prefácio de Armando Marques Guedes ao livro de Patrick Mangovo sobre a Questão de Cabinda

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PREFÁCIO


É com enorme gosto e honra que, a pedido do Autor, me apresso a compor um curto Prefácio para o estudo monográfico inovador saído das mãos de Patrício Mangovo. Um nome a reter, numa paisagem académica em expansão que julgo só poder ser caracterizada como propulsiva. Trata-se de um investigador angolano cujo trabalho tenho tido o privilégio de vir a acompanhar há já alguns anos. A qualidade do que tem produzido parece-me indiscutível; e este estudo demonstra-o à saciedade. Inovação e rigor analítico formam dois dos traços com que podemos caracterizá-lo. Cabe-me aqui explicitar porque assim o considero.. Falo daquilo que, no livro que se segue, Patrício Mangovo apelidou, na esteira de outros, mas com propriedade, "A Questão de Cabinda".
O trabalho de P. Mangovo vai muito para além de uma mera pesquisa de fôlego sobre uma realidade mal conhecida e da maior importância para um amplo rol de entidades: para Angola, para o Enclave de Cabinda, e para os estudiosos angolanos e portugueses – e estes últimos são, desde há bastante tempo, alguns, e têm sido porta-vozes de opiniões divergentes, opiniões essas que são por via de regra emitidas alto e bom som. Porta-vozes, por vezes auto-nomeados, que escrevem e falam sem todavia infelizmente quantas vezes em boa verdade fornecer uma suficiente fundamentação empírica para de um ou outro modo apoiar, e muito menos legitimar, as posições, no essencial políticas, que nelas assumem. Tal como, de resto, o fazem os numerosos autores angolanos que se têm debruçado sobre a problemática da administração local e regional numa Angola em rápida e intensa mutação.
Patrício Mangovo disponibiliza, nas páginas que se seguem, muita da matéria-prima essencial para que a fundamentação que se impõe venha doravante a ser assumida como imprescindível. De um ponto de vista empírico, dada a simples riqueza da informação posta ao alcance de quem o lê, o levantamento é admirável. O esforço conceptual que sustenta esse verdadeiro fluxo dados não é fácil de erigir, e aí também o trabalho apresentado mostra a sua desinvoltura, desde logo pela coragem e frontalidade que P. Mangovo escolhe como suas, bem como pela via de complexidade analítico-narrativa que escolheu. Como? A postura que neste estudo é assumida está eivada de claros laivos normativos (como não podia deixar de ser, dada a linhagem ilustre a que o Autor pertence e em que se revê); excede, por isso, a mera empiricidade do levantamento factual e jurídico-político sistemático em que radica – ultrapassa, assim, os discursos sobretudo politicos que lhe são anteriores, acrescentando-lhes informações da maior relevância, embora, tal como os trabalhos que o antecedem, não se escuse a encarar de frente questões politico-administrativas, e de controlo que seriam impossíveis de tornear. Mas o estudo cuidado que o Leitor tem entre mãos encontra-se também marcado por um pragmatismo tão saudável quão realista. Patrício Mangovo é um angolano de origem cabinda, que assim se assume: nunca abdicando do duplo estatuto identitário que isso implica nos palcos nacionais e internacionais nos quais, no mundo contemporâneo, a República de Angola contracena – e que a Constituição angolana de 2010, mais que lho permite, lho exige. O percurso do trabalho do Autor cartografa com nitidez tanto esse esforço de aquisição de um reconhecimento identitário, como a sua complexidade iniludível. Uma aposta intelectual difícil,
É decerto aqui, neste ponto ou lugar, preciso de inserção que este estudo monográfico maior sentido adquire. Vale a pena delineá-lo com clareza. P. Mangovo logrou, de maneira sustida e inteligente, pairar acima das abstrações jurídicas estéreis e/ou dos idealismos fantasistas e, quase invariavelmente, pouco realistas, do grosso dos autores que o antecederam ao escrever e meditar sobre "A Questão de Cabinda". Não que uns e outros não sejam úteis e francamente compreensíveis numa história relacional que tem sido turbulenta. Essas foram enunciações próprias de um tempo que passou – e, hoje, tais discursos em boa hora cristalizaram num novo patamar um novo plano de um diálogo (nem sempre fácil , mas de grande potencial pacificador). Um patamar em que o presente trabalho se situa e que o estudo a que dá corpo ajuda a desenhar. Fazendo- a passos largos, como um simples relance do enquadramento teórico que Mangovo equaciona torna de imediato evidente mesmo a quem se limite a folher o Índice ou a Bibliografia incluídas no estudo abaixo.
Quero argumentar que é este o ponto em que reside muita da mais-valia mais óbvia de um estudo como o presente: no esquissar de um espaço de pensabilidade para uma retoma, que, mais do que apenas fundamental, me parece ser inevitável. A retoma, explicitemo-lo, de uma interação pacífica e, em simultâneo, procedente feita no quadro daquilo que tenho vindo a apelidar de a nova "Angola-projecto". Uma Angola-projecto para cuja construção, com pormenor e firmeza, Patrício Mangovo, o Autor, se posiciona como sendo, de agora em diante, um interlocultor incontornável para quem a lidera. O que pode porventura ser enunciado e explicado com talvez maior precisão: mais do que uma simples adição ao conjunto de trabalhos intelectuais de qualidade que de Angola têm saído para o mundo, o estudo monográfico aqui contido retoma, em termos mais abrangentes e, por conseguinte, com maior potencial de eficácia, entre Angola projectada e as regiões que Luanda precisa de persistente e cautelosamente controlar para cumprir a missão de edificação nacional que o seu tão doloroso e protelado processo de independência lhe trouxe. Uma missão que se não compadece – como a história de Angola o demonstra – com precipitações nem com simplificações que não podem deixar de soar alarmes. o parágrafo final das Conclusões do Autor do presente estudo é aqui lapidar, e convido o Leitor a lê-lo antes mesmo de encetada a consulta promenorizada da obra que tem entre mãos.
Qual é então, no final, a linha condutora central de Patrício Mangovo? Para terminar, um rápido enquadramento geral (em guisa de sumário) da tese subjacente a este estudo: Patrício Mangovo começa no quadro presente e desloca, depois, a atenção para processos cronológicos que trata na sequência em que ocorreram. Abre ampla a lente insistindo que os desafios que os processos da construção de Estados em África suscitam tornaram o continente num objecto particularmente interessante para as análises na área da Ciência Política contemporânea. Face à globalização, as dinâmicas locais são sempre tidas, argumenta, como factores que devem ser tomados em consideração nas questões da governação democrática – como, de resto é também o caso na Europa, ou na Ásia, Oceânia e Américas. Os enfoques que a obra de P. Mangovo retoma colocam em perspectiva os debates sobre algumas das noções densas da área da Ciência Política e disciplinas afins, designadamente ao esmiuçar da noção de Estado "em contexto africano".
assando em revista algumas das discussões académicas de relevo na formatação deste objecto específico (se, e no sentido em que se lhe pode atribuir generalidade) e suas "sequelas práticas", Mangovo exprime inquietações sobre a origem do fenómeno central que é o poder; e os trâmites da sua evolução histórica vêem-se neste estudo reavaliados; e são-no, na lógica explanatória que segue, olhando para as instituições de governação "tradicionais africanas", como precursores da estatalidade que, nota, se afirmou historicamente (ou seja, no "periodo pré-colonial") nalgumas regiões do continente africano. Mais precisamente, Mangovo retoma-as como exemplos de regiões onde "a sacralização do poder" não levou ao que considera "uma clivagem radical com o contexto social"; isto sem esquecer que vários são os outros factores (como a dificuldades logísticas com que os dirigientes em África deparam quando ensaiam extensões do poder ou o alcance da suas capacidades administrativas para áreas distantes da capital) que levaram – e continuam a levar – a um acréscimo na conflitualidade entre a centralização desejada e a autonomia existente na gestão da autoridade local ou/e regional (isto sim, insiste, levando "ao desaparecimento de algumas experiências estatais que os arquivos históricos não cessam de mencionar").
Na perspectiva de P. Mangovo, o caso de Angola constitui disso uma variante, e a "Província de Cabinda" constitui um caso muitíssimo relevante para uma melhor análise das tentativas de governação dos Estados tradicionalis africanos. Cabinda foi, lembra-nos o Autor, uma das sedes de um dos mais conceituados reinos africanos, o chamado "Reino do Congo", uma entidade política complexa cujo legado em matérias da legitimidade política nos permite discutir em contexto histórico, argumenta, a questão dos processos políticos que involvam as "autoridades tradicionais" actuais.
A obra de Patrício Mangovo olha para o fenómeno colonial como outra variável importante que nos permite melhor destrinçar os alicerces dos actuais Estados africanos independentes – hoje porventura mais do que nunca em crise anunciada – que enfrentam o aparente imperativo de descentralizar algumas das suas prerrogativas ou competências para entidades mais locais. A Angola independente constitui, segundo o Autor, uma peça importante para quem queira olhar com rigor processos do State-building, nos quais questões de integração nacional suscitam perguntas de fundo que requerem uma avaliação permanente dos mecanismos adoptados pelos Estados do continente na consolidação da sua governação. No fundo, a questões abordadas por Mangovo são de alguma forma semelhantes áquelas que, nos casos europeus de integração regional, encaramos como mais passíveis de aplicação de um "princípio de subsidiariedade". Concretamente, a obra em apreço analisa algumas alternativas hoje em voga nos estudos sobre os processos de resolução dos conflitos em países pós-conflitos armados – conjunturas paradoxais nas quais, quantas vezes, a paz conseguida se tornou, afinal, numa das frentes de confronto entre governos que operam top-down, e movimentos armados, que se exprimem bottom-up, de vários tipos.
É sobre esta perspectivação que Patrício Mangovo constrói o seu novo patamar, como o apelidei. Dada a perspectivação que faz sua, e nos termos dela, o Estatuto Especial que, em Angola, estabelece o regime jurídico para a governação local da Próvincia de Cabinda é, nas páginas deste livro, abordado pelo Autor como uma via imprescindivel para uma saída a um tempo legítima e a outro pacífica, do conflito. Esse olhar, como atrás referi, exigiu um balanço dos demais factores em jogo, quer pelo partido no poder em Luanda e no "centro" em geral, quer para os diversos segmentos das conhecidas Frentes de Libertação do Enclave de Cabinda (as famigeradas FLECs), destacando os mecanismos como "descentralização, autonomia e regionalismo" que neles se podem entrever. Mecanismos esses que Patrício Mangovo indica deverem ser encarados como estando (ou devendo estar) situados "acima" de quaisquer interesses político-partidários. Eis o núcleo duro da receita que propõe para a solução de uma "Questão de Cabinda" que considera como uma questão inacabada.
Não queria deixar de reiterar o sentimento de prazer que me dá a redacção do Prefácio de uma obra deste calibre. Muitos trabalhos destes houvesse. Que outros se lhe sigam.

Armando Marques Guedes
Professor
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa




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