Práticas culturais e lazer da juventude rural nas recomposições territoriais das ruralidades de três territórios do Sul do Brasil

May 28, 2017 | Autor: Hélène Chauveau | Categoria: Rural Sociology, Youth Culture, Rural Geography, Leisure Studies
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Práticas culturais e lazer da juventude rural nas recomposições territoriais das ruralidades de três territórios do Sul do Brasil Hélène Chauveau Valmir Luiz Stropasolas

1. Introdução1 A migração seletiva de jovens rurais no Sul do Brasil é uma problemática social importante, um fenômeno estável e contínuo, do qual vários fatores já foram analisados, tais como falta de renda e de oportunidades profissionais, dificuldades no acesso à terra ou à educação. Entretanto, no que se refere a essa problemática, um dos fatores ainda pouco estudados é o acesso precário à cultura e ao lazer (WANDERLEY, 2009; RENAHY, 2005; WEISEHEIMER, 2005). Justamente com foco voltado a esse fator, nossa pesquisa se orienta na compreensão das práticas culturais dos jovens rurais e em sua relação com a promoção de uma ressignificação de três territórios rurais do Sul do Brasil, a saber: microrregiões de São Miguel do Oeste e Campos de Lages, ambos localizados em Santa Catarina, e Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Com efeito, observando a mobilização dos próprios jovens rurais com auxílio de ferramentas metodológicas como entrevistas semiestruturadas e observação participante das práticas de jovens rurais e retratos (histórias de vida) de alguns deles, esse trabalho pretende compreender como eles estão ressignificando seus espaços de vida. Enfrentando dificuldades ligadas ao estatuto do tempo livre do jovem nas famílias rurais, à falta de infraestruturas econômicas, políticas e socioculturais, ao enfraquecimento do tecido social e à desconstrução do padrão cultural rural, jovens filhos e filhas de agricultores familiares inovam para reivindicar o seu direito ao lazer, à expressão cultural e ao acesso à produção cultural diversa. Com o olhar especializado que propomos lançar para esse cenário, abordamos neste trabalho, a partir do ponto de vista da juventude, a noção de campo não somente como um lugar de produção agrícola, mas 1 Funding for this project was provided by a grant from la Région Rhône-Alpes.

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também como um lugar de vida e sociabilidade, indicando alternativas que procurem disponibilizar espaços e equipamentos sociais orientados ao desenvolvimento de atividades culturais e de lazer para que os jovens rurais possam desenvolver seus projetos de vida no campo. No intuito de dar visibilidade a esses processos que vem ocorrendo no campo em análise, este artigo está organizado em duas partes. A primeira parte apresenta os contextos do questionamento que direciona este trabalho. Dessa forma, são evidenciados a relação dos jovens rurais com o tempo livre, a cultura e o lazer, assim como os três territórios que escolhemos, suas diferenças e semelhanças em relação a esse tema. Na segunda parte, vamos analisar as respostas dos jovens à situação de debilidade de acesso ao lazer e salientar como as ações desenvolvidas por estes jovens contribuem para um processo mais amplo de recomposição territorial. Para isso, apresentaremos os casos específicos de seis jovens, dentre os quais, alguns encontram apoio na mobilização comunitária para renovar seus vínculos com uma identidade local rural e outros, sem opor-se aos primeiros, mostram uma capacidade individual à hibridização das suas práticas culturais. A questão norteadora desta reflexão é: em que medida as práticas culturais dos jovens dinamizam o tecido social recompondo os territórios rurais? Daremos elementos de resposta nas considerações finais.

2. Um acesso problemático às praticas culturais e de lazer para os jovens rurais

2.1 Implicações da relação entre jovens rurais e tempo livre O sociólogo Jan Douwe Van Der Ploeg (2008) foi quem nos levou a ver a importância da relação dos jovens com o tempo livre na definição da identidade rural. O autor integra os conceitos de cultura, identidade e tempo livre para uma reflexão mais ampla sobre a recampesinização e a definição da condição camponesa. Ploeg (2008, p. 19) salienta que a distinção fundamental entre os tipos de agricultura (camponesa, empresarial e capitalista) não estaria em sua escala mas “nas diferentes formas de estruturar o social e o material”. Nessa diferenciação entre tipos de agriculturas, ele aborda o conceito de tempo, evidenciando que : “a esfera do tempo é igualmente importante [...] dentro do modo camponês de fazer agricultura, o passado, o presente e o futuro estão ligados de uma forma que se contrapõem à organização social do tempo, implícita tanto na agricultura empresarial quanto na agricultura capitalista”. O paradigma do chamado Império2 inclui também uma visão do tempo. Contudo, a compreensão de tempo pela agricultura camponesa se opõe a este, tendo em vista que a condição camponesa não é estática, e sim que está constantemente passando por processos de transformação frente a uma crise. Segundo Ploeg (2008, p. xx), essa crise, que vem sendo provocada pela exploração do Império, só pode ser “solucionada através da recampesinização generalizada e renovada”. Porém, se de um lado a recampesinização é um fenômeno que também envolve a inclusão da dimensão cultural na busca por superações desta crise, de outro lado, “a industrialização implica a destruição do capital ecológico, social e cultural”. No que se refere ao capital ecológico, o autor, destaca que a interação entre o humano e a natureza viva é decisiva na distinção entre o rural do urbano, porque é ela que “dá forma ao social”. Dessa forma, Ploeg demonstra a importância da singularidade do projeto cultural camponês e das bases culturais no projeto social. Nessa mesma perspectiva, Polany (1980, p. 160) afirma que: “A causa da degradação não é, portanto, a exploração econômica, como se presume muitas vezes, mas a desintegração do ambiente cultural da vítima. O processo econômico pode, naturalmente, fornecer o veículo da destruição, e quase invariavelmente a inferioridade econômica fará o mais fraco se render, mas 2 Acerca da definição de Império, o autor menciona: “O outro [modelo], fortemente centralizado, é constituído por grandes empresas de processamento e comercialização de alimentos que, cada vez mais, operam em escala mundial. […] O Império é aqui entendido como um modelo de ordenamento que tende a tornar-se dominante [que] é personificado por uma variedade de expressões especificas: grupos de agronegócio, grandes varejistas, mecanismos estatais, mas também leis, modelos científicos, tecnologias, etc.”(PLOEG, 2008, p. 08).

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a causa imediata da sua ruína não é essa razão econômica – ela está no ferimento letal infligido às instituições nas quais a sua existência social está inserida. O resultado é a perda do auto-respeito e dos padrões, seja a unidade, um povo ou uma classe, quer o processo resulte do assim chamado ‘conflito cultural’ ou de uma mudança na posição de uma classe dentro dos limites de uma sociedade.” Em relação à especificidade da cultura rural e da sua relação com o tempo, Ploeg (2008) destaca a importância dos “repertórios culturais locais” nas relações com o mundo e, quando fala da relação dessas relações com o “trabalho árduo, a dedicação, a paixão e ao conhecimento”, como um valor fundamental do camponês, conclui dizendo que “o trabalho é o núcleo da gramática do campesinato”. Isso nos remete ao valor do tempo livre para esses agricultores. Com efeito, às vezes, os camponeses passam esse tempo “livre” (subentendido livre de trabalho, e então de atividade agrícola), desenvolvendo justamente atividades agrícolas. Ploeg (2008, p. 45) analisa isso respaldando-se em um exemplo holandês, e argumenta que: “a maioria dos agricultores descreve cuidadosamente aquilo a que chama o seu «hobby». Esse hobby (por exemplo o melhoramento de gado em unidade agrícolas) é a zona cinzenta [...] onde o trabalho, o conhecimento, a experiência e os desejos próprios são a fonte de inspiração orientadoras [...] e onde elementos de superioridade e beleza são construídos de forma a trazer satisfação e orgulho.” Nesse trecho fica muito visível esse traço da identidade camponesa e da sua relação com o tempo livre ou o lazer, porque, nesse caso, o indivíduo encontra – em uma atividade que pode ser considerada como agrícola e profissional em um outro contexto - “uma fonte de inspiração”, “elementos de superioridade e beleza [trazendo] satisfação e orgulho”, ou seja elementos que são geralmente procurados em atividades culturais. Todavia, essa relação ambígua, geralmente, não é realizada por jovens e mulheres, devido as posições que estes ocupam no âmbito familiar. O envolvimento intenso dos agricultores no trabalho no campo, hipoteticamente, acarreta em diminuição significativa do tempo livre, especialmente para jovens e mulheres. Quer seja dentro ou fora da casa, considerado como produtivo ou não, o trabalho da mulher e do jovem rural é pesado (Paulilo, 2009), e esse “peso do trabalho leve” deixa pouca liberdade3. Com efeito, os “servicinhos” atribuídos à mulher ou ao jovem na família não são reconhecidos, o que faz com que o direito ao descanso de um trabalho “pesado”, feito pelos homens, é privilegiado. Esse fato tem como principal consequência a restrição ao máximo do tempo “livre” desses jovens e mulheres. Assim, Paulilo (2009, p. 180) escreve: “labutando dentro e fora da casa, que tempo e energia sobrariam à mulher para refletir sobre suas condições de vida?”. Em suma, qual tempo para pensar, mas também para desfrutar da vida, ter tempo livre e lazer? Ao discutir a emancipação feminina, a autora enfatiza que a incorporação da mulher ao mercado do trabalho foi necessária, porém insuficiente para efetivar essa emancipação, tendo em vista que a essa ação devem ser somadas a reflexão sobre o tempo livre, e as próprias questões de disponibilização e de conteúdo desse tempo. Igualmente nos trabalhos sobre juventude, a disponibilidade e a ocupação do tempo livre deveriam ser levadas mais a sério. Inserido nos “aspectos gerais que implicam na migração de jovens e mulheres das comunidades rurais” levantados por Aguiar e Stropasolas (2010) a penosidade do trabalho é um dos aspectos mais citados nos depoimentos de agricultores pesquisados no Oeste Catarinense e “significa «um trabalho que não dá folga», pois o tempo livre é determinado pela relação de produção estabelecida com as firmas integradoras”. Nessa região, a cultura dos colonos europeus, especialmente dos italianos, fundamentada no trabalho, reforça esta noção, o que atribuiu uma visão muita negativa à negligência em relação ao trabalho. Ademais, as dimensões de subordinação, dependência moral e simbólica, falta de autonomia e falta de liberdade de circulação (especialmente para as moças), dificultam a possibilidade de um “tempo livre” no campo. Associadas à busca constante desses jovens por “liberdade”, essas dimensões os estimulam a procurar nas cidades o que não encontram no campo (Aguiar; Stropasolas, 2010). Como sintetizado na Figura 1, apresentada a seguir, se adiciona assim na sua pouca disponibilidade, a questão da subordinação do tempo livre. O rural, com sua imagem de lugar privilegiado para a preservação de valores (família, educação, honestidade, inocência) (PAULILO, 2009), opera uma sujeição dos filhos e das mulheres, que se torna forte até no lazer. 3 Artigo disponível em http://naf.ufsc.br/files/2010/09/OPesodoTrabalhoLeve.pdf. Consultado em junho 2015

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É comum ler ou ouvir (igualmente nos nossos três territórios de pesquisa) testemunhos mostrando o controle da comunidade sobre o comportamento das mulheres e dos jovens no tempo livre (nos bailes, com namorado/a, quando quer sair sozinho/a). O simples fato de “tomar uma cerveja” se torna dificultado devido a esse controle social, que exerce uma coerção, por vezes, até maior do que a exercida pelo marido, ou pelos pais, no caso do jovem, como, por exemplo, a ferramenta cruel da exposição ao ridículo (PAULILO, 2009). Assim, é urgente questionar as representações em torno do tempo livre das mulheres e dos jovens, especialmente no caso do tempo livre da juventude, muitas vezes objeto de controvérsia, medo e críticas pelos mais antigos. Aliás, até nos espaços mais abertos dos movimentos sociais (Movimento Sem Terra - MST ou Pastoral da Juventude Rural - PJR, por exemplo), os conflitos de geração se fazem vivos em relação ao lazer: os mais antigos ressaltam frequentemente suas próprias juventudes usadas para lutar e desprezam as vezes as demandas culturais das gerações mais jovens, achando-as superficiais em relação com outros combates. Além do controle social, a falta de oportunidade para ocupação de seu tempo livre também é ressaltada, especialmente pelos jovens. Estes apontam a condição precária da infraestrutura, tanto de mobilidade (transporte, estradas, distâncias) quanto de inclusão digital (celular, internet), e até propriamente de lazer (ginásios, bares, cinemas, etc.). Ou seja, mesmo possuindo tempo livre, o que os jovens têm possibilidade de fazer dele? A ausência ou poucas opções de lazer oferecidas no campo e o círculo vicioso expresso nos argumentos das autoridades que alegam que o número diminuído de jovens não justifica a realização de investimentos nas comunidades rurais prejudicam consideravelmente esses territórios, cujas consequências abrangem desde um maior isolamento social dos jovens rurais, até a sua saída do campo. A instrumentalização desse tempo “livre” se coloca então também como uma questão central e do mesmo modo que a participação da mulher na luta pela reforma agrária suscitou o questionamento das hierarquias (PAULILO, 2009), sua presença em tempos de lazer talvez possa influir igualmente nos padrões culturais. Da mesma forma, participando de iniciativas culturais no seu tempo livre, é possível que os jovens questionem sua posição social subordinada, na sociedade, enquanto rurais, e na família, enquanto jovens. Para as mulheres do Movimento de Mulheres Camponesas, por exemplo, o tempo livre é o tempo de militância ,pelo simples fato de “«estar entre iguais» pode ser um momento privilegiado para perceber que problemas, que até então eram vividos como pessoais, são na verdade sociais” (PAULILO, 2009). Esse tempo livre pode lhes fornecer subsídios para, inclusive, questionar valores culturais que estão se construindo no território vivido.

Figura 1: Síntese das implicações da relação do jovem rural com tempo “livre” (realizado por H. Chauveau, fev. 2016).

Esse é o contexto social em relação ao tempo livre que os jovens por nós pesquisados enfrentam quando querem participar de atividades culturais e de lazer. Além desse contexto, cada um também enfrenta ou desfruta do seu contexto territorial. Conhecendo a multiplicidade de estratégias desencadeadas pela juventude rural, escolhemos três territórios bem diferenciados para aplicar uma metodologia comparativa, que visa contribuir na compreensão da relação complexa entre práticas culturais da juventude rural e recomposições territoriais. 133

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2.2 Três territórios distintos, um mesmo contexto penalizando os jovens Nos três territórios estudados, as comunidades foram enfraquecidas pelo êxodo rural e também por serem “ângulos mortos” das políticas públicas4. Assim, acabam por configurar-se em territórios que predispõem nos jovens rurais um sentimento de vazio cultural. Apesar disso, as regiões escolhidas são territórios com características diferenciadas do ponto de vista das culturas presentes, das dinâmicas econômicas, políticas, sociais e históricas variadas, assim como das tradições de mobilização, e das maneiras de organizar-se. Por isso, oferecem uma diversidade de perfis e de maneiras de responder às problemáticas que, apesar de tomar formas diferentes segundo as regiões, atingem todos em sua essência. A Figura 2 permite situar-nos nos três territórios. Note-se que escolhemos a escala da microrregião, por corresponder a uma área interessante geograficamente e, além disso, facilitar nosso trabalho estatístico. Brevemente, cabe apresentar as características que influenciam nosso tema em cada um deles. A microrregião do Campo de Lages apresenta, relativamente aos dois outros, uma densidade demográfica baixa, certo isolamento e uma estrutura fundiária concentrada, na qual grandes proprietários criam gado e exploram madeira, enquanto que seus empregados, agricultores familiares, possuem diminutas propriedades. Figura 2: : Localização dos três territórios de estudos (realizado por H. Chauveau, fev. 2016).

Nesse território a identidade serrana, resultante das imigrações europeias e da presença cabocla, é dominante. Em meio a essa identidade, os traços do novo rural emergem retratados pelo pioneirismo do turismo rural, o papel cultural regional de Lages, a cadeia agroecológica e influências do litoral. O Extremo Oeste, polarizado pela cidade de São Miguel do Oeste, é mais afastado das influências do litoral, apresenta uma estrutura fundiária, agrícola e cultural típica das “regiões coloniais” sul-brasileiras: agricultura familiar forte, identidades alemães, italianas e polonesas reivindicadas, integração forte com as agroindústrias de criação de suínos e aves. Esse modelo “integrado” excluiu as famílias não adaptadas às tecnologias a ele intrínsecas e ao ritmo imposto pelas agroindústrias, mas criou um terreno propício para os movimentos sociais, que são um traço forte da região. A microrregião de Santa Cruz do Sul é o reino do fumo, ali a agricultura familiar é dominante e trabalha para as indústrias fumageiras internacionais. A dependência dos agricultores dessas empresas é forte, quer seja na planície ou na parte serrana mais isolada. Fala-se alemão ou italiano e a identidade de “colono” é levada com muito orgulho nessa região com pouca multiplicidade social, onde as tradições coletivas são levadas à sério. 4 Assim como ocorre com os carros, nos quais existe um lugar que mal se enxerga quando dirige, esses territórios são locais esquecidos e/ou deixados em segundo plano no processo de operacionalização de políticas públicas).

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Apesar das distinções, esses três territórios, e seus moradores, para além de sofrer com o êxodo rural dos jovens, têm ainda em comum, devido a sua ruralidade, a falta de infraestrutura e de políticas públicas a eles direcionadas, o que acentua a aflição dos jovens que ainda vivem lá. Com efeito, as infraestruturas no Brasil podem ser qualificadas como lacunares, sobretudo quando se fala da infraestrutura de acesso em geral (físico ou midiático) e de lazer, fato que prejudica significativamente os jovens rurais em suas possibilidades sociais e culturais. Tanto do ponto de vista geográfico quanto setorial, a distribuição da infraestrutura é muita fraca nos territórios pesquisados. Existem precariedades em relação a estradas, transportes, comunicação e inclusão digital. Anderson, um jovem entrevistado no Oeste Catarinense resumiu assim a situação na qual eles se encontram no campo: “Se tu quer sair, é complicado, sempre pode furar o pneu porque a estrada é muito ruim, e se você fura num lugar onde o celular não pega, sua noite acabou.”. Ademais, no século onde a internet se torna criadora de um vínculo essencial entre as pessoas e os territórios, assim como uma difusora cultural, também são os jovens as primeiras vitimas da exclusão digital. Faltam também os equipamentos propriamente destinados à cultura e ao lazer. Os dados do IBGE sobre a distribuição dos equipamentos culturais, como museus, teatros, salas de espetáculos, arquivos públicos, centros de documentação, cinemas e centros culturais, nos permite perceber as desigualdades espaciais. Os dados construídos pela pesquisa de 2009 do IBGE mostram que os centros culturais têm maior representatividade no território nacional. Tais centros são presentes em 33,9% dos municípios brasileiros, seguidos pelos museus, com 25%, dos teatros e salas de espetáculos, com 22,4%, de arquivos públicos ou centros de documentação, com 18%, e do cinema, presente somente em 10,7% dos municípios brasileiros. Isso deve ser levado em consideração, inclusive, no fato das comunidades rurais serem significativamente mais carentes do que as sedes dos municípios. Assim, os jovens rurais geralmente têm acesso somente ao campo de bocha ou à bodega da comunidade e, às vezes, até à um ginásio ou um campo de futebol, os quais nem sempre correspondem às suas expectativas que não são as dos seus pais ou avós. Considerando esta problemática, o acesso à cultura pelos jovens rurais sofre de uma tripla deficiência do ponto de vista da ação da esfera pública. Não se fala somente de cultura, setor no qual a ação política brasileira deixa muito a desejar, mas também de juventude, a qual por muito tempo esteve invisibilizada nas ações do Estado, sobretudo os jovens do campo, que vivem à margem das políticas públicas, em especial às direcionadas à agricultura. No campo das políticas públicas, é muito nova a preocupação de incluir como beneficiários os jovens moradores das áreas rurais do país, e ainda mais de levar em conta o seu tempo livre ou o seu acesso à cultura. Desde os anos 2000, surgiram vários programas que, ocasionalmente, podem atuar na área da cultura e do lazer para os jovens rurais (Federais: Pronera, Programa Territórios da Cidadania ou Estaduais: Microbacias/SC Rural). Entretanto, tais programas não o fazem ou fazem bem pouco, justamente porque a cultura é insuficientemente considerada na operacionalização dessas políticas. Constatamos que o programa mais significativo nessa área e em nossos territórios é o que denomina-se “Pontos de Cultura”. Este programa foi criado por Gilberto Gil, no ano de 2004, quando este ainda era Ministro da Cultura. Dentre os 60 Pontos de Cultura que existem em Santa Catarina, por exemplo, encontramos 10 que trabalham, uns mais e outros menos diretamente, nas áreas rurais dos três territórios. Alguns desses Pontos realizam um trabalho interessante de difusão de teatro profissional, de oficinas de dança ou música, de registro da cultura rural e de atividades intergeracionais. Apesar disso, muitas vezes, as disfunções próprias ao setor público brasileiro, como falta de rigor nos editais, atraso nos prazos de pagamento, qualidade dos projetos, visão limitada do que é a “cultura”, influenciam com sérios problemas no funcionamento dessas estruturas. Essas “disfunções sistêmicas” são também as que impedem as Secretarias de Desenvolvimento Regional (SDR) ou as Secretarias Municipais de fazerem um verdadeiro trabalho cultural nos seus territórios. Além desses fatores, as consequências oriundas no fato de que, no país, ainda é débil a preocupação no sentido de que a cultura participe do desenvolvimento dos territórios. Cabe salientar que a ausência de infraestrutura para isso não é problema exclusivo das zonas rurais. 135

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Contudo, atividades culturais e de lazer fazem parte da vida social nas diversas regiões do país, onde a música, a dança e as tradições estão ancoradas no cotidiano, e a fortiori para os jovens, para os quais são meios de afirmação de si mesmo e de pertencimento a grupos e identidades num momento decisivo da vida. É assim que muitos deles implementam atividades culturais e de lazer, mobilizando recursos e alimentando recomposições mais amplas.

3. Práticas culturais dos jovens, mobilização de recursos e recomposições territoriais Nessa parte vamos dar exemplos concretos de jovens cujas práticas culturais revelam uma relação singular com o rural e suas mutações. Esses exemplos são oriundos das entrevistas realizadas por meio da técnica das histórias de vida, complementadas por entrevistas semi-estruturadas, bem como observações participantes, realizadas em 2015 no âmbito de um projeto de pesquisa de doutorado em cotutela (UFSC/Université Lyon 2) que vem sendo realizado nos Programas de Pós-Graduação em Agroecossistemas e Geografia Rural, respectivamente. Cada parte aqui apresentada reúne o perfil de uma microrregião, mostrando a transversalidade das problemáticas, além das especificidades de cada território.

3.1 Renovar o vínculo com a identidade local e mobilizar um grupo social Cada semana, com exceção daquela envolvida com a safra de fumo e que mobiliza toda a região, Gracie encontra os outros membros da companhia de teatro “Rindo à Toa”, da comunidade Linha Travessão, em Candelária, Rio Grande do Sul. Com 26 anos, ela mora com seu marido em uma pequena casa isolada e simples na microrregião de Santa Cruz do Sul, até onde nos conduziu a extensionista rural da Emater (Empresa Rio Grandense de Assistência Técnica e Extensão Rural) local. Seu marido realiza pequenos trabalhos na cidade vizinha, mas são precários e os salários muito baixos; ela cuida mais das plantações. Sempre teve “Juventudes” ou “Grupos de Jovens” nas comunidades mais próximas, que geralmente se encontram durante festivais de teatro ou canção e torneios de futebol e vôlei. Justamente pretendendo participar desses festivais e pensando no fato de não haver um grupo formalizado em sua comunidade, até então, foi que Gracie decidiu, em 2010, junto com outros jovens, criar a STARJU (nome fantasia do grupo de jovens de Linha Travessão). Ela também sempre gostou das histórias que os idosos contam, as vezes em alemão e repletas de comicidade sobre temas como pesca, caça e lobisomens. Assim iniciou o pequeno grupo, composto de 11 jovens, sem contar com qualquer infraestrutura, com exceção do campo de futebol, nem conhecimentos acerca de técnicas teatrais. Nesse grupo, eles fazem de tudo um pouco, elaboram fantasias e cenários, apresentam, escrevem os diálogos. O amparo das informações obtidas na internet, como cenas cômicas, são tão importantes quanto os conselhos de um ator profissional local que assistiu algumas vezes aos espetáculos dos “Rindo a Toa”. Segundo Gracie, funciona: “Às vezes, as pessoas nos contam que elas riem mais que com teatros profissionais porque nós falamos deles mesmos, fazemos piadas em alemão. (…) nosso objetivo é mostrar as histórias daqui antes delas desaparecerem e os jovens esquecerem delas.” Ainda que ela ache difícil mobilizar os jovens da comunidade, que não querem compromisso e preferem moto ao teatro, Gracie se orgulha do sucesso da companhia, convidada a apresentar suas peças nos municípios da região. É perceptível que essas atividades lhe conferem grande prazer pessoal, porque os momentos em que a turma se reúne, seja para planejamento ou execução de alguma ação, são marcantes para ela. A entrevistada afirma ter ficado mais contente com as possibilidades locais abertas por meio dos trabalhos dessa companhia. Se não fossem tais atividades, as possibilidades seriam quase inexistentes. Segundo ela, “não tem nada para fazer aqui, porque não gostamos das músicas que passam agora nos bailes e boates”. Devido 136

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essas ausências de espaços de lazer e também da precariedade dos pequenos agricultores da região, ela já pensou em morar na cidade, mas menciona que as dificuldades que encontraria no urbano a desestimularam de sair do campo. Ao menos, na Linha Travessão, ela “tem o ritmo que quer”. Ainda que não haja “nenhum lugar adequado para fazer teatro”, e que a Secretaria de Cultura de Candelária tenha sido suprimida, morar em uma das 46 comunidades rurais do município que não possui infraestrutura e espaços de lazer suficientes, morar ali apresenta algumas vantagens para Gracie5. Nos anos 1980, a família da Lidiane foi uma das primeiras a participar das ocupações e fundar em Dionísio Cerqueira, nos confins da microrregião de São Miguel do Oeste, um dos raros assentamentos que ainda funcionam de maneira comunitária, onde as terras, as moradias, as infraestruturas e, inclusive, as decisões são pertencentes a todos. Lidiane cresceu nessa comunidade, conseguiu realizar seus estudos graças a ela, sabe o peso das lutas e contestações que precisou para chegar a fortalecer o Assentamento Conquista da Fronteira. Em 2014, ela transformou, junto com outros jovens Sem Terra da comunidade, um antigo aviário em um lugar de expressão artística e de encontros para o grupo de jovens: o Aviário das Artes. A realização deste projeto contou com a parceria da turma de Arte no Campo, da Universidade do Estado de Santa-Catarina (UDESC). Nesse espaço cultural, pode-se ver sofás e cerâmicas, um forno de tijolos construído pelos próprios jovens, bem como instrumentos musicais. Ali, os próprios jovens organizam projeções de filmes sobre condição camponesa e oficinas de artesanato. Até um filme de ficção já foi gravado no Aviário, com o título de “Lua em Sagitário”, o filme dirigido por Márcia Paraíso, conta a história de um jovem assentado fã de rock. Enquanto membro de um movimento social emblemático e conhecido em nível de América Latina, Lidiane é uma das jovens que reivindica a cultura como instrumento de luta, e que tanto pode permitir a alienação como a emancipação. Ela recusa as informações que vêm das grandes mídias e muitas das que vêm das cidades. Para ela, o mais importante é possuir as ferramentas de produção dos seus próprios conteúdos, indo além das informações que a “massa” acessa, assim como o “Aviário das Artes” permite ir. Para a entrevistada, o mais importante não seria poder ir ao cinema ou poder ouvir tal novidade, mas ter na sua própria comunidade a possibilidade de expressar-se e relatar a sua realidade e dos seus colegas, reivindicando seu pertencimento ao movimento e difundindo o que fazem. Ela sente que é uma pessoa do campo, mas sobretudo Sem Terra, se percebendo mais próxima dos outros Sem Terra do Brasil do que de qualquer morador da região ou do município, aonde, aliás, ela quase nunca sai, apesar de, por um outro lado, viajar frequentemente com as atividades do movimento no Brasil. Comentar rodeios é a paixão de Carlos Alberto. Essa atividade lhe é comum desde muito pequeno. Ele mora em Palmeiras, na microrregião de Lages, onde os torneios de laço são uma prática muito presente. Carlos trabalha na fazenda familiar de criação de gado e vê seu pai laçar no trabalho e no lazer desde que nasceu. Aos 20 anos de idade, já é oficialmente locutor de rodeio e comenta os torneios com uma velocidade fenomenal. Encontramos Carlos Alberto durante um torneio, em meio a uma centena de rodeios que acontecem na região durante a temporada. Nesse torneio se reuniram membros dos sete Centros de Tradição Gaúcha (CTG) do município de Palmeiras, todos vestidos de gaúchos e recriando o cenário de acampamentos tropeiros durante um final de semana. Numerosos são os apaixonados por torneios de laço, prontos a pagar caro para equiparse (inclusive com laços artesanais, como os que trança Douglas, de Cerro Negro, um jovem que também encontramos no rodeio perpetuando um saber fazer artesanal), comprar um bom cavalo, fazer domá-lo (por pessoas como Leandro, outro jovem da região de Lages que faz da sua paixão uma parte da sua renda) e mesmo participar dos torneios. Muitos vêm das cidades vizinhas para prestigiar o evento, entretanto, dentre o público do rodeio, os jovens do interior do município também se fazem presentes. O que Carlos Alberto gosta mais é o aspecto familiar e convivial dos torneios, bem como a possibilidade de expressar seu orgulho de ser serrano, gaúcho e tradicional. É uma possibilidade de ele incluir-se no território (que ele percorre cada fim de semana, quando há rodeio) do qual ele se sente parte, e de homenagear seus antepassados, replicando suas práticas. 5 Dentre as 52 comunidades rurais do município, somente seis possuem ginásio esportivo.

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Aos jovens serranos que não gostam de rodeio ou reclamam não haver outra coisa para fazer nesses pequenos municípios nos fins de semana, Carlos responde que é verdade, mas que é preciso tentar abraçar sua cultura local e não ter vergonha dela. Esses jovens, que se apropriam de práticas culturais típicas dos seus territórios, renovam, através delas, um forte orgulho da ruralidade. Alguns, que não possuíam tal orgulho, agora encontram uma razão de gritar sua ruralidade, de difundir um conteúdo singular. Outros reinventam uma ruralidade talvez sonhada, mas que os incentiva a comprometer-se, investir-se. Esses exemplos nos mostram também que a chamada “sociedade civil”, que inclui as organizações sociais, associações, movimentos, se torna a fonte mais vanguardista de soluções para as problemáticas, especialmente quando se tratam de problemáticas “invisíveis” aos olhos das políticas públicas e também do setor privado. Esse é exatamente o caso das práticas culturais dos jovens rurais. Ao longo de nosso trabalho de campo nos territórios, encontramos diversas organizações que desenvolvem atividades originais com os jovens. Assim, se observa como movimentos detentores de objetivos políticos ou sociais podem ser lugares interessantes de experimentação cultural. Outros casos de organização mais espontânea dos jovens são os “jogos rurais” que ocorrem no centro do Rio Grande do Sul retomando a forma tradicional no campo dos “mutirões”. A existência e o dinamismo desse tipo de iniciativa dependem também do contexto geográfico dos territórios nesse estado. No Oeste, os movimentos sociais são mais fortes devido à presença da agricultura familiar e de uma tradição de mobilização política, na qual a Teologia da Libertação encontrou, por exemplo, um campo favorável. Na Serra, de forma diferenciada, a estrutura mais latifundiária do campo e a menor densidade populacional levam a uma realidade mais individualista, entretanto, constituída pelo hábito de reunir-se em torno da cultura serrana ou gaúcha. Essa valorização cultural é evidenciada na força que os CTGs possuem nessa região, apesar de promover uma cultura cujas raízes são controvertidas. Em cada um desses três casos, a importância do grupo, da mobilização coletiva (Companhia de teatro, CTG, Grupo de Jovens Sem Terra), é central. Outros jovens, cujas situações de vida não se opõem totalmente a esses jovens, nos levaram a perceber a presença de práticas mais híbridas, percursos de vida que rompem, mesmo só um pouco, com o que é a “cultura rural” das suas regiões. Isso mostra que a relação entre esses dois tipos de jovens, os mais conectados à sua cultura local e os menos conectados a esses costumes, é porosa e dinâmica.

3.2 Práticas culturais e hibridização difusa Camila é “da cidade”, seus pais vieram de São Paulo e empregaram-se num supermercado e num posto de gasolina de Arroio de Tigre, cidadezinha de 6.000 habitantes (a metade dos 12.000 moradores do município moram no meio rural), localizada na microrregião de Santa-Cruz do Sul, Rio Grande do Sul. Desde pequena, ela vê a cada mês de maio a cidade animar-se ao ritmo das Olimpíadas Rurais que acontecem lá. Essas Olimpíadas são as maiores do Sul do Brasil, reunindo um público de até 15.000 pessoas e aproximadamente 2000 atletas participantes, todos vindos das 17 “Juventudes Rurais” (nome dos grupos de jovens organizados em cada comunidade do município). Apesar de Camila não poder participar do evento no passado, visto que é oriunda da parte urbana de Arroio do Tigre e, por isso, não possuía o direito de fazer parte de uma das equipes dos jogos, sempre que podia, ela ia às Olimpíadas para ver as torcidas agitadas e aproveitar os bailes. Admirada com o espírito de grupo presente nesses jogos e a quantidade de jovens presentes, quase invisíveis para ela o restante do ano, ela lamentava não existir em seu bairro nenhum grupo ou atividade para jovens de sua idade, e mostrava a consequência disso no fato de principalmente os jovens ficarem mais vulneráveis para o uso de drogas e à violência, que rondam essas pequenas cidades interioranas. Hoje, Camila é casada com Marcos, que possui 25 anos assim como ela. Marcos é o vice-presidente da Associação de Juventude Rural de Arroio do Tigre (AJURATI), a associação que organiza as Olimpíadas e concerta as Juventudes. Eles moram na comunidade de 138

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Linha Paleta, onde Marcos cuida de sua produção de fumo e mantém seu caminhão, que lhe garante trabalho como caminhoneiro na baixa temporada do fumo, para completar confortavelmente sua renda. Camila conta que, desde que foi morar no interior, se desenvolveu muito pessoalmente aproveitando o dinamismo social, em especial por meio de sua interação ao grupo de amigos fortalecido pela existência da associação. Ela encontra suas amigas e vizinhas várias vezes durante a semana nos treinamentos de futebol ou vôlei e esse encontro é sempre bem-vindo mesmo se, às vezes, elas “só batem papo”. Com o passar dos anos, Camila pôde finalmente participar das Olimpíadas enquanto membro de uma Juventude do interior. Ela é a única “não colona” da comunidade, porque ela trabalha na cidade e não tem origens europeias. Entretanto, o fato de possuir um bebê nascido ali na comunidade se apresenta como uma certidão de querer ficar morando no campo e construir ali sua vida. Ela gostaria de usar o dinamismo criado pelas práticas esportivas das Juventudes e suas capacidades de mobilização para fazer política, assunto pelo qual ela sempre se interessou. Enquanto aguarda o momento oportuno para tanto, ela participa da formação das candidatas ao titulo de Rainha das Juventudes Rurais de Arroio do Tigre, concurso de beleza que acontece durante as Olimpíadas. Em um momento específico desse concurso, cada menina deve fazer um discurso acerca de sua compreensão do que é “ser rural”. Existem muitas duplas sertanejas no Sul do Brasil, essas duplas que cantam um estilo sertanejo universitário, muitas vezes, são máquinas de sucesso que fazem dançar milhões de jovens brasileiros. Algumas dessas máquinas de sucesso constituem-se de ídolos de jovens como Lucas e Leandro, dois irmãos que moram no interior de Cerro Negro, pequeno município distante duas horas de Lages. Quando eles não estão cuidando de suas hortaliças orgânicas, eles compõem suas baladas de sertanejo romântico e treinam os sucessos do gênero musical. Com 21 e 23 anos, respectivamente, eles começam a ser muito procurados nos bares e bailes da região, onde eles tocam quase todos os finais de semana, o que deveria lhes garantir, em breve, a gravação de seu primeiro CD. Eles gostam de sair bastante ali mesmo na região, mesmo se fica difícil, às vezes, conciliar esses passeios com suas plantações e colheitas. Para eles, não é normal um jovem rural se sentir desfavorecido por sua posição geográfica ou sua posição social, ainda que admitam que em Lages tenha mais oferta e oportunidade de lazer para quem gosta de coisas variadas. Eles multiplicam as idas e voltas, circulam muito na região, mostrando que sua condição não é um freio à criatividade e sim o contrário. O público muitas vezes fica surpreso quando descobre que a ausência deles nos bares é devido ao seu envolvimento dedicado na plantação de tomates. Existe uma compreensão de que isso faz parte da identidade da dupla. Eles mobilizam as redes e, através de seu dinamismo, contribuem para diluir as fronteiras entre rural e urbano. Wesley vem de uma família Sem Terra que mora, atualmente, na grande cidade do Extremo Oeste Catarinense, São Miguel do Oeste. Nessa cidade, ele ocupa o papel de liderança da Pastoral de Juventude Rural (PJR) e da Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP). Esses dois movimentos não são sempre tão articulados em outros locais quanto nessa região. O diferencial é que ali eles andam juntos, organizando os eventos (acampamentos, formações, noites culturais), em conjunto, permitindo aos jovens dos bairros de São Miguel do Oeste conhecer os jovens do interior do município, bem como o contrário também. Através desse movimento, Wesley que mora em uma pequena casa simples do bairro São Luiz com toda sua família, participa de uma formação política na qual a música é sempre utilizada como ferramenta de luta. Foi também através do movimento que ele conheceu o grupo “Desgarrados Arte e Cultura”, que faz parte das “Oficinas de Dança Gaúcha” da “Fundação Cultural de São Miguel” (órgão municipal de incentivo à cultura). Esse grupo pretende trazer como diferencial os peões e prendas que não costumam ser lembrados nos folclores gaúchos convencionais. Esse grupo tem a especificidade de querer resgatar a identidade humilde e misturada do “outro gauchismo”, o que estaria esquecido pelos CTGs ou, de uma outra maneira, pelos grupos folclóricos alemães, italianos e poloneses, excluindo uma parte da população. Wesley é “brasileiro” (como os moradores da região costumam falar), mulato com cabelos crespos, e quando veste as roupas tradicionais gaúchas (que também são diferentes para os Desgarrados), fica orgulhoso de homenagear seus antepassados diversos. Para ele, a 139

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fronteira não está entre urbanos e rurais, seu próprio percurso pessoal lhe ancorou nos dois mundos, mas entre explorados e exploradores, a cultura tradicionalmente escondida pelas elites, que seja hip-hop ou dança gaúcha de raiz, deve ser reapropriada. E, nessa dinâmica, as representações da cultura gaúcha, fundamentalmente ligadas ao homem do campo e a um modo de vida do interior, podem ser repensadas junto de pessoas como Wesley. Como visto em nossos exemplos, o peso da cultura é central nas problemáticas dos jovens rurais do Sul do Brasil. A hibridização das práticas culturais se constitui como uma das respostas para a crise do modelo de sucessão familiar, do tecido social rural e do pertencimento cultural desses jovens. Essas práticas são mais amplas do que as da “cultura institucional” e englobam inclusive marcas identitárias e práticas próprias à juventude, que se hibridizam frequentemente. Maria José Carneiro, que analisa os jovens rurais há muitos anos, considera que existem dois elementos que participam da mutação dos espaços rurais: o crescimento da mobilidade individual, estimulada pela expansão dos meios de transporte, e o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação (CARNEIRO, 1998). Tais tecnologias propagam elementos culturais “urbanos”, valores e práticas que os jovens rurais, geralmente, agregam aos seus. No rural sul-brasileiro, encontramos um mosaico sociocultural muito grande e diverso, devido à história de ocupação desse território. Essa diversidade resulta no convívio, muitas vezes, conflituoso, entre descendentes de cultura açoriana, alemã, italiana, polonesa, cabocla, indígena, africana, gaúcha, interiorana, serrana, etc. Essas culturas são reproduzidas vivamente nos territórios onde realizamos a pesquisa de campo. Nesse sentido, a mobilidade espacial da juventude não permite pensar um isolamento social, mas sim, cada vez mais, uma interação cultural vivenciada pelos jovens nos diferentes espaços e territórios. Em suma, a revitalização do meio rural brasileiro passa, ao contrário, pela abertura e, intensificação dos contatos econômicos, sociais e culturais com as cidades (ABRAMOVAY, 2000), o que resulta numa “hibridização” de valores, percursos e práticas culturais dos jovens rurais.

4. Considerações finais O acesso ao lazer e à cultura se constitui em um direito fundamental para os jovens rurais, influenciando suas trajetórias de vida, seja motivando-os a permanecer no campo, seja estimulando-os a buscar o usufruto desse direito na cidade. Assim, as práticas culturais dos jovens inserem-se num movimento maior de recomposição dos espaços rurais no Brasil, podendo dinamizar as relações aí estabelecidas, seja do ponto de vista demográfico, seja nas relações estabelecidas entre o rural e o urbano nas pequenas cidades. Esse fenômeno é visível em mudanças que vem ocorrendo, como, por exemplo, a ampliação do turismo rural (no qual o pioneirismo está presente na Serra Catarinense); a consolidação da agroecologia (que muda tanto os parâmetros técnicos quanto os sociais de produzir e comercializar alimentos); a existência de um fluxo demográfico cidade X campo (mesmo que, até o presente momento, seja reduzido e reservado a áreas mais promissoras); a percepção do rural na sociedade (de um lugar percebido muitas vezes como atrasado e conservador, para um lugar de inovações e alternativas socioeconômicas); a ampliação da multifuncionalidade do meio rural (é cada vez mais comum morar no campo e trabalhar em outras atividades que não na agricultura ou mesmo empregar-se na cidade). Acreditamos que esses fatores são indicativos de uma transformação intensa do lugar e do significado dos espaços rurais na sociedade brasileira. Vale destacar que os territórios escolhidos por nós para o desenvolvimento da pesquisa oferecem condições propícias para observar estas redefinições em curso. Os elementos que configuram as práticas culturais dos jovens pesquisados fazem parte, assim, de um amplo enfoque de desenvolvimento local, incluindo todos os aspectos e dimensões desses territórios. A evolução das ruralidades latino-americanas e os debates sobre suas orientações não podem mais ignorar as problemáticas envolvendo cultura e juventude, temas centrais na qualificação do desenvolvimento. Hoje, os espaços rurais 140

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estão em dinâmica mudança, vivem uma redefinição do seu papel na sociedade através, dentre outros fatores, da dimensão cultural. Essa dimensão será crucial na qualificação e criação de identidade desses territórios, nos quais a sociedade, especialmente a urbana, projeta suas expectativas. Na Europa, já se nota, desde os anos 1980, um processo que nasceu após um período de uma estagnação do êxodo rural: o “renascimento rural” ou “recampesinização”, que fez emergir um “novo rural” (possuidor de diferentes definições, segundo distintos autores). Nesse processo, que se acentua hoje com a crise (particularmente em Portugal, por exemplo, onde muitos jovens escolhem mudar de vida, indo para as zonas mais rurais do país, consideradas como “lugar dos possíveis”), o desequilíbrio entre a oferta cultural farta do meio urbano e as possibilidades diferentes do rural se faz sentir cada vez mais. Essa reflexão é necessária na evidência da importância do campo permanecer um lugar singular, dotado de qualidades e propriedades, mas adaptado a um mundo dinâmico e aos jovens que pedem cada vez mais para que esse espaço da sociedade seja efetivamente atrativo, um lugar de alternativas possíveis na sociedade. Um espaço onde as práticas culturais da Gracie, Wesley, Camila, Carlos Alberto, Lucas e Leandro, Lidiane e de todos os demais protagonistas e sujeitos dessa pesquisa também façam parte de sua sustentabilidade, promovendo uma agricultura familiar mais diversa e, consequentemente, mais rica.

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