Prefácio da obra \"O direito fundamental à saúde, um olhar para além do reconhecimento: construindo a efetivação que opera em favor da democracia e do desenho institucional\"

Share Embed


Descrição do Produto

Um direito digno desse nome não poderá ser um direito que caduca quando a força [do Estado] acaba” — (Rousseau).

Um dos principais elementos que conduz um profissional do Direito aos meandros da academia, é a possibilidade de ali encontrar pares com a mesma inquietude diante das respostas que o Direito - enunciado pela doutrina ou aplicado pelos Tribunais - venha oferecendo aos fenômenos sociais. É esse partilhamento de angústias que nos aproxima na academia, e alavanca uma reflexão que busca propor alternativas num contexto sempre desafiante proposto pela realidade. Essa inquietude - aliada a uma incansável curiosidade intelectual - foi um dos elementos a despertar a minha atenção nas primeiras aulas em que encontrei Carina Barbosa Gouvêa, então ainda Mestranda, no PPGD/UNESA. A partir dai, inicia-se um convívio sempre alimentado pela inarredável disposição em aprender e compartilhar manifesta pela Carina, que sempre que solicitada a dedicar um pouco mais de seu tempo e energia intelectual, responde entusiasticamente: "Tá bem!!!". Nesse contexto, previsível que a produção de Carina Barbosa Gouvêa, materializada nessa obra, refletisse essa mesma inquietude intelectual que acompanha sua trajetória acadêmica, propondo uma abordagem num tema já visitado - aquele da efetividade do direito fundamental à saúde - que se revela todavia, original e propositiva. O discurso de efetividade dos direitos fundamentais, especialmente os de cariz social, fulcrado diretamento nos termos do art. 5º § 1º da Constituição Federal constituiu a seu tempo, importante instrumento para deflagrar uma prática constitucional comprometida com a concretização do projeto de transformação social que perpassava toda a Carta de 1988. Assim, afastar a mera programaticidade das cláusulas do texto orientadas à asseguração de direitos socioeconômicos como o da saúde era vetor central de um investimento na fidelidade constitucional. Assim, incorporou-se na doutrina brasileira um enunciado que sustentava a suficiência do Texto Constitucional para oferecer em relação a todos esses direitos os elementos necessários à sua efetivação, autorizando-se, na hipótese de insuficiencia da ação estatal, a garantia judicial da promessa constitucional. O decurso do tempo, todavia, evidenciou fraturas nessa linha discursiva, fragilidades que eram reveladas a cada dia pela internalização no imaginário coletivo da existência de promessas constitucionais que se apresentavam ao povo brasileiro como direitos - não como benesses do poder. A judicialização dos direitos socioeconômicos - dentre eles, notadamente aquele à saúde - se manifesta portanto como um desdobramento natural da fundamentalização desses mesmos direitos, na trajetoria de conquistas civilizatórias descrita pela autora no Capitulo 1 deta obra. No cenário brasileiro, a rede de proteção constitucional relacionada à saúde se apresentou como tema inicial de debate, especialmente à vista das muitas expectativas que o

Texto Fundamental criara, especialmente entre os profissionais da área. Afinal, o desenho constitucional dos deveres do Estado nessa seara se tinha por razoavelmente desenvolvido, seja na principiologia desse mesmo campo de ação, seja na articulação de um desenho institucional que se materializou no Sistema Unico de Saúde. A densificação normativa desse mesmo sistema em relativamente curto espaço de tempo alimentou portanto justas esperanças de uma operação eficiente do modelo, impulsionado por um desenvolvimento teórico de que nos dá conta o Capitulo 2 da presente obra. Esse impulso à relevancia da saúde como elemento basilar até mesmo do Estado Democrático de Direito, é importante que se diga, não se tinha por localizado exclusivamente no Brasil, mas ecoava nas agências e organismos internacionais dedicados aos direitos humanos. A história nos dá conta, todavia, de um outro ciclo de acontecimentos no período imediatamente posterior à promulgação da Constituição de 1988. O Sistema Único de Saúde em seus primeiros momentos revelou-se ineficaz; o compartilhamento de tarefas proporcionou em alguma medida uma incerteza quanto aos distintos planos de responsabilidade, e a crise se instalou, trazendo com ela a judicialização, e a transposição dessa paralisia institucional para o campo do direito. Os primeiros litigios revelavam graves disfuncionalidades do sistema, que muitas vezes, mais do que inapto à proteção à saúde, revelou-se incapaz de preserva à vida. Instala-se portanto a discussão jurídica quanto ao conteúdo do direito à saúde e dos parâmetros postos para sua proteção judicial a partir de um dualismo dignidade da pessoa versus reserva do possível, numa heuristica que desmerece a realidade, muito mais sutil e diversificada na sua complexidade. Superados os momentos de crise mais aguda do SUS, nem por isso a visão binária se teve por superada - e agora tendo em conta não mais a proteção à vida, mas a tutela de multiplos interesses que podem compreender uma interface com a saûde. Já nesse ponto, Carina introduz uma abordagem original no Capítulo 3 da obra, evidenciando a indeterminação presente e futura de ambos os conceitos que supostamente entram em colisão num cenário em que se pretende a expansão das prestações estatais associadas à saúde. Já aqui o reconhecimento do outro - sugestivamente presente no título da obra - se insinua, eis que seja a definição do conteúdo do direito em si (e portanto o que quanto a isso seja reclamado pela dignidade da pessoa); seja a definição quanto à reserva do possível (na cogitação primeira empreendida pela Corte Constitucional Alemã, relacionava ao que a coletividade estaria disposta a suportar prover pelo Estado) estão a sugerir a insuficiência de um debate que gravite singelamente em torno desses dois argumentos. O empoderamento de um sistema constitucional que milite em favor da saúde não se constroi a partir da perspectiva individual do interesse localizado, mas é de buscar sintonia com os princípios enunciados na Carta de Outubro como regedores desse mesmo sistema, em especial, aqueles da universallidade e da equidade. A desconstrução dessa visão simplista, que contrapõe direito à saúde como manifestação da dignidade da pessoa, e reserva do possível como argumento de cunho

exclusivamente financeiro manejado pelo Estado, é já uma contribuição preciosa da obra, que sai da zona de conforto própria da discussão do tema apartada da realidade, para enfrentar a vexata quaestio a partir de uma perspectiva do desenvolvimento funcional do SUS, informado pelas dificuldades que o mundo da vida revela. Segue a obra no enfrentamento, a partir do viés da solidariedade - como objetivo fundamental da República - das potencialidades de se incorporar um partilhamento de responsabilidades, no que toca à garantia da vida digna para o que não tem saúde, a partir de uma perspectiva de horizontalidade dos direitos fundamentais. Mais uma vez o reconhecimento do outro, não numa proposição simplesmente orientada à diminuição de gastos públicos, mas num olhar em que a dignidade não se constitui num status cuja conquista e preservação repouse só no Estado, mas compreenda também às relações que se travam na coletividade. A proposta formulada por Carina Barbosa Gouvêa na presente obra, emancipa a compreensão do direito à saúde, e de suas implicações na transformação social e na garantia da vida livre. Não resume o direito a uma concessão estatal, mas associa seu conteúdo a uma deliberação coletiva, onde as escolhas públicas quanto às inclusões e exclusões que se verifiquem no âmbito do SUS devam ter em conta a dimensão da subjetividade - mas não abdicam da importancia da intersubjetividade. O movimento pendular da história é inexorável, na busca do ponto de equlíbrio de que tenha uma coletividade se afastada à conta de excessos radicais num ou n'outro sentido. No Brasil, o discurso inicial de máxima efetividade, em caráter absoluto, e com vis expansiva de tudo aquilo que minimamente se relacione à vida; tudo acobertado pela bandeira da dignidade, é etapa histórica já exaurida. Afinal, é da natureza mesma dos direitos fundamentais que eles possam se por em relações de tensão, ou mesmo de oposição. O pêndulo parece ter chegado a seu ponto máximo de inflexão, e a mudança de sentido da trajetória se anuncia. A maior resistência para esse novo segmento do movimento inexorável da história, todavia, se põe na argumentação necessária à superação do discuro que levou o pêndulo àquele ponto. Nesse sentido, importantíssima a contribuição de Carina - não só no exercício zetético em relação ao discurso dominante nos conflitos no campo da saúde, mas apresentando propostas para legitimar a reconformação do modelo que as complexidades hoje identificadas como incidentes nessa realidade podem exigir. Questionando as concepções teóricas iniciais, a autora investe na emancipação do homem como responsável pela formulação de suas escolhas - e nada é mais afinado com a teoria dos direitos fundamentais do que a busca desse resultado. Não devo furtar o leitor por mais tempo à leitura das instigantes provocações desenvolvidas por Carina Barbosa Gouvêa na obra que venho de anunciar. Assim, leitor amigo; siga na descoberta!!

Rio de Janeiro, outubro de 2014

Vanice Regina Lirio do Valle Doutora em Direito - UGF Professora Permanente do PPGD/UNESA

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.