Precedentes? Significados e impossibilidade de aplicação “self service”

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Precedentes? Significados e impossibilidade de aplicação “self service” NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. Precedentes? significados e impossibilidade de aplicação self service. Artigo disponível em . Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados. André Frederico Horta é advogado, Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG e sócio do Escritório de Advocacia João Henrique Renault.

O termo precedente pode ser concebido sob múltiplos significados: como uma decisão ou um conjunto de decisões, sem muitas considerações de ordem técnica; como o resultado de um julgamento ao qual se atribui algum significado; ou para representar, de forma mais abrangente, uma norma jurídica contida em uma decisão proferida em determinado caso.1 A ideia central do precedente é a de que as lições do passado podem ser aplicadas ao presente, como um romance em cadeia (segundo Dworkin) e ele consiste, em essência, em decisão anterior que funciona como um modelo para decisões posteriores.2 Há um certo backward-looking effect – porque a decisão de hoje parte da análise do que foi decidido antes – e um forwardlooking effect – porque quando um juiz decide ele se pergunta se a sua decisão será satisfatória no futuro 3 – na formação e no reconhecimento de um

1 MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent. In Interpreting precedents: a comparative study. Edited by D. Neil MacCormick and Robert S. Summers, Aldershot: Ashgate, 1997, p. 503. 2 “Precedentes são decisões anteriores que funcionam como modelos para decisões futuras. Aplica as lições do passado para resolver problemas do presente e do futuro integra constitui a base da razão prática humana”. Tradução livre de: “Precedents are prior decisions that function as models for later decisions. Applying lessons of the past to solve problems of the present and future is a basic part of human practical reason.” MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Introduction. In Interpreting precedents, op. cit., p. 1. 3 Apesar desse efeito, EDWARD LEVI ensina que o importante não é o que o juiz que produziu o precedente pretendia, mas, sim, o que o juiz que está a analisar a sua aplicabilidade a determinado caso acha relevante. Nem se diga que o mencionado autor defende um reforço do papel do juiz, porque, em sua concepção, os sistemas jurídicos, quaisquer que sejam, sempre aceitaram certa dose de ambiguidade e diferentes interpretações de determinado texto jurídico, e, para superá-las, tais sistemas devem promover a existência de um fórum de

precedente.

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E aqui, se pondere, não se está a cogitar um viés

consequencialista (de índole político, social e econômico), mas o fato de que certamente aquela decisão fará parte da história institucional (com integridade) da aplicação do direito em determinada situação jurídica. EDWARD LEVI, no contexto do case law ensina que “a forma básica do raciocínio jurídico é o raciocínio por exemplos”; trata-se de um raciocínio de caso a caso que constitui “um processo de três etapas, descrito pela doutrina do precedente, em que uma preposição descritiva do primeiro caso é transformada em uma regra de direito e, então, aplicada a uma situação similar posterior”.5 No Brasil, em face de escolhas legislativas atuais e projetadas (Novo CPC), existe a grande peculiaridade de que as decisões dos tribunais superiores (especialmente após a repercussão geral do RE e o REsp repetitivo) já nascerem com o objetivo de se tornar precedentes. Mas o que vale (ou deve valer) como um precedente? Antes de tudo, os precedentes são constituídos de (assim como a lei) textos abertos à interpretação e dotados de autoridade. Incumbe ao aplicador do Direito interpretá-lo e extrair-lhe o elemento vinculante, que, na Inglaterra, é chamado de ratio decidendi e, nos Estados Unidos, de holding.6 Inúmeros livros já foram escritos a respeito do conceito de ratio decidendi e de quais partes da decisão compõem essa ratio, sendo um dos pontos mais polêmicos da doutrina. De acordo com CHIASSONI, a notável ambiguidade que caracteriza a ratio decidendi se deve a dois fatores:

discussão que conte com a participação da sociedade. LEVI, Edward H. An introduction to legal reasoning. The University of Chicago: Chicago, 1949, p. 1-3. 4 MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert S. Introduction. In Interpreting precedents, op. cit., p. 2. 5 Tradução livre de: “The basic pattern of legal reasoning is reasoning by example. It is reasoning from case to case. It is a three-step process described by the doctrine of precedent in which a proposition descriptive of the first case is made into a rule of law and then applied to a next similar situation”. LEVI, Edward H. An introduction to legal reasoning. The University of Chicago: Chicago, 1949, p. 1-2. Como o próprio autor deixa claro, esta é a forma básica de raciocínio jurídico, não se restringindo, portanto, ao case law, de modo que pode ser aplicado, também, ao statutory construction. 6 BUSTAMANTE, Thomas. Teoria do Precedente Judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. Editora Noeses: São Paulo, 2012. p. 259.

(I) o tipo de objeto designado, que, por sua vez, pode se referir a três coisas diferentes, a saber, (a) a norma jurídica geral, sendo prescindível a base sobre a qual o caso foi decidido (b) a norma jurídica geral contextualizada, considerados os argumentos e os fatos que lhe deram origem, e (c) a qualquer elemento essencial (condição sine qua non) da argumentação desenvolvida pelo juiz em sua fundamentação (este juízo pode ser realizado mediante a supressão de determinado elemento, que será essencial caso a sua inexistência conduza a resultado diverso); e (II) o grau de especificação do objeto designado, o qual, por sua vez, conduz a um número muito maior de significados, quais sejam, (a’) o elemento da motivação que constitui uma premissa necessária, (b’) o princípio jurídico que é suficiente para decidir o caso, (c’) a argumentação necessária ou suficiente para se decidir, (d’) a norma que constitui, alternativamente, a condição necessária e suficiente, ou a condição não necessária mas suficiente, ou, ainda, uma condição necessária mas não suficiente de determinada decisão, (e’) a norma relevante para os fatos da causa assim considerada por um juiz sucessivo7, entre muitos outros. Para THOMAS BUSTAMANTE, todos esses significados partem do pressuposto equivocado de que existe apenas uma ratio decidendi em cada decisão, e que todo o restante é dispensável: “Haverá uma ratio decidendi útil para a solução de casos futuros não apenas quando a corte decida determinada questão pontual acerca das consequências do caso particular – tal como ‘x deve fazer A’ –, mas também quando essa mesma corte tenha estabelecido – com clareza e de forma justificada – uma regra geral que possa abarcar, além de x, os indivíduos y, z e outros que se achem na mesma situação. Pode-se falar, portanto, em uma pluralidade de rationes decidendi em um mesmo caso concreto: ‘seria errôneo, uma vez individualizada uma ratio decidendi, necessária e suficiente para a decisão, crer que os outros princípios enunciados na sentença sejam obiter dicta8. Tais outros princípios

BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., p. 261-263. O conceito de obiter dicta também não é pacífico. A rigor, trata-se daquilo que não integra a ratio decidendi, mas esta constatação em nada ajuda a diferenciar um conceito do outro, e a tarefa de fazê-lo constitui um dos fatores que mitigam a rigidez da doutrina do stare decisis, uma vez que o enquadramento do que consta do precedente como ratio decidendi ou como obiter dicta influencia, substancialmente, no modo como este precedente será, ou não, aplicado. GEOFFREY MARSHALL resume os principais significados que podem ser atribuídos a 7 8

podem ser não necessários, mas suficientes para a decisão: e serão, portanto, rationes decidendi ulteriores em relação à primeira’.9

O mencionado autor

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desenvolve uma teoria normativa do

precedente, afirmando que são nas razões que os juízes dão para justificar suas decisões que devem ser buscados os precedentes”11, e a ausência dessas razões ou a sua superação por outros argumentos mais fortes compromete sua aplicação. As normas “extraídas dos precedentes judiciais devem, todas, ser enunciadas sob a forma de enunciados universais do tipo ‘sempre que se verifiquem os fatos operativos (OF), então devem se aplicar as consequências normativas (NC)’”.12

obiter dicta: (a) uma disposição irrelevante para o caso ou qualquer outra questão jurídica; (b) relevante para o caso mas não necessário à ratio decidendi; (c) relevante para alguma questão incidental no caso em análise; e (d) relevante para alguma questão jurídica que pode ser suscitada em outros casos. Op. cit., p. 515. Apesar da importância da discussão, não teceremos outras considerações, porque não constitui o objeto da monografia. 9 BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., p. 271-272. Há dois exemplos em que fica claro o acerto da posição do autor: (I) na fundamentação, o magistrado anuncia uma regra geral e uma exceção, sendo o caso resolvida por meio da aplicação da exceção; (II) distinguindo entre regra geral e exceção, o caso, agora, é resolvido com a aplicação da regra geral. Não se poderia dizer que, no primeiro caso, a regra geral seria obiter dictum, ou que, no segundo, a exceção também seria obiter dictum. Da mesma forma, o autor afirma que há decisões despidas de discoverable ratio e que, por isso, carecem de vinculatividade. Seria o caso, por exemplo, de, em um julgamento colegiado, haver convergência de votos com relação à parte dispositiva mas divergência na fundamentação. Nesta situação, pode-se buscar ratios decidendi nos votos isolados de cada magistrado, mas não no acórdão como um todo. Embora seja possível sustentar que as ratios decidendi dos votos isolados constituem, em si, precedentes, a sua autoridade será menor. Ibidem, p. 272-273. 10 BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., 278. Para sermos fieis, o autor reconhece que a teoria normativa do precedente, ao revisitar o conceito de ratio decidendi, o compreende de forma mais ampla do que tradicionalmente se fez no common law. 11 BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., p. 270. 12 Um exemplo pode ajudar a compreender a teoria: o caso Donoghue v. Stevenson (1932, Reino Unido). A senhora Donoghue, viúva, visitou o Wellmeadow Café, em Paisley, Escócia, com um amigo que lhe comprou uma bebida gelada, providenciada pelo dono do estabelecimento, o senhor Minghella, o qual, por sua vez, colocou sorvete em um copo e derramou sobre ele um pouco de cerveja de gengibre, cuja garrafa era opaca. Mais tarde, a senhora Donoghue derramou o restante da cerveja no copo, descobrindo a existência de um caracol em decomposição. Ela entrou em choque e teve gastroenterite, processando os fabricantes da cerveja de gengibre, Stevenson & Co., que alegaram não existir contrato celebrado entre ambos e que, portanto, eles não seriam responsáveis em razão de qualquer vício ou defeito no produto. A House of Lords acolheu o pedido de indenização, sob o fundamento de que existe, sim, um dever de a Stevenson & Co. adotar as medidas de cuidado necessárias ao engarrafar as cervejas de gengibre e que, no caso, não foram observadas, exsurgindo disso a sua responsabilidade pelos danos sofridos pela senhora Donoghue. Como se vê, há inúmeros fatos subjacentes à demanda, tais como a autora ser viúva, sido convidada para tomar uma bebida por um amigo, o dono do estabelecimento que adquiriu a cerveja do distribuidor ter escolhido a garrafa de cerveja e ter preparado o drink, entre muitos outros. A questão é: se este caso for utilizado em casos futuros como referência em matéria de responsabilidade civil, deve-se perquirir acerca da existência dos mesmos fatos subjacentes a Donoghue v. Stevenson nos casos futuros, ou haveria uma análise diferente a ser feita? De

Esta forma de perceber o precedente também pode ser encontrada em GEOFFREY MARSHALL, segundo o qual “a ratio talvez deva ser considerada um conceito essencialmente controvertido, porque ele não é puramente descritivo mas também valorativo ou normativo [prescriptivo, portanto] em sua força”.13 De modo similar, STRECK e ABBOUD afirmam que a ratio decidendi constitui-se do “enunciado jurídico a partir do qual é decidido o caso concreto”, isto é, a “regra jurídica utilizada pelo Judiciário para justificar a decisão do caso”, devendo ser, necessariamente, analisada à luz da questão fático-jurídica (caso concreto) que ela solucionou.14 O caráter normativo da ratio decidendi não exime, portanto, o intérprete do precedente de nele selecionar os fatos relevantes15 a serem extraídos para comporem a norma que servirá de ponto de partida para casos futuros. O acordo com a teoria normativa do precedente, sim: deve-se buscar quais os fatos operativos e aplicar-lhes a consequência jurídica, a fim de extrair o enunciado universal. Em Donoghue v Stevenson, este enunciado universal pode ser definido como: todo fabricante de bens tem um dever perante o consumidor final de tomar as medidas de cuidado necessárias, a fim de evitar causar danos à saúde do consumidor, caso contrário, será responsável por estes danos. Como se vê, não há referência às qualidades da autora, ao local do Café, ao tipo de produto, ao tipo de bebida, aos exatos danos que devem se verificar, nem a muitos elementos específicos do caso. Mas isto porque o enunciado universal constitui o resultado da interpretação destes fatos específicos, que, no essencial, são colocados sob forma de fatos operativos (a saúde do consumidor final comprometida em razão de vício do produto e a inobservância dos cuidados de cuidado necessários pelo seu fabricante) sobre os quais incide a consequência (a responsabilidade civil do fabricante). Em que medida os fatos de um caso específico podem ser considerados análogos aos fatos operativos do precedente constitui trabalho dos participantes, aos quais incumbe discutir a sua aplicabilidade. 13 MARSHALL, Geoffrey. Op. cit., p. 512-513. 14 STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2ª ed., rev., atual., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014, p. 46. 15 Em crítica a uma suposta abstração dos fatos pela teoria normativa do precedente: “para se aplicar uma decisão tomada no passado em situação do presente, é preciso uma tarefa de interpretação reconstrutiva dos fatos que ocorreram com a situação presente. Em sentido oposto, Thomas Bustamante assevera que a atividade do aplicador de um precedente é sempre interpretativa abstraída das questões de fáticas e que, por isso mesmo, pode ser feita por um observador, e não somente por um participante do discurso.” SILVA, Diogo Bacha e. Ativismo Judicial no controle de constitucionalidade: a transcendência dos motivos determinantes e a (i)legítima apropriação do discurso de justificação pelo Supremo Tribunal Federal. Pouso Alegre/MG, Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2012, p. 112. Entretanto, esta percepção da teoria normativa desenvolvida por BUSTAMANTE não se revela adequada, porque, primeiro, a atividade de interpretação do precedente pode ser desenvolvida por um observador “em certo sentido” (o participante do caso presente que, em relação ao precedente, é um observador, pois não faz sentido o próprio participante do processo que deu origem ao precedente interpretá-lo como tal); segundo, os fatos não são ignorados em momento algum, tal como ficou claro na nota de rodapé nº 12; terceiro, porque, no parágrafo imediatamente posterior ao qual SILVA se refere no texto de BUSTAMANTE, este ressalta a importância do trabalho dos participantes no momento de atribuição de força e peso aos precedentes.

enunciado universal não está pronto e acabado no precedente, aguardando que alguém o aplique sem maiores dificuldades em um caso análogo. A sua elaboração depende, substancialmente, da seleção dos fatos considerados relevantes para o deslinde da controvérsia, e isto constitui tarefa dos participantes do diálogo processual, que debaterão sobre a aplicabilidade de determinado precedente com base naquilo que deve e não deve ser considerado relevante, inexistindo fórmula apriorística para resolver esta questão. Podemos afirmar, então, que a extração da ratio decidendi – núcleo do precedente – consiste em atividade reconstrutiva do passado e de interpretação para sua aplicação ao presente. Constata-se, assim, que devemos, ao usar precedentes, aprender a utilizar padrões de identificação que nos promova extrair dos mesmos seu(s) fundamento(s) determinante(s) a ser(em) passível(eis) de aplicação em hipóteses adequadas em aplicação analógica. Isto significa que o uso do direito jurisprudencial não se limita à mera transcrição mecânica de ementas, trechos de votos ou enunciados de súmula, escolhidos em consonância com o interesse de confirmação do aplicador, de acordo com suas preferências,16 é preciso promover uma reconstrução de toda a história institucional do julgamento do caso, desde o seu leading case, para que evitemos o clima de self service insano, ao gosto do intérprete, que vivenciamos na atualidade.

16 NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Processo e república: uma relação necessária. Acessível em : http://migre.me/mbYh3

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