos do Asiento inglês de escravos, de 1718, 1723 e 1724. Eram igualmente abundantes as exportações de couros sobretudo dos Sete Povos missioneiros (1682-1801).15 Os couros embarcados eram comumente trocados por prata e por mercadorias.16 Em 1660, quando era grande a abundância de gado em Buenos Aires, o preço do animal era de quatro reais e o do couro, seis a sete; em 1720, o animal valia doze reais e o couro, de onze a doze. O maior valor do couro em relação ao animal vivo devia-se ao alto preço da mão-de-obra para prepará-lo.17

As vaquerías As vaquerías eram “incursiones por los campos para cazar el ganado cimarrón que pastoreaba libremente”.18 A operação buscava a transferência de animais, em geral para repovoar ou fundar fazendas. Em meados do século 18, o padre José Cardiel descreveu uma recojida de gado por cavaleiros missioneiros na Banda Oriental do Uruguai: “Aquí acostumbraban acudir los indios a recoger vacas, tarea trabajosísima cuando están alzadas. Salen a vaquear cincuenta o sesenta indios, llevando cada uno sus cinco caballos de repuesto. Llevan un rebaño pequeño de vacas mansas, y lo colocan en un collado, donde puedan ver las silvestres. A conveniente distancia, cercan este rebaño treinta o cuarenta de los indios, y los demás se dividen para recoger las vacas bravas más cercanas, las cuales viendo el rebaño, se le acercan, ensanchándose para 15

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Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. 2 v.; DOMINGUES, Moacyr. A Colônia do Sacramento e o Sul do Brasil. Porto Alegre: Sulina, 1973. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 97, 105. MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena. Historia económica del Uruguay. Tomo I e II. Montevideo: Fundación Cultura Universitaria, 1991. p. 53. GIBERTI, Historia económica [...], p. 29.

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abrirles paso los guardas. De igual modo proceden a recoger otras, hasta que ya no quedan más en las cercanías. Entonces se juntan los vaqueros, y poniéndose delante uno que otro, los demás corriendo a caballo alrededor, empujan el rebaño hacia el paraje donde se han de recoger otros del mismo modo y el mismo orden. [...] Por la noche, lo contienen encendiendo por todos lados hogueras; pero, si se apagan, huyen los animales por entre los mismos vaqueros. De esta manera, en espacio de dos o tres meses, cincuenta indios recogen para su pueblo cinco o seis mil vacas en un territorio de cien leguas.”19 Segundo ata do cabildo de Buenos Aires, de 31 de janeiro de 1719, uma grande recolhida de quarenta a cinquenta mil animais na Banda Oriental, com destino de Santa Fé, duraria diversos meses. A operação exigia em torno de 150 “práticos”, uns 1.600 cavalos – dez por cavaleiro –, cachorros, armas, provisões em sal, açúcar, erva-mate, tabaco, aguardente, etc., e dez canoas com trinta peões experientes na travessia dos rios. Durante uns três meses, os gados eram arrebanhados pelos cavaleiros e concentrados em um rincão ou região escolhida, onde uma pequena ponta de gado domesticada atraía/ tranquilizava os animais chimarrões, sempre sob a vigilância de peões. Durante a viagem de retorno, os cavaleiros se desdobravam para que os animais não se dispersassem e não fossem assaltados por feras, perros chimarrões e nativos. À noite, os gados eram cercados por grandes fogueiras, alimentadas, na falta de lenha, por carcaças de reses. A travessia dos rios Uruguai e Paraná era difícil e demorada.20 O pagamento dos trabalhadores livres nas vaquerías era feito com o gado arrebanhado ou em moeda sonante: seis a dez rezes, para os peões com cavalos próprios; cem a duzentas, 19

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CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del Paraguay desde 1747 hasta 1767. Ob.cit. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 45 PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 96 Mário Maestri

para o capataz; oito a dez pesos mensais para o peão, vinte para o capataz. No primeiro caso, por capataz compreendiase possivelmente o responsável geral pela operação; no segundo, os chefes de equipe. 21 Segundo a ata do cabildo de Buenos Aires de 23 de setembro de 1723, os guardas armados – no mínimo seis – ganhariam quatro reais diários, “jornal” normal de um peão em Buenos Aires. Os peões ganhariam de dez a quinze pesos mensais. Nas vaqueiras de corambre, os vaqueiros que desgarravam os animais ganhavam por produção: cinquenta pesos por mil animais.22 Em 1694, o padre Bernardo de la Vega registrava que corambreros portugueses, em ação na Banda Oriental, abatiam diariamente de oito a vinte animais.23 A vaquería de corambre, operação para a caça de gados para a produção de couros, sebo e graxa, era ainda mais complexa e demorada, podendo prolongar-se por mais de um ano. Portanto, constituíam comumente atividade semipermanente. Como as operações anteriores, elas podiam ser realizadas por diversos armadores associados, cada um com o direito de retirada de couros determinado pela municipalidade de Buenos Aires, ou operação clandestina. Esse tipo de vaquería exigia uma dezena ou mais de destros cavaleiros. Apoiados por cachorros, os faeneros ou corambreros envolviam em campo aberto o gado vacum e cavalar, muitas vezes sob formação em forma de V, para cortar o tendão das bestas com lâmina em meia-lua atada na ponta de lanças de taquara ou madeira de dois metros.24 O “desjarretadero” que seguia o animal pela direita, cortava a pata esquerda traseira do animal, para que não caísse diante da montaria, e vice-versa. Após os animais semi-imobilizados serem desnucados com golpes de pequeno punhal 21 22 23 24

MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, p. 54. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado, p. 102. DOTTA; FREIRE; RODRIGUEZ. El Uruguay ganadero, p. 21. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29.

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dado pelos matadores, os desolladores retiravam o couro, sebo, cabelo, língua, etc. Eventualmente, produzia-se alguma cecina. Animais eram também laçados ou boleados para serem sacrificados.25 Nos primeiros tempos de Sacramento, animais foram mortos a tiros, como veremos oportunamente.26 Em História econômica de la ganadería argentina, publicada pela primeira vez em 1954, Horacio Giberti propõe a não participação de cativos nessas expedições, com base numa reflexão sobretudo lógica: “[...] en ellas no participaban los esclavos, cuya escasez elevaba grandemente su valor mercantil. La pérdida de un esclavo en uno de los probables accidentes hubiera implicado la desaparición de buena parte de los beneficios.”27 A documentação questiona essa afirmação geral e peremptória. Em 1785, os espanhóis mataram nas regiões dos rios Vacacaí e São Sepé, ao resistir à prisão, o coureador Francisco Lemos, prendendo quatro outros portugueses, “inclusive um escravo”, além de espanhóis e nativos envolvidos naquele contrabando.28 Não são raros registros de cativos envolvidos nessa atividade, sobretudo na Banda Oriental. A maior disponibilidade de cativos, os altos salários dos homens livres, etc. contribuiriam para que, nas expedições enviadas da Colônia do Sacramento, cativos trabalhassem na condução dos carroções e, possivelmente, como peões, como veremos oportunamente. A população escravizada de Sacramento sempre foi considerável, como já visto.. 29

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Loc. cit. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118-124. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 29. AN, RJ, cód. 104, v. 7, fl. 186. Apud OSÓRIO, H. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2007. p. 64. SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 30. Mário Maestri

Jangadas dos pampas Em Terra gaúcha, livro póstumo e inacabado, João Simões Lopes Neto (1865-1916) detalha as práticas corambreras: “Os changadores traziam as suas tropilhas de cavalos em balsas, sobre a costa de Soriano (Banda Oriental) e arranchavam-se de forma a facilitar os seus embarques e precaver-se contra os ladrões dos seus mantimentos e estaqueadouros. Em grupos de trinta a quarenta indivíduos conchavados entre a escória (sic) das cercanias de Buenos Aires e obedecendo a um capataz, que representa, com plenos poderes, o empresário da exploração. Bem armados e bem montados, corriam os bandos dispersos de índios, coureavam o que podiam e findo o respectivo contrato dissolvia-se a comparsa.” Segue o regionalista pelotense: “Outras vezes, os changadores, formando quadrilhas independentes internavam-se no território, vindo muitas até a coxilha de Cebolati (rio Cebollati, afluente da lagoa Mirim, no Uruguai) e adiante, até a barra do Rio Grande de São Pedro, onde faziam permutas com os caravelões de São Vicente que em navegação furtiva apareciam por certas águas. Durante muito tempo foi somente o couro o produto procurado; para caçar o gado empregavam os campeiros o sistema de – mangueira – que consistia apenas em conduzir, a gritos, a boiada, sobre uma volta acentuada de algum arroio forte; aí ‘desgarronavam’ as reses com uma espécie cortante de meia-lua, encabada em taquara, como uma lança; aos que desempenhavam este ofício chamava-se – cortadores – e eram de uma destreza proverbial. Em seguida sangravam o animal, tirando-lhes apenas o couro, o sebo e a língua, abandonando o resto aos urubus e aos cachorros chimarrões.”30 Para o historiador Aníbal Bairros Pinto, a designação de “changador”, ou seja, do “faenero de cueros clandestino”, pro30

LOPES NETO, João Simões. Terra gaúcha. Porto Alegre: Sulina, 1998. p. 92.

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cederia da palavra “changar”, ou seja “carnear”. Em O gaúcho na história e a lingüística, de 1966, apoiando-se no filólogo Joan Carominas, Propício da Silveira Machado propõe que a palavra derivava do étimo português “jangada”, em virtude das embarcações nas quais eles chegavam, com seus cavalos, à Banda Oriental, através dos rios Paraná e Uruguai. A proximidade entre a pronúncia de “changador” e “jangador” ou “janguadeiro” é grande. Temos registros escritos daquele termo desde 1729, para a Banda Oriental, e desde 1748, para a Argentina.31 Em 1703, em seu “Roteiro” de viagem pelo litoral, desde a Colônia do Sacramento, Domingos de Filgueiras narrou, ao chegar à barra do Rio Grande: “Neste porto é necessário passar em jangada, que se há de fazer em ocasião de reponta (enchente) de maré. E a jangada se fará de espinho seco para as estivas que se juntarão, e os três paus para estiva pouco importa que estejam verdes. Hão de estes ter quinze até dezoito palmos de comprimento (3.30-3.96 m), far-lhe-ão duas faces, uma para baixo, outra para cima. Por cima desta estiva se fará outra de madeira com travessas lançadas e amarradas umas à outras [;] por cima de ambas as estivas se lançarão dois paus, um por cada lado, que servem de talabardões (ponte que corre junto à borda da embarcação) para se armarem os remos, cujos paus serão grossos e secos, os remos serão de boga e de espinho branco, verde, que é mais forte e não falta; por-lhe-ão quatro remos, dois por banda e a jangada que tem quinze ou dezesseis palmos de comprimento, daí para cima, conforme quantidade de gente que houver passar, porque esta medida é para seis passageiros.”32 Os couros, estaqueados ao sol, deviam ser repetidamente limpos de insetos, para serem a seguir transferidos ao acam31

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PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 109, 114; MACHADO, Propício da Silveira. O gaúcho na história e a lingüística. Porto Alegre: Palotti, 1966. p. 31. Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 69. Mário Maestri

pamento dos corambreros. Após serem amassados, o sebo e a graxa eram acondicionados em bolsas de couros para posterior manipulação. Realizadas no verão, as expedições durariam meses, como vimos, sobretudo quando os campos mais próximos já se encontravam despovoados de animais. A exportação dos couros para os mercados europeus dava-se privilegiadamente no inverno, quando, em razão da baixa temperatura, não eram atacados pela temida polilla – parasitas do couro. As vaquerías de corambre exigiam capitais ainda superiores às arreadas, necessários para os salários, as armas, os suprimentos, as carretas, os instrumentos de trabalho, etc. Em virtude da baixa qualidade das montarias, a cada cavaleiro corresponderiam cinco ou mais animais, como assinalado.33

Modo de produção gaúcho Espanhóis, criollos, portugueses, gaúchos, libertos, charruas, minuanos, guaranis etc. dedicavam-se, de forma isolada ou em pequenos grupos, como produtores independentes proprietários dos seus meios de produção, à caça de gado para a obtenção direta e indireta de parte de seus meios de subsistência. Em geral essa produção era clandestina, já que reprimida pelas autoridades coloniais, que, em nome do Estado, monopolizavam as terras e os gados para garantir a extração de impostos e privilegiar os segmentos sociais dominantes. A caça ao gado, pelo couro, para a venda, podia constituir atividade semipermanente de gaudérios/gaúchos. Mesmo nesse caso, quando muito, tratava-se de produção simples de mercadoria, em esfera não capitalista, subordinada ao mercado local ou mundial. À medida que os gados escasseavam, aumentava a repressão e a sua busca exigia longas, custosas e 33

DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero. Ob.cit. p. 21; CASAL, Juan Manuel. El modo de producción [...]. p. 66.; MILLOT, Julio; BERTINO, Magdalena.. Historia económica del Uruguay. [...] p. 55; GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 38

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difíceis operações; o changador tenderia a alugar seus serviços aos armadores de grandes vaquerias, legais e ilegais. Em 1785, o vice-rei Luís de Vasconcelos escrevia sobre os nativos americanos do Rio Grande do Sul: “De não menos providência necessitam os índios daquele continente, a maio parte dos quais faz o excessivo número de indivíduos vagos e dispersos, que vivendo à lei da natureza, sem disciplina e sem religião, se fazem quando não autores dos delitos mais atrozes ao menos sócios de todos os crimes a que os convida uma vil e insignificante recompensa. Na campanha, eles são os que concorrem para as extorsões, furtos e contrabandos; nos campos e nos estabelecimento dos moradores, eles dão todo o auxílio para os furtos de muitos animais [...].”34 No Prata do século 16 a boa parte do 19, a separação do produtor livre das condições de produção de seus meios de subsistência dava-se quando muito em grau limitado. Entre dois conchavos em uma vaquería, changadores e trabalhadores livres sobreviviam da exploração de pequenos ranchos, com suas famílias, em terras próprias ou ocupadas, plantando rústicas roças, criando alguns animais, etc. Essas atividades podiam se dar em associação com a produção furtiva de couros e com o contrabando. O fato de produzir parte dos meios de subsistência tendia, contraditoriamente, a deprimir e a suster o valor de remuneração da força de trabalho, paga em espécie ou em moeda.35 Isto porque, por um lado, como vimos, o trabalhador não era obrigado imperiosamente a alugar seu trabalho e, por outro, não necessitava do salário para sobreviver. O gaúcho se conchavaria periodicamente, sobretudo para comprar o que não produzia; episodicamente, para formar um pequeno rancho, etc. Não podemos definir como camponesa população que apoiava marginalmente sua subsistência em agricultura 34 35

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SANTOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 29. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. 55 Mário Maestri

voltada sobretudo ao consumo familiar. Como lembram Julio Millot e Magadalena Bertino, em Historia económica del Uruguai, essa forma de existência e produção não capitalista, onde a força de trabalho do produtor direto não se transformava ainda plenamente em mercadoria, constituiu parte integrante do que poderíamos definir de modo ou forma de produção do gaúcho ou da vaquería.36 A oligarquia portuária de Buenos Aires conseguiu estabelecer sua hegemonia sobre a sociedade do interior por meio da repressão-destruição dessa forma de produção/existência, processo no qual a Guerra do Paraguai desempenhou importante papel.37

Pequenos, médios e grandes capitalistas Do ponto de vista do armador, a vaqueria constituía atividade voltada essencialmente à valorização do capital investido, com rentabilidade dependente da abundância de animais. A expedição objetivava produzir, ao concluir-se, um capital superior ao investido, através da realização da mercadoria produzida no mercado – o couro. A subjunção dessa atividade ao mercado mundial não determinava uma sua essência capitalista. O próprio comércio mundial não é decorrência da ordem capitalista dominante, tendo surgido na história nos primórdios da civilização.38 Não raro, as vaquerías eram agenciadas ou arrematadas por poderosos capitalistas, ou seja, detentores de capitais. Em 1º de março de 1702, comunicava-se à administração real que as “caçadas dos couros da Nova Colônia do Sacramento e Montevidéu” haviam sido 36 37

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Id. ib. p. 55, 90. Cf. RIVERA, Enrique. José Hernández y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Colihue, 2007. 96 p.; ROSA, José Maria. La guerra del Paraguay y las montoneras argentinas. Buenos Ayres: Hyspamérica, 1986; PEÑA, Milciades. La era de Mitre: de Caseros a la Guerra de la Triple Infamia. 3. ed. Buenos Aires: Fichas, 1975.. MANDEL, Ernest. Tratado de economia marxista. México: Era, 1972. p. 70.

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arrendadas a Manoel Lopes Faria, por seis anos, por um custo anual de sessenta mil cruzados, pagos em duas parcelas semestrais. O que excedesse aos valores correspondentes aos quintos do couro seria aplicado no “sustento dos presídios e fortificações” do sul lusitano.39 A valorização do capital empregado nas vaquerías não dependia essencialmente da apropriação pelo faenero do trabalho excedente do produtor direto (corambrero, cativo, etc.), o que permitia relativa abertura nesse relativo. Dependia, sobretudo, da enorme diferença entre o trabalho socialmente necessário para produzir couros na Europa e nas Américas. Era produto, portanto, da renda diferencial. O custo de produção do couro americano, entregue no porto europeu, era inferior ao valor de venda do produto no Velho Mundo, que exigia a remuneração da renda da terra, dos gastos de criação, do custo de extração, etc. Em inícios de 1690, o padre Antônio Sepp extasiava-se com a diferença do preço do couro nas Américas e na Europa: “Aqui, um couro sai a 15 kreuzers, que vem a ser o salário para o serviço de tirá-lo. Na Europa, no entanto, em qualquer parte, vende-se um couro de boi como este por seis e mais reichstaler.”40 O preço do couro não era determinado apenas pelo custo de produção na Europa. À medida que se sistematizava e crescia a produção americana, os terrenos e regiões europeus de produtividade inferior seriam deslocados como locais de produção do produto, um processo minorado em razão do enorme crescimento das necessidades do couro através dos séculos 18 e 19, com o desenvolvimento da Revolução Industrial, que tinha no produto matéria-prima fundamental. 39

40

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GOULART, José Alípio. Brasil do boi e do couro. Rio de Janeiro: GRD, 1965. p. 62, Cf. SEPP S. J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143; o reichstaler, moeda padrão de prata, valeria 72 kreuzers, de cobre. O couro custaria em torno de trinta vezes mais no Império Habsburgo. Mário Maestri

O custo da produção do couro americano reduzia-se aos gastos com o abate, a extração, a armazenagem e o transporte até o porto americano de exportação e, deste, até a Europa, acrescidos das taxas e impostos, quando não eram contrabandeados. Inicialmente, não havia custos de criação animal, o que assegurava a enorme rentabilidade dessa extração. Em 1711, falando dos couros produzidos no Brasil, Antonil propunha que o custo do “meio de sola” (couro seco) seria 1$980 réis – ou seja, 1$500 o couro; 340 réis de direitos e o restante gastos com o transporte até Lisboa. O couro em cabelo, por sua vez, custaria 2$100 em Lisboa.41 Em Brasil do boi e do couro, José Alípio Goulart anota: “Em Lisboa, em fins do século XVIII, os couros secos valiam: peça na base de 32 quilos, a 65 réis por libra, 2.080 réis; frete do Brasil, 260 réis; e despesas de desembarque, 140 réis, totalizando 2.480 réis.” “O couro salgado valia no Brasil de 2.300 a 2.400 réis por peça de 31 a 32 libras; em Lisboa, valor posto a bordo em porto brasileiro, 2.350 réis; frete, 260 réis, e despesa de embarque (sic), 160 réis, somando 2.770 réis.”42 Segundo Simonsen, o preço do transporte dos couros, em 1757, por alvará real, da Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro, era de trezentos réis, para couro em cabelo, e de duzentos réis, para meio de sola.43

O corambre na Banda Oriental nos séculos 17, 18 e 19 O gado foi introduzido por espanhóis na costa de San Gabriel (Soriano), na primeira metade do século 17, em momento em que os charruas dominavam a Banda Oriental do Uruguai. Então, as atuais costas uruguaias eram visitadas 41

42 43

ANTONIL, a. J. Cultura e opulência do Brasil. 2 ed. São Paulo: Melhoramentos; Brasília, INL, 1976. p. 203. Cf. GOULART, O Brasil [...], p. 44. SIMONSEN, R.C. Apud SIMONSEN, R.C. História econômica do Brasil. Brasília: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 169.

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esporadicamente por espanhóis, portugueses e europeus para a extração de madeira, de couro, de graxa e de sebos. Em 1626, jesuítas cruzaram o rio Uruguai e penetraram no noroeste do atual Rio Grande, fundando dezesseis missões, sobretudo com guaranis. Em 1634, 1500 cabeças de gado foram trazidas para conformar os rebanhos das Missões do Tape. Os animais foram abandonados quando os missioneiros retiraram-se, a partir de 1637, por causa dos assaltos dos paulistas.44 Em razão da benignidade da região, os gados se multiplicaram, atravessando os rios Jacuí-Ibicuí, em direção do sul, para formar a imensa vaquería do Mar, entre o oceano e os rios Jacuí e Negro. Com uma estimativa de um procreo de vinte por cento para os rebanhos chimarões, em inícios do século 18 haveria em torno de cinco milhões de animais ao norte e ao sul do rio Negro, inicialmente explorado sobretudo pelos nativos pampianos – charruas, minuanos, etc. –, que aprenderam a cavalgar e passaram a apoiar sua subsistência na caça ao gado, pela carne e pelo couro, em uma quase permanente disputa com os guaranis missioneiros.45 Como proposto, em 1680 os portugueses fundaram a colônia do Sacramento, no extremo sul da Banda Oriental. Encravada em possessões espanholas segundo o Tratado de Tordesilhas (1494), a feitoria armada buscava retomar, por meio do contrabando, os rentáveis laços comerciais que os luso-brasileiros haviam mantido com a região, sobretudo através de Buenos Aires, durante a União Ibérica, como já dito. Os manufaturados ingleses, as mercadorias chegadas das costas do Brasil e os trabalhadores africanos escravizados eram pagos com a valiosa prata do Peru. Como também 44

45

62

Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. Ver. e melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II; MONTOYA, Padre Antônio Ruiz de. Conquista espiritual: feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas Províncias do Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 55. Mário Maestri

já proposto, na expedição que fundou a feitoria chegaram sessenta cativos, 48 pertencentes a dom Manuel Lobo, para serem vendidos aos proprietários da região, sedentos de braços. Em agosto de 1680, com a queda de Sacramento em mãos espanholas, “53 negros, em sua maioria escravos”, terminaram em Buenos Aires, ao igual do ocorrido com o desventurado comandante da expedição.46 Essas trocas eram feitas por barcos e lanchões que interligavam as duas margens, em geral sob a complacência das autoridades de Buenos Aires.

Apoio nativo As imensas mandas de gado da Banda Oriental foram inicialmente descuradas pelos portenhos em razão da riqueza de animais na interlândia de Buenos Aires. A caça dos animais pelo couro mostrou-se muito logo importante fonte de renda aos lusitanos recém-chegados, uma operação facilitada pelo apoio recebido, desde os primeiros momentos, por parte dos nativos charruas, que abasteceram Sacramento, sobretudo em carne, em troca de roupas, ferramentas e outros produtos. Mais tarde, trocariam esses bens por couros.47 Os couros transformaram-se em importante forma de pagamento das mercadorias compradas na feitoria. A Colônia transformou-se em importante porto de exportação da produção corambrera bonaerense, limitada fortemente pelas restrições e gravada pelas taxas metropolitanas. Em 1695, o porto do Rio de Janeiro enviava para Portugal cinco mil couros chegados da Colônia, obtidos no Prata e no atual Rio Grande do Sul – quantidade talvez média das exportações nesses anos. Segundo C.R. Boxer, as exportações de couro do Rio de Janeiro para o Reino

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Cf. MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. v. I. p. 45. Id. ib. p. 73

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teriam variado de quatrocentos a quinhentas mil unidades, chegadas sobretudo das possessões espanholas.48 Dom Francisco Naper de Lencastre, governador de Sacramento, teria enviado, em fins do século 17, os primeiros 142 couros para o Reino, determinando, por isso, em 1690, a decisão da administração lusitana de cobrar apenas o dízimo sobre eles, a ser empregado no pagamento da manutenção (soldo) daquela conquista. O baixo valor e o destino dos capitais obtidos pela taxa assinalariam o desconhecimento das possibilidades da mercadoria. Em 6 de dezembro de 1691, ao escrever ao rei, destacando as importantes riquezas animais da região, Lencastre assinalava que uma fragatinha que subira o rio Santa Luzia matara facilmente duzentas rezes para o abastecimento dos moradores. A maior dificuldade seria a falta de cavalos. Em janeiro de 1694, em carta ao soberano, entre as grandes razões para a conservação da Colônia destacava já a produção de couros: “Há mui considerável o grande interesse que pode ter na courama que se fizer nestas campanhas, onde não será possível nunca extinguir o gado e se 6.000 couros que mandei fazer e vão embarcados neste navio [...].”49 A carta do governador registrava que a produção de couro fazia-se ainda de forma não sistemática. Segundo ele, uns quatorze caçadores penetravam em pequenos barcos na campanha, servindo-se de rios e arroios, navegáveis por de 18 a 24 km., para abater o gado a tiros de “espingarda”. As carnes e os couros eram carregados nas costas até as embarcações e, destas, para a Colônia. Lencastre lembrava que com suficientes “cavalos e carros” far-se-iam de vinte a 25 mil couros por ano, para o proveito da Coroa, dos soldados e do abastecimento em carne da povoação. Em 1695, o governador mandara matar mil vacas, distribuindo as carnes entre 48 49

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SANTOS., Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 19. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 112, 114-15, 117. Mário Maestri

os moradores da cidadela e enviando os couros crus ao Rio de Janeiro, aos poucos, em razão das dificuldades de transporte. 50 Em documento de 1697, o provedor-mor da Fazenda real da capitania do Rio de Janeiro assinalava que navio chegara da Colônia trazendo quase quatro mil couros, 1.399 de touros e mil de vaca. Não havia, portanto, qualquer preocupação com o respeito às matrizes.51

Riqueza animal A caça aos animais se generalizou. Expedições privadas, com homens livres e escravizados, em embarcações ou carretas, penetravam o interior para caçar gado pela carne e, sobretudo, pelo couro, sebo e graxa. Em janeiro de 1698, nativos missioneiros atacaram alguns espanhóis e mataram “um sargento” da Colônia “com sua comitiva de negros e um mulato”, que caçava nos campos vizinhos. Esses ataques se repetiriam nas décadas seguintes. Em inícios dos anos 1720, nativos missioneiros e espanhóis teriam atacado e tomado “nas proximidades da Colônia umas carretas pertencentes ao capitão Cristóvão Pereira de Abreu, que seus escravos traziam com frutos do país para o interior da Colônia”.52 Registrem-se as repetidas referências a cativos participando em operações produtivas nos aforas da cidadela. Com a sistematização das exportações de couro, a Coroa portuguesa regulou mais estritamente seus direitos. Carta régia de 24 de setembro de 1699 determinava que fossem cobrados 20% (quinto) sobre os couros enviados da Colônia para o Rio de Janeiro, onde, segundo instrução do mês seguinte, deveriam ser beneficiados. Em 1º de março de 1702, o contrato dos quintos dos couros foi adjudicado, por sessenta mil cruzados, por seis anos, a Manoel Lopes de Farias. Em 1729, 50 51 52

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 118, 124. Cf. GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 127, 182.

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o direito coube a João Rodrigues da Costa, por três anos, sob o pagamento de quinhentos réis por couro exportado. Ao terminar o triênio, a cobrança dos quintos coube a João Álvares Trique, por 550 réis o couro de touro e 400 o de vaca e novilho, o que assinalava, mais uma vez, a despreocupação oficial com a manutenção e expansão dos rebanhos. 53 A Coroa espanhola seguia atenta o ativismo dos lusitanos na margem oriental do Plata, contrabandeando mercadorias e dizimando manadas que considerava suas. Em 1721, dom Bruno Zabala escrevia ao soberano espanhol “comunicando que, mandando uma forte partida de índios (das missões) percorrer a costa até Montevidéu”, encontraram em um “rancho 1.500 couros secos”, que haviam sido queimados, sem que se pudesse apreender um “bergantim” que partira da enseada para a Colônia. Na viagem de retorno, a partida encontrara um “outro rancho”, com 2.500 couros. Dois anos mais tarde, o soberano era informado de que o navio Nossa Senhora Mãe de Deus e São José partira, em 6 de fevereiro, da Colônia para o Rio de Janeiro, onde chegara em 6 de fevereiro, para atracar, finalmente, em 8 de maio em Lisboa, com uma carga de “onze mil couros secos, trinta mil pesos em dinheiros e dois mil marcos em prata”. 54 Em fevereiro de 1726, aportara na Colônia um comboio com dez navios abarrotados de mercadorias, trocados por 400.592 couros secos, além do pagamento em prata e moeda. Uma enorme parte desses couros teria sido produzida pelos nativos charruas e por moradores de Buenos Aires. Em inícios do século 18, estimava-se em quatrocentos espanhóis, com dois mil cavalos, ocupados na caça ao couro na Banda Oriental, em grande parte a serviço dos portugueses da Colônia.55 Em A colônia do Sacramento, o historiador Rego Monteiro lembra que, em meados dos anos 1720, o couro fresco 53 54 55

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Id. ib. p. 131, 198. Id. ib. p. 182-184. SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 62. Mário Maestri

das rezes mortas para o consumo valia uma pataca, ou seja, 320 réis. Portanto, o preço da própria vaca. Os couros eram levados ao Rio de Janeiro em todos os navios que aportavam na Colônia. Em 1726, uma “sumaquinha” partira da Colônia com 1.404 couros de touros, para aquela destinação, sob a apreensão geral, por causa da fragilidade da embarcação. Na mesma época, uma charrua, com 10.210 couro de touros e 127 de vacas encalhara no banco Inglês, cemitério de diversos navios lusitanos.56 À produção de couros e ao contrabando, os lusitanos de Sacramento agregavam a exportação de mulas de Santa-Fé e de outras regiões do Plata para São Paulo, inicialmente através do caminho da Praia. Também carnes salgadas eram enviadas para a costa do Brasil.57 Em 1741, o inglês John Campbell referia-se ao contrabando entre a Colônia e Buenos Aires: “[...] há uma terceira classe de comércio ilícito do qual posso falar perfeitamente. Esse é efetuado com os portugueses, os quais [...] dominam a margem oposto do Rio da Plata. Dali eles aproveitam as ocasiões para enviar, de tempos em tempos, pequenas embarcações carregadas não apenas com seus próprios gêneros, mas com os que recebem da Europa [...].”58 A fundação de Montevidéu e o estabelecimento efetivo dos espanhóis na Banda Oriental demarcariam o fim dos anos de opulência da cidadela lusitana. Em A colônia do Sacramento, de 1937, Jonathas da Costa Rego Monteiro lembra: “Terminou o período áurea da Colônia do Sacramento, jamais voltaram a ter seus arredores aquela riqueza de produção, que fazia dela a cobiça espanhola a fiscalização pelo porto de Montevidéu continuou, escassas se tornaram [...] as suas transações de courama, grande fonte de sua riqueza.” Em verdade, a cidadela transformara-se em porto livre no Prata, 56 57 58

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 194-196. Id. ib. p. 197. GOULART, O Brasil do boi e do couro, p. 40.

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através do qual se exportavam não menos do que trezentos a quatrocentos mil couros anuais.59

Os espanhóis na banda oriental A despreocupação dos espanhóis de Buenos Aires com a Banda Oriental modificar-se-ia, radicalmente, desde o início do século 18, sobretudo em virtude da quase total exaustão dos gados selvagens das regiões acessíveis do interior.60 E, como vimos, as compras de mercadorias inglesas e lusobrasileiras eram pagas comumente com couros, enviados a seguir da Colônia para o Rio de Janeiro.61 A produção corambrera por castelhanos na Banda Oriental passou a ser feita por grandes operações ou por espanhóis, crioulos, mestiços, charruas, negros, guaranis, desgarrados, etc. Informação de finais do século 18 propunha que talvez mil changadores produzissem, em partidas, couros clandestinamente para serem negociados na Colônia.62 O historiador argentino Emílio A. Coni lembra sobre a aliança entre os portugueses de Sacramento e os vagamundos da Banda Oriental: “Don Francisco de Alzaybar, empresário de vaquerías [...]” “[...] servirá de freno a impedir la extracción de dichas pieles por aquellos hombres que los introducen a los Portugueses que generalmente llaman changadores los cuales no tienen pareja segura par su existencia pues unas veces se hallan en la Colonia donde es su sagrado y asilo y otras entran en la campaña con buen arréo de caballos y como ladrones de aquellos campos hacen las faenas para los portugueses.” 59

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MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego. A colônia do Sacramento. 1680-1777. Porto Alegre: Globo, 1937. p. 331, 338 DOTTA, Mario; FREIRE, Duaner; RODRIGUEZ, Nelson. El Uruguay ganadero. Ob.cit. p. 23 MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 52. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 109, 114. Mário Maestri

Em 1738, o alcalde de Santa Hermandad de Montevidéu registrava que operação na campanha necessitava de, no mínimo, quinze vizinhos e igual número de soldados, em virtude de ameaça posta pelos changadores, que “se han pasado a los portugueses” e que levaram “sus caballadas para hacer corambre entre los portugueses”.63 Entre os principais changadores da Banda Oriental, comandantes de partidas de gaúchos vagos, encontravam-se Pedro Ansotegui, don Pedrito; José Jará, Pepe el Ladrón; José de Castro, Pepe el Mellad; os portugueses Manuel Cabral e Francisco Pintos; os espanhóis Salvador Gomes e Julián Medina; os índios Gregório e Juan Vera e o negro Canga.64 Destaque-se, mais uma vez, a presença de afro-descendente na produção de couros, agora como chefe de changadores. Como vimos, desde os momentos iniciais da fundação da colônia do Sacramento, os charruas, inimizados com os guaranis missioneiros, apoiaram os portugueses e realizavam faenas de couro, em troca de “bayeta, sombreros, espadas, virretes, tabaco e aguardiente”, como denunciava autoridade bonaerense enviada à Banda Oriental para controlar a produção clandestina de couro, em 1721.65 Nessa atividade, com destaque para as regiões nortes da Banda Oriental, participavam habitualmente luso-brasileiros chegados em lanchões, através da Lagoa Mirim, do rio Cebollatí, Tacuarí, Yaguarón e, sobretudo, de Rio Pardo, na Depressão Central do Rio Grande do Sul.66 A descoberta da rica população animal da Banda Oriental, no contexto da expansão da atividade econômica e das necessidades de couro da Europa desde inícios do século 18, ensejou a atração de aventureiros de toda a região do Prata. Como proposto, espanhóis, portugueses, mestiços, africanos 63 64 65 66

Apud AMARAL, Anselmo F. Os campos neutrais. Porto Alegre: 1973. p. 54. PINTOS, De las vaqueiras [...], p. 115. Id. ib. p. 101-112. Id. ib. p. 116

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e negros libertos, etc. empregaram-se na extração de couro, de forma isolada, como membros assalariados das vaquerías legais e clandestinas. A caça ao gado para a produção de couros exerceu também poderosa atração nos charruas e nos missioneiros, ali chegados em grande número após a derrota que sofreram na chamada Guerra Guarani (1753-1756). Crescentemente integrados ao comércio internacional pelo capital mercantil, “indios puros aculturados o mestizados” desempenham-se como “changadores, trabajando como peones en vaquerías o estancias, o incluso como poseedores o propietario”.67

Mudando de banda Na segunda metade do século 17, a intensificação da retirada de couros ensejou que os gados se internassem nos pampas da Banda Ocidental do Uruguai, esgotando as reservas nas regiões controladas por Buenos Aires. “Las vaquerías adquieren el carácter de expediciones armadas, indispensables para afrontar los peligros del indio al perder contacto con la zona poblada. En 1688 documentos de la época sostienen que a 20 leguas (uns 130 km) de la ciudad apenas si hay ganado, y al año siguiente prohíbese las vaquerías por 6 años argumentando que es necesario recorrer 70 leguas (mais de 460 km) para encontrar vacunos en cuantidad.”68 Desde inícios do século 18, os gados das regiões meridionais da Banda Oriental começaram a ser explorados por vaquerías organizadas por moradores de Santa Fé e Buenos Aires, comumente a serviço da Colônia, ao passo que os do norte eram explorados sobretudo pelos nativos missioneiros, como veremos. Essas expedições arrebanhavam igualmente gados para repovoar campos com as reservas animais já esgotadas. Em agosto de 1716, o cabildo de Buenos Aires recebia 67 68

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MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24. GIBERTI, Historia económica de la ganadería argentina, p. 36. Mário Maestri

a denúncia de mais de quatrocentos santafesinos realizando vaquerías clandestinamente na Banda Oriental. A partir de 1718, segundo o historiador Emílio A. Coni, ao se extinguirem os gados selvagens nas terras entre Buenos Aires e o rio Salado, todas as vaquerías passaram a ser feitas quase exclusivamente na Banda Oriental, através de licenças onerosas concedidas a “empresários”, sob fiança, sempre pelo cabildo de Buenos Aires, que cobrava pelas concessões.69 Os direitos exigidos aos asienteros e registreros eram de um terço dos couros produzidos. Em meados do século 18, o jesuíta José Cardiel descreveu, do ponto de vista das Missões, a enorme atividade dos corambreros chegados à Banda Oriental desde a outra margem do Plata: “Arrojándose a porfía a vaquear multitud de cuadrilla, mataron enorme cantidad de vacas, cuyas peles, lengua y sebo, mientras una larga seria de carretas las transportaba para entregarlas a los marcadores ingleses que residían en Buenos Aires, quedaban en la vaquería otros trabajadores preparando carga para nuevo viaje. De este modo, en término de diez años, se acabaron, no solo miles, sino millones de vacas que había.”70 Nesses anos, o jesuíta referia-se, sobretudo, às terras ao sul do rio Negro. Entretanto, ao norte do rio Negro, região que pertencia, em parte às Missões e escapava, em geral, à administração e ao controle efetivo das autoridades espanholas, a caça ao gado e ao couro era praticada por gaúchos, changadores e nativos, isolados ou em grupos, que vendiam os couros aos portugueses ou aos corsários ingleses, franceses, holandeses. Essa região seria a grande pátria do gaúcho platino mais tar69

70

Cf. PINTOS, Anibal Barrios. De las vaqueiras al alambrado. Montevideo: Nuevo Mundo, 1967. p. 95. CARDIEL, padre José Cardiel. “Costumbres de los Guaraníes”. Historia del Paraguay desde 1747 hasta 1767. Trad. Padre Pablo Hernández. Madrid: General de Victoriano Suárez, 1918. p. 483. Apud CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 39.

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de, importante reduto das forças artiguistas na luta fracassada pela independência política e social dessas paragens.71 Era habitual que faeneros espanhóis trabalhassem clandestinamente para os portugueses do Sacramento e espanhóis de Buenos Aires, ocorrendo o mesmo, a seguir, com Santa Fé, após 1708. O sentimento dos jesuítas para com o saque dos rebanhos das vacarias compreende-se a partir da dependência, sobretudo inicial, das Missões da carne e dos couros dos animais. Segundo o padre Antonio Sepp, em 1698 apenas uma aldeia jesuítica consumiria em alimentação cinquenta mil animais em um ano, o que era, certamente, um exagero – as 26 reduções consumiriam, se o dado fosse certo, anualmente, em torno de um milhão e trezentos mil animais! O mesmo jesuíta assinalava que, naquele ano, os navios da ordem teriam exportado para a Espanha trezentos mil couros, o que era, certamente, mais factível!72

Rincones A sistematização das operações levara a que a produção corambrera conhecesse verdadeiro salto de qualidade, de atividade nômade para prática centrada em locais precisos, dotados de instalações semipermanentes e permanentes. Sobretudo na Banda Oriental, era habitual que os corambreros embretassem grandes manadas de gados selvagens em rincões formados por arroios, rios, lagoas, etc., onde mantinham estabelecimentos de extração de couro, com ranchos, em geral de couro, barracões, estaqueaderos e currais. Muitas dessas regiões terminariam sendo identificadas pelo nome dos faeneros que as exploraram habitualmente. “Algunos de estos faeneros dieran sus nombres propios a los parajes donde rea71 72

72

Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 51. SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1980. p. 143. Mário Maestri

lizaban sus vaquerias, tales como los de Vera, Jofré (Cufré), Toledo, Pando, Maldonado, Rocha, Garzón, Narvaez, Polanco, Navarro, don Carlos, Pavón, etc.”73 Em História de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971), o historiador argentino Anibal Barrios Pinto lembra que os portugueses “habían levantado hacia 1694 los primeiro establecimentos corambreros semipermanentes em la banda septentrional del Río de la Plata. En total, unos 50 ranchos sobre el Río del Rosario y otra cantidad similar en Santa Lucía, a los que resguadaban con sus correspondientes estacadas del posible ataque de los indígenas o de los animales slevajes.”74 Os índios das Missões organizavam igualmente grandes vaquerias na Banda Oriental, para recolher gados e couros para as Missões do Alto Uruguai. Os animais eram também caçados nas importantes vaquerías del Mar, formadas entre os rios Jacuí, no atual Rio Grande do Sul, e o rio Negro, no atual Uruguai. Piratas ingleses, franceses e holandeses desembarcavam também na costa atlântica do atual Uruguai na busca dos mesmos produtos, como assinalado. A Banda Oriental seguiu desconhecendo ocupação estável, à exceção sobretudo da Colônia do Sacramento. Essa realidade começou a ser modificada apenas com a fundação de Montevidéu, em 1724, e a consequente distribuição de terras na sua redondeza, para a organização de chácaras e estâncias. Porém, até os anos 1760 as regiões realmente controladas pelos moradores daquele do burgo não excediam “una franja menor de 100 kilómetros que iba desde el arroyo Maldonado en el Atlántico hasta el río San Salvador en su desembocadura en el río Negro”.75 73

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CASTELLANOS, Alfredo. Breve historia de la ganaderia en el Uruguay. Montevideo: Banco de Crédito, 1972. p. 143. PINTO, Anibal Barrios. Historia de la ganaderia en el Uruguay (1574-1971). Montevideo: Talleres Gráficos de la Comunidad del Sur, 1973. p. 31. CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha: o boi e o poder. Porto Alegre: IEL: Corag, 2005. p. 67. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 24.

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A escassez de gados alçados, no contexto da expansão do mercado europeu, ensejou as primeiras estâncias de criação de gado no Prata. Não raro, os accioneros e faeneros estabeleceram-se como criadores, simplesmente ocupando ou requerendo as terras que visitavam para suas atividades ou nas quais haviam estabelecido seus acampamentos. “Los emplazamientos das vaquerías, frecuentados la mayoría de las veces por los mismos accioneros, fueran tomando el nombre de éstos; muchos se radicaron definitivamente y comenzaron a amansar ganado [...].”76 Com o desenvolvimento da economia corambrera e, a seguir, criatória, diante da carência e carestia da mão-de-obra livre, pelas razões acima relatadas, Montevidéu se transformou em porto escravista e a população africana escravizada se desenvolveu nas zonas urbanas e também no interior. Em 1805, dos 9.359 moradores de Montevidéu, 30% seriam africanos ou afro-descendentes, um perfil demográfico que sofreria importante transformação a partir da onda imigratória iniciada em 1830.77 A transição da atividade extrativista para a produtiva, por mais extensiva que fosse, colocava a questão da propriedade dos gados, delimitada pelas fronteiras dos territórios ocupados. Isso determinou que as fronteiras das propriedades passassem a ser controladas por posteiros e delimitadas “mediante zanjas o cercos de pepsinas”. Essa transição teria ocorrido “alrededor de 1720 para la Banda Oriental y 1728 para la Ocidental, con el repartimiento de ‘suertes de estancias’ por Pedro de Millán, sobre el arroyo Pando [...]”,78 o que não quer dizer que nas regiões periféricas e mais distantes, como a Banda Norte do Uruguai, as operações não seguissem sendo realizadas, sob licença ou não, por décadas, além

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CASAL. El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67. Cf. MILLOT; BERTINO, Historia económica del Uruguay, 1991. p. 27. CASAL, El modo de producción colonial en el Río de la Plata, p. 67 Mário Maestri

desses anos, em terras tidas como públicas ou em imensas propriedades, verdadeiras reservas de gado chimarrão.79

A faina de couros no Rio Grande do Sul no século 18 Em 1626, jesuítas cruzaram o rio Uruguai e fundaram missões a partir do noroeste do atual Rio Grande do Sul, sobretudo com populações guaranis. Em 1634, importaram 1.500 bovinos para formar os rebanhos dos dezesseis pueblos do Tape. Em 1636-38, os animais foram abandonados pelos missioneiros, que se retiraram da região, assaltados pelos paulistas. O gado multiplicou-se, atravessou os rios JacuíIbicuí, formou a enorme vacaria do Mar, entre o oceano e os rios Jacuí e Negro, como visto. A crise açucareira levou a Coroa portuguesa a retomar a procura das minas e lançar novas iniciativas econômicas. Em 1680, fundou a colônia do Sacramento, para retomar as trocas de cativos, manufaturados e produtos da costa do Brasil pela prata andina, permitidas pela Coroa hispânica até o fim da União Ibérica, como também já proposto. Os couros trazidos pelos espanhóis de Buenos Aires ou do interior da banda oriental do Uruguai por portugueses, espanhóis ou charruas garantiram o sucesso da cidadela. Atraídos pelos portugueses, nativos charruas conduziam animais para a Colônia. Em 1682, os missioneiros retornaram ao Rio Grande para barrar o saque das vacarias e o expansionismo lusitano. Os Sete Povos assentaram-se fortemente na extração animal, inicialmente, e na sua criação, a seguir. Apenas com a regressão do pastoreio fortaleceu-se a agricultura missioneira. Inicialmente, a exploração das vacarias pelos pueblos deu-se sob licença dos padres superiores, para não esgotar os gados. Os missioneiros jamais praticaram o abate geral de animais pelo 79

Id. ib. 68.

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couro, sebo e graxa, deixando as carcaças nos campos, como os corambreros e nativos, e trabalhando sobretudo para Sacramento e Buenos Aires, como assinalado.80 Como vimos, nos anos 1690, exagerando enfaticamente, o padre Sepp escrevia que, após dois meses, os vaqueiros retornavam com “cinqüenta mil vacas”, para a “a alimentação” anual de sua missão. Contava também que, nos navios da ordem, partiam trezentos mil couros, de “touros mais crescidos” e não de “vacas”, certamente para manter a “procriação indispensável”. Preocupados com a perenidade dos rebanhos, os missioneiros fundaram, em 1700, a vacaria dos Pinhais, no Planalto, nas margens do rio Pelotas.81 Quando os gados das vacarias do Mar e dos Pinhais foram esgotados pelos coureadores e tropeiros, fogueados pela descobertas das minas (1695) e pela fundação da vila de Rio Grande (1737), os vaqueiros das missões passaram a criar animais nas estâncias dos diversos pueblos. As grandes estâncias missioneiras, delimitadas por rios, riachos, matas, etc., subdividiam-se em sedes e postos, com aldeias de dez a doze famílias, povoados por posteiros, que domesticavam e tratavam os animais nos rodeios e cuidavam que não fugissem. No Planalto, próximas das missões, estâncias menores invernavam o gado trazido pela Boca do Monte (atual Santa Maria) e pelo Boqueirão (atual Santiago).82

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Cf. PORTO, Aurélio. História das missões orientais do Uruguai. 2 ed. rev. e melhor. pelo p. L.G. Jaeger. Porto Alegre: Selbach, 1954. I e II. Cf. SEPP S.J., padre Antônio. Viagem às missões jesuíticas e trabalhos apostólicos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, EdUSP, 1980. p. 143. Cf. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Sulina, 1978; Mário Maestri

Em busca do Rio Grande Na segunda metade do século 17, paulistas, lagunenses, sacramenteneses, etc., entravam em lanchões pela barra do rio Grande para trocar cativos, couros, etc. com os nativos e produzir algum charque nas margens da lagoa. Desde os anos 1720, foram estabelecidas estâncias em Viamão e ao longo do Estreito – Tramandaí, Osório, Torres, etc. – para apoiar o envio, desde a colônia de Sacramento, sobretudo de mulas, inicialmente, para Laguna, em Santa Catarina, e, a seguir, pelo “Caminho de Viamão”, através do nordeste do Rio Grande do Sul. A produção de couros, graxa e sebo foi igualmente praticada pelos primeiros estancieiros. A valorização dos gados da região esteve entre as razões avançadas na defesa do estabelecimento de uma colônia nas margens do rio Grande. Em 1726, o governador de São Paulo, Rodrigo César de Meneses, lembrava que uma povoação naquela região permitiria a extração de gado capazes de sustentar todo o Brasil e que pelo rio Grande podiam “entrar embarcações grandes a carregar courama para o Reino enquanto se não cultivavam açúcar e fumo por ser a terra a mais fértil’”.83 No ano seguinte, Davi Marques escrevia sobre o interesse de ocupar aquela paragem: “As utilidades que a Fazenda Real pode ter neste posto são o domínio da campanha; o negócio com os catelhanos, índios tapes e minuano; a courama da campanha; os dízimos dos lavradores e criadores; [...] o gado e cavalgaduras que poderão entrar para toda a capitania de São Paulo, abrindo-se o caminho para os campos de Caraituva [...]..”84 Em fevereiro de 1737, o brigadeiro José da Silva Pais (1679-1760) chefiou expedição que, após socorrer Sacramento, sitiada pelos espanhóis, fundou na margem meridional do rio 83 84

MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 291. PEREIRA, Davi Marques. “Relação das vilas da costa do mar do Rio Grande até a praça de Santos”. A.H.U. Rio de Janeiro, caixa 4 (1726-1727), apud SANTOS. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 15.

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Grande o presídio (sede de presidência) de Jesus-Maria-José, onde se instituiu a Comandância Militar do Rio Grande de São Pedro, dependente do Rio de Janeiro, com autoridade apenas sobre as terras ao sul da barra do rio Grande. Os campos de Viamão e o Estreito dependiam da capitania de São Paulo. Duzentos nativos foram trazidos de São Paulo para trabalhar na fundação da povoação. Nativos apoiaram igualmente a construção das fortificações no porto, no Estreito, em São Miguel, etc. A remuneração e o tratamento dos nativos seriam tão abusivos que, já em janeiro de 1738, 34 nativos e quatro nativas fugiam das fortificações, assinalando o status semisservil que conheciam. O estabelecimento foi apoiado pelas comunidades minuanas que forneciam sobretudo gado. Silva Pais mandou também trazer da Colônia 150 soldados “adestrados nas lides campeiras, tais como domações, rodeios, prepara de charque, etc.”, para introduzir a guarnição nos trabalhos do campo, muito importantes em virtude da fundação das estâncias reais de Bojuru e Capão Comprido.85

Couros & Couros As operações de corredorias de gado para alimentar as populações locais e, sobretudo, a faina de couros, segundo parece, praticadas pelos moradores que possuíam algum capital, aceleraram-se, constituindo-se importante atividade nos anos seguintes à fundação de Rio Grande. No geral, a prática constituía uma extensão das vaquerías realizadas nos pampas de Buenos Aires, de fins do século 17 e, sobretudo, na Banda Oriental, por portugueses, charruas, etc. a serviço da colônia do Sacramento, desde 1680, e, a seguir, também por espanhóis, como assinalado. Como já dito, ela exigia importantes capitais. 85

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SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 12. Mário Maestri

Em 5 de julho de 1738, Manuel Gomes Pereira relatava ao governador André Ribeiro Coutinho que o sertanista Cristóvão Pereira de Abreu entregara-lhe sessenta vacas, por 240 réis a cabeça, compradas ao “gentio” minuano, pretendendo receber dos cofres públicos, por outras, 480 réis, já que esse seria o preço pago “naquele porto”. O oficial notificava que, apesar de os minuanos “já se acham alguma coisa retirados pelo rigor do inverno e por serem” tempos em que realizavam seus “tupambaés” (coisas religiosas), “nunca de todo deixam de vir alguns”, trazendo “mais éguas do que cavalos” para trocá-los por mercadorias.86 No livro de registro dos atos dos primeiros comandantes militares do presídio do Rio Grande de São Pedro de 1737 a 1753, estão assinalados diversos requerimentos e instruções administrativas relativas às operações de “fainas de couro” e “corredorias” de gado. A precocidade do primeiro registro, de fins de 1737, demarca apenas a normalização de uma atividade anterior à fundação do presídio. Efetivamente, talvez em fins de novembro ou inícios de dezembro de 1737, José da Costa pedia licença para mandar “pessoas” fazer “suas fainas de couros nestas campanhas” e “corredoria de gado vacum”. Requeria a facilidade de satisfazer aos “quintos reais” (20%) diante de “oficial” designado, no momento de “carregar (os couros) em a sua embarcação ou em outra qualquer”, certamente nas margens da lagoa, para serem transportados “por esta barra fora”, isto é, pelo porto do rio Grande, para o Rio de Janeiro. O pedido devia-se à “descomodidade e prejuízo” decorrentes da obrigação de “descarregar as embarcações” na cidadela, “depois de estarem” já “abarrotadas”, para a contagem dos couros. Pedia também que, ao “seguir viagem” para seu destino, lhe fosse passada “certidão” de pagamento dos quin86

Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. v.1. Porto Alegre: IEL/SEC/ DAC, 1977. p. 70

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tos reais e das taxas pagas sobre outras mercadorias”. A licença concedida foi lançada em 9 de dezembro de 1737, desde que os quintos sobre os couros e charques exportados fossem pagos no porto de Rio Grande e fosse apresentada “certidão” sobre o gado que entrasse pela “Guarda do Arroio de Taim”.87

Exigências abusivas Em inícios de 1738, o licenciado Sebastião Gomes de Carvalho, em associação com o tenente Antônio Gonçalves, extraiu oitenta “couros de touros” desde as margens da lagoa Mirim, transportados para Rio Grande pela “falua real”– barcos de “boca aberta, proa e popa afiladas”, de “dois mastros e velas latinas triangulares”, usados em rios, lagoas, etc. Sebastião de Carvalho protestava junto ao governador, porque o comissário da expedição lhe cobrava 320 réis pelo transporte de cada couro, preço que dizia pedirem “embarcações particulares” para levá-los do Rio Grande ao Rio de Janeiro. Sebastião de Carvalho reclamava, igualmente, que aquele oficial exigia o pagamento do transporte também sobre os couros entregues em pagamento aos quintos reais, nas margens da lagoa. Em resposta ao pedido de esclarecimento de André Ribeiro Coutinho, o comissário da expedição respondeu que era prática quintar os couros em Rio Grande e que se cobrava, tradicionalmente, por aquele transporte, 240 réis por couro de touro. Jurava não ter pedido aquela soma ao licenciado...88 Por sua vez, Francisco Lopes da Silva e o guarda-mor Antônio Gonçalves oficiavam propondo terem obtido licença para mandar, em setembro ou outubro de 1738, canoa para as margens da lagoa Mirim, de onde voltara “carregadas” de couro, em meados de dezembro – um “faena” de três a quatro meses, portanto. Pretendendo fazer o mesmo, novamente 87 88

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Id. ib. p. 46. Id. ib. p. 58 Mário Maestri

sem se servir do “serviço das embarcação” real, requeriam que lhes fosse dada livre passagem pelo sargento que governava aquela guarda. O governador Coutinho acedeu ao pedido, em novembro, lembrando que a canoa não deveria “se apartar jamais da costa que correr pelas partes das nossas terras, desde o arroio de Thay (Taím) até a entrada do Rio de São Miguel”.89

Gado e couros escassos O litoral rio-grandense e as margens das lagoas são terras pobres, incapazes de sustentar grande número de cabeças de gado, apesar da salinidade de seus pastos, apreciados pelos animais. Muito logo, os gados da região começaram a extinguir-se, dificultando a própria alimentação das tropas e dos moradores de Rio Grande, o que obrigou o governador a proibir, parcial ou totalmente, as “couramas” na região, permitindo apenas a captura de gado para o corte. Nesse sentido, em dezembro de 1738, João de Távora afirmava que não havia mais gado, já que há dois meses sua “tropa” e as demais dedicavam-se a “correr vacas”, em razão de o “bando” do governador proibir a “faina de couros”. Como João Távora tinha crédito na praça, que só podia ser pago com “trabalho de campo”, rogava que pudesse “ocupar os peões seus devedores em fazer alguns couros”. Segundo a informação fornecida pelo comandante da guarda do Chuí ao governador, que anuiu ao pedido, havia poucas vacas e touros, que andavam “levantados”, rendendo, portanto, pouco as “corredorias”.90 Em 22 de dezembro de 1738, procurando garantir reserva de um gado que se esgotava, junta sob a presidência do governador André Ribeiro Coutinho decidia que “desde a Guarda do Xueu (Chuí) e Forte de São Miguel até os passos de Tehim (Taím), Albardão e Mangueira pelas margens do 89 90

Id. ib. p. 75. Id. ib. p. 76.

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mar e Lagoa de Merim, se não trabalhe mais na faina dos couros nem da corredoria das vacas [...], nem haja tropa alguma no dito campo, nem se consentirá mais demora de peões ou outra qualquer pessoa que há de pernoitar nas marchas que se fizerem deste Estreito para os nossos limites e destes para o Estreito [...].”91 Porém, segundo parece, a produção clandestina de couro seguiria e a pressão para contornar as proibições legais seriam fortes. Em janeiro de 1739, o coronel Cristóvão Pereira de Abreu lembrava que, “nos campos da parte do Norte” havia gado originado de novecentas cabeças introduzidas havia alguns anos, de propriedade real. Dizia que o gado não aumentara significativamente, em razão de “descaminhos que tem a falta de arrecadação”, e oferecia-se para “correr” “à sua custa”, para mais de mil e quinhentas cabeças, levando-o à estância do Bujuru.

Um bom negócio Cristóvão Pereira propunha também recolher apenas as vacas e sugeria que extrairia uma média de um couro de touro por vaca entregue. Pedia como remuneração o direito de fazer “courama” dos “touros” que, pela idade, não tivessem outra serventia do que aquela. Prometia priorizar a retirada do gado e pagar os quintos correspondentes, respeitando as vacas e os touros que pudessem ser amansados (como animais de tração). Caso a proposta fosse aceita, ajustaria os peões imediatamente, visto ser aquele o tempo “mais próprio” para a operação, ou seja, o verão, como proposto. Seu pedido foi deferido sem quaisquer dificuldades, já que, segundo registrado pelo comandante da povoação, o proposto prestaria grandes serviços ao rei.92 91 92

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Id. ib. p. 78. Loc. cit. Mário Maestri

Seis meses mais tarde, em 19 de julho de 1739, o coronel oficiava novamente ao comandante Coutinho, afirmando que os dezesseis “peões castelhanos” conchavados com seus respectivos cavalos haviam se internado por dezenove dias, achando apenas “alguns touros”, do gado que afirmara existir. Requeria, portanto, o direito de courear aqueles animais, pagando o quinto dos couros e metade do sebo, já que havia desenbolçado 400 mil-réis em salários com os peões – 25 milréis por cabeça, ou seja, cinquenta vacas, por peão, segundo o preço exagerado que Coutinho pedira, no ano anterior. O comandante acedeu ao requerimento, considerando que “os touros se não” podiam “sujeitar para se domarem” e estavam “expostos” a serem descaminhados por “passageiros e estancieiros pelo interesso do couro e sebo”, sem o pagamento do devido ao rei. Os couros deveriam ser quintados em Rio Grande, carreando o gado e cumprindo a promessa inicial na medida que pudesse. No frigir dos ovos, toda a operação reduziu-se à concessão excepcional a Cristóvão Pereira do direito de extrair couros da região em questão, sob o pagamento do quinto exigido pela lei.93 Em 1817, em sua Corografia brasílica, o padre Aires de Casal lembrava que os “touros” deveriam ser mortos para as “coiramas” “de cinco anos para cima”.94

Primeiros lavradores Um regimento de seiscentos soldados dragões protegia a nova povoação, seu porto, o litoral. Para povoar os territórios, chegaram a Rio Grande casais sobretudo de Sacramento e de Laguna, que se estabeleceram na cidadela e nas terras próximas distribuídas para os que tinham condição de povoá-las, sobretudo com cativos africanos. Algumas fazendas e currais 93 94

Id. ib. p. 105. AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 95.

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organizaram-se nas vizinhanças para apoiar as tropas, produzir couro, sebo, língua e algum charque. Nas proximidades, organizaram-se roças e plantações de trigo, centeio, cevada, milho, feijão, ervilha etc., para o abastecimento da vila e alguma exportação. Primeiro, os trigos sulino alimentavam a população da região e, a seguir, foram vendidos também no Rio de Janeiro, na Bahia, em Pernambuco e Portugal. Em 1817, em Corografia Brasílica, o padre Aires de Casal assinalava os principais gêneros cultivados pelos lavradores: “O terreno é apropriado para diversidade de produções. Cultiva-se (sic) com grande proveito trigo, centeio, cevada, milho, arroz, alpiste, legumes; melancia, melões, cebolas, com quase todas as hortaliças da Espanha; e ainda algum algodão, mandioca e canas de açúcar. O cânhamo e o outro linho tomam grande crescimento.”95 Essa produção permitiu uma acumulação de capitais que financiou uma primeira importação sistemática de trabalhadores escravizados. Segundo parece, nesses anos, de dois a dez cativos trabalhavam em campos de trigo de dez a cem hectares. Essa produção agrícola e triticultora exigia importante quantidade de animais de tração, o que explica a reticência dos governadores de Rio Grande ao permitirem a morte de touros jovens, capazes de serem domesticados para a lavra dos campos, para o transporte, etc. A baixa qualidade genética dos animais exigia que as plantações tivessem terras suficientes para a criação de bois de tração e de animais para alimentação. A existência de algumas centenas de cabeças de animais em propriedades do século 18 delimita explorações mistas, dedicadas à agricultura e à criação animal, mesmo que algum couro, sebo e graxa fosse comerciado.

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AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 76-104. Mário Maestri

Em 1718, os “particulares” da Colônia do Sacramento, à exceção dos casais, apenas chegados, plantaram 46 alqueires de trigo (635 litros) e colheram 548 (7562 litros) com uma produtividade média de um para 11.9. Segundo parece, em 1780, a produtividade do grão seria de um para 8,6. Ao menos, o governador Sebastião Xavier da Câmara afirmava, naquele ano teriam sido semeados no Rio Grande em torno de sete mil alqueires de trigo e colhidos uns sessenta mil. Nesse então, o primeiro centro produtor seria Rio Grande, seguido de Porto Alegre, do Estreito e de Mostarda. No ano seguinte, teriam sido plantados 8.982 e colhidos 53.897 alqueires. 96 ou seja, seis por um, o que daria uma média de uns nove alqueires por um, se aproximamos os três dados. Porém, em 1694 Francisco Naper, governador da colônia do Sacramento, propunha que, naquele ano, o trigo rendera entre quarenta e cinquenta, por alqueire plantado.97

Terras boas, Terras Cansadas Escrevendo momentos antes da independência, o charqueador Antônio Gonçalves Chaves afirmava, num momento em que já declinava a produção, que o trigo dava-se “maravilhosamente” na província e que não era “raro em anos abundantes dar 70 para um”.98 Na mesma época, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire propunha que no litoral norte do Rio Grande do Sul o trigo cultivado dava na “relação de 10 a 30 por um”. Na sua nota final sobre a agricultura em Rio Pardo, grande centro triticultor sulino, assinalou que o trigo se

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97 98

Cf. PIMENTEL, Fortunato. Agricultura e pecuária. Aspectos gerais de Porto Alegre. Porto Alegre: s.ed., 1945. p. 273. v. 1; SANTOS, Economia e sociedade do Rio Grande do Sul, p. 93 et seq. MONTEIRO, A colônia do Sacramento, p. 122. CHAVES, José Antônio Gonçalves. Memórias Ecônomo-políticas sobre a administração pública do Brasil. 4. ed. São Leopoldo: EdiUnisinos, 2004. p. 235.

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reproduzisse de “dez a cinqüenta por um, cinqüenta nas boas terras, cerca de dez nas terras já fatigadas”.99 Em Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil, Sebastião Ferreira Soares era ainda mais loquaz sobre a fertilidade das terras rio-grandenses: “A fertilidade das terras era tal que, sem auxílio de estrumes, cada alqueire de trigo semeado produzia, nas regulares colheitas, na razão de 80 por 1; e quando se dizia colheita superior era efetuada ela na de 100 e mais por 1, e assim continuou a ser por muitos anos; de sorte que a província do Rio Grande foi denominada o seleiro do Brasil”. Para ele, antes de se abater a ferrugem sobre os trigais sulinos, de 1803 a 1810, a capitania exportava em torno de 460 mil alqueires, e nos anos anteriores, ainda mais. Com a enfermidade e a queda da produção para “55 e 40 alqueires por 1”, os agricultores abandonaram o trigo, “visto estarem habituados” aos resultados anteriores, apesar de que nos Estados Unidos, “a produção do trigo” ser “estimada na razão de 20 alqueires por 1”.100 Com as novas roças e plantações, apoiadas no trabalho familiar e escravizado, punha-se fim a uma economia assentada quase exclusivamente na caça predatória dos gados pelo couro, sebo graxa e na exportação de animais vivos. Não exigindo os volumosos capitais necessários para as tropas, sobretudo as plantações de trigo permitiam a fixação de um maior número de luso-brasileiros, que passaram a comprar cativos para a constituição de pequenos plantéis de trabalhadores escravizados. Inicialmente, essa ocupação ficou no geral restrita ao litoral e às proximidades do porto de Rio Grande. 99

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Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste de. (1779-1853). Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-21. Porto Alegre: Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdiUSP, 1974. p. 23 e 207 SOARES, Sebastião Ferreira. Notas estatísticas sobre a produção agrícola e carestia dos gêneros alimentícios no Império do Brasil. Rio de Janeiro: IPEA/ INPES, 1977. p. 175. Mário Maestri

Fazenda chimarrã O declínio do gado chimarrão levou a que missioneiros, portugueses e espanhóis organizassem fazendas de criação animal, destinadas à produção de animais pela carne e, sobretudo, pelo couro, graxa e sebo. Em geral, a historiografia platina denomina essas explorações de fazendas chimarrãs. No contexto da ampla disponibilidade de terra, restrita quase apenas pela ameaça nativa e pela defesa dos missioneiros de suas possessões, o estabelecimento de uma estância dependia sobretudo da obtenção legal ou de fato de terreno suficiente para a exploração, de gados para povoá-las e, sobretudo, da capacidade de contratação ou, principalmente, da compra de mão-de-obra escravizada.101 Como proposto, o uso necessário da mão-de-obra escravizada devia-se à possibilidade de o trabalhador livre migrar para a produção independente, em razão da abundância de terra a ser ocupada, mesmo no contexto do monopólio real das terras americanas após a expulsão das populações nativas. Essa autonomia relativa, que impedia a formação de um mercado de trabalho livre dominante, valorizava a força de trabalho assalariada. Os gados necessários para o início de uma exploração pastoril provinham dos animais alçados das próprias terras e da região, caso existissem; de animais roubados nas vaquerías das Missões; de animais comprados, etc. Portanto, os principais gastos davam-se com a obtenção, treinamento e controle da mão-de-obra escravizada, segundo parece, nos primeiros tempos, constituída sobretudo por africanos recém-importados, eventualmente ainda jovens e muito jovens, realidade sobre a qual possuímos ainda pouca informação. 101

MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI Mário. (Org.) O negro e o gaúcho: Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. pp. 169-271.

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Desde os primeiros tempos, as terras, com registros ou não de propriedade, foram comerciadas, em ambos os lados do Plata. É abusiva a proposta de que, no Brasil, elas passaram a constituir “mercadoria” apenas com a Lei de Terras. “A partir da Lei de Terras de 1850, a terra no Brasil foi elevada à condição de mercadoria, institucionalizando-se a propriedade privada do solo, através da compra.”102 Na Colônia e o Império, as sesmarias e as próprias posses foram objeto de compra e venda, não alcançando preço apenas nas terras que não produziam renda fundiária, pela distância, qualidade, etc. Porém, a enorme abundância inicial de terras ensejava que seu preço fosse diminuto em relação ao gado e, sobretudo, aos trabalhadores escravizados. No Rio Grande, até a entrada do século 19, um cativo na força de seus anos valia uma pequena propriedade e muitas cabeças de gado, o que transformava os criadores mais em senhores de cativos do que senhores de terras.103

Charqueadas A produção pastoril sulina acelerou-se a partir de 1780, após o estabelecimento de grandes charqueadas voltadas para a produção e exportação de couros e carnes secas, o que valorizou fortemente os gados e ensejou rápida ocupação da Campanha, da Fronteira, das Missões, dos Campos Neutrais, do norte da Banda Oriental. Em 1817, na já referida Corografia brasílica, o padre Aires de Casal registra o domínio inconteste da produção charqueadora sobre a economia pastoril sulina: “Tirada duas porções menores, uma consumida pela população do país (da província), outra sobre pela província 102

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PESAVENTO, S. J. RS: A economia & o poder nos anos 30. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 17. DAL BOSCO, Setembrino. A Fazenda Pastoril no Rio Grande do Sul - 17801889. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade de Passo Fundo, 2008.

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Mário Maestri

de São Paulo para os açougues da Metrópole (tropas), o mais é charqueado (isto é, salgado e seco sem ossos ao sul), e transportado aos principais portos do continente.”104 A singular capacidade de expansão das fazendas sulrio-grandenses em relação às propriedades do Prata parece dever-se à facilidade portuguesa de acesso à mão-de-obra escravizada. Em fins do século 18, inícios do 19, Felix de Azara e José Artigas tentaram contornar essa dificuldade propondo distribuição de terras, na Banda Norte do Uruguai, entre gaúchos pobres, negros livres, nativos aculturados. No novo contexto, as práticas da produção pastoril evoluíram relativamente, com a difusão crescente dos rodeios para o amansamento dos rebanhos, marcação e castração dos animais, etc. Manteve-se o caráter original fortemente extensivo da produção, com a lotação animal dependendo sobretudo da capacidade de sustentação dos campos nativos e das aguadas naturais das fazendas. O caráter extensivo da economia pastoril determinava que a reprodução animal dependesse, como assinalado, das condições dos campos e climáticas. Era relativamente escassa a intervenção humana na criação, constituindo-se as propriedades com um número relativamente reduzido de trabalhadores, em geral um para de seiscentos a novecentos animais.105 Em 1808, quando a produção saladeira já se estabilizara, o contratador transmontano Manoel Antônio de Magalhães registrou que boa parte dos fazendeiros não realizava ainda rodeios, sistematicamente, em razão das “grandes despesas” necessárias “em piões (sic) e cavalos”: “[...] há muitas fazendas, todas alçadas, e a maior parte dos fazendeiros, ainda os 104

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AIRES de CASAL, padre Manuel. Província do Rio Grande do Sul, ou de São Pedro. AIRES de CASAL, padre Manuel. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil. São Paulo: Cultura, 1943. Tomo I. p. 96. Cf. MAESTRI, Mário. O cativo, o gaúcho e o peão: considerações sobre a fazenda pastoril rio-grandense. (1680-1964). MAESTRI, (Org.) O negro e o gaúcho: Estância e fazendas no Rio Grande do Sul, Uruguai e Brasil. Passo Fundo: EdiUPF, 2008. p. 169-271.

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mais ricos, apenas têm a quarta parte do gado manso [...] todo o mais é tão bravo como os touros de Portugal que vêm aos curros [...].”106 Em geral, no Rio Grande, para sustentar uma família, uma fazenda dominantemente pastoril necessitaria de, no mínimo, um pouco menos de dois mil hectares. No Prata, a unidade pastoril mínima era uma “suerte de estancia”, com 1.875ha, o que sustentava uns novecentos animais e permitia uma produção entre 45 e noventa animais por ano. Uma propriedade pastoril desta extensão sustentar-se-ia com o trabalho da unidade familiar, dificilmente podendo contratar um peão ou comprar um cativo. Podia ser definida como uma fazenda pastoril de subsistência.107 A fazenda pastoril latifundiária luso-brasileira do Rio Grande do Sul e da Banda Norte do Uruguai funcionou com alguns peões livres, mensalistas e temporários e um núcleo permanente de cativos campeiros. No Rio Grande do Sul, até possivelmente os anos 1880, ela constituiu em geral produção escravista mercantil, ensejando o caráter fortemente escravista do bloco social pastoril dominante regionalmente, que conformou o “partido brasileiro”, quando da independência, o “partido farroupilha”, quando da deposição do período regencial, e o Partido Liberal rio-grandense, a partir dos anos 1860. Bloco social dominante regional do qual participavam, de forma não hegemônica, os charqueadores, em razão do peso numérico diminuto, em relação aos criadores, apesar da maior capacidade unitária de inversão-acumulação de capitais. Em geral, a charqueada funcionava com uma média de 106

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MAGALHÃES, Manoel Antônio. Almanak da vila de Porto Alegre, com reflexões sobre o estado da capitania do Rio Grande do Sul;. FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre: EST, 1980. p. 79. WILLIMAH, J. C.; PONS, C. P. Historia uruguaya: de la Banda Oriental em la lucha de los impérios: 1503-1810. Montevideo: Ediciones de La Banda Oriental, 1977. p. 140

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Mário Maestri

sessenta a oitenta trabalhadores escravizados, ou seja, a força de trabalho necessária para propriedade de mais de quarenta mil hectares. Entretanto, as charqueadas contavam-se às dezenas, ao passo que os grandes criadores, aos milhares.108

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EUZÉBIO.

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