Preservação da memória: a responsabilidade social dos Jogos Olímpicos.

June 28, 2017 | Autor: Katia Rubio | Categoria: Narrativas, Historias De Vida, Memorias
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Conselho Editorial Alberto Filipe Araújo, Universidade do Minho, Portugal Ana Mae Barbosa, USP, Brasil Aquiles Yañez, Universidad del Maule, Chile Carlos Bernardo Skliar, FLACSO Buenos Aires, Argentina Cláudia Sperb, Atelier Caminho das Serpentes, Morro Reuter/RS, Brasil Danielle Perin Rocha Pitta, UFPE & Associação Ylê Seti do Imaginário, Brasil

Edesmin Wilfrido P. Palacios, Universidade Politecnica Salesiana, Quito, Ecuador

Ikunori Sumida, Universidade de Kyoto, Japão Ionel Buse, Centro de Estudos Mircea Eliade, Universidade de Craiova, Romênia

Jean-Jacques Wunnenberger, Université Jean Moulin de Lyon 3 & Centre de Recherches G. Bachelard sur l’imaginaire et la rationalité de l’Université de Bourgogne, França

João de Jesus Paes Loureiro, UFPA, Belém, Brasil João Francisco Duarte Junior, UNICAMP, Campinas/SP, Brasil Jorge Larossa Bondía, Universidade de Barcelona, Espanha Katia Rubio, USP, Brasil Luiz Jean Lauand, USP, Brasil Marcos Ferreira-Santos, USP, Brasil Marian Cao, Universidad Complutense de Madrid, España Patrícia P. Morales, Universidad San Buenaventura, Cali, Colombia Pilar Peres Camarero, Universidad Autónoma de Madrid, España Regina Machado, USP, Brasil Rogério de Almeida, USP, Brasil Soraia Chung Saura, USP, Brasil

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São Paulo, 2014 5

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1ª Edição 2014

Publisher Kendi Sakamoto, Ph.D

Assistente Editorial Caio Peroni

Diretora Literária Flavia Bosqueiro

Secretária

executiva

Bruna Rodrigues

Catalogação

na publicação

Shill Pettian CRB 8.8.6707

Revisora

ortográfica

Denise Agostinetti

Editoração

eletrônica

Marcos C. Nishida

Projeto

gráfico da capa

Fernando Tuma

Dados Internacionais

de

Catalogação

na

Publicação (CIP)

Preservação da memória: a responsabilidade social dos Jogos Olímpicos. São Paulo, Képos, 2014 Bibliografia ISBN 978-85-8373-024-8 1. Memória 2. Esporte 3. História 4. Jogos Olímpicos Todos os direitos reservados aos autores. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida sem a permissão, por escrito, dos autores. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98. Képos é um selo da Editora Laços Impresso no Brasil Publicado por Editora Laços Ltda. Av. Paulista, 1.159 – cj. 815 – CEP 01311-200 – Jardins – SP Website: www.editoralacos.com.br E-mail: [email protected]

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Sumário Tempo

de diálogo sobre a preservação da memória do esporte brasileiro. ...................................................................... 9

Parte I – Preservação

e

Legado

Os Jogos Olímpicos

do R io de Janeiro: aspectos históricos e sociais.

Pedro Paulo A. Funari............................................................................. 15

Movimento Olímpico:

uma leitura sociológica sobre desenvolvimento, cenários de crises e futuras possibilidades de mudanças.

Bárbara Schausteck de Almeida; Wanderley Marchi Júnior................. 29

Educação no Esporte. A jornada das Olimpíadas Estudantis. Maria Alice Zimmermann....................................................................... 47

Presente

e futuro do olimpismo: o legado da geração

X.

Raoni Perrucci T. Machado..................................................................... 61

A Importância da preservação e construção de acervos: a experiência do Centro de Memória do Esporte (Esef-Ufrgs). Silvana Vilodre Goellner........................................................................ 77

Memória

e história: desafios metodológicos para os estudos do esporte.

Victor Andrade de Melo ........................................................................ 87

Parte II – Memórias, Narrativas

e

Histórias

de

Vida

Memórias

e narrativas biográficas de atletas olímpicos brasileiros.

Katia Rubio............................................................................................ 105

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O

universo das narrativas.

Luciana Ferreira Angelo........................................................................ 123

Narrativa

vivida no desporto paralímpico português.

Ana Sousa; Rui Corredeira; Ana Luísa Pereira..................................... 139

A

onipresença de João

Havelange

no esporte.

Sérgio Settani Giglio.............................................................................. 165

Memórias

cruzadas: histórias que reescrevem o esporte olímpico brasileiro.

Isaias Sodré da Nóbrega Junior; Júlia Frias Amato; Roberta Cardoso..... 187

Entre

o passado e o presente: o jogo dos papéis nas narrativas de transição de carreira de Paula e Agra.

Neilton de Sousa Ferreira Junior......................................................... 203

A condição do gregário Aspectos de uma prática esporte contemporâneo.

no ciclismo de estrada. competitiva singular no

Rafael Campos Veloso........................................................................... 219

Sobre

os

Autores............................................................................ 233

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Tempo

de diálogo sobre a preservação da memória do esporte brasileiro Há muito a história anda de mãos dadas com a cultura e a psicologia social. Se tempos atrás essa proximidade e confusão pareciam causar mal estar nos puristas defensores das fronteiras do conhecimento e do pensamento, na atualidade essa convivência não apenas é bem-vinda como também desejada uma vez que a produção do conhecimento é cada vez mais pródiga em apresentar referências inéditas nascidas da proximidade entre diferentes teorias. O diálogo, mais do que desejado, se mostra necessário. Alguns temas encontram-se hoje nessa zona fronteiriça entre diferentes campos do saber. A memória é um deles. Gesto essencialmente humano por somar afetividade, cognição, historicidade e cultura, tendo como figura central a pessoa que narra o que recorda, na memória estão contidas as marcas do tempo e dos grupos sociais aos quais pertencemos. Tema caro à psicologia, psicofisiologia, neurociências e à biologia, passou a ser do interesse da antropologia, da sociologia e da história, quando o entendimento da memória saltou do campo da aprendizagem e da educação e alcançou o campo social com a memória coletiva. Le Goff (2013) aponta que a memória coletiva além de uma conquista é também um instrumento e um objeto de poder. “São as sociedades cuja memória social é, sobretudo oral, ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, essa manifestação da memória” (p. 435). Essa postura implica em dar voz, ou ainda deixar expressar pela oralidade, tantos quantos forem os narradores de um determinado grupo social. O esporte, assim como outros fenômenos humanos, apresenta as marcas de um fato que se configura como social e se perpetua no atleta, olímpico ou não, como o narrador de eventos que colaboram para a formação de um imaginário esportivo. Isso porque na condição de protagonista do espetáculo ele tanto é o herói de seu tempo como o anônimo em um futuro chamado pós-carreira.

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Foram esses os temas tratados no IV Seminário de Estudos Olímpicos e que aqui estão registrados. O livro foi dividido em duas partes. Na primeira delas, denominada Preservação e Legado, encontram-se os textos nos quais são discutidas as questões relacionadas ao Movimento Olímpico e ao Esporte a partir de diferentes referenciais teóricos e metodológicos. No capítulo de Pedro Paulo A. Funari encontramos uma visão histórica sobre os Jogos Olímpicos e uma análise do que se entende por legado dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Bárbara Schausteck de Almeida e Wanderley Marchi Júnior fazem uma leitura sociológica sobre o desenvolvimento do Movimento Olímpico, a partir do entendimento das rupturas e cenários de crise ao longo de mais de um século de Jogos Olímpicos, a face pública do Olimpismo. Entendendo o esporte como parte do processo de educação Maria Alice Zimmermann traz um relato sobre as Olimpíadas Estudantis da rede municipal de Educação do Município de São Paulo e os valores transformadores tanto dos estudantes participantes quanto dos professores, formadores dessa geração de estudantes-atletas. O legado da geração X é a contribuição que Raoni Perrucci T. Machado traz para esse debate ao analisar as práticas chamadas de “radicais” no passado e que passaram a receber diferentes denominações no presente e que indicam a necessidade do Movimento Olímpico de se abrir para aquilo que a sociedade aponta como tendência esportiva. À frente de um dos principais Centros de Memória do Esporte brasileiro, Silvana Vilodre Goellner discute a importância da preservação e construção de acervos na preservação da memória do esporte e compartilha a experiência desse trabalho inovador e necessário. O capítulo de Victor Andrade de Melo apresenta os desafios metodológicos para os estudos do esporte a partir do referencial da história e da memória e aponta para as inúmeras possibilidades de trabalhos futuros. A segunda parte do livro, denominada Memórias, narrativas e histórias de vida, conta com a contribuição de diferentes autores que ao se ancoram nas narrativas de atletas para fazerem suas discussões sobre a memória do esporte. 10

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Katia Rubio apresenta sua contribuição sobre narrativas biográficas a partir da perspectiva dos atletas olímpicos brasileiros de diferentes gerações. O universo das narrativas de jogadores olímpicos de futebol é o tema de Luciana F. Angelo que se ateve a esse aspecto na formação da identidade desses atletas. Ana Souza, Rui Corredeira e Ana Luísa Pereira fazem uma discussão sobre o esporte paralímpico a partir da história de vida do principal atleta paralímpico português. O encontro com João Havelange levou Sergio Settani Giglio a refletir sobre a extensão desse atleta que se tornou um dos dirigentes esportivos de maior influência no século XX. A constatação de um erro sobre a identidade de Paulinho Almeida, um jogador de futebol olímpico de 1952, levou Isaias Sodré da Nóbrega Junior, Júlia Frias Amato e Roberta Cardoso a refazerem a trajetória de um astro do Flamengo apagado das memorias do esporte olímpico. A transição de carreira é o tema central dos estudos de Neilton de Sousa Ferreira Júnior que aqui discute a transformação da identidade de Agra e Paula ao encerrarem a carreira de atletas a partir da narrativa de suas histórias de vida. Rafael Campos Veloso traz para discussão o papel do ciclista gregário, atleta responsável por imprimir um ritmo acentuado às provas de ciclismo de estrada, sabedor de que seu papel implica em não disputar espaço no pódio. A diversidade dos temas aponta para a multiplicidade dos diálogos que o tema memória e narrativas propicia. Espero que a leitura desses trabalhos desperte o mesmo interesse e paixão que cada estudo ou história de vida provoca em nós pesquisadores. Boa leitura.

Katia Rubio

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Parte I Preservação e Legado

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do

Os Jogos Olímpicos Rio de Janeiro: aspectos históricos e sociais Pedro Paulo A. Funari Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Começo por agradecer o convite de participar do Colóquio sobre os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e do volume correspondente aos seus anais. Como estudioso das Ciências Humanas, historiador, antropólogo e arqueólogo1, estarei voltado, portanto, às reflexões de caráter histórico e social. Nesta ocasião, apresentarei algumas considerações sobre a historicidade dos jogos, a partir de uma abordagem externalista da história dos fenômenos sociais. Em seguida, passarei a discorrer sobre os jogos antigos, tanto por estarem, de alguma forma, ligados à sua reinvenção na modernidade, como pela possibilidade de aprendermos com a diferença (pace Paul Veyne). Por fim, os Jogos Olímpicos serão tratados no contexto dos estados nacionais e do imperialismo moderno.

A perspectiva A história da ciência é sempre um objeto controverso. O estudo das Olimpíadas, como de tudo o mais, não pode ser separado de como se consideram as transformações do estudo dos jogos. Existe uma longa e respeitada tradição de considerar a ciência como o acúmulo de conhecimento, de geração para geração, acrescentado a realizações e descobertas anteriores. Nos ombros de gigantes, até pequenos passos podem ser considerados como progresso, conforme ponderavam nossos mestres renascentistas. Essa abordagem tem sido descrita por alguns por enfatizar os principais fatores internos que afetam mudanças em qualquer

Bacharel em História, Mestre em Antropologia Social, Doutor em Arqueologia, sempre pela Universidade de São Paulo, livre-docente e professor titular do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, ex-secretáriodo Congresso Mundial de Arqueologia.

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disciplina acadêmica. De fato, Eratóstenes, no século três a.C., não teria sido capaz de calcular o diâmetro do nosso planeta sem os experimentos e raciocínios prévios de matemáticos e geógrafos anteriores. Ele se utilizou de conhecimentos prévios e não há discussão sobre isso. Mas dois outros tópicos têm de ser acrescentados: o contexto e ambiente alexandrinos, por um lado, e o destino de suas ideias. A Biblioteca de Alexandria como instituição acadêmica resultante da saída do império alexandrino da pólis da Grécia Antiga é fator determinante para explicar as conquistas intelectuais, muito além do limitado escopo de cidades em relação direta com o império e a sua visão de mundo. Foi um movimento dependente da mudança da cidade para mundo, de pólis para cosmopolitas. Em alguns séculos o mundo não seria mais considerado redondo, nem as precisas medidas da circunferência da Terra feitas por Eratóstenes seriam consideradas certas. Por algumas centenas de anos o mundo se tornou plano e nenhum matemático, geógrafo ou filósofo grego, apesar de conhecido, era suficiente para mudar a perspectiva perseverante da Terra como um lugar completamente diferente. A ciência não é construída apenas sobre antecessores, mas também mudando princípios. Então, mais importante que acúmulo de conhecimento, os contextos históricos, políticos e sociais são essenciais para determinar e explicar mudanças na ciência. Isso também é chamado de abordagem externalista da história da ciência, ao enfatizar como circunstâncias sociais prevalecem ao moldar o pensamento científico, como considera Thomas Patterson ao discutir a história social da Antropologia dos Estados Unidos, e esse é o principal guia da abordagem usada neste trabalho. Em termos filosóficos continentais, tomar Heidegger, Wittgenstein, Derrida e Foucault, entre outros, também pode ser uma maneira de focar na forma em que se é possível pensar e falar em circunstâncias específicas. Qualquer que seja o nível de sofisticação do nosso entendimento, seja ele pragmático da matriz filosófica anglo-saxônica, ou mais elaborado e abstruso na linha hermenêutica continental, alemã e francesa, é claro que há mais do que o mero acúmulo de conhecimento, essa é a perspectiva deste capítulo. As Olimpíadas modernas referem-se às antigas, como veremos, e isso é fundamental para sua constituição, mas também foram o resultado de condições modernas muito próprias e particulares. Por isso, neste capítulo será dada atenção aos Jogos antigos, modernos e, por fim, às especificidades das Olimpíadas do Rio de Janeiro. 16

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Os Jogos antigos As informações sobre os Jogos Olímpicos antigos (776 a.C. – 393 d.C), de quatro em quatro anos, por 1.168 anos, são tardias e parciais, e isso por dois motivos. Por um lado, a escrita grega antiga tardou a ser usada em larga escala, e a literatura só irá desenvolver-se aos poucos. Por outro lado, nem tudo o que se passava nos Jogos, por seu caráter sigiloso, foi registrado de forma mais explícita. Para além da literatura, as fontes arqueológicas diretas, em Olímpia, e na iconografia, fornecem indícios muito relevantes sobre os Jogos. Dois aspectos parecem essenciais nos Jogos Olímpicos: a religiosidade e a substituição da guerra pela disputa regrada entre atletas. No primeiro aspecto, o termo moderno “religiosidade” dá conta do que os gregos antigos denominavam ta theia, aquilo que se refere aos deuses. Nesse aspecto, muitos estudiosos, a partir de uma perspectiva antropológica, propuseram a aproximação dos Jogos Olímpicos antigos aos jogos indígenas, por sua sacralidade. Tanto as disputas, como as premiações, referiam-se, assim, a valores abstratos, ligados à honra, timé, e ao reconhecimento coletivo, sob a proteção dos deuses olímpicos. O segundo aspecto vincula-se, ainda, à religiosidade, na medida em que os jogos eram uma espécie de ritual de substituição da guerra pela luta de atletas, um agon. A centralidade da guerra, pólemos, para os antigos, pode ser avaliada pela famosa observação de Heráclito:

     (Polemos panton men pater esti)   , i       ,   

   .2 O conflito ou a guerra é pai de tudo. Esse reconhecimento do conflito como essência da vida social foi fundamental para que os antigos gregos pudessem, séculos depois do início dos Jogos Olímpicos, formular interpretações críticas e duradouras sobre a vida em sociedade, koinonia, comunidade. O conflito podia ser

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“ O conflito é o pai de todas as coisas, rei de tudo. Fez de uns deuses, de outros, homens, uns escravos e outros livres”. Heráclito de Éfeso, cerca 490 a.C., citado por Hipólito de Roma (Philosophumena, 9, 4).

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considerado em termos macro ou gerais, entre cidades gregas ou mesmo entre gregos e bárbaros, mas também, e com a mesma relevância, no interior de cada pólis, entre seus grupos sociais. O agón, ou luta individual, a competição nos Jogos Olímpicos retoma essa centralidade do conflito, por um mecanismo antropológico de substituição da guerra e da morte pela regra do combate, nomos, sob o domínio da justiça divina, thémis. O ocaso dos Jogos Olímpicos antigos, na esteira do domínio cristão do mundo, a partir do século IV d.C., ressalta como esse caráter simbólico e religioso era mesmo essencial e não poderia sobreviver incólume à nova cosmovisão cristã. Isso tudo mostra como os Jogos Olímpicos antigos representaram, por mais de um milênio, uma prática muito particular e, com certeza, distante do sentido moderno ao qual este capítulo se volta agora.

Os Jogos modernos: nação e império Os Jogos Olímpicos modernos (1896) surgem em um contexto histórico, social e político muito diverso do antigo. Os Jogos modernos aparecem em ambiente laico, em tudo diferente da predominância religiosa dos antigos. Há algo em comum: o jogo como ritual de substituição da guerra. A modernidade apresenta, junto ao Iluminismo laico e mesmo infenso à religiosidade, duas características: o predomínio das interesses dos nascentes estados nacionais e de suas políticas imperialistas. Os estados nacionais surgiram apenas no século XVIII, na esteira do Iluminismo e de revoluções, como no caso paradigmático da francesa (1789). O antigo regime estava baseado em estados de direito divino, com súditos de uma monarca que pouco precisavam ter em comum. Esses novos estados nacionais baseavam-se em homogeneidade de cidadãos que deviam compartilhar origem, idioma, cultura e território. Surgia, assim, o nacionalismo, que devia dar sustentação a esses sentimentos subjetivos de pertença e unidade. O romantismo e a idealização do caráter ou ethos nacional, a partir do início do século XIX, irão consolidar o nacionalismo como fator cultural central da modernidade. Em paralelo, estados nacionais passaram a confrontar-se e a buscar expandir-se e dominar os não-cidadãos, os colonizados. Na década de 1860, o próprio conceito de imperialismo, com este nome, surgia. Não por acaso, logo em seguida surgiram os Jogos Olímpicos modernos. A Guerra da Crimeia (1853-1856) foi decisiva nesse aspecto, como em tantos outros, pois o horror da guerra 18

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reavivou-se de forma tão contundente que levou à cunhagem desse conceito que está conosco até hoje: imperialismo, guerra entre potências colonialistas. O Barão Pierre de Coubertin (1863-1937), grande criador dos Jogos Olímpicos modernos, inspirou-se, de forma direta e explícita, nos antigos com seu ritual de substituição da luta armada pela disputa regrada, sob os auspícios não mais dos deuses olímpicos, mas, agora, da Humanidade, princípio oriundo do Iluminismo e da Revolução Francesa. Nada mais natural, dada a confiança no ser humano. Os Jogos visavam, de alguma forma, a contrapor-se à disputa militar entre os estados nacionais – à semelhança da contenda entre as antigas cidades gregas – e a refrear o ímpeto imperialista. Não há, pois, como desvencilhar os Jogos Olímpicos modernos dos antigos. Mas, o contexto era outro: capitalista, imperialista. Mais do que isso, a fase otimista e pacifista iria durar pouco (1896, ano dos primeiros Jogos, e 1914, início da Primeira Guerra Mundial e ocaso da Belle Époque, que deu origem aos Jogos modernos). Os Jogos Olímpicos modernos viriam a ser interrompidos por duas Guerras Mundiais (1914-1918; 1939-1945) e, mesmo em outras circunstâncias, os conflitos bélicos levaram a boicotes que obscureceram a universalidade almejada pelo Barão de Coubertin, como nos casos notáveis das Olimpíadas de Moscou (1980) e Los Angeles (1984) no ocaso da Guerra Fria (1947-1989), resultado do conflito bélico no Afeganistão. Não há, pois, como desvencilhar os Jogos Olímpicos modernos do nacionalismo e do imperialismo. Por um lado, confrontam-se estados nacionais, não atletas individuais. O quadro de medalhas é uma ode ao nacionalismo. As pretensões imperialistas também são, na mesma medida, dominantes, pois as potências imperiais estão a dominar também aí: Estados Unidos, União Soviética (depois, Rússia), China, e assim por diante. O fim da Guerra Fria e a instituição de um mundo novo não alterou essa dinâmica nacional/imperial. E o Rio nisso tudo?

As Olimpíadas no Rio de Janeiro: nacionalismo e imperialismo As Olimpíadas no Rio de Janeiro, em 2016, inserem-se nesse contexto nacionalista, imperialista e mesmo pós-moderno. Claro, foi uma aventura em prol da grandeza do estado nacional brasileiro, com pretensões imperiais, ao menos no âmbito local 19

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latino-americano, e nenhum lugar mais apropriado para isso do que a antiga capital do império lusitano (1808), brasileiro (1822), lux mundi, única entre tantas outras, maravilhosa, no sentido etimológico de capaz de causar admiração e espanto. As Olimpíadas do Rio de Janeiro moldaram-se aptas a fazer da nação uma estrela de primeira grandeza, ao mesmo patamar de Moscou, terceira Roma, de Paris ou de Roma (caput mundi e cidade eterna), assim como das potências econômicas, como Los Angeles, Tóquio ou Pequim. Além disso, inspirada em Barcelona, a Olimpíada poderia transformar-se em oportunidade para renovar a cidade e os equipamentos urbanos. Nesse quesito, não há como não ser levado à ironia da oposição de uma Barcelona industrial e industriosa, sempre atenta ao capital, e a autoimagem do Rio como uma Roma da dolce vita. Havia, pois, desde o início, tanto uma pretensão nacionalista como imperialista, à maneira de Viena, que, de fato, nunca sediou uma Olimpíada. O Rio de Janeiro, contudo, à diferença da antiga capital do Império AustroHúngaro, tão ligada à casa imperial brasileira, conseguiu, no início do século XXI, a distinção de sediar uma Olimpíada. Não cabe dúvida de que a aposta brasileira, além de nacionalista e imperial, envolvia a promessa de uma renovação urbana radical e redentora, inspirada, de maneira direta, em Barcelona. Cidades portuárias e ensolaradas, tudo parecia indicar que se poderia efetuar o mesmo milagre pelo toque de Midas das Olimpíadas. Pouco importava que Barcelona fosse e seja o centro industrial da Península Ibérica, nunca capital política, mas sempre ambiciosa pela sanha do capital. O Rio de Janeiro não se adequaria a esse modelo. Pouco importava ou importa. As Olimpíadas do Rio de Janeiro, para além desses paroxismos locais, representam a quintessência das contradições brasileiras. Uma sociedade das mais desiguais do mundo, uma metrópole das mais iníquas, investimentos parcos voltados para melhorias urbanas, ingentes somas destinadas a poucos, tudo tende a confirmar os mais obscuros prognósticos. Oportunidades perdidas, talvez, ou mecanismos de substituição, a partir da Grécia antiga. Desde sempre, os jogos foram substitutos da guerra; a derrota em combate tem sido a troca da morte pela vida. A esse respeito não cabe senão louvar o espírito humano. Jogos antigos e modernos se aproximam neste e em outros aspectos: um ritual que substitui a violência bruta pela ordem (pace Norbert Elias e Eric Dunning). O processo civilizatório transforma a disputa simulada em simulacro do 20

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massacre em campo de batalha. As regras são o sinal do respeito ao coletivo, modelo da democracia e do estado de direito.

Desafios das Olimpíadas no Rio de Janeiro Quando da submissão da proposta de realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, os objetivos consistiam em fornecer meios para uma melhora das condições de vida não apenas na cidade sede, mas mesmo no país. Como dizia o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2009: “aprovamos financiamento significativo e abrangente, conscientes do legado que os Jogos deixarão para o Rio de Janeiro”. Havia, pois, previsão de investimentos públicos e privados induzidos em meios de locomoção (avenidas, estradas, aeroportos), na melhoria das condições ambientais, mas também, claro, no âmbito esportivo em si. Nesse aspecto, houve o planejamento tanto do suporte ao esporte olímpico, como a difusão mais ampla das práticas esportivas. O apoio ao Olimpismo deu-se por meio de atividades oficiais e acadêmicas instigadas pela realização dos jogos no Brasil. Assim, por exemplo, multiplicaram-se as publicações e pesquisas acadêmicas em todo o amplo espectro ligado ao desporto: Educação Física, Fisiologia, mas também em muitas outras áreas, como a Sociologia do Esporte. O impacto acadêmico, portanto, foi e tem sido grande, como no caso de outros temas e efemérides, que geram pesquisas e reflexões de grande fôlego e repercussão para o futuro da investigação no tema esportivo e olímpico. Esse talvez se possa dizer, pela experiência histórica, seja o legado mais sólido e duradouro. No que se refere ao desenvolvimento do esporte olímpico, a situação é, em termos históricos, diversa. Os Jogos Olímpicos e sua realização costumam impulsionar a prática do esporte olímpico de forma muito desigual. Em países ricos ou centralizados, essa repercussão é maior e mais persistente, pois há uma estrutura olímpica fundada na abundância de recursos, em um caso, ou na indução direta pelo Estado, nos outros casos. Essa situação era mais evidente à época da contraposição entre as potências capitalistas liberais e os Estados de economia centralizada – de um lado, os Estados Unidos e seus aliados ; de outro, a União Soviética e sua esfera. Com o fim da Guerra Fria (1947-1989), mesmo assim, manteve-se essa polaridade entre modelos liberais, de um lado, e outros parâmetros centrados na ação planejada do Estado no apoio ao esporte olímpico. 21

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Isso significa que os Jogos Olímpicos não têm impacto, de forma significativa e duradoura, na configuração do esporte olímpico no país-sede, a não ser que já existam condições materiais ou organizacionais bem estabelecidas. Países como o Brasil, que não são ricos ou centralizados, não parecem ter um rendimento olímpico melhorado de forma perene e sólida, nem as práticas olímpicas foram tão beneficiadas, como atestam os casos do México e da Grécia, ainda que esta última seja muito mais rica, em termos de renda per capita, do que o Brasil ou o México (22.083 dólares per capita na Grécia, ante 11.340 no Brasil e 9.749 no México). Nesse contexto, o Brasil entrou na aposta olímpica sabedor das limitações estruturais para que os Jogos Olímpicos pudessem produzir efeitos excepcionais, ou seja, que pudessem ser diferentes da experiência história das Olimpíadas modernas. Da mesma forma, e ainda mais, se pode considerar a questão da renovação urbana e econômica que poderia resultar dos Jogos Olímpicos. Não se poderia colocar demasiada ênfase nisso, pois mesmo nos mais bem-sucedidos exemplos, os impactos dependeram de fatores externos. O caso de Barcelona é o melhor, pois foi a integração à então Comunidade Econômica Europeia que permitiu a renovação urbana, enquanto Atenas contrasta, exatamente, pela fragilidade da economia grega. Outro aspecto importante refere-se à gestão de recursos e, aqui também, o tema transcende os aspectos técnicos ou esportivos. Em Olimpíadas recentes, como em Atenas e em Sochi, houve suspeitas de desperdícios ou de apropriação de recursos nem sempre em benefício da sociedade como um todo, de forma a contribuir para minorar as desigualdades e fortalecer os mecanismos de criação de riqueza. Nesses casos, assim como no Brasil, tais perigos derivam da estrutura social, da trajetória histórica dessas sociedades. O patrimonialismo, as relações pessoais e hierarquizadas acabam por condicionar os meios de gestão de recursos. No caso brasileiro, em particular, como atestam Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda ou Roberto DaMatta, algumas características resultaram numa das sociedades mais desiguais do mundo e com gestão nem sempre transparente, mesmo em ambiente de Estado de Direito e de plena liberdade. Os movimentos sociais e as manifestações de rua, desde meados de 2013, apresentaram a Copa do Mundo de Futebol da FIFA como um dos motivos de crítica social. A crítica, em grande parte, tem se referido à eficácia na distribuição de recursos que deveriam, 22

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segundo muitos, beneficiar a população em geral. Esse é o outro desafio dos Jogos Olímpicos e que, como nos demais casos, não está no âmbito esportivo stricto sensu, mas é uma questão social mais ampla.

O Rio de Janeiro a dois anos das Olimpíadas O que esperar das Olimpíadas? Para um estudioso do passado, nada mais triste do que especular sobre o futuro: nunca alguém acertou a esse respeito, nem os mais prescientes. Não seria, pois, o caso de projetar nada, mas de refletir sobre as Olimpíadas como oportunidades e desafios. Como diria Aristóteles, o que poderia ser é sempre mais relevante do que foi ou será. O potencial, dynamei, abre perspectivas. As Olimpíadas de 2016 têm como modelo Barcelona, 1992, pelo potencial de renovação urbana de uma cidade portuária e voltada para a beleza natural e ambiental. O temor é que o resultado esteja mais próximo de Atenas, em 2004, ou, pior ainda, os Jogos de Inverno de Sochi, em 2014. Ou seja, em um lado do extremo, renovação urbana e difusão de benefícios, e, no outro, corrupção e manutenção de iniquidades. Isso, saberemos em algum tempo. Aqui, pode-se tratar das expectativas e das esperanças. As Olimpíadas no Brasil, no Rio de Janeiro, síntese dos aspectos mais profundos do país, podem contribuir para mostrar ao mundo e ao próprio público brasileiro como as disputas e diferenças são normais, aceitáveis, parte da humanidade, se estiverem sobre o controle de normas aceitas pelas partes. Portanto, as disputas podem ser mais do que uma batalha entre estados nacionais pelo prestígio, mais do que uma pretensão imperial e imperialista, como foi por tanto tempo e em tantas circunstâncias. Isso é realista? Difícil dizer, mas temos elementos para ter essa esperança. O Brasil apresenta uma convivência com o conflito que é secular, mas também está fundado na mescla até a medula. As Olimpíadas podem fornecer uma oportunidade única para mostrar a diversidade e o respeito à diferença como valores. Só isso já valeria todo o esforço que se tem feito. O espírito olímpico grego antigo, com sua ênfase na espiritualidade, assim como o ímpeto laico e amistoso dos modernos, pode fazer com que os jogos do Rio de Janeiro contribuam para um mundo menos sujeito ao nacionalismo e ao imperialismo, duas marcas centrais das Olimpíadas modernas. Se assim for, será uma grande contribuição. 23

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Agradecimentos Agradeço à colega Katia Rubio o convite de participar do IV Seminário de Estudos Olímpicos, assim como aos colegas que refletem sobre o tema esportivo: Helena Altmann, José Olímpio Bento, Eric Dunning, César Montagner, Heloísa Reis, Kimberley Schimmel e Carmen Lúcia Soares. Menciono, ainda, o apoio institucional da Unicamp, do CNPq e da FAPESP. A responsabilidade pelas ideias restringe-se ao autor.

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Movimento Olímpico: uma leitura sociológica sobre desenvolvimento, cenários de crises e futuras possibilidades de mudanças Bárbara Schausteck de Almeida Universidade Estadual de Londrina/Universidade Federal do Paraná

Wanderley Marchi Júnior Universidade Federal do Paraná/CNPq

Introdução Nesse exercício reflexivo propomos uma leitura do movimento olímpico como fenômeno social e, por essa característica, sobre sua existência e resistência, somente possível através de enfrentamento de dilemas e mudanças. Em outras palavras, entendemos que o movimento olímpico, ao fazer parte da dinâmica social mais ampla, nela afeta e é afetado, se constitui e é constituído, a partir da resposta a questionamentos por reinvenções constantes, que culminam em pontos de rupturas necessárias para sua sobrevivência e continuidade. Essa dinâmica pode ser observada quando percebemos, desde sua mobilização encabeçada por Pierre de Coubertin ao final do século XIX até os dias atuais, diversos períodos que podem ser mais ou menos demarcados a partir de eventos marco. Seguindo o referencial teórico que lançamos mão para a leitura desse fenômeno, podemos entender que a dinâmica do campo esportivo é influenciada por outros campos, especialmente os campos político, midiático e econômico, cujas lógicas exigem dos dominantes de seu campo a tomada de posicionamentos que favoreçam a manutenção nessa posição (BOURDIEU, 1998). Mais especificamente, o COI, na posição de dominante no campo esportivo (BOURDIEU, 1983), mobiliza uma série de estratégias para se manter como dominante enquanto detentor dos direitos do evento esportivo considerado como um dos mais importantes do mundo, demandando uma atuação consonante aos interesses de dominantes nos outros campos mencionados (BOURDIEU, 1997). Aqui se percebe sua inclinação para o atendimento das 29

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exigências das mídias, através do fornecimento de infraestrutura necessária para veiculação das imagens dos eventos para mais de 200 territórios; no repasse dessas demandas para os países e as cidades que sediam os eventos, motivados para verem também as imagens locais difundidas e, quem sabe, gerando benefícios tangíveis e intangíveis num futuro mais ou menos próximo; bem como no aquecimento – em consequência do estabelecimento dessa complexa rede – de mercados consumidores de produtos relacionados aos eventos ou mesmo daqueles mercados capazes de atuar na produção do espetáculo em si – fornecedores de matéria-prima, construções, tecnologias, publicidade, entre outros serviços. Por vezes, o atendimento de demandas pelo movimento olímpico, especialmente as que são vistas como externas àquelas do próprio campo esportivo, com frequência caracteriza uma quebra de paradigma e, não por acaso, é vista com desconfiança num primeiro momento e, em alguns casos, saudosismo décadas depois. Entre essas quebras, podemos exemplificar a aceitação da participação de mulheres como atletas (ver RUBIO, 2011), a liberação da participação de atletas tidos como profissionais pelo rompimento com o ideal do amadorismo (ver RUBIO, 2002) e a potencialização das possibilidades de ganhos financeiros, especialmente a partir dos Jogos Olímpicos (ver PRONI, 2008) como três exemplos marcantes já presentes em debates acadêmicos no Brasil. Essas quebras ou rupturas, entre outras, poderiam ser utilizadas como parâmetros para estabelecer marcos temporais e períodos com similaridades consonantes às suas realidades históricas, sem com isso ignorar as singularidades de cada edição dos Jogos. Nesse sentido, o exame de determinadas características que sejam prioritárias ou motivo de atenção do pesquisador permite distintas propostas de periodização para compreender a história do movimento olímpico moderno ou, mais especificamente, dos Jogos Olímpicos a partir de 1896. Por exemplo, Lucas (1980) aponta para sete fases, com base em momentos mais detalhados de crescimento e crise em sua história temporal até o que se apresentava no início dos anos 1980. Ao revisarem o histórico do desenvolvimento urbano através dos Jogos Olímpicos, Chalkley e Essex (1999) e Liao e Pitts (2006) entendem que existem quatro fases diferentes sobre o que o evento mobilizava em relação às mudanças de infraestrutura nas cidades sede. Já Rubio (2010) propõe igualmente quatro fases, porém com datação distinta dos 30

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autores anteriores, pois enfatiza aspectos internos e externos que de alguma forma influenciaram a dinâmica sob a qual o evento e o próprio movimento olímpico eram regidos. Ainda outras diferentes periodizações poderiam ser aplicadas com base em variados critérios, tais como presidentes no poder, inserção de novos países como membros, adoção de diferentes tecnologias de transmissão, evolução econômica de patrocínios, variedade de países, atletas ou público, e assim por diante. Essas possibilidades reforçam nosso entendimento sobre a existência de descontinuidades no percurso histórico do movimento olímpico moderno sob a direção do COI. Partindo da última ruptura desse percurso histórico, marcado pelos eventos da década de 1980 que caracterizam o início da fase profissional e espetacularizada dos Jogos Olímpicos, buscamos neste capítulo identificar os efeitos que essa transição e as novas conformações passaram a exercer durante esse período, apontando para os elementos que, muitas vezes sob a denominação de “crise”, deixam iminente a necessidade de novas mudanças e transformações para sua sobrevivência e continuidade.

A última ruptura: profissionalização, mercantilização e espetacularização dos Jogos Olímpicos Dentro das possíveis propostas de periodização, ao falarmos de profissionalização podemos nos referir tanto à profissionalização dos atletas, especialmente suas formas de treinamento e conquista de recordes, quanto à organização do evento em si (RUBIO, 2010). Sendo assim, o período entendido como de profissionalização pode ser demarcado a partir da década de 1980. Especialmente nos Jogos de Los Angeles 1984 já é possível notar uma transição entre a ênfase do evento em aspectos políticos para uma ênfase nos seus aspectos econômicos (HORNE; MANZENREITER, 2006), em um modelo típico de incorporação do esporte na lógica capitalista de expansão de mercado (GRUNEAU, 1984). Essa edição dos Jogos Olímpicos possui diversas particularidades. A partir da iniciativa de empresários locais, a cidade de Los Angeles apresentou sua candidatura em 1977, sendo posteriormente confirmada como a candidata estadunidense após disputa com a cidade de Nova York. Com a desistência da cidade 31

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de Teerã (no Irã) ainda antes da reunião de decisão da cidade-sede pelo COI, Los Angeles foi proclamada sede dos Jogos Olímpicos de 1984 em setembro de 1978 (FINDLING; PALLE, 1996). Naquele momento, o destaque do plano de candidatura era a intenção de não onerar os habitantes com taxas ou impostos para custear o evento (BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002). Essa tentativa de independência financeira marcaria a singularidade desse evento em uma série de aspectos. Com o endividamento de Montreal 1976 na memória recente e a inexistência de candidaturas concorrentes, o comitê de candidatura de Los Angeles teria barganhado com o COI a necessidade de garantias financeiras públicas na candidatura e para o evento em si, permitindo, assim, sua liberação para uma administração totalmente privada (ANDRONOVICH, BURBANK, HEYING, 2001). A segunda negociação se deu em relação aos direitos de transmissão, que naquela oportunidade se tornou responsabilidade do comitê organizador local e não mais do COI (HILL, 1996; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002). O quadro estrutural anterior do movimento olímpico, de esvaziamento do interesse de cidades para sede, aliado à postura mais enérgica e proativa das lideranças privadas de Los Angeles, devem ser considerados nesse inédito processo de independência para negociações, que não veio a se repetir em nenhuma das seguintes edições (COCHRANE; PECK; TICKELL, 1996; HILL, 1996; FINDLING; PALLE, 1996). Para garantir o máximo de lucro e o mínimo de despesas, o comitê organizador negociou o patrocínio de grandes empresas e os direitos de transmissão, gerando uma arrecadação recorde em comparação aos eventos anteriores. Sobre os custos, houve uma forte mobilização para minimizá-los através do uso majoritário de instalações esportivas já existentes. Como consequência, não houve uma concentração dos locais de prova, sendo que algumas competições estiveram dispersas para além dos limites da cidade de Los Angeles, em grandes distâncias territoriais no sul do estado da Califórnia. Ao final, apenas três instalações esportivas e poucas obras de infraestrutura ou renovação urbana foram realizadas. Outra redução de custos se deu a partir do emprego de mão de obra de voluntários ao invés de pessoas contratadas, resultando em 33 mil voluntários, um número superior ao de edições anteriores (FINDLING; PALLE, 1996; GOLD; GOLD, 2007; HILL, 1996; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002; SCHERER, 2011; SZYMANSKI, 2011). 32

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Nesse desenho político, administrativo e financeiro, os Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984 são considerados um marco de sucesso comercial e financeiro, já que seus lucros alcançaram US$ 225 milhões a US$ 232 milhões, número que possui ainda maior impacto considerando-se que o evento custou US$ 500 milhões (WHITELEGG, 2000; BURBANK, ANDRONOVICH, HEYING, 2002; PREUSS, 2004). Na tentativa de otimizar os investimentos e gerar lucros, outras cidades se sentiram motivadas a sediar futuros eventos e as concorrências voltaram a existir nos anos seguintes (GOLD; GOLD, 2007; GLYNN, 2008; TIEN; LO; LIN, 2011). Embora o caso de Los Angeles tenha sido posteriormente tomado como modelo a ser seguido por outras cidades, ele não necessariamente se repetiu. Ainda que as mobilizações para candidaturas posteriores também tenham se dado a partir de grupos privados, Atlanta 1996 e Salt Lake City (para os Jogos de Inverno de 2002) – para considerar as cidades estadunidenses como objeto de comparação – não possuíam as instalações necessárias de nível olímpico e a infraestrutura urbana compatível, exigindo, assim, recursos financeiros públicos e se tornando menos independentes no processo de tomada de decisões. Mais do que isso, nesses dois casos os Jogos Olímpicos serviam como justificativa para o desenvolvimento de projetos urbanos além de supostos benefícios simbólicos, o que não era o caso de Los Angeles (ANDRONOVICH, BURBANK, HEYING, 2001). Nesse sentido, é preciso ponderar que, embora Los Angeles 1984 sirva como case de sucesso e constantemente seja recuperado para apontar a possibilidade de lucro que os Jogos Olímpicos podem trazer para a cidade-sede, repetir esse modelo exigiria um cenário com infraestrutura prévia e intencionalidades por parte dos organizadores, o que atualmente não parece factível. Essa dificuldade é marcante ao levarmos em consideração o aumento do evento em si e das exigências técnicas das instalações esportivas para o nível olímpico, mas também o retorno do controle pelo COI das negociações de direitos de transmissão e patrocínio, assim como o retorno das exigências relacionadas à garantia financeira pública para aceitar as candidaturas olímpicas. Independentemente dessa dificuldade – se não impossibilidade – de repetição do caso de Los Angeles no retorno lucrativo financeiro de se sediar o evento, o que se observou a partir da década de 1980 até as edições de Jogos Olímpicos mais recentes foi o aumento exponencial no tamanho 33

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do evento. Esse crescimento pode ser observado a partir de diversos dados quantitativos: número de atletas (de 6.829 para 10.568 em 2012) (MILLER, 2012; INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, 2013), número de membros das comissões técnicas (de aproximadamente 19 mil para 50 mil em 2004) (PREUSS, 2004), número de países participantes (de 140 para 204 em 2008) (MILLER, 2012), número de eventos – nas modalidades esportivas, as competições conforme categorias e sexo (de 221 para 301 em 2012) (INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, 2013) e arrecadação em patrocínio e direitos de transmissão (de US$ 96 milhões em 1988 para US$ 957 milhões em 2012) (INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE, 2012). Considerando o crescimento do evento e dos diversos dados quantitativos que o rodeia, discutimos, a seguir, dois desdobramentos dessa realidade: a necessidade de uma infraestrutura que demanda um alto grau de investimento por parte das cidades que sediam os eventos; e, também por essas demandas e visibilidade gerada pelo tamanho que os eventos passaram a ter, a falta de articulação entre a realidade apresentada pela realização dos Jogos Olímpicos e a filosofia que os sustentariam, o chamado Olimpismo.

A transformação em “mega” evento: custos, impactos e legados Sob a direção dos presidentes Juan Antonio Samaranch (1980-2001) e Jacques Rogge (2001 até 2013), os Jogos Olímpicos tiveram uma ascendência em diversos aspectos e alcançaram a proporção “mega” em visibilidade e alcance de audiência internacional, assim como nas estruturas e mobilizações necessárias para sua realização por parte de cidades e países sede (HORNE; MANZENREITER, 2006). Conforme os dados apresentados, houve um incremento nos custos da realização dos eventos pelas cidades-sede, as quais necessitam fornecer a infraestrutura para os atletas, suas equipes e delegações, bem como para os eventos (competições), enquanto a arrecadação se tornou cada vez mais concentrada e organizada, gerando recursos financeiros substanciais administrados pelo COI. Respaldados, ou em paralelo, aos dados quantitativos de crescimento do evento nas últimas décadas, os discursos externalizados na expectativa de convencimento ou entendimento sobre os possíveis benefícios que sediar os megaeventos esportivos 34

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pode trazer são divididos em três grandes tendências: a desenvolvimentista, a de criação ou remodelação de imagem e a sociopolítica (BLACK; VAN DER WESTHUIZEN, 2004; BLACK, 2008). Os argumentos desenvolvimentistas apontam que os megaeventos esportivos proporcionam o crescimento em diversas áreas. A expectativa do desenvolvimento urbano normalmente justifica a liberação de recursos públicos para a realização de obras que atendam as demandas do evento. Antes servindo como consequência – porque os eventos seriam hospedados em uma cidade ou região onde seria necessário efetivar investimentos para suprir uma demanda maior –, atualmente eles servem como motivação – porque as obras precisam ser realizadas, então a cidade se candidata ao evento. Nesta última lógica, os eventos servem para a realização de projetos locais, num período de tempo bem definido (ANDRANOVICH; BURBANK; HEYING, 2001). Mas apesar dos investimentos em infraestrutura, na literatura existem dúvidas sobre até que ponto esses impactos são positivos. O cenário que se apresenta é de que, em se tratando de megaeventos, os benefícios são superestimados considerando os elevados custos, usualmente subestimados (WHITSON; HORNE, 2006), embora essa constatação seja normalmente feita apenas depois de o evento acontecer. Por isso, embora os países possam se embasar nas experiências de sedes anteriores, ainda parece existir não somente estratégias que ocultam esses fatos em detrimento de selecionados casos de sucesso, mas também outras motivações que se tornam suficientes para sobrepor esses riscos. Assim, o segundo elemento seria de criação ou remodelamento de imagem. Numa percepção dos megaeventos como estratégias de globalização e reestruturação econômica das cidades da década de 1990, esse aspecto acaba por ter como finalidade última a atração de investimentos e negócios (HILLER, 2000). Especificamente os Jogos Olímpicos são entendidos por L’Etang (2006) como o principal exemplo que mobiliza a agenda de relações públicas no plano internacional: criar ou promover ideologias, formatar mitos e ícones, promover produtos e ainda criar pontos de referência e critérios internacionais. Também sobre esses aspectos, ainda não existem fontes que apontem para um incremento de longo prazo na imagem positiva de cidades que sediaram megaeventos esportivos para turistas (COATES; MATHESON, 2011). Essa estratégia unifica o discurso em torno de um objetivo amplo e intangível, mas que permite a inserção de diversas intenções mais pontuais daqueles que 35

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tomam decisões a respeito da candidatura e têm a possibilidade de alcançar objetivos mais setoriais, como impacto no turismo em curto prazo, instalações esportivas e investimento público em infraestrutura (ANDRONOVICH; BURBANK; HEYING, 2001; SHORT, 2008). Inevitavelmente, debates sociopolíticos compõem os dois elementos anteriores, mas nesse caso nos referimos aos aspectos nacionais ou internos que vão além da proposta desenvolvimentista e têm mais uma característica de crença ou expectativa que povoam os discursos oficiais do que propriamente são mapeados por pesquisas científicas (BLACK; VAN DER WESTHUIZEN, 2004). Da mesma forma, tais aspectos não estão totalmente desvinculados das ações ou impactos externos, em que por vezes uma ação serve para ambos os objetivos (interno e externo) (CORNELISSEN, 2008). Novamente, nesse elemento existem interpretações que apontam como motivação última da mobilização discursiva no sentido sociopolítico como sendo o crescimento econômico. Nessa linha, o engajamento social e um sentimento de bem-estar e orgulho nacional/local viriam acompanhados de um maior comprometimento das pessoas pelo trabalho e desenvolvimento. A análise de Bourdieu vem sendo incorporada por outros autores – por exemplo, Black e Van Der Westhuizen (2004) – para pensar os benefícios social e cultural, para além do econômico, ainda que o referencial dê margem para considerar uma futura conversão de capitais principalmente se observadas suas manifestações objetivadas e institucionalizadas (NOGUEIRA; CATANI, 1998). Um aspecto desafiador que vem à tona durante a revisão da literatura é a linha tênue – se é que qualquer divisão existe por mais tênue que seja – entre aquilo que se entende por “motivo para” e “impacto da” realização de um megaevento. Em geral, os autores levantam uma vasta literatura que aponta para as possíveis razões de sediar esses eventos, com base em casos anteriores de sucesso econômico, urbano e político, principalmente, ainda que não sejam poucas as obras que lembrem casos de insucesso, questionem metodologias e apontem os riscos detrás dessas ações (HORNE; MANZENREITER, 2006). Sob esse entendimento, forma-se um círculo vicioso com o discurso constante acerca da “necessidade” de adaptação da infraestrutura para manter renovada a rede privada de benefícios e realização de investimentos, com o financiamento eminentemente público, apesar de os benefícios não serem 36

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tão públicos assim (HALL, 2006). Mas para isso, as intenções de criação de uma imagem positiva para atrair consumidores, turistas e negócios, estão imbricadas com inúmeros problemas sociais relacionados à criminalização da pobreza, à negação de determinados preceitos em direitos sociais e à comercialização do espaço urbano, geralmente práticas cujas justificativas estão travestidas em propostas de segurança dos espaços para os futuros negócios (ANDREWS; SILK, 2012). Esses fatos, além da dúvida sobre os reais benefícios e beneficiados com a realização dos eventos, questionam o discurso do movimento olímpico, em muitos casos desafiando sua continuidade. Na sequência, apresentamos sumariamente como esse discurso foi construído por Pierre de Coubertin e alguns dos momentos em que ele vem sendo questionado nas últimas décadas.

As “crises” no Olimpismo A intenção de Pierre de Coubertin em “reviver” os Jogos Olímpicos surge a partir do seu interesse no esporte como mobilizador de um sistema que envolvia a educação moral, física e intelectual para enfrentamento de uma situação de crise (BROWN, 2012). Após diversas viagens e investigação de distintos sistemas, buscando um modelo para aplicar na educação de seu país de nascimento, a França, Coubertin organizou suas ideias com um caráter combinado, em que algumas das características do modelo grego de jogos e atividades físicas passam a ser tomadas como ferramenta pedagógica (MACALOON, 1981). Lucas (1980) descreve que a compreensão de Coubertin sobre a filosofia grega, evidenciada na tríade de moral, intelecto e corpo, estava bastante interligada com o entendimento sobre a disciplina, a virilidade e a postura esportiva que estaria sendo colocada em prática nas grandes escolas inglesas. O Olimpismo surge, então, com a ênfase nessa atitude que regia, ao menos na sua visão idealizada, o funcionamento do esporte nas escolas inglesas (LUCAS, 1980). Partindo dessa compreensão, uma mistura de nacionalismo e internacionalismo teria sido a motivação para o “reviver” dos Jogos Olímpicos. O primeiro, porque a derrota militar francesa para a Prússia no ano de 1871 teria influenciado o entendimento de Coubertin de que a preparação física e a disciplina eram virtudes a serem desenvolvidas em seu país. Se essa preparação e disciplina eram desenvolvidas pela cultura ginástica germânica, o sistema de esportes da Inglaterra servia como um contraponto 37

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para não se adotar as técnicas do país que o derrotou (GUTTMANN, 1984). Embora Coubertin tivesse apenas 8 anos naquele momento, o insucesso na guerra afetou sua família e sua geração, consequentemente. Ele teria se convencido de que os métodos da educação esportiva inglesa, especificamente a de rugby, seriam a razão para o desenvolvimento da Inglaterra como potência no século XIX, podendo a França seguir um caminho semelhante quando adotasse alterações em seu sistema educacional (LUCAS, 1980). Em relação ao internacionalismo, a proposta da conferência em Sorbonne, em junho de 1894, com a presença de representantes de nove países, mostra a intenção de tornar o evento internacional (GUTTMANN, 1984). As exibições ou feiras internacionais organizadas na França nos anos de 1878 e 1889 também indicam uma perspectiva semelhante no contexto mais amplo nacional, em que elas serviriam como compensação do isolamento diplomático e a estagnação econômica do país naquele período (TOMLINSON, 1984). Para Paradis (2010), em comparação a esses outros eventos, os Jogos Olímpicos foram mais bemsucedidos porque se mostraram não somente como exibição, mas promoviam elementos de masculinidade e heroísmo com foco nas capacidades e conquistas individuais, valores benquistos pelo público em tempos de nacionalismo e imperialismo reinantes no ambiente internacional, principalmente europeu. Inúmeros fatores da filosofia na qual os Jogos Olímpicos foram recuperados por Coubertin são controversos, tanto sobre os métodos e as consequências do esporte nas escolas públicas, quanto sobre as informações que historiadores mobilizam sobre os Jogos Olímpicos antigos na Grécia, sendo que essas más compreensões teriam resultado em um evento com base em falsas premissas ou uma invenção de valores que embasariam a versão moderna (HILL, 1996; TOMLINSON, 1984; YOUNG, 1985). Além disso, outros indícios históricos colocariam em xeque até mesmo o protagonismo de Coubertin como “pai” ou “fundador” do movimento olímpico moderno (WEILER, 2004), o que aumentaria o tamanho da “colcha de retalhos” dos ideais que embasam o movimento olímpico (ZAKUS, 1992). Sendo assim, com datação muito anterior àquela proposta nesta análise, supostas crises no Olimpismo são identificadas com frequência na literatura. Essas crises, em especial, denotam uma incompatibilidade – ou uma compatibilidade conforme a conveniência – entre os supostos valores mobilizados por 38

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Coubertin na construção da filosofia do Olimpismo ao final do século XIX e as ações levadas a cabo pelo COI na gestão do movimento olímpico e, em especial, dos Jogos Olímpicos no final do século XX e início do século XXI. Por um lado, entre os motivos para crises relacionadas ao Olimpismo, podemos destacar o rompimento com o ideal amador dos atletas (DONNELLY, 1996), o uso de doping e o esvaziamento do fair play (EBER, 2008), a centralidade das negociações financeiras (patrocínio e direitos de transmissão) (MAGUIRE et al., 2008) e os casos de corrupção que envolvem, principalmente, a escolha de cidades-sede para os Jogos Olímpicos (BOOTH, 2011). Esses motivos oporiam fatos ou posicionamentos mais recentes, especialmente do COI, àquilo que se entende como uma razão mais pura para a prática esportiva. Por outro lado, por razões justificáveis dentro dos valores sociais mais contemporâneos, quebrar as oposições pela participação da mulher, das diferentes classes sociais e de etnias, antes impostas pela mesma filosofia coubertiniana, torna-se menos problemático. Ainda que essas objeções façam parte das tentativas de desqualificar o pensamento de Coubertin, é preciso ressaltar que, com frequência, isolamos o agente social de seu contexto histórico sem nos dar conta de que naquele período as relações de classe, gênero e étnicas tinham demarcações profundas (CHATZIEFSTATHIOU, 2008). Trazer ou não à tona essas informações pode ser mais ou menos relevante conforme a posição crítica para com o movimento olímpico. A modificação desses elementos em comparação ao pensamento de Coubertin se torna interessante para seus defensores, indicando a modernização ou adaptação aos valores atuais, ou ainda são ignorados quando se cobra uma atualização ou quebra na idealização dessa filosofia.

Uma reflexão sobre indícios de mudanças Mais do que um posicionamento favorável ou crítico ao movimento olímpico, através dessas reflexões em diálogo com a literatura buscamos evidenciar que existem desafios a serem superados para a continuidade da realização dos Jogos Olímpicos e das demais ações do movimento olímpico em si. Ao trazermos o caso de Los Angeles 1984, tido como caso de sucesso a ser seguido por outras cidades, evidenciamos sua singularidade e que aquele exemplo é incompatível com a realidade atual. De fato, um olhar um pouco mais aprofundado sobre esse caso e o crescimento do 39

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evento nas décadas seguintes apenas reforça a insustentabilidade econômico-financeira dos Jogos Olímpicos em seu formato atual sem o investimento público. Na sequência, indicamos que as motivações ou justificativas para sediar os eventos por parte dos setores públicos costumam ser intangíveis, dificultando sua aferição. Mais que isso, as expectativas de retorno (em diversos sentidos) são muitas com estimativas mínimas de gastos, a priori; mas o que se vê a posteriori é a inversão desse quadro – altos custos financeiros e sociais para um retorno questionável. Essa realidade, de um evento profissionalizado, mercantilizado e espetacularizado, gera uma condição delicada sobre a compatibilidade com os discursos de amizade, respeito e excelência do Olimpismo. Descrevemos como historiadores percebem a criação da filosofia que embasaria a proposta de Coubertin ao “reviver” os Jogos Olímpicos, deixando evidente sua perspectiva idealizada, mesmo para aquele período histórico. Sendo assim, a simples transferência desses conceitos para todos os níveis ou de maneira anacrônica e absoluta apresenta óbvia limitação. Mas entendemos que o distanciamento, cada vez mais evidente e público entre discursos e impactos sociais dos Jogos Olímpicos, torna sua continuidade insustentável ou, no limite, questionável, tendo em vista esses “desarranjos ideológicos” – conscientes ou inconscientes, se é que isso seja possível na dimensão que o movimento olímpico tem se direcionado. A falência de discursos e pressupostos originários do Olimpismo tem se mostrado latente e cede espaço cada vez mais avassalador à lógica do mercado, da profissionalização e do espetáculo. Obviamente que essas nossas observações não são novidade e, em hipótese alguma, uma leitura que não considera o inevitável envolvimento e desenvolvimento de todas as esferas sociais nesses processos, inclusive o esporte. Ingênuo seria imaginar o evento mais representativo do esporte mundial desconectado, ou melhor, desalinhado com essas lógicas macrossociais. Contudo, o que nos chama a atenção é a “silenciosa” submissão a esses preceitos estruturados que, pela própria ótica bourdieusiana, tornam-se estruturantes do que podemos chamar campo esportivo e seu “habitus olímpico”. O lado singelo do fair play, o altruísmo das condições de respeito, amizade, solidariedade e integração dos povos passam a soar como um paradigma vencido, uma sinfonia totalmente desencontrada, 40

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ou no melhor da metáfora, desafinada, tendo ainda a sua frente um maestro (ou um conjunto deles!) e uma orquestra que não leem a mesma partitura. Esses exemplos, entre muitos outros que poderiam ser mobilizados, são alguns dos indícios da demanda por mudanças na realidade do movimento olímpico. No estágio atual, principalmente considerando a realidade brasileira de preparação para sediar os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, buscamos chamar a atenção para as demandas e a proporção das necessidades da cidade que recebe o evento. Esse aspecto influencia, de forma mais ou menos direta, na organização e na disseminação de informações sobre o evento que teve sua eleição definida, especialmente nos períodos que antecedem sua realização. A recusa ou a baixa margem entre aceitação e negação sobre sediar ou não os eventos futuros em consultas democráticas, políticas e pesquisas de opinião em países como Noruega (GODDARD, 2014), Polônia (BUTLER, 2014a), Suíça (MACKAY, 2013a) e Alemanha (MACKAY, 2013b) são fortes argumentos que convidam para uma revisão das formas atuais de organização dos Jogos Olímpicos, que deverão passar por uma revisão em 2020 para voltar a atrair as cidades para o processo olímpico (BUTLER, 2014b), ou ainda, se inserir nesse contexto de maneira mais democrática e, principalmente, consciente de seus custos e consequências.

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Educação no Esporte. A jornada das Olimpíadas Estudantis Maria Alice Zimmermann Secretaria de Educação do Município de São Paulo.

Resumo O esporte é um fenômeno sociocultural de múltiplos significados e tem como finalidade o desenvolvimento integral do homem como ser autônomo, democrático e participante, segundo a legislação brasileira. A iniciação esportiva e as possibilidades educacionais estão cada vez mais em destaque. Desde o início, Pierre de Coubertin tinha em suas metas introduzir o esporte na rotina escolar, e o que já era considerado pelos gregos como elemento de grande valor no desenvolvimento da formação física e moral dos seus cidadãos tem nos dias de hoje exercido fascínio cada vez maior. Essa jornada teve início em 2007, na rede Municipal de Ensino da cidade de São Paulo. O Projeto Olimpíadas Estudantis tem como proposta norteadora unificar e estimular a iniciação esportiva nas escolas municipais. Em seu início houve a preocupação de aproximar a prática e a iniciação esportiva com aspectos educacionais implícitos nos esportes.

Introdução A cidade de São Paulo está entre as dez capitais mais populosas do mundo. O número de habitantes na região metropolitana é de aproximadamente 19.684.000 e na cidade é de 11.253.503. A rede municipal de ensino da cidade de São Paulo é o maior sistema do país, com quase um milhão de alunos, 8,2% dos 11,3 milhões de habitantes da cidade. Somados aos pais e familiares, envolve quase cinco milhões de pessoas, ultrapassando a população da maioria das capitais brasileiras. Com mais de 83,8 mil funcionários, entre educadores e pessoal de apoio, a rede tem 1.459 escolas espalhadas por todos os cantos da cidade, administradas diretamente pela Secretaria Municipal de Educação. 47

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São 936.432 alunos, em 546 escolas de ensino fundamental e 45 Centros Educacionais Unificados (CEU). Fazem parte desse sistema aproximadamente 2.600 professores de Educação Física (Prefeitura de São Paulo, Secretaria de Educação do Município de São Paulo – 2013) O Projeto Olimpíadas Estudantis da rede Municipal de Ensino da cidade de São Paulo teve seu início em 2007 com a proposta norteadora de unificar e estimular a iniciação esportiva nas escolas municipais e colaborar com o desenvolvimento do esporte. Para tanto, o projeto promove atualização em pedagogia esportiva, abordando seus diferentes significados. O processo não se limita ao ensino e à aprendizagem esportivos, mas sim ao que é chamado por Paes (2009) de ensino-vivência-aprendizagem socioesportiva. Há também a formação na atualização das regras das variadas 14 modalidades esportivas realizadas para os professores envolvidos, ocasiões em que são convidados árbitros e técnicos das modalidades para cursos e palestras com nossos professores. Em alguns momentos são sugeridas as alterações dos regulamentos visando estimular a participação dos alunos e propiciar situações de vivências de sucesso como, por exemplo, altura da rede, distâncias das provas de atletismo, tamanho da bola, sistema de disputa. Este com certeza é o grande diferencial, o regulamento, que será abordado mais adiante. A competição proporciona, de maneira igualitária, a estrutura necessária de arbitragem (dois árbitros e mesário, no caso das modalidades coletivas; e equipe de arbitragem, cronometristas, staffs, no caso das modalidades individuais), transporte da escola ao local da competição, lanche, socorristas, ambulâncias, staff, ambiente virtual para inscrições e acompanhamento e notícias das competições, coordenadores de modalidades, para a plena realização das atividades nas treze Diretorias Regionais de Educação (DREs) – divisão política/administrativa da Secretaria Municipal de Educação. Alguns números a seguir indicam a complexidade da competição, sendo 14 campeonatos divididos em fase regional e municipal, 7.000 jogos coletivos, 21 competições de atletismo envolvendo aproximadamente 18.000 alunos, 2.440 ônibus, 34.000 medalhas, 1.800 troféus. Desde a primeira edição das Olimpíadas Estudantis construiu-se um regulamento para a competição que buscava, além 48

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de democratizar o acesso dos participantes, torná-lo um projeto que fizesse parte do cotidiano das escolas.

O projeto – Olimpíadas Estudantis A realização das Olimpíadas Estudantis tem incentivado cada vez mais o desenvolvimento de iniciação esportiva na escola, estabelecendo uma ponte significativa entre esporte e educação. Teve sua primeira edição em 2007 com aproximadamente 29.000 participações e, em 2013, esse número subiu para 103.000, com 399 escolas e 45 CEUs (Centros Educacionais Unificados). Segundo Luguetti & Böhme (2011), as práticas esportivas escolares (PEEs) podem ser consideradas como a possibilidade de um aprofundamento do conhecimento e da prática esportiva.

Participação e evolução por modalidade e categorias. Participam das “Olimpíadas Estudantis” os alunos devidamente matriculados nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental – EMEFs, Escolas Municipais de Ensino Fundamental e Médio – EMEFMs, Escolas Municipais de Educação Especial – EMEEs, e Centros Educacionais Unificados – CEUs, da Rede Municipal de Ensino. Os alunos são divididos em “categorias”, estabelecidas de acordo com suas faixas etárias, conforme segue abaixo: • Infantil: alunos entre 15 e 17 anos; • Mirim: alunos entre 13 e 14 anos; • Pré-Mirim: alunos entre 11 e 12 anos; • Sub-10: alunos entre 09 e 10 anos; Alunos com 08 anos nas modalidades Ginástica Artística, Ginástica Rítmica e Natação. Em cada categoria há uma limitação de participação diferente, conforme segue: •C  ategoria Infantil: podem participar de até duas modalidades coletivas, com participação livre nas modalidades individuais; •C  ategorias Mirim e Pré-Mirim: podem participar de uma modalidade coletiva, com participação livre nas modalidades individuais; •S  ub-10: somente poderão participar das modalidades Ginástica Artística, Ginástica Rítmica e Natação (Portaria Intersecretarial SME/SEME nº 05 e FEDEESP 2013). 49

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As atividades esportivas podem ser desenvolvidas no tempo adicional após as atividades escolares, ampliando a permanência do tempo do estudante na escola e nos CEUs. O esporte na escola, segundo Paes (2009), é importante devido a várias razões: por ser um dos conteúdos de Educação Física, por ser a escola uma agência de promoção e difusão da cultura e até mesmo por uma questão justiça social, uma vez que em outras instituições o acesso ao esporte é restrito a um número reduzido de crianças e jovens que se associam a clubes esportivos, tornando-se clientes de academias ou participam de escolas de esporte. O Projeto não visa somente organizar jogos e campeonatos. Um dos principais objetivos é democratizar o acesso, permitindo aos menos talentosos tecnicamente experimentar também diferentes esportes. Esse princípio conduzirá à motivação em popularizar todas as modalidades, viabilizando, assim, o estímulo à prática esportiva nas escolas durante o ano todo. A cada ano introduzimos uma nova modalidade, fornecendo aos professores formação para vivenciá-las nas escolas e preparar seus alunos para a “competição demonstração”, nos moldes de um Festival. Foi assim com as modalidades tênis de campo, rugby, duatlo e tênis de mesa. Oportunizamos, assim, a experimentação de diferentes modalidades, ampliando o leque de situações diferenciadas de competição. Dessa maneira, despertamos interesses em modalidades que nunca praticaram. Vários jogos e competições são realizados em estádios e ginásios considerados como marcos importantes da cidade, tais como piscina e ginásio do Pacaembu, pista de atletismo do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, pista de atletismo do Complexo Constâncio Vaz Guimaraes – Ibirapuera, algumas unidades SESC e alguns clubes particulares (Esperia, com suas treze quadras de Tênis de Campo e pista de atletismo; Paulistano, para a etapa de Judô, AABB, Clube Guapira), colaborando na promoção do sentimento de pertencimento e cidadania. O fato de os alunos jogarem representando a escola, e nas fases subsequentes da competição representarem a sua região e, possivelmente, sua cidade, implica estimular cada vez mais sua inclusão ao grupo. Muitos professores relatam as mudanças positivas no comportamento dos alunos que participam das competições, dos times e das equipes. 50

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Formação dos professores Desde 2007 realizamos anualmente formação para os professores das escolas e CEUs. Dessa formação, que é aberta a todos os professores da rede municipal, participam também diretores de escola, coordenadores pedagógicos e professores de Educação Infantil. Em média, são oferecidos três cursos de diferentes modalidades esportivas, com foco na atualização de metodologia pedagógica, arbitragem, modalidades paralímpicas e apresentação de novas modalidades que serão introduzidas ao projeto. No Fórum do Esporte Escolar, realizado em parceria com o SESC, discutimos, a cada edição, temas pertinentes ao cenário atual e ao projeto, tais como a participação feminina no esporte, a inclusão de alunos com deficiência, o esporte como ferramenta de inclusão social e valores olímpicos. Em 2010, ampliamos as modalidades realizando também as Paralimpíadas Estudantis, com as modalidades vôlei sentado, que foi um sucesso nas escolas, atletismo e tênis de mesa. Essas competições de caráter participativo, como um festival, premiam todos os participantes. Aqui o objetivo também é oportunizar que mais alunos com deficiência tenham acesso ao esporte. A competição é realizada no Clube Esperia, com toda a estrutura necessária para favorecer a experiência positiva.

Dificuldades Encontramos resistências, algumas de ordem organizativa do Projeto, entre elas a obrigatoriedade do RG para a participação nas competições. Dessa maneira, vários professores precisaram fazer “mutirões” para levar os alunos a “Poupatempos” ou similares. No início, esse requisito representou um grande desafio, mas foi superado com o passar do tempo, não sendo mais considerado polêmico. Todavia, de certa forma ainda é uma dificuldade que vários professores encontram. Ressalte-se, inclusive, que algumas situações de alunos com pendência nos registros de nascimento, entre outras questões como guarda de menor, que implicam a regularização da documentação, puderam ser resolvidas com o empenho dos professores e da direção da escola. A cidade São Paulo, famosa por não parar nunca, tem enfrentado nestes últimos anos o problema de mobilidade urbana. Nós também sentimos na pele essas dificuldades ao transportar nossos alunos para diversos cantos da cidade. O transporte na 51

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porta da escola para levar as equipes para as competições demanda uma boa logística. Convivemos com atrasos de percurso, ônibus que quebram etc. Infelizmente, os equipamentos esportivos estão distantes dos nossos alunos, localizando-se, em sua maioria, na região central da cidade, sendo necessário esse deslocamento das equipes de regiões distantes para as competições. É o caso, por exemplo, das pistas de atletismo que utilizamos. Toda essa estrutura é possível graças a um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de Educação e a instituição participante do edital público de chamamento.

Diferencial do projeto O objetivo é proporcionar a todos os participantes as mesmas condições de competição. O fato de o projeto contar com um cenário semelhante ao esporte de rendimento, com eventos esportivos que vão desde as cerimônias de abertura, entrega de medalhas até as competições de maneira estruturada, com a competição formal, arbitragem, transporte, classificação de equipes, medalhas e troféus, não significa que ter como objetivo a especialização precoce ou mesmo a descoberta de talentos. Entendemos que esse é processo natural e consiste em oportunizar a vivência da competição, do esporte. Essa vivência certamente gera e estimula o estado de estresse, como ansiedade, “frio na barriga”, nervosismo, risos, alegria, euforia pela vitória e superação. Assim como as lágrimas, a tristeza da derrota, a insegurança da exposição, da desistência, enfim, são relatos que ouvimos dos professores e dos alunos que participam. Com a premissa de proporcionar a democratização do acesso no meio escolar, foram também consideradas questões de ordem geral como a inclusão de alunos com deficiência, a participação feminina no esporte e, principalmente, a inclusão social. Para que esses objetivos sejam alcançados, discutimos modelos de competição já consagrados e, a partir dessa discussão, são apontadas questões norteadoras para uma prática diferenciada, contidas no regulamento geral da competição: 1. Estimular outras modalidades esportivas, além das tradicionais. Para estimular o desenvolvimento de outras modalidades, as escolas que inscreverem equipes de futsal ou handebol devem ter também equipes participando das modalidades basquetebol ou voleibol; 52

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2. Incentivar a participação de diferentes alunos. Para evitar a “monopolização” dos mais habilidosos, ficou restrita a participação do aluno em apenas uma modalidade coletiva. Dessa maneira, o professor é incentivado a ampliar o número de alunos participantes para a formação das equipes em outras modalidades coletivas; 3. Incentivar a participação feminina. Considerando o baixo número da participação feminina, para se garantir a equivalência de homens e mulheres, no ano de 2010 incluímos no regulamento que toda escola deverá inscrever ao menos uma equipe coletiva feminina (Rubio, Meira e Zimmermann, 2013).

Alguns encaminhamentos dos alunos/equipes decorrentes do projeto No decorrer dos anos, alguns dos nossos alunos/equipes foram encaminhados para outras competições escolares. Tivemos a feliz oportunidade de enviar duas equipes para jogos internacionais, como, por exemplo, a equipe infantil de voleibol masculino da EMEF Euclides da Cunha, da região do Campo Limpo, que participou do campeonato mundial de escolas católicas em 2010 em Tours, na França. Foi certamente uma experiência inesquecível para aqueles jovens. Outra equipe foi encaminhada no mesmo ano para Doha, Qatar, para participar da Gymnasíade Escolar na modalidade atletismo. A seguir, a listagem das demais competições: • Campeonato Brasileiro de Judô – Maceió. • Gymnasíade Escolar – Doha – Atletismo. • Jogos Escolares Estaduais – Jaboticabal, Presidente Prudente. • Seletiva Panamericana – São Paulo. • Campeonato Brasileiro de Atletismo – Juiz de Fora. • Campeonato Estadual de Voleibol – Águas de Lindoia. • Campeonato Mundial FISEC – Voleibol – Tours França. • Campeonato Brasileiro de Futsal – Brasília. • Campeonato Brasileiro de Handebol – Brasília. • Seletiva Nacional para as Gymnasíade – Natação – Brasília. • Vários alunos para Treinamento em Esporte de Rendimento – Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa COTP, Clubes como E.C. Pinheiros, Esperia, Círculo Militar. 53

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A Educação Olímpica Segundo Freire (1996), educar é ensinar e humanizar. No que se refere aos conteúdos, ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. Para Binder (2010), desde os anos 1970 os estudiosos olímpicos continuaram a reformular as ideias pedagógicas do Olimpismo. Para Gessman (1992), o núcleo do sistema de valores olímpicos é o constante desenvolvimento do potencial de cada ser humano. Sua ênfase é sobre o desporto escolar, e ele sugeriu áreas que seriam ligadas ao tema (prática, treinamento de aprendizagem e competições) realizadas em correspondência com a ideia olímpica. Essas áreas de ensino e aprendizagem nas escolas incluem o Olimpismo: fair play, saúde, assunção de riscos e aventuras, desenvolvimento artístico e criativo e sociabilidade. A articulação entre pontos de correspondência entre o Olimpismo e os objetivos gerais da educação olímpica foram apontados por Kidd (1985): • Participação em massa, que Coubertin chamaria de “Juventude da Democracia”; • Esporte como educação; • Esportividade: a adoção de um alto padrão de esportividade, que Coubertin chamou de “novo código cavalheiresco”; • Troca cultural; • Compreensão internacional; • Excelência. Considerando os sete grandes valores – amizade, excelência, respeito, coragem, determinação, inspiração e igualdade –, as Olimpíadas Estudantis foram concebidas para serem não somente a execução dos jogos e competições, mas para motivar alunos e professores a exercerem seu protagonismo nesse processo; uma participação efetiva e real em competições onde podem exercitar conceitos como fair play, ética, excelência, trabalho em grupo e as responsabilidades advindas do ganhar e do perder (Rubio et al., 2013). A inclusão da perspectiva dos valores olímpicos na proposta iniciada em 2007 foi a ampliação de um modelo de esporte na escola que busca associar a competição aos valores. Isso significa que não só o regulamento, mas a participação dos escolares apresenta um estado de constante movimento, tanto no que se 54

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refere à adequação dos limites impostos pela especificidade da competição, como também à expectativa dos professores no que diz respeito às metas a atingir (Rubio et al., 2013). Desta maneira, foi introduzido e desenvolvido, em 2012 e 2013, o Programa de Educação Olímpica. Além de formação para os professores, o Programa contou com uma pesquisa respondida por 131 professores e 398 alunos. Os professores conheceram e discutiram como auxiliar o trabalho em sala de aula, oferecendo elementos para melhor compreensão e aproveitamento da temática Olimpismo, valores olímpicos e Jogos Olímpicos. Três destaques aparecem nas respostas da pesquisa: • Autocontrole (respeito a si, respeito ao adversário, ética esportiva); • Excelência (importância do treino, superação das dificuldades, disposição); • Trabalho em equipe (planejamento, integração, equipe esportiva). Mais do que buscar resultados de forma indiscriminada, as Olimpíadas Estudantis concretizam-se como um campo privilegiado de formação discente e docente (Rubio et al., 2013). A contextualização dos conteúdos discutidos, trazendo para a realidade do professor, seja na aula ou na situação das competições, aproximou as referências teóricas da educação olímpica à realidade do cotidiano escolar. Os relatos apontaram que os temas abordados podiam ser observados nas situações rotineiras vividas também no contexto do núcleo social no qual estão envolvidos os amigos, a família e os colegas de trabalho. Isso destaca que a produção do conhecimento só encontra sentido se estiver diretamente relacionada com a aplicação no cotidiano (Rubio et al., 2013). Segue relato da professora Valníria Lopes, da EMEF João Sussumo Hirata, realizado via e-mail quando lhe foi perguntado se ela possuía alguma experiência com os alunos com relação ao curso de valores olímpicos: Algo que eles aprendem e compartilham através do esporte e que faz parte dos valores olímpicos é a amizade. Os laços de amizade se tornam muito fortes, eles se ajudam com palavras de incentivo e até treinando. Além disso, as amizades que eles criam fora da escola. Amizades (namoros também) que começaram em quadra durante os jogos, depois no facebook 55

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e convites para festas e passeio no Ibirapuera entre as escolas. Especificamente, a EMEF Anne Sullivan, que é composta por alunos surdos, foi muito bem acolhida pelos demais alunos, não foram tratados de modo diferente. Há de se ressaltar o trabalho do professor Ivanildo, que os levou aos jogos e permitiu a socialização entre os alunos. Como no Sussumu temos muitos alunos “especiais”, o contato foi mais próximo entre eles. O interessante foi responder questões como: “Professora, por que eles estão nessa competição? Eles deviam estar numa competição especial”, ou ouvir: “Professora, eles não deviam perder, eles são especiais”. Aprenderam alguns sinais de libra. Estou enviando um vídeo feito por uma aluna de incentivo à equipe de voleibol masculino de 2012. Depois envio fotos da socialização entre a EMEF Anne Sullivan e as demais escolas da DRE. Esses momentos não dão pra deixar de registrar. Ah! Nem tudo é perfeito. Se eles puderem levar vantagem, o discurso sobre valores é esquecido, principalmente em relação à participação em competição.

Considerações finais O projeto Olimpíadas Estudantis entrou para o calendário e planejamento de muitas escolas. Professores relatam que já no primeiro dia de aula os alunos perguntam quando começariam os “treinos” e as competições das Olimpíadas. Embora o início do projeto tenha sido pela competição propriamente dita, hoje contempla a iniciação esportiva, a atualização dos profissionais que dela participam, além de encaminhar alunos para treinamentos esportivos em clubes/ equipes. Podemos apontar que ampliou e está consolidando os momentos dedicados à iniciação esportiva na Rede Municipal de Ensino. A partir das Olimpíadas Estudantis, houve a implantação de dois programas importantes para ressignificar o esporte na escola: 1. Programa de incentivo ao esporte escolar, no qual o professor pode formar turmas de iniciação esportiva no contraturno para desenvolver e aperfeiçoar a prática esportiva, sendo remunerado com aulas extras além da sua jornada de trabalho. 2. Programa CEU Olímpico: os CEUs abrem espaço para treinamento em algumas modalidades. A proposta é absorver 56

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os alunos que se destacam nas escolas e estimular a difusão das modalidades esportivas nesses equipamentos. Os especialistas também iniciam “estágios” de acompanhamento junto a equipes de competição em alguns clubes e entidades parceiras, como E. C. Pinheiros, Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, S. C. Corinthians, Liceu Pasteur e Spac, para desenvolver a proposta de treinamentos para as turmas desde a iniciação ao rendimento. Com essas ações podemos identificar, nas diversas regiões da cidade, as modalidades mais e menos desenvolvidas, os professores envolvidos e, dessa maneira, propor intervenções para estimular o desenvolvimento do esporte na rede. É possível oportunizar palestras com atletas, cursos específicos para os professores e vivências em clínicas esportivas para os alunos. Segundo Gessman (1992:33), “A ideia olímpica não pode ser entendida sem uma compreensão de sua missão educacional”. Ou conforme Rubio et al. (2013) os valores olímpicos são, no seu limite, essencialmente valores humanos . Rever o conceito de Olimpismo na prática dos tempos atuais e propor o estreitamento entre esporte e educação durante os jogos, realizados com mais de 100.000 participações em 14 modalidades com crianças de 8 a 17 anos, em uma das maiores cidades da América Latina, é um grande desafio. A cada edição das Olimpíadas Estudantis aprende-se como manter acesa a chama e como beneficiar o processo educacional com tão considerável fenômeno que é o esporte. De acordo com Rubio (2007): [...] superado o romantismo inicial que moveu e motivou a criação do Movimento Olímpico, assistimos na atualidade a uma complexa trama de interesses a mover ideais e ações no campo olímpico. De um sonho multicultural e multiétnico a um dos maiores negócios do planeta os Jogos Olímpicos, a maior realização do Comitê Olímpico Internacional, tornamse uma fonte inesgotável de reprodução de valores e de projeção da dinâmica social.

Dessa forma, o Programa de Educação Olímpica nos leva a refletir e discutir as reais possibilidades do esporte em nossa cidade e em nosso país, que muito em breve receberá a 31ª edição dos Jogos Olímpicos, fazendo-nos enxergar e compreender que, às vezes, o esporte pode também ser o vilão da história. Para Parlebas (apud Paes e Balbino, 2009), o esporte é aquilo que se fizer dele. 57

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A escola pode estimular a prática esportiva; pode perfeitamente realizar a iniciação no esporte com qualidade, mas é preciso criar condições para o desenvolvimento esportivo após essa fase. Na escola, estimulamos as vivências esportivas, motivamos a formação de equipes para disputas em campeonatos. Muito mais que descobrir talentos, temos a missão de formar cidadãos, por isso democratizamos o acesso, proporcionando a experimentação do esporte na infância e na adolescência. Os valores olímpicos vêm colaborar sobremaneira com essa missão. Identidade, autoconfiança, autoestima, vitória, derrota, superação, igualdade, respeito mútuo e fair play. Amizade e fraternidade. A busca da excelência com ética e compromisso.

Referências bibliográficas BINDER, D. L. (2010). Teaching Olympism in schools: Olympic Education as a focus on values education: university lectures on the Olympics [on line article]. Bellaterra: Centre d’Estudis Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB), [Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/ docs/binder_eng.pdf FEDEESP – Federação do Desporto Escolar do Estado de São Paulo (2013) – Plano trabalho Federação do Desporto Escolar do Estado de São Paulo. FREIRE, P. (1996). Pedagogia da Autonomia, São Paulo: Paz e Terra. GESSMAN, R. (1992). In Teaching Olympism in schools: Olympic Education as a focus on values education: university lectures on the Olympics [on line article]. Bellaterra: Centre d’Estudis Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB), 2010. [Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/ docs/binder_eng.pdf KIDD, Bruce ( 1985), “The legacy of Pierre de Coubertin”, paper presented at Olympic Academy of Canada, Vancouver, B.C. in Binder, D. L. (2010) Teaching Olympism in schools: Olympic Education as a focus on values education: university lectures on the Olympics [on line article]. Bellaterra: Centre d’Estudis Olimpics (UAB). International Chair in Olympism (IOC UAB), [Acessado em: 28/05/14] http://olympicstudies.uab.es/2010/ docs/binder_eng.pdf 58

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Presente

e futuro do olimpismo: o legado da geração X Raoni P. T. Machado Universidade Federal de Lavras – Minas Gerais O processo histórico é a sequência, no tempo e no espaço, das ações humanas que afetam as condições que influenciam, de qualquer forma, outras ações humanas.1

Introdução “Nada é compreensível ou explicado sem história”, já dizia o Barão Pierre de Coubertin, idealizador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna (COI, 2000, p. 36). Também pudera, foi a influência das antigas histórias helênicas que fizeram com que o barão se empenhasse na recriação desse evento. Entre os anos de 1875 e 1881, uma equipe de arqueólogos alemães realizou uma escavação completa no santuário de Olímpia, cujas primeiras tentativas haviam sido iniciadas um século antes, e devolveram ao mundo ruínas que passaram quase dois mil anos enterradas entre cinco e seis metros abaixo do solo. Esse momento coincidiu com uma fase em que Coubertin, pedagogo de formação, fazia estudos sobre a relação das práticas de atividades físicas e dos jogos na educação dentro das escolas, influenciado principalmente pelo trabalho de Thomas Arnold, na Escola de Rugby. Em sua obra Transatlantic Universities, que escreveu ao visitar os Estados Unidos, observou jovens realizando diversos exercícios de força, e um grande numero de trabalhadores indo realizar práticas atléticas em seus horários livres, e segundo ele (COI, 2000), “isso prova que mesmo o mais extenuante trabalho braçal não substitui o esporte. Aqueles que veem nada mais a não ser movimento físico no esporte podem perceber que um lado interior dele lhes está escapando” (p. 94). Na mesma época, conheceu o padre dominicano Henri Didon, o qual, na abertura de um evento esportivo escolar em Arcueil, disse aos seus estudantes

1 JAGUARIBE, H. Um estudo crítico da História. São Paulo: Paz e Terra, 2002. v.1, p. 42.

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que seu principal lema deveria ser citius, altius, fortius, ou seja, mais rápido, mais alto e mais forte. Coubertin, que estava presente nessa ocasião, desde então usou isso como lema do Olimpismo. Resumidamente, esse foi o contexto em que o Olimpismo surgiu e os Jogos Olímpicos foram recriados. Para o barão, a filosofia de vida dos antigos helenos era perfeitamente adequada para ser adaptada à vida moderna. Já no final do século XIX, Pierre de Coubertin pôde observar que o esporte, apesar de incipiente, estava se organizando para que os atletas pudessem quebrar um recorde, ou que pudessem oferecer o melhor espetáculo possível. Ciente de que esse processo de especialização também ocorreu na Grécia antiga, sendo inclusive alvo de crítica por pensadores daquela época, o barão, durante seu movimento para a recriação dos Jogos, antes mesmo da realização de sua primeira edição, insistiu em seu caráter amador, promoveu debates e instituiu normas para assegurar que isso fosse seguido. Associado a isso, seguindo a linha da educação grega, segundo a qual os melhores atletas procuravam realizar a prática com mais dificuldade, a fim de aumentar seu mérito pela vitória, ele dizia que vencer não era o único objetivo, e por muitas vezes sequer era um objetivo, mas sim mostrar seu valor. Ele acreditava que a desonra não estava em ser batido, mas sim em não lutar. Fazer renascer os Jogos não era o único objetivo de Coubertin, mas também criar um sistema institucionalizado que envolveria atitudes morais dos indivíduos e, por consequência, de toda a humanidade. Esse era o início dos ideais do Olimpismo (COI, 2000). Contudo, o que levou quase um milênio para acontecer na Antiguidade não levou sequer um século para ocorrer na atualidade. O fenômeno esportivo moderno foi trilhando o caminho que seu idealizador temia. Com o desenvolvimento dos meios de comunicação e da grandeza do espetáculo, o resultado das disputas e seu apelo popular foram chamando a atenção de governantes e patrocinadores para exporem seus “produtos”. A consequente supervalorização da vitória levou os atletas a se especializarem, a se profissionalizarem, e a buscarem métodos, lícitos e ilícitos, cada vez mais desenvolvidos, para se chegar ao triunfo, deixando de lado os ideais de seu criador. Os Jogos, então, salvo as distintas peculiaridades de seus momentos históricos, foram caminhando pela mesma trajetória que percorreram dois mil anos antes. 62

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O esporte competitivo como um todo foi caindo nessa armadilha criada pela contemporaneidade; ele precisa se tornar um espetáculo interessante de ser assistido, cuja audiência atrairá os patrocinadores, que sustentarão sua própria existência (Machado e Rubio, 2014). Estaria, então, o Olimpismo fadado a viver em um mundo ideal, imaginário, separado da real expressão do fenômeno esportivo? A saída foi surgindo espontaneamente. Vem sendo curiosamente construída como resultado de um processo originado pela principal consequência da modernidade, que é o seu impacto ambiental. Bento (2013) diz que “o esporte é parte integrante da sociedade e por isso, subordinado a um sistema de normas e valores nela predominante, ou seja, aparentemente não há valores específicos do desporto diferente dos vigentes no contexto social” (p. 116). Se por um lado a contemporaneidade foi minando os princípios educativos no esporte pretendidos em sua origem, por outro nos apresentou o caminho pelo qual deveríamos seguir. A situação é menos paradoxal do que de início possa parecer. Quando o homem se deu conta dos impactos de sua própria existência, e que aquilo que existia poderia não mais existir, um movimento de “apropriação” do ambiente natural foi acontecendo, e com isso surgiu uma série de novas modalidades esportivas com características próprias diferentes do modelo tradicional, indo novamente ao encontro dos ideais do Olimpismo. Vamos a elas.

As atividades físicas na natureza Podemos dizer que, em geral, as atividades físicas na natureza, tal como a conhecemos hoje, são um conjunto de práticas recreativas que surgiram durante a década de 1970, desenvolvendo-se durante a década de 1990 e se consolidando nos dias atuais, associadas ao cenário dos novos hábitos da sociedade pós-industrial (Betrán, 1995). Muitas nomenclaturas referentes a esse tema são encontradas na literatura, sendo mais utilizada no Brasil a denominação “Atividades Físicas de Aventura na Natureza”, ou simplesmente AFAN, assim designada por Betrán e Betrán (1995). A justificativa dos autores para isso é que dessa forma ela possa significar aquelas “atividades físicas de tempo livre que buscam por uma aventura imaginária, sentindo emoções e sensações hedonistas fundamentalmente individuais 63

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e em relação com um ambiente ecológico natural. São atividades que se situam e compartilham com os novos valores sociais da pós-modernidade” (p. 112). Contudo, optamos por suprimir a palavra “aventura”, por não acreditar ser possível generalizar essa aventura imaginária preconizada pelo autor, quer seja em sua manifestação recreativa voluntária e livre, ou sob a forma de modalidade esportiva. Pelo exposto, utilizaremos, então, a nomenclatura “Atividades Físicas na Natureza”. Porém, muitas vezes a aventura realmente existe, independentemente de sua dimensão. Feixa (1995) diz que o imaginário simbólico está presente nas atividades físicas na natureza, recuperando o universo de emoções controladas. A aventura imaginária, vivenciada ao vivo, se antes era altamente técnica e imprevisível, atualmente está muito mais acessível. Um dos fatores que ajudaram o seu desenvolvimento e contribuíram para sua massificação é a tecnologia atual, que possibilita construir equipamentos que permitem a qualquer pessoa deslizar pelo ar, pela água e pela terra de forma cada vez mais fácil e sem grandes exigências técnicas. A identificação dessas atividades com as características da sociedade pós-moderna a tornam parte do mercado de consumo e de serviços, possibilitando a oferta de múltiplas possibilidades adequadas ao perfil de cada praticante (Betrán, 1995), fazendo com que se transforme em um mercado em crescente expansão, surgindo novas modalidades e tendências ano após ano, sempre em um constante exercício de ressignificação de atividades já consolidadas. Para Schwartz (2006), nossas opções de lazer são construídas enquanto somos ainda crianças e são influenciadas principalmente pelos nossos pais, mas também pelos amigos, pela escola, por outros adultos, e, sobretudo, pela mídia. Associado a isso, o já mencionado crescente avanço tecnológico, que se tornou bastante acentuado durante a segunda metade do século passado, junto com o aumento das informações disponíveis, viabilizado pelo desenvolvimento dos meios de comunicação em massa, possibilitaram aos indivíduos buscar novas alternativas, e, dentre elas, foram surgindo “as experiências emocionalmente ricas, proporcionadas pelas atividades na natureza” (p. 104). Então, com essa espécie de “comercialização” do ambiente natural, instaura-se um novo modelo cultural e esportivo. Ao mesmo tempo em que os meios de comunicação divulgam o esporte competitivo por todos os cantos do planeta, tornando-o o principal fenômeno social deste século, Betrán 64

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e Betrán (1995) acreditam que a prática esportiva tradicional vai perdendo espaço no campo recreativo para outras espécies de atividades físicas não competitivas. Essas atividades podem surgir adaptando-se uma modalidade esportiva já existente ou através de “modas” esportivas que surgem motivadas por bons resultados de uma equipe nacional em um megaevento esportivo, caracterizando o legado sociocultural. Camps e colaboradores (1995) também acreditam que essas atividades físicas estão recebendo um aumento progressivo do número de praticantes, aprimorando as estruturas envolvidas, associando-se a um grande desenvolvimento de produtos ligados às demandas dessas atividades, o que resulta em mais recursos econômicos voltados para sua promoção e consumo, tornandose um atrativo para mais profissionais envolvidos diretamente com elas, e gerando, também, um desenvolvimento de produtos complementares a essas práticas. Por outro lado, isso pode gerar sérios impactos negativos na natureza, quer pelo uso excessivo e descuidado em algumas regiões, ou por um aumento demográfico descontrolado em áreas de grande potencial turístico, esportivo ou recreacional, além do óbvio risco aos praticantes sem experiência ou auxiliados por guias sem formação profissional adequada. Marinho e Bruhns (2003) vão na mesma direção e apontam que o aumento da demanda e o desenvolvimento tecnológico fizeram com que surgissem melhores equipamentos, promovendo práticas mais diretas e harmônicas com a natureza e possibilitando a realização de atividades impensáveis sem os equipamentos adequados. Motivada por isso, hoje temos uma indústria que trabalha com equipamentos específicos para essas práticas, cujos potenciais de uso estão constantemente sendo testados, descobrindo-se novas possibilidades com relativa frequência, que são divulgadas praticamente de forma instantânea pela internet. Portanto, o que era em princípio uma atividade temerária, restrita a um pequeno grupo “marginal” que punha em risco sua própria vida, hoje se torna um importante segmento da atividade física relacionada ao saudável, ao ecológico, e que está disponível a praticamente toda a população. Consolida-se como uma atividade de tempo livre, como novas modalidades esportivas, explorando cada vez mais suas próprias potencialidades, e também promovendo o ecoturismo ou o turismo “de aventura”, cada vez mais massificado, principalmente influenciado pelo desenvolvimento tecnológico, pelo modismo ecológico e pelos meios de comunicação social. 65

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Com isso, a aproximação dessas modalidades esportivas com o Movimento Olímpico, apesar de lenta, foi inevitável, como veremos a seguir.

A relação com o Movimento Olímpico Podemos dizer que, em geral, os megaeventos esportivos são eventos de curto prazo, com duração variável de duas semanas a um mês, mas com consequências de longo prazo para a localidade que os abrigou. Vemos melhoras duradouras na infraestrutura local, um impacto significativo na economia e na vida social, além da divulgação da cidade na mídia de uma maneira que jamais se conseguiri (Machado, 2007). Essa exposição não se restringe à cidade, mas também a muitas modalidades esportivas das quais o público em geral não está acostumado a ver pela televisão, podendo despertar um interesse que não se daria de outra forma. A apropriação dessa situação vai ao encontro do que diz Sahlins (1990): “um evento transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação” (p. 16). Será justamente por meio dessa exposição das modalidades pela mídia que interpretaremos essas modalidades esportivas, e também sob a ótica preconizada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI, 2010) por meio da Carta Olímpica¸ cujas missões destacamos a procura por “encorajar e apoiar uma atitude responsável pelos problemas do ambiente, promover o desenvolvimento sustentável no desporto e exigir que os Jogos Olímpicos sejam organizados em conformidade”, e “promover junto das cidades e países anfitriões o legado positivo dos Jogos Olímpicos”, e “encorajar e apoiar as iniciativas que integrem o desporto na cultura e na educação” (p. 11). Contudo, apesar de bem pautado nesse documento, Veerman (2008) diz que desde a criação da Comissão de Esporte e Meio Ambiente, em 1995, até os Jogos Olímpicos de Inverno de Torino, em 2006, período em que cobriu seu estudo, nenhum projeto de educação olímpica ambiental foi criado, mesmo com a crescente presença das modalidades esportivas realizadas na natureza no programa olímpico. A primeira aproximação entre os dois se deu basicamente junto com a recriação dos Jogos Olímpicos na Era Moderna. Em 1894, dois anos antes da realização de sua primeira edição, Coubertin disse que pretendia dar uma espécie de premiação para a melhor caça e para a melhor e mais impressionante escalada que ocorresse durante o período entre o final de uma edição dos Jogos 66

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e o início da outra, devendo o competidor apresentar evidências de seu feito a um júri, e gostaria de acrescentar uma terceira, na categoria de aviação. Porém, como nos mostram Kluge e Lippert (2013), na 12ª reunião do COI realizada em 1911, na cidade de Budapeste, foram apresentadas as dificuldades de se realizar o julgamento do grau de dificuldade da escalada, assim como os riscos que escaladores não profissionais gerariam contra a própria vida. E para não existir contradição com o princípio Olímpico do amadorismo, não foi permitida a participação de escaladores profissionais, nem mesmo guias pagos na disputa. Cobertin, por fim, deu-se por vencido e resolveu não dar continuidade a essas premiações. Contudo, sabe-se que nos Jogos de 1924 foram realizadas premiações na categoria de montanhismo para o Dr. Jacot-Guillarmod, por sua expedição ao Monte Everest (COI, 2000); para os irmãos alemães Franz e Toni Schimid, na edição de 1932; e para os suíços Ehepaar e Hettie Dyhrenfurths (Kluge e Lippert, 2013). Além disso, ao comentar sobre as modalidades a serem disputadas durante a segunda edição dos Jogos, em Paris (1900), o Barão de Coubertin sugeriu que: “a Suécia, algum dia, organize Jogos Olímpicos de inverno no gelo e na neve” (COI, 2000, p. 381), sendo a primeira vez que esse assunto foi tratado. Os Jogos de fato vieram a acontecer, mas não foram organizados pelos suecos, e sim pelos franceses, somente em 1924, na cidade de Chamonix. Se essa era a realidade no final do século XIX e início do XX, o que pudemos observar no centenário seguinte é bem diferente. As práticas de atividades físicas na natureza foram surgindo, se consolidando, e aos poucos ganhando espaço no disputado programa olímpico. Durante a realização dos Jogos Olímpicos de Verão em 2016, na cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o site do COI2, treze modalidades esportivas classificadas como “de aventura” ou “na natureza” serão disputadas, distribuindo-se um total de 79 medalhas (43 no masculino, 30 no feminino e 6 mistas). Esse número representa aproximadamente 25% do total de eventos disputados, se tomarmos como base os 302 realizados em Londres – 2012, o que torna significativa a influência que podem exercer na população em geral. Vejamos, abaixo, quais são elas, assim como a distribuição das medalhas. 2

www.olympic.org

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• Tiro com arco (2 masculinas e 2 femininas) • Tiro esportivo (9 masculinas e 6 femininas) • Equitação (6 mistas) • Pentatlo moderno (1 masculina e 1 feminina) • BMX (1 masculina e 1 feminina) • Mountain bike (1 masculina e 1 feminina) • Ciclismo de estrada (2 masculinas e 2 femininas) • Natação 10k (1 masculina e 1 feminina) • Triatlo (1 masculina e 1 feminina) • Canoagem sprint (8 masculinas e 4 feminina) • Canoagem slalon (3 masculinas e 1 feminina) • Remo (8 masculinas e 6 femininas) • Vela (6 masculinas e 4 femininas) Quando nos referirmos aos Jogos Olímpicos de Inverno, esse número aumenta ainda mais devido às próprias características de suas modalidades. Das 15 modalidades esportivas presentes no programa de Sochi – 2014, 6 possuem características “de aventura” ou “na natureza”, e distribuíram a maior parte das medalhas em disputa. Dos 98 eventos realizados, essas modalidades foram responsáveis por 56 delas, sendo 29 masculinas, 26 femininas e uma mista, tal como podemos ver a seguir: • • • • • •

Biatlo (5 masculinas, 5 femininas e 1 mista) Ski alpino (5 masculinas e 5 femininas) Ski cross country (6 masculinas e 6 femininas) Ski freestyle ((5 masculinas e 5 femininas) Combinado nórdico (3 masculinas) Snowboard (5 masculinas e 5 femininas)

Esse vem sendo o resultado do crescente apelo midiático para essas práticas, algumas bastante tradicionais e outras bem recentes, como o sloopestyle (voltaremos a ela mais a frente), com inúmeros programas televisivos direcionados a esse tema, sendo inclusive, por exemplo, disponibilizados dois canais por assinatura na TV brasileira exclusivamente voltados a essa temática – o canal Off, pertencente ao grupo Globosat, e o canal independente WooHoo, o que ilustra o grande interesse pela população para essas práticas esportivas, gerando um consequente mercado de consumo. 68

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A “geração X” O sinal de alerta para o Movimento Olímpico acendeu no início do século XXI. Um estudo citado por Thorpe e Wheaton (2011) apontou que nos Jogos de Sidney – 2000 houve uma redução de 50% na audiência, pelo público jovem, de homens entre 18 e 34 anos de idade. Parecia que o modelo tradicional de esporte ia perdendo espaço, e novas estratégias para atrair esse público se tornavam necessárias. Destaca-se a criação dos Jogos Olímpicos da Juventude, cuja primeira edição se deu em Singapura – 2010, e a inserção das modalidades esportivas “de aventura”, que estavam ganhando popularidade em número de praticantes e de audiência, principalmente nos X-Games. Vimos no início deste texto que apesar de as manifestações das atividades físicas na natureza sob forma esportiva terem despontado durante a década de 1970, foi somente vinte anos mais tarde que elas começaram a ser ressignificadas, deixando de lado seu caráter formal, com regras tradicionais, e passaram a se desenvolver com regras mais flexíveis, abrindo espaço para a criatividade dos praticantes, criando um ambiente praticamente informal e não institucionalizado das práticas de estilo livre. Logo no início da década de 1990, o esqui de estilo livre passou a fazer parte do programa olímpico de inverno, estreando em Albertville – 1992, e, no ano de 19983, em Nagano, foi a vez do snowboard ganhar seu espaço. A inserção dessas modalidades trouxe maior imprevisibilidade ao resultado final de muitas provas, assim como estimulou a imaginação pelo risco nos espectadores, o que despertou bastante interesse, melhorando os níveis de audiência. Nos Jogos de Verão, a primeira tentativa se deu com o windsurfe, em 1984, porém não da forma como os fãs queriam, como veremos mais a frente, e somente em Atlanta – 1996 houve uma nova tentativa de aproximação das modalidades na natureza com a inserção do mountain bike e da canoagem slalon, e o BMX apareceu valendo medalha somente a partir de 2008. Além da inserção no programa olímpico, esse movimento foi visto pela rede de televisão norte-americana ESPN como uma oportunidade mercadológica, e, em 1995, lançou em Rhode Island (EUA) o denominado “The Extreme Games”, ou Até 1992 os Jogos Olímpicos de Inverno eram disputados no mesmo ano que sua versão de verão. A partir dessa edição, passaram a ser realizados de forma intercalada a cada dois anos. Para tanto, foi realizada uma nova edição dos Jogos de Inverno em 1994, retornando sua periodicidade quadrienal a partir de 1998.

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simplesmente, “X-Games”. Estima-se que um público aproximado de 198 mil pessoas acompanharam as 9 modalidades esportivas apresentadas naquela edição. Dois anos mais tarde, além da versão de verão, foi inaugurado os “Winter X-Games”, agradando os fãs do esporte na neve. No ano seguinte, em 1998, foi a vez da Ásia de ganhar seu evento local, sendo escolhida a cidade de Pukhet, na Tailândia, como cidade-sede. Somente a partir de 2010 a Europa passou a receber a sua etapa local. Esses eventos possuem periodicidade, sempre adaptando seu programa para atender as novas tendências nos “esportes radicais”. Em 2013, foi realizada uma tentativa de expansão globalcom a criação do “Global X-Games”, constituído de cinco etapas, realizadas anualmente em cinco locais diferentes. Além dos tradicionais eventos nos Estados Unidos, receberiam os X-Games as cidades de Barcelona, Munique e Foz do Iguaçu. No entanto, essa tentativa não deu certo e em 2014 voltaram a ser realizados como antes. Já consolidado como um megaevento de grande apelo midiático, os X-Games são popularmente chamados de “as olimpíadas dos esportes radicais”. As características de muitas modalidades que fazem parte do seu programa são redefinidas após cada edição, fazendo com que esse evento assuma um papel central na difusão e globalização dos “esportes radicais”. No início, esse processo de aproximação parece ter se constituído naturalmente. Contudo, as características dessas modalidades esportivas, assim como as dos atletas, praticantes e entusiastas são desde seu princípio um pouco diferentes daquelas que podemos atribuir ao “padrão dominante”, e esse grupo é o que denomino “geração X”. A origem desse grupo se deu em meados da década de 1960 com o movimento contracultura iniciado nos Estados Unidos, isto é, um movimento social que visava contestar os valores vigentes na sociedade. Seus precursores, os beatniks, propunham um questionamento sobre o consumismo e o otimismo do governo norte-americano no período pós-guerra, e o seu enfrentamento era através de uma contestação articulada e reflexiva sobre os padrões culturais dominantes. Os hippies, símbolos desse movimento, possuíam entre suas diversas características o apreço à natureza, enfrentamentos anticompetitivos, um individualismo junto com a cooperatividade, e por serem contrários ao que se considerava “normal”, eram também contrários aos modelos esportivos tradicionais. Os jovens, que eram a maioria entre os que aderiram a esse movimento, acabaram por revolucionar 70

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os modos de se vestir, de se comportar, e de reagir frente às demandas da sociedade. Uma dessas revoluções foi justamente no campo esportivo. As características citadas anteriormente, tanto dos hippies como das próprias atividades físicas na natureza, possuíam uma enorme afinidade. Ao fugir das quadras e dos campos padronizados e ir ao encontro do ambiente natural, longe das regras institucionalizadas, os hippies puderam ressignificar uma série de atividades já existentes, realizando-as em harmonia com a natureza, sem se preocupar se estavam fazendo de acordo com a técnica correta ou se obedeciam ao padrão tático preestabelecido. Enfim, podiam, dentro de seu grupo, realizar atividades, cada qual de acordo com seu nível de desenvolvimento, utilizando-se muito mais de sua criatividade do que de suas capacidades motoras determinadas fisiologicamente. Assim nasceram as atividades físicas na natureza. Diferentemente das modalidades esportivas tradicionais, não possuem limitação de tempo e espaço e os praticantes podem se confrontar com eles próprios em busca de superar limites impostos pela natureza, ou intrínsecos a eles mesmos. Logicamente, para se adaptar aos eventos competitivos, algumas mudanças tiveram de ser feitas, tal como, por exemplo, a determinação de um tempo limite para apresentação, de percursos predefinidos e de códigos de pontuação para manobras realizadas. E, assim, essas práticas foram gradualmente absorvidas pelos programas de diversas competições esportivas. Um estudo realizado por Thorpe e Wheaton (2011) buscou analisar esse movimento de aproximação através das características de três modalidades esportivas: o windsurf, o snowboard e o BMX. Pela análise dos autores, a primeira modalidade, o windsurfe, como dissemos anteriormente, apesar de ter sido a precursora das atividades físicas na natureza a fazer parte do programa olímpico, não teve fácil aceitação de todas as partes. O maior público dessa modalidade decorria de sua manifestação freestyle, contudo, nos Jogos Olímpicos, foi inserida juntamente com as provas de iatismo sob o formato de regata. Porém, o estilo desses novos atletas não causou boa impressão perante a comunidade mais conservadora dos iatistas, nem atraiu os fãs do windsurfe para essa “corrida”, dado que queriam ver as manobras do estilo livre. Já o snowboard, depois do seu enorme sucesso durante a primeira edição dos X-Games de Inverno, em 1997, por decisão do Comitê Olímpico 71

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Internacional (COI), foi incluído já no ano seguinte nos Jogos, porém, sob os cuidados da Federação Internacional de Esqui, e não a de Snowboard. Muitos atletas e fãs ficaram descontentes com essa arbitrariedade do COI e com os rumos que a modalidade teria a partir disso, o que gerou inclusive boicotes por parte de alguns atletas. Tais boicotes, contudo, não tiveram a mesma força daqueles realizados pelos skatistas, que foram contrários a tornar a modalidade “olímpica” por acreditar que o “espírito” do skate é incompatível com o conservadorismo olímpico. Por fim, o BMX, uma modalidade oriunda da criatividade de crianças e adolescentes, que adaptaram suas bicicletas e o terreno para se parecerem com as provas de motocross, foi incorporada pela União Ciclista Internacional UCI como modalidade esportiva oficial em 1993, e em apenas três anos já ocupava grande parte do programa dos X-Games, mas estreou nos Jogos Olímpicos apenas em 2008. O grande sucesso fez com que se iniciasse um movimento para usar o BMX freestyle como nova modalidade nos jogos, mas encontrou grande resistência dentro dos próprios atletas, como ilustra a frase citada pelos autores do estudo: “We created BMX freestyle to do our own thing, express our own definition of sport, and to have the freedom to express this how we please; not to have our opinions sanctioned by a higher power” (p. 841).4 Além dessas três modalidades, existe uma quarta que acredito representar a essência do fenômeno esportivo contemporâneo, que é o snowboard slopestyle. Vejamos o porquê.

O Slopestyle De acordo com a Wikipédia em sua versão em português, “Slopestyle é uma modalidade do snowboard e do esqui que consiste em manobras sobre caixas, trilhos [corrimão] e rampas”. Ou seja, ela se inicia com o praticante realizando manobras em obstáculos teoricamente artificiais (como corrimãos, contêineres etc.) e termina com rampas “naturais”, sendo o importante não o tempo de realização do percurso, mas sim a criatividade das manobras realizadas. Acredito que o slopestyle é uma modalidade “genial”, representando a essência da esportividade contemporânea, “Nós criamos o BMX e estilo livre para fazer nossas próprias coisas, para expressar nossa própria definição de esporte, e para ter liberdade para isso como quisermos, e não para ter nossas opiniões sancionadas por um poder superior.”

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mesclando o ambiente da natureza com a cidade, realizando uma apropriação do urbano com criatividade, associado aos altos saltos do half pipe. Presente nos X-Games de inverno desde 2002, teve sua estreia no programa olímpico em Sochi – 2014. O presidente do COI na época, Jacques Rogge, assim se manifestou: “We are very pleased with the addition of ski and snowboard slopestyle (…) in the Olympic Winter Games program. Such events provide great entertainment for the spectators and add further youthful appeal to our already action-packed line-up of Olympic winter sports”5. A dinâmica do slopestyle faz com que os atletas olhem para o ambiente em que estão inseridos sob uma nova perspectiva, sendo obrigados a explorá-lo e ressignificá-lo a partir do seu tempo e espaço comum, criando uma possibilidade para se atribuir e ampliar os significados que por muitas vezes passam despercebidos, o que se revela um importante elemento educativo. A tomada de consciência sobre esses locais e o estabelecimento de relações, segundo Certeau (1994), faz com que os praticantes entendam os lugares a que pertencem, ou mesmo os que utilizam para as práticas da modalidade, e o compreendam como parte integrante de um organismo, e possuam reflexos de ações locais ao interagirem de diversas maneiras. Com esse potencial educativo ímpar, associado às demandas do grande público pelas modalidades “radicais”, ou “de ação”, foi natural que o slopstyle logo se inserisse no programa olímpico, sendo praticamente “intimado” a tomar parte dos Jogos. Por ser extremamente acessível, dado que sua prática pode se dar em qualquer ambiente urbano, natural, ou combinado, rapidamente se popularizou. Para realizar a iniciação esportiva nessa modalidade, basta simplesmente não interferir e deixar a criatividade dar conta do processo. Isso faz com que seja bastante fácil trabalhar com ela, não apenas na neve; pode ser executada com o skate e até mesmo como um parkour. No Brasil temos alguns skatistas que conseguiram bastante sucesso internacional, sendo o principal deles Bob Burnquist, recordista de medalhas nos

“Estamos muito satisfeitos com a inclusão do esqui e do snowboard slopestyle no programa dos Jogos Olímpicos de Inverno. Esses eventos oferecem grande entretenimento para os espectadores e aumenta ainda mais o apelo jovem a nossa já consolidada linha de ação aos esportes olímpicos de inverno.” (tradução livre). Texto original Disponível em http://www.gamesbids.com/eng/other_ news/1216135778.html. Acesso em: 25 mai. 2014.

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X-Games e praticamente sem contar com investimento público. Hoje é um dos principais nomes da Megarampa (skate big air), cuja solicitação motora não é muito diferente das exigidas pelas provas do slopestyle, sendo ainda um campo a ser explorado no Brasil.

Considerações finais Vimos que o Movimento Olímpico passava por dificuldades no final do século passado em relação à renovação de audiência entre o público jovem, e que encontrou nas atividades físicas na natureza uma possível saída para esse problema, apostando em suas características na adequação para as mudanças da própria sociedade. Apesar disso, Thorpe e Wheaton (2011) mostraram que atletas e entusiastas pertencentes à “geração X” ainda sofrem certos preconceitos pela diferença de ideologia frente ao fenômeno esportivo, mas que paradoxalmente sua essência está fortemente vinculada desde o início aos princípios presentes na Carta Olímpica. Muitas vezes precisamos de programas especializados em Educação Olímpica para transmitir valores a praticantes de outras modalidades, mas que já estão inerentes aos praticantes das modalidades esportivas na natureza. Além do estudo citado pelos autores, utilizamos, aqui também, a prova do slopestyle como exemplo de como isso poderia ser feito. Ou seja, dada a popularidade do skate no Brasil, principalmente entre as camadas de maior vulnerabilidade socioeconômica; a existência de um ídolo para as crianças se espelharem; o potencial educativo dessa modalidade e da presença no programa olímpico, acredito que tenhamos um ambiente propício para a elaboração de programas educacionais, mas ainda não explorado. De acordo com a Federação Internacional de Esqui, existe apenas um programa educacional relacionado ao esqui na América do Sul, realizado na cidade de Bariloche, na Argentina6. Frente a esse quadro, portanto, observamos que desde o final do século passado o Comitê Olímpico Internacional vem apresentando ações com o intuito de integrar os objetivos do Movimento Olímpico com as questões ambientais. Apesar disso, poucos estudos têm se dedicado à apropriação desse legado http://wiki.f is-ski.com/index.php/Esqui_Escolar/skiing_for_school_ kids%28Argentina%29. Acesso em: 25 mai 2014.

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por profissionais do esporte e suas potenciais utilizações como ferramenta educativa através da educação olímpica. A tendência das pesquisas nessa área procuram prioritariamente avaliar o impacto das instalações esportivas no meio ambiente e as influências que os megaeventos terão no turismo, deixando essa lacuna no campo educacional e sociocultural. O preenchimento dessa lacuna por meio de futuras pesquisas poderá ter efeitos positivos ao meio ambiente, dado que praticantes de atividades físicas na natureza, assim como os ecoturistas, tendem a possuir uma melhor consciência ecológica, além do fato de o contato direto com o meio ambiente ser extremamente favorável à construção de valores educativos nesse sentido, como demonstrou Certeau (2014). Então, além de procurar formas de aproximação dessas atividades de maneira voluntária e livre pela população em geral, pensando nos seus benefícios educativos, ao potencializar a utilização dessas práticas enquanto modalidades esportivas é possível fazer com que um numero maior de praticantes venham a se tornar atletas competitivos nessas modalidades, aumentando as chances de bons resultados esportivos em médio prazo.

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importância da preservação e construção de acervos: a experiência do Centro de Memória do Esporte (Esef-Ufrgs) Silvana Vilodre Goellner Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF-UFRGS)

Considerado como um fenômeno de grande significação na cultura contemporânea, o esporte, em suas mais diferentes manifestações, vem ocupando diferentes espaços destinados à preservação da memória, tais como museus, arquivos e centros de documentação. No Brasil, tal aspecto ganha maior visibilidade em função da organização de eventos como a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, os quais têm demandado maior divulgação da cultura, da tradição, da identidade e da história esportiva de nosso país. Em função desse contexto, é possível perceber inúmeras ações voltadas para a identificação, preservação e divulgação de acervos esportivos, sejam eles pessoais ou institucionais. Afinal, não há história sem memória e, para entendermos o presente, necessariamente precisamos recorrer ao passado, ao tempo já vivido, seus vestígios, continuidades e descontinuidades. Tendo em vista a relevância da memória para a produção de histórias e, mais especificamente, de histórias narrem a trajetória do esporte no Brasil, seus primórdios e desdobramentos, considero relevante destacar a função social desempenhada pelos museus, centros de memória e acervos privados ou públicos, cujo foco é o esporte em suas diferentes manifestações, visto que abrigam experiências que ajudam a entender o presente bem como perspectivar o futuro. Para tanto, compartilho da identificação desses espaços como lugares de memória (VON SIMSON, 2000), na medida em que preservam registros materiais e imateriais de nossa história esportiva por meio da preservação de documentos de diferente natureza em suportes físicos e digitais. Essa identificação advém da conceituação proposta por Pierre Nora, ao expressar que esses “são lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos” (1993, p. 21). 77

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Ou seja, os acervos esportivos são lugares de memória, visto que estão imbuídos das funções de seleção e guarda da memória e da simbologia que a envolve, preservando, assim, representações da identidade coletiva. Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há mais memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas porque essas operações não são naturais (NORA, 1993, 13).

Uma das reflexões sobre a função social dos lugares de memórias, focalizados aqui a partir de acervos esportivos, recai na ideia de que esses espaços guardam vestígios do tempo transcorrido. Assim, “de alguma forma e segundo critérios previamente estabelecidos realizam o trabalho de coletar, tratar, recuperar, organizar e colocar à disposição da sociedade a memória de uma região específica ou de um grupo social retida em suportes materiais diversos” (VON SIMSON, 2000, p. 65). Se considerarmos que os lugares de memória sistematizam e selecionam aquilo que deve ser preservado e aquilo deve ser descartado, ganha relevância o papel político e pedagógico de quem neles atua, visto que decorre dessa intencionalidade o registro (ou não) do que outrora foi vivenciado por pessoas, grupos e instituições. Tal entendimento tem orientado as ações empreendidas pelo Centro de Memória do Esporte da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEME) no que tange à produção, preservação e divulgação de acervos esportivos, dentre as quais destaco o programa de história oral e o seu repositório digital.

O Centro de Memória do Esporte e a preservação e produção acervos O Centro de Memória do Esporte surgiu em 1997, com os objetivos de reconstruir, preservar e divulgar a memória do esporte, educação física, lazer e dança no Rio Grande do Sul e no Brasil; implementar a produção científica no campo da história e da memória das práticas corporais e esportivas; realizar exposições permanentes e itinerantes; oferecer oficinas para escolas e outras instituições públicas e privadas; dar acessibilidade à informações relacionadas à memória das práticas corporais e esportivas; organizar seminários, palestras e eventos temáticos; disponibilizar 78

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o acervo via recursos computacionais; produzir conhecimento a partir de pesquisas realizadas no acervo; organizar acervo oral composto por depoimentos de pessoas com contribuição para a estruturação do campo das práticas corporais e esportivas no Brasil; gestar informações sobre memórias das práticas corporais e esportivas no Brasil por meio do movimento de acesso livre à informação científica. Esses objetivos foram formulados a partir da compreensão de que, como um lugar da memória, o CEME é um espaço de produção cultural, pois é a partir da especificidade de seu acervo que são elaborados seus programas educativos, bem como sua política de documentação e informação. Seu acervo comporta nove coleções: Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Educação Física e Esporte, Dança, Recreação e Lazer, Olímpica, Universíade 1963, Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, Movimento de Estudantes de Educação Física e Programa Segundo Tempo. O CEME integra a Rede de Museus e Acervos Museológicos da UFRGS (REMAM) e está registrado no Sistema Estadual de Museus do Estado do Rio Grande do Sul1. Considerando a diversidade de seu acervo, sua atuação mantém relações com três tipos de instituições que atuam com a produção e a preservação de fontes históricas: museus, arquivos e bibliotecas. A característica museológica incorpora-se devido à natureza de alguns objetos que preserva, fundamentalmente, aqueles reconhecidos como tridimensionais (vestuário, medalhas, troféus, entre outros), os quais possibilitam a organização de exposições consideradas aqui como estratégias para ampliar a acessibilidade de seu acervo ao público não acadêmico. A materialização dessa ação parte do entendimento de que: A característica mais importante de uma exposição museológica é que ela facilita o encontro entre o visitante e o objeto tridimensional. Somente a exposição fornece um contato controlado com um objeto autêntico, e ela pode realizar isto de maneira segura tanto para o objeto – em termos de segurança e conservação – quanto para o visitante. Para isso, o museu pode utilizar-se de vários modos de exposição: exposições permanentes, exposições temporárias, comemorativas, circulantes, ‘portáteis’ – que vão e voltam com o objetivo de atrair visitantes e promover o museu –, exposições móveis – sem lugar fixo – e exposições ‘emprestadas’ (SILVA, 2002, p. 1).

Mais informações estão disponíveis em .

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Afetar o visitante, uma das funções de uma exposição, tem requerido da sua equipe ações interdisciplinares, fundamentalmente, com instituições museológicas, na medida em que organizar o modo de apresentar objetos ao público pressupõe conhecimentos que envolvem dados aprofundados sobre aquilo que é exposto, assim como conhecimentos relacionados à própria estética da exibição. Além do trabalho sistemático de recolha, higienização, identificação e catalogação de acervo esportivo, considero relevante destacar duas experiências implementadas pelo Centro de Memória do Esporte no que respeita à produção e preservação de acervos esportivos.

O Programa de História Oral Além do trabalho de natureza museal e arquivística, o CEME desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão que, em grande medida, estão direcionadas à produção e divulgação de fontes históricas. Com relação à produção de fontes, merece destaque o projeto “Garimpando Memórias”2, que se constitui por meio da realização de entrevistas que são transformadas em documento escrito e disponibilizadas para consulta. Fundamentado no aporte teórico-metodológico da história oral, o projeto está direcionado para a coleta de depoimentos de pessoas que atuaram e atuam na estruturação e legitimação das práticas corporais e esportivas3. Desenvolvido desde 2004, tem como objetivo valorizar a oralidade reconhecendo sua importância como fonte histórica e sua pertinência aos estudos que dialogam com a memória, aqui entendida como: [...] uma produção do passado sob a luz da experiência vivida, das emoções, da subjetividade e parcialidade explícitas, que é constantemente reelaborada e transformada de acordo com questões do presente. Já a história é uma construção crítica sobre o passado, um relato produzido a partir de métodos definidos. As fontes orais, logo, apresentam memórias, que devem ser trabalhadas pelos estudiosos a fim de produzirem histórias (MELO, 2013, p. 161). Aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS, sob o número 2007710, em outubro de 2007, com apoio do Cnpq e do Ministério do Esporte. 3 As entrevistas podem ser acessadas na coleção Depoimentos do Repositório Digital, localizada em , e também no portal do CEME, disponível em . 2

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A utilização de fontes orais consolida um dos modos de usar a memória na produção acervos, seja na criação dos registros, seja na construção narrativa que se faz a partir da utilização dos registros produzidos. No que respeita à história oral, considero necessário apontar que, desde meados do século XX, vários autores a utilizam de diferentes formas e em diferentes campos disciplinares, tanto na produção de textos científicos quanto literários. (THOMPSON, 1992; FERREIRA e AMADO, 1996). No caso específico do “Garimpando Memórias”, tomamos como referência inicial o trabalho desenvolvido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea no Brasil (CPDOC), compreendendo a história oral como: [...] um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar deste objeto de estudo. Como consequência, o método de história oral produz fontes de consulta (entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, etc., à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam (ALBERTI, 1989, p. 1-2).

A partir dessa ancoragem, operamos com a entrevista compreendendo-a como um registro de memória e, consequentemente, como uma forma de produção de fontes a enriquecer o acervo do CEME, visto que seu processamento articula pesquisa e documentação. Além do próprio depoimento se constituir como uma fonte primária, a experiência de dez anos de realização do projeto já demonstrou que o contato com os entrevistados tornou-se ainda um modo bem-sucedido de ampliação do acervo, sobretudo iconográfico e documental. Ao rememorarem aspectos relacionados a sua vida pública, muitas pessoas demonstram interesse em doar materiais por entender que a instituição preservará aquilo que talvez seus amigos e familiares não demonstrem interesse ou cuidado. Considero relevante destacar que o projeto “Garimpando Memórias” e as pesquisas que derivam dele partem do entendimento de que a memória revela, simultaneamente, lembranças coletivas e interpretações particularizadas. Com isso afirmo que operamos com a memória entendendo-a como a reconstrução de um tempo 81

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que já passou, o que implica dizer que, ao ser acessada, há possibilidade de falhas, distorções, esquecimentos ou acréscimos. Em função dessa percepção, mostra-se pertinente, na etapa de processamento das entrevistas4, a realização de pesquisas complementares àquilo que foi narrado, de modo a entrelaçar memória e história. Essa articulação, além de promover maior densidade ao documento produzido, tem possibilitado ainda que as memórias relatadas façam parte de exposições, seminários, oficinas, mostras fotográficas, produção de vídeos, enfim, atividades que visibilizam a memória como algo vivo a dizer de ontem e de hoje. Tem possibilitado, sobretudo, que narrativas não oficiais sejam registradas, uma vez que a história oral: [...] permite ouvir histórias de indivíduos e grupos que de outra forma seriam ignorados; permite expandir os horizontes do nosso conhecimento sobre o mundo; e estimula o questionamento de nossas próprias hipóteses a respeito das experiências e dos pontos de vista de outras pessoas e culturas (PATHAI, 2010, p. 124).

Essa possibilidade tem orientado as ações do projeto “Garimpando Memórias”, que soma quase 500 entrevistas realizadas e mais de 300 disponibilizadas no formato digital5, cumprindo, desse modo, com uma importante função social, qual seja, a produção de registros a partir da escuta atenta a pessoas que, em seus depoimentos, materializam memórias individuais e coletivas.

O Repositório Digital do Centro de Memória do Esporte Atento às políticas de produção e acesso à informação, o Centro de Memória do Esporte reuniu esforços no sentido de promover maior visibilidade e acessibilidade ao seu acervo utilizando, para tanto, ferramentas relacionadas ao acesso livre à informação por meio da criação do seu repositório digital,

O processamento das entrevistas envolve as seguintes etapas: transcrição, pesquisa, copidesque, devolução ao entrevistado, assinatura de carta de cessão de direitos autorais, catalogação no acervo e disponibilização para consulta. 5 As entrevistas podem ser acessadas na coleção Depoimentos do Repositório Digital, localizada em , e também na página da internet do CEME/UFRGS, disponível em . 4

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seguindo a mesma estruturação do LUME – Repositório Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul6. Essa iniciativa integra também o plano político da UFRGS, dada a importância que a instituição atribui à produção do conhecimento e a sua difusão. A tecnologia da informação tem um papel estratégico na UFRGS, não apenas como possibilidade de expansão dos serviços bibliotecários e instrumento fundamental para o ensino presencial e a distância, mas também como fonte de indicadores gerenciais e de integração com outros repositórios de ensino e pesquisa no país. A grande quantidade de conhecimento produzido nas universidades faz com que seja necessário, além da sua difusão e uso, a sua preservação, por isso a importância de projetos como este (PAVÃO et al., 2008, p. 2).

A criação de repositórios digitais tem marcado a política institucional de várias outras universidades brasileiras com a função de compartilhar o que é produzido pelos seus pesquisadores. Segundo Masson (2008), os repositórios apresentam algumas características específicas, a saber: a) são tecnologias de informação desenvolvidas para organizar, coletar, disseminar e preservar informações e conhecimentos; b) são ferramentas criadas para contribuir com o avanço de pesquisas; c) sua arquitetura tem forma de rede interoperável, possibilitando novas formas de avaliação das produções científicas e do desempenho dos pesquisadores, bem como a interação e democratização do acesso à informação e conhecimento e potencializando a colaboração entre pesquisadores e a sociedade em geral; d) são ferramentas flexíveis que podem ser adaptadas às constantes e rápidas mudanças da sociedade contemporânea; e) são sistemas que surgem no contexto da convergência tecnológica digital tendo na Internet o seu ponto central. Para o desenvolvimento dos repositórios digitais foi importante a implementação do software DSpace, recomendado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBCIT), por possibilitar a criação desses repositórios: [...] com funções de captura, distribuição e preservação da produção intelectual, permitindo sua adoção por outras instituições em forma consorciada federada. O sistema desde

Pode ser acessado no seguinte endereço: .

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seu início teve a característica de ser facilmente adaptado a outras instituições. Os repositórios DSpace permitem o gerenciamento da produção científica em qualquer tipo de material digital, dando-lhe maior visibilidade e garantindo a sua acessibilidade ao longo do tempo (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, 2012).

O Repositório Digital do Centro de Memória do Esporte foi incorporado ao LUME em maio de 2012 e seus itens são disponibilizados a partir de cinco coleções: a) Audiovisual – abriga documentos no formato de vídeos (filmes, depoimentos, slides, videoconferências etc.) e sonoros (entrevistas de rádio, músicas etc.); b) Depoimentos – comporta as entrevistas realizadas pelo projeto “Garimpando Memórias” (disponibilizadas na íntegra para consulta, tanto no Repositório quanto no Sistema Automatizado das Bibliotecas (SABi) e o catálogo eletrônico do Sistema de Bibliotecas da UFRGS7; c) Documentos – caracterizada por documentos de diferentes naturezas, tais como leis, atas, reportagens de jornais, correspondências, planos de aulas, súmulas esportivas, entre tantas outras. Para a sua disponibilização no Repositório são digitalizados e publicados em formato pdf; d) Iconográfica – comporta imagens em diferentes suportes: fotografias, cartazes, desenhos, pinturas, banners, entre outras. Além desse material, é possível visualizar as exposições presenciais, itinerantes e virtuais realizadas com temáticas relacionadas às suas coleções específicas; e) Tridimensional – abriga objetos, tais como vestuário, medalhas, itens e equipamentos esportivos, entre outros. Esses objetos são fotografados e as imagens podem ser visualizadas no Repositório acompanhadas de suas especificidades como, por exemplo, tamanho, peso, textura, bem como a origem e a história de cada peça, ressaltando se já integrou alguma exposição, seja ela organizada pelo próprio CEME ou emprestada para outra instituição. Essas coleções podem ser pesquisadas no Repositório através de metadados (dados que descrevem o documento) criados especificamente para facilitar as buscas e acessos, a saber: ano, autor, título, palavras-chave e acervos. A recuperação baseia-se nas pesquisas de modo simples e avançado, percorrendo as coleções e acervos, e o sistema oferece, caso haja interesse em conhecer, as estatísticas de uso dos itens, indicando os mais acessados, bem como os países e as cidades que protagonizam os acessos. Disponível em .

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Acredito, ainda, que outro aspecto inovador desse Repositório consiste no acesso à diversidade dos registros que integram cada coleção e que podem ser facilmente utilizados pelo usuário. Além de visualizar o documento e coletar informações específicas sobre ele, é possível fazer um download e, assim, utilizá-lo em suas pesquisas e interesses. Cumpre-se, assim, outra função social, qual seja, a adesão ao movimento de acesso livre à informação científica. Por acesso livre, define-se a disponibilização ilimitada, na internet, de literatura acadêmica ou científica, possibilitando a qualquer pessoa ler, fazer download, copiar, imprimir, pesquisar ou referenciar (link) o texto completo dos documentos (RODRIGUES, 2005). Sua manifestação tem se dado a partir de diferentes iniciativas, tais como o uso de software livre, o download de arquivos de música, os e-books (livros eletrônicos), os repositórios digitais e os periódicos eletrônicos. Esse novo modelo distingue-se “por consentir o acesso sem barreiras, sem a exigência do uso de senhas, licenças ou mesmo o pagamento de assinaturas para fazer a consulta nos sites ou nos exemplares” (CRESPO e CORREA, 2006, p. 2). Além do Repositório Digital, que já disponibiliza mais de dois mil itens, o CEME mantém outras tecnologias de informação e documentação, dentre as quais destaco o portal na internet8, ferramenta por meio da qual se obtém informação sobre o desenvolvimento de todas as suas atividades. Nesse portal também é possível acessar as produções de sua equipe, tais como livros, artigos, teses, dissertações, monografias, multimídias, assim como as entrevistas do projeto “Garimpando Memórias” e os livros eletrônicos da coleção GRECCO9, produzidos com objetivo de conferir maior visibilidade e acesso ao seu acervo, potencializando, dessa forma, sua função política e pedagógica, assim como sua responsabilidade social.

Referências ALBERTI, Verena. História oral e a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1989.

Mais informações em: . Produzidos pelo Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História (GRECCO), estão disponíveis em .

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CRESPO, Isabel M. E CORRÊA, Cinthia. Acesso livre à comunicação científica: a experiência do Scielo. Revista F@ro, n. 6. p. 1-6, 2006. FERREIRA Marieta de M. e AMADO, Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA DSpace: repositórios digitais. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2014. MASSON, Sílvia M. Os repositórios digitais no âmbito da Sociedade Informacional. PRISMA.COM, n. 7, 2008. MELO, Victor Andrade de, DRUMOND, Maurício. Pesquisa Histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História, São Paulo, n. 10, dez, 1993. PATHAI, Daphne. História Oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 124. PAVÃO, Caterina G. et al. Repositório digital: acesso livre à informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE BIBLIOTECAS UNIVERSITÁRIAS, 15. SÃO PAULO, 2008. Anais... 1CD. RODRIGUES, Eloy. Concretizando o acesso livre à literatura científica: o repositório institucional e a política de autoarquivamento da Universidade doMinho. Cadernos BAD. v. 1, p. 21-33, 2005. SILVA, Sama Ellizabeth. Aspectos de uma exposição em museu. 2002. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2014. SIMSON, Olga R. de M. von. Memória, poder e cultura na sociedade do esquecimento: um exemplo do Centro de Memória da UNICAMP. In: FARIA FILHO, Luciano de (Org.) Arquivos, fontes e novas tecnologias: questões para a história da educação. Campinas: Autores Associados; Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2001. THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 86

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e história: desafios metodológicos para os estudos do esporte1 Victor Andrade de Melo Universidade Federal do Rio de Janeiro A memória é uma ilha de edição – um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant, e imediatamente apaga a tecla e também o sentido do que queria dizer. Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser levado junto de roldão. Onde e como armazenar a cor de cada instante? Que traço reter da translúcida aurora? Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas? O perfume, acaso, daquela rosa desbotada? A vida não é uma tela e jamais adquire o significado estrito que se deseja imprimir nela. Tampouco é uma estória em que cada minúcia encerra uma moral. Ela é recheada de locais de desova, presuntos, liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas, apagamentos de trechos, sumiços de originais, grupos de extermínios e fotogramas estourados. Que importa se as cinzas restam frias ou se ainda ardem quentes se não é selecionada urna alguma adequada, seja grega seja bárbara, para depositá-las? (...) E os dias sucedem-se e é firmada a intenção de transmudar todo veneno e ferrugem em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.

 ste artigo incorpora algumas reflexões apresentadas em outras ocasiões, algumas E delas em parcerias com outros colegas. Tais produções foram citadas em notas de rodapé.

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Ao prazer do bel-prazer, como quem aperta um botão da mesa de uma ilha de edição e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo Corrigindo: o humano fado 2.

O longo extrato da poesia, o olhar atento do poeta sintonizado com seu tempo, de pronto nos apresenta alguns desafios a ter em conta para pensarmos na relação entre a memória e a história. Se a segunda, no seu formato acadêmico, aspira à cientificidade, uma forma de distanciamento racional, a primeira é fundamentalmente marcada pelo calor dos acontecimentos (mesmo quando há um espaçamento temporal entre o que foi vivido e o momento em que é lembrado). Se a memória, como percebe o poeta, é uma ilha de edição, não seria a história também o mesmo, com seus recortes espaciais, temporais e metodológicos? Memória e história não são da mesma forma criações humanas marcadas pela provisoriedade, pelos limites das condições de expressão, pelas expectativas e projetos de passado e futuro, pelos enquadramentos do presente? Da mesma maneira, as duas não padecem de uma mesma impossibilidade de sucesso, dado que é impossível recriar exatamente o passado conforme ele existiu? Nesse sentido, não seriam ambas um similar esforço de interpretação do fardo e do fado humano? Temos aqui uma discussão sobre os limites, ou talvez seja melhor falar das especificidades, entre o trabalho do historiador profissional e outros esforços sociais de rememorar. Machado de Assis brinca com essa distinção: E repare o leitor como a língua portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário do historiador, não sendo um historiador afinal mais do que um contador de histórias. Por que essa diferença? Simples, leitor, nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito Lívio e entende que contar o que se passou é só fantasiar 3. SALOMÃO, Waly. Carta aberta a John Ashbery. In: SALOMÃO, Waly. Algaravias. São Paulo: Editora 34, 1996. 3 ASSIS, Machado. História de quinze dias. Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, p. 1, 15 de março de 1877. 2

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O grande literato ainda ironizou o dilema em outra ocasião: “Mais tarde, poetas e historiadores concordariam em dizer que as três pessoas da ilha é que deram ocasião ao título desta; a diferença é que os poetas diriam a coisa em verso, sem documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa, com documentos”4. Estamos a sugerir que o exercício da memória não é exclusividade de um profissional, tampouco tem fim, função ou formato únicos. Devemos também, de imediato, afastar qualquer ideia de que exista uma hierarquia entre os diversos envolvidos com a tarefa. Todavia, é necessário marcar e compreender as diferenças da performance de quem se envolve com o tema, as distintas responsabilidades que cercam os esforços dos agentes. A pesquisa histórica, conforme concebida a partir de um conjunto de compreensões teóricas e metodológicas que se estruturaram no decorrer do tempo por agentes normalmente integrantes de um campo acadêmico, tem uma série de peculiaridades que precisam ser reconhecidas e utilizadas, sem o que a confundimos com outros esforços de exercício da memória. Adotemos uma definição. Por memória, compreendese uma produção do passado sob a luz da experiência vivida, das emoções, da subjetividade e parcialidade explícitas, constantemente reelaborada e transformada de acordo com as questões do presente. Já a história é uma construção crítica sobre o passado; melhor dizendo, uma discussão sobre um tema, em tempo e espaço arbitrados, entabulada a partir de determinados procedimentos metodológicos5. Para além dos muros universitários, sem sempre é reconhecida essa distinção. Isso em si não é um problema. O problema é se nós, pesquisadores envolvidos com a tarefa específica de lançar olhares advindos de uma perspectiva acadêmica, que tem aspirações e inspirações na ciência, não reconhecermos as devidas diferenças e abandonarmos (ou desconhecermos) os procedimentos que devem nortear os nossos esforços a partir da especificidade de nossa atuação. No caso dos estudos do esporte, há algumas peculiaridades que devemos ter em conta, especialmente porque em muitas

ASSIS, Machado. A semana. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 1, 11 de março de 1894. 5 MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael, DRUMOND, Maurício. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. 4

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ocasiões as ideias de memória e história se confundiram na trajetória do objeto. Não seria equivocado dizer que no campo esportivo, desde cedo, se valorizou certa visão de registro de dados e fatos que se relaciona à difusão de ideias de grande utilidade para sua consolidação: o heroísmo, a coragem, a grandiosidade das conquistas humanas. Os “feitos esportivos” devem ser preservados e exibidos: testemunhar, documentar, “to record” – o recorde como dimensão central que permite lembrar a constante necessidade de superação. É também comum, desde seus primórdios (estamos nos referindo à transição dos séculos XVIII e XIX), relacionar o esporte com um suposto passado longínquo, de forma a, estrategicamente, reiterar sua importância. Essa mobilização pode ser observável também na institucionalização de outras práticas corporais: da educação física (como justificativa para a implementação dessa disciplina escolar), da ginástica (como inspiração na elaboração dos métodos gímnicos) e mesmo da dança (nos discursos sobre as peculiaridades das propostas de dança moderna). Além disso, vale ter em conta que as origens do fenômeno esportivo (do “esporte moderno”) se encontram no mesmo momento histórico em que se erigia a ideia de Estado-Nação, noção com a qual rapidamente se articulou. De fato, a prática configurou-se inserida e articulada com o quadro de mudanças que marcou a construção do ideário e imaginário da modernidade6. Desde o século XIX, a prática esportiva tem sido utilizada como estratégia para forjar discursos identitários, inclusive representações relacionadas à ideia de nacionalidade. As competições constantemente assumem um caráter de ode à nação: quando entram em campo os símbolos nacionais, a paixão pelo esporte não poucas vezes se confunde com o amor à pátria, compondo uma performance de declaração de vínculos de lealdade ao país7. Tais eventos podem ser encarados, dessa forma, como “lugares de memória”, como entendidos por Pierre Nora: loci em que é construída a consciência histórica de um povo. Os lugares

MELO, Victor Andrade de. Esporte e lazer: conceitos. Rio de Janeiro: Apicuri/ Faperj, 2010. 7 SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia, COSTA, Maurício da Silva Drumond, MELO, Victor Andrade de. Celebrando a nação nos gramados: o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1922. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 57, v. 1, p. 151-174, 2012. 6

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de memória não se constituem necessariamente de espaços físicos, mas também de elementos simbólicos. São monumentos, personalidades, obras de arte, acontecimentos que ancoram a visão de um passado em comum, ajudando a materializar uma identidade construída. Como observa Nora, “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”8. Elementos esportivos podem se constituir em lugares de memória quando são “investidos de uma aura simbólica”. Nora sugere que três aspectos coexistem na configuração de um lugar de memória: o material, o funcional e o simbólico. No Brasil, algumas competições esportivas, notadamente as de futebol, na materialidade de seus jogos, torneios e produtos, exercem funções que vão desde se constituir em uma importante opção de lazer para parte significativa da população até servir como mecanismo para reforçar vínculos diversos. Tais eventos mobilizam representações que ajudam na cristalização da memória e da identidade coletivas. Em outros países pode-se observar algo semelhante ao redor de outras modalidades, como o ciclismo na França e o beisebol nos Estados Unidos. Vale também dialogar com a ideia de “comunidade imaginada” proposta por Benedict Anderson. Para o autor, a nação deve ser encarada como uma entidade presumida por seus membros, que compartilham símbolos próprios de identificação mútua. Mesmo que nunca se encontrem numa totalidade, os indivíduos se sentem como parte atuante de um grupo, pois “na mente de cada um existe a imagem de sua comunhão”9. Os eventos esportivos permitem à comunidade celebrar essa construção coletiva e demonstrar publicamente sua pertença ao todo. O esporte é, assim, não poucas vezes, encarado como uma representação de supostas “características intrínsecas” de um povo: como um importante elemento de afirmação cultural, ao redor do qual se constituem “tradições inventadas”10. Eric Hobsbawm faz uma distinção entre as invenções “políticas” e as invenções “sociais” de tradições. As primeiras seriam fruto de movimentos organizados ou intervenções estatais

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993. p. 9. 9 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005. p. 25. 10 HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. 8

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– como festas cívicas e eleições de heróis nacionais. Já as segundas seriam as geradas por grupos sociais sem uma organização mais formal ou sem um objetivo político explícito. Comumente as duas dimensões se mesclam, até mesmo por interesse de dirigentes em se vincular a celebrações populares. Para Hobsbawm, como “uma das novas práticas sociais mais importantes do nosso tempo”11, “tanto o esporte das massas quanto o da classe média uniam a invenção de tradições sociais e políticas (...) constituindo um meio de identificação nacional e comunidade artificial”12. Assim, em um mundo cada vez mais globalizado, em poucos anos certos fatos esportivos ganharam status de tradição nacional. Mesmo quando a ideia de nação tornou-se mais frágil em função do desenvolvimento econômico transnacional, o esporte manteve o papel de construtor e consolidador de discursos identitários, de celebração da pátria. Com isso, não afirmamos que a prática tem sido somente usada como parte de uma estratégia deliberada de manipulação e controle, mas sim que se insere dialogicamente no processo de construção de um imaginário que torna mais estável o cotidiano dos membros de uma comunidade, tornando-se, assim, parte da memória coletiva. Logo, em função dessa constante sobreposição entre as ideias de memória e história na trajetória do campo esportivo, os investigadores do tema devem tomar ainda mais cuidados no que tange à compreensão da relação entre ambas. Podemos começar por melhor entender como isso foi tratado nas pesquisas que nos antecederam, à busca de perceber os limites desses esforços, sinalizações do que devemos evitar. No cenário brasileiro, as primeiras iniciativas foram protagonizadas por antigos praticantes e/ou apaixonados pelas modalidades, sem a preocupação de uma discussão histórica propriamente dita13. Por exemplo, um dos autores que primeiro

HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 306. 12 HOBSBAWM, Eric J. A produção em massa de tradições: Europa, 1870 a 1914. In: HOBSBAWM, Eric, RANGER, Terence. A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1997. p. 309 13 MELO, Victor Andrade, SANTOS, João Manuel Malaia Casquinha, FORTES, Rafael, DRUMOND, Maurício. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. 11

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escreveu sobre a trajetória do turfe, observou: “Mais vale tarde do que nunca. Já não é cedo para se escrever a história do turfe nacional, história que, na falta de testemunhas oculares e de documentos já hoje raríssimos, poderá ser para o futuro adulterada”14. No caso do remo, também se pode perceber preocupação semelhante em 1909, no livro de Alberto Mendonça, que, junto com Ernesto Curvello Júnior, foi um dos primeiros a sistematizar observações sobre sua trajetória: Evidentemente sabido é que dificuldades de monta teríamos de encontrar na compilação de fatos históricos sobre a vida deste esporte, assim como na coleção de documentos a ele referente; porquanto, até a presente data é conhecida de sobejo a deficiência das publicações sobre o nosso movimento esportivo, hoje, felizmente, em grau de desenvolvimento notório15.

Se essas primeiras iniciativas foram eminentemente esforços de preservação de memória, esforços posteriores estariam mais sintonizados com as perspectivas historiográficas de seu tempo. Nesse aspecto, devemos destacar as obras de Inezil Penna Marinho, um dos mais importantes estudiosos brasileiros da história do esporte e da Educação Física. Sua produção, sem dúvida, apresenta alguns limites que devem ser considerados à luz dos olhares contemporâneos: a utilização exclusiva de fontes documentais; um caráter “militante”, a investigação servindo para provar e legitimar posições previamente estabelecidas; a preocupação exacerbada com o levantamento de datas, nomes e fatos; uma abordagem centrada fundamentalmente na experiência de grandes expoentes; o uso de uma periodização política geral em detrimento de uma periodização interna. Todavia, mesmo com essas observações, deve-se perceber que seus estudos possuem uma sensível diferença, principalmente no que se refere à compreensão metodológica. Além disso, destacam-se seus investimentos na história brasileira, até então pouco abordada, sua erudição e a utilização de documentos diversificados. A obra de Inezil é um exemplo de pesquisa histórica bem desenvolvida nos padrões da escola metódica, cuja

PACHECO, Eduardo. Crônicas do turf fluminense. Rio de Janeiro: s.n., 1893. p. 7. MENDONÇA, Alberto B. História do sport náutico no Brazil. Rio de Janeiro: Federação Brazileira de Sociedades de Remo, 1909. Sem página.

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influência foi muito grande no Brasil, segundo os parâmetros propostos por Langlois e Seignobos. Na verdade, em alguns de seus artigos já se pode identificar mudanças na concepção de história, apontando-se para uma perspectiva mais interpretativa. Contudo, o que preponderou foi sua visão centrada no levantamento de datas e fatos. Vejamos que, nesse aspecto, seus esforços de história, embora diversos pelas preocupações metodológicas, ainda se aproximavam de um exercício de preservação de memória. Na década de 1980, materializam-se críticas a essa visão de história, notadamente em função de uma maior proximidade com inspirações advindas do marxismo. O intuito, no cenário de um país que se democratizava e de uma área de conhecimento que passava por um processo de reavaliação, era lançar olhares mais críticos sobre a trajetória do esporte e da educação física no Brasil. O que ocorre é que, a despeito da sua importância, esses esforços foram desprovidos de claras preocupações metodológicas, sendo mesmo obras mais confusas, incompletas, superficiais. A periodização continuou a se submeter a especificidades exteriores ao objeto, referendando uma impressão de linearidade tão presente nas fases anteriores. A história era entendida como responsável por explicar linearmente o presente, fato agravado por uma compreensão que parte para o passado com hipóteses confirmadas a priori. A exasperação da crítica ao caráter factual que marcou a etapa anterior resultou no dispensar de datas, fatos e nomes, em uma deficiente operação das fontes. Trata-se menos de pesquisas históricas propriamente ditas e mais de ensaios de filosofia da história (muito inconsistentes, aliás). Tampouco podem ser consideradas como eficazes contribuições para a preservação da memória. Na verdade, é somente a partir da década de 1990 que surgem preocupações metodológicas mais denotadas no que tange à investigação histórica que se debruçou sobre o esporte e a educação física, para ser mais preciso, sobre as práticas corporais institucionalizadas. A sistematização e utilização desse conceito, aliás, é um indicador da busca de maior precisão nos esforços de pesquisa. O que alguns autores têm sugerido é que a História das Práticas Corporais Institucionalizadas é um campo de investigação que se debruça sobre manifestações culturais que passaram por processos de institucionalização que guardam algumas similaridades, como o esporte, a educação física 94

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(entendida tanto como uma disciplina escolar quanto como uma área de conhecimento), a ginástica, a dança, as atividades físicas “alternativas” (antiginástica, eutonia, ioga etc.), alguns fenômenos análogos de períodos anteriores à Era Moderna (as práticas de gregos, os gladiadores romanos, os torneios medievais, um grande número de manifestações lúdicas de longa existência), entre outras (como, por exemplo, a capoeira). Para facilitar o entendimento e/ou em função de questões operacionais, sugiro usar como metonímia o termo História do Esporte, o que não exclui ou substitui os enfoques específicos ligados aos diferentes objetos. Ou seja, a História do Esporte (no sentido de História das Práticas Corporais Institucionalizadas) englobaria as histórias da educação física, da ginástica e do próprio fenômeno esportivo, entre outras, que investigam separadamente os temas, mas sempre os entendendo tanto inseridos em um contexto específico quanto na relação que estabelecem com outras práticas corporais de seu tempo. Essas mudanças no âmbito da História do Esporte, no caso do Brasil, se observaram primeiro na área de Educação Física e posteriormente no campo acadêmico da História, que também passava por transformações, notadamente em função das provocações da Nova História Cultural, estando os historiadores mais atentos às diversas práticas sociais. Esses novos aportes foram antecedidos por uma maior valorização do tema no âmbito da Sociologia e da Antropologia, compreensões que de alguma forma influenciaram a nova perspectiva de investigação histórica. O que se pode observar, nas duas últimas décadas, é um notável aperfeiçoamento das iniciativas de pesquisa. Percebese, inclusive, uma maior sistematização e institucionalização dos estudos, uma configuração mais clara da História do Esporte como um campo de investigação. Todavia, se os avanços são alvissareiros, há ainda um longo caminho a trilhar. Pretendo aqui recuperar alguns pontos que considero relevantes para que possamos pensar no futuro das nossas iniciativas. Um primeiro ponto que gostaria de destacar é a necessidade de refletirmos melhor sobre as potenciais contribuições de nossas investigações. Ao melhor compreender a trajetória histórica dos fenômenos, podemos colaborar para desvendar algo das suas questões contemporâneas, tanto no que se refere a um melhor entendimento dos papéis sociais que desempenham as práticas investigadas quanto no que se tange, inclusive, a possibilidades mais diretas de aplicação. 95

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No entanto, se essa dimensão não pode ser negligenciada, não se pode perder de vista que as práticas corporais institucionalizadas têm sua configuração articulada com as dimensões sociais, culturais, econômicas e políticas de um dado contexto. Elas fazem parte do patrimônio de um povo, da memória afetiva de indivíduos e grupos, sendo também importantes ferramentas na construção da ideia de nação e na formulação de identidades de classe, gênero, etnia, entre outras. Por essa conformação, são objetos cuja investigação pode contribuir para desvendar, de forma multifacetada, o cenário em que se inserem. Isto é, a História do Esporte tem um duplo compromisso, duas dimensões que podem estar mais ou menos articuladas: a melhor compreensão do tema a partir de sua inserção social e o melhor entendimento da sociedade a partir do tema. Para exponenciar essas possibilidades de contribuição, o esforço central é seguir investindo no aperfeiçoamento de nossas iniciativas de pesquisa, sendo uma de nossas necessidades mais urgentes a busca de maior rigor metodológico. Ainda há muitos estudos que desconhecem ou não se detêm sobre essa importante dimensão da investigação histórica. Além disso, só recentemente, e de forma tímida, vemos a busca de diversificação das alternativas metodológicas. Muitos seriam os exemplos possíveis, alguns já apresentados em outras ocasiões. Aqui citarei apenas um deles. Noções como as de construção, invenção e imaginação, caras a boa parte dos historiadores da cultura16, podem ser particularmente instigantes quando pensadas em relação ao esporte, afinal, o panteão esportivo, na contemporaneidade, é uma das principais manifestações de sentimentos como paixão, idolatria e orgulho nacional. Histórias heroicas e dramáticas, produzidas e reproduzidas nas conversas, nos filmes, nas casas, nos livros, nos meios de comunicação (especialmente no jornalismo esportivo), nos jogos eletrônicos e nas brincadeiras infantis, constituem-se assuntos relevantes para o pesquisador. Ao historiador, contudo, não cabe tanto desmascarar mitos – embora isso seja também parte da sua tarefa, dependendo do estudo que se pretenda realizar –, mas compreender, interpretar e explicar os complexos mecanismos de difusão, repetição

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 105.

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e produção de memória pelos quais determinadas narrativas e explicações se tornam hegemônicas, ao passo que outros relatos e versões são relegados ao esquecimento ou ao subterrâneo17. Não se trata de exercitar teorias da conspiração, segundo as quais tudo que existe é fruto de acordos de bastidores entre poderosos, mas de desvelar os processos históricos pelos quais se constroem os mitos, em geral articulados com a legitimação social de certas pessoas, grupos e entidades. Isso pode se dar de maneira planejada, fortuita, casual, intencional, não intencional – caminhos de forma alguma excludentes entre si. Muitos outros seriam os exemplos possíveis no que tange a certas dimensões da história política e história econômica, entre outras. Na verdade, ao chamar a atenção para esses aspectos, alertamos para a necessidade de não adotarmos a postura que Marieta de Morais Ferreira chama de “produtores de história” (history makers)18, autores que produzem trabalhos sem se ater aos cuidados metodológicos, comumente considerando suas fontes como se fossem um retrato fiel do que ocorreu no passado, reproduzindo discursos de memória como se verdade fossem. A questão é simples e óbvia, mas deve ser relembrada inclusive em função da característica multiprofissional do campo de investigação da História do Esporte (na qual atuam “historiadores de formação”, mas também oriundos de outras áreas). Qualquer que seja a opção teórica/metodológica adotada, a história do esporte é sempre história: são os debates da disciplina (bem como das ciências humanas e sociais como um todo) que devem nortear nossa atuação, independentemente da área original de formação do pesquisador. Nesse sentido, uma história do esporte vai se cruzar com muitas outras histórias: a) seja no que se refere às dimensões – Política, Cultural, Social, Econômica etc.; b) seja no que se refere às abordagens – Oral, Serial, Análise de Discurso, Quantitativa, Micro-História etc.; c) seja no que se refere aos domínios – Corpo, Gênero, Urbana, Arte etc.; d) seja no que se refere aos recortes temporais – Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea, Tempo Presente.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. 18 FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p. 314-332, 2002. 17

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Uma das possibilidades que menos temos utilizado é a História Comparada, um método que apresenta múltiplas possibilidades para o historiador do esporte. Podemos, por exemplo, comparar modalidades distintas em um mesmo cenário. O contraste do tempo/momento de estruturação e desenvolvimento de cada prática ajuda-nos a compreender de forma multifacetada não só a configuração do campo esportivo no local, como também a lançar um olhar sobre os diferentes contextos históricos. Interessante também seria compararmos diferentes cidades de um mesmo país. No caso brasileiro, já temos um conjunto de estudos sobre algumas localidades, notadamente capitais (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, entre outras). Não temos, contudo: a) investigações sobre muitos municípios, especialmente os de menor porte; b) praticamente não temos estudos comparados. Essa possibilidade de investigação poderia nos apresentar um panorama ampliado e mais aprofundado sobre o desenvolvimento do fenômeno esportivo pelo Brasil, nos ajudando a testar hipóteses de trabalho. Há ainda a possibilidade de compararmos diferentes países e/ou cidades de distintos países. Em função da proximidade geográfica e de algumas similaridades históricas, que semelhanças e dessemelhanças haveria, por exemplo, na configuração do campo esportivo nas nações da América do Sul? Teria essa perspectiva de investigação alguma contribuição a dar ao estudo de nosso continente? Esse tipo de iniciativa parece urgente e fundamental, inclusive porque a estruturação da História do Esporte na América Latina é menor do que no continente europeu e nos Estados Unidos. Observe-se que não estamos falando da qualidade das pesquisas, no que estamos pari passu com a produção mundial, mas sim da conformação do campo de investigação. Muitas alternativas de uso da História Comparada poderiam ser ainda apontadas. Quero, contudo, citar pelo menos mais uma: compararmos países que compartilham dimensões culturais, como o idioma. Por exemplo, parece interessante insistir na prospecção de elementos que possam contribuir para pensar as semelhanças e dessemelhanças de algumas experiências dos países de língua oficial portuguesa, ampliando nosso entendimento tanto sobre nossas histórias nacionais quanto sobre a cultura lusófona no mundo. Podemos colaborar com esses esforços a partir do caso específico do esporte. 98

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Vale lembrar que temos poucos estudos sobre o esporte nos países africanos de língua oficial portuguesa, nações que estabeleceram relações materiais e simbólicas constantes com o Brasil. As investigações sobre as práticas esportivas podem também ajudar a desvendar essa história em comum19. Ao falarmos das questões metodológicas, devemos conceder espaço especial para discutir o uso de fontes. No cenário nacional, temos usado majoritariamente documentos e periódicos (ainda mais esses últimos). Há um grande desafio: a dificuldade de acessar material diversificado em função da pouca organização de nossos arquivos, tanto de instituições governamentais quanto das próprias entidades esportivas. Todavia, há também desconhecimento ou negligência por parte dos pesquisadores, especialmente no que tange a importantes repositórios pouco procurados. Outro desafio deve ser assumido pelos pesquisadores: o uso de fontes de diferentes naturezas: filmes, fotografias, obras de artes plásticas, relatos de viajantes, obras literárias, peças dramatúrgicas (teatro e dança), material publicitário, músicas. Valeria ainda a pena pensar em um uso mais frequente de fontes orais. Há muito o que pode ser utilizado para buscar novos olhares sobre nossos temas. No que tange à fonte oral, muitos cuidados devem ser observados. Essa é uma das alternativas em que mais se confundem os aspectos da memória com os esforços da pesquisa histórica. Em alguns casos, inclusive, as publicações são praticamente a reprodução de relatos, não havendo maior investimento no sentido de elaborar alguma síntese ou análise. Há ainda interpretações que “embarcam” na posição do entrevistador sem ter em conta os cuidados metodológicos necessários. Não devemos confundir essa abordagem anterior com uma possibilidade de investigação que aparece com frequência crescente nos trabalhos de história oral. O intuito do historiador não é a construção de uma interpretação crítica sobre o passado, mas sim a discussão das representações presentes em discursos e memórias. Para os que se interessam por esse enfoque, mais importante do que a veracidade dos fatos, é o modo como as

BITTENCOURT, Marcelo, NASCIMENTO, Augusto, MELO, Victor Andrade de (Orgs.). Mais do que um jogo: o esporte e o continente africano. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.

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pessoas concedem sentido ao que vivenciaram, como conectam a experiência individual com o contexto social, como o passado se torna parte do presente e como as pessoas se utilizam dele para interpretar as suas vidas e o mundo ao seu redor 20. Os relatos orais são, assim, não apenas fontes para o trabalho dos historiadores, mas também seu objeto de estudo. Devemos chamar a atenção para o óbvio: há cuidados metodológicos que são comuns a todos os tipos de fontes, enquanto alguns são peculiares a cada alternativa. O pesquisador não pode negligenciar esse debate. Há ainda um ponto para o qual gostaria de chamar a atenção: a necessária ampliação dos temas investigados. No senso comum é corrente a afirmação de que o Brasil é o país do futebol. Independentemente dos exageros, é inegável o grau de popularidade desse esporte. Nesse sentido, consideramos compreensível que essa seja a modalidade que mais tem merecido atenção dos pesquisadores: houve tempo em que falar em história do esporte no Brasil praticamente significava falar de história do futebol. O quadro está mudando alvissareiramente, mas permanecem numerosas as modalidades esportivas e práticas corporais que requerem maior atenção e investimento dos historiadores brasileiros. Aliás, mesmo no que se refere ao futebol, percebe-se a necessidade de diversificar as investigações, muito centradas em grandes clubes, grandes ídolos e grandes cidades. Outra dimensão que merece ser destacada é o grande número de estudos relacionados à relação entre esporte e identidade nacional. Gênero, classe social, questões raciais/ étnicas, localismos, entre outros, são enfoques sobre os quais o historiador também pode e deve se debruçar quando trata das práticas corporais. Devemos ainda pensar nos diversos recortes temporais. Se temos, por exemplo, no cenário brasileiro, muitos estudos sobre a segunda metade do século XX, poucos são os que se debruçaram sobre o século XIX. Ampliar nosso olhar sobre os diferentes tempos históricos é tão importante quanto as dimensões antes apontadas. Para concluir, devemos lembrar que as práticas corporais institucionalizadas são transtemporais: é raro, no decorrer da

THOMSON, Alistair. Fifty years on: an international perspective on oral history. The Journal of American History, v. 85, n. 2, p. 581-595, 1998.

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história, encontrar um período ou um grupo social que não tenha registrado alguma forma de manifestação dessa natureza. Da mesma forma, vale considerar que estamos lidando com práticas influentes e presentes em vários países. O esporte, por exemplo, destaca-se por sua notável transnacionalidade. Por essas características, a investigação de tais práticas pode contribuir para tensionar os próprios limites da disciplina História, inclusive por induzir os pesquisadores à busca de diálogos multidisciplinares. Aliás, deveríamos também refletir melhor sobre que contribuições o debate e as competências específicas da Educação Física poderiam dar à pesquisa histórica. Elas podem estar fundamentalmente no que tange à melhor compreensão do cotidiano, dos movimentos, das estratégias de intervenção. Trata-se de um programa a ser construído. Vale lembrar que as práticas corporais já recebem atenção de muitas áreas de conhecimento: algumas que podem ser consideradas mais óbvias (como Economia, Sociologia, Antropologia, Psicologia, Economia e Comunicação Social), outras que soam mais curiosas (Oftalmologia do Esporte, Enfermagem do Esporte, Odontologia Esportiva). Isso tem relação com um meio universitário crescentemente especializado, mas também com a popularidade do fenômeno esportivo. Tendo em vista esse quadro, sem significar que a História do Esporte deva deixar de existir enquanto “subdisciplina”, é importante ter em conta sua contribuição para a constituição de um campo de investigação ao redor do tema a partir de uma perspectiva multidisciplinar, transdisciplinar e, quem sabe, interdisciplinar: os Estudos do Esporte. No nosso ponto de vista, nesse projeto devemos nos aproximar da perspectiva dos Estudos Culturais, algo distinto do que ocorre no cenário internacional, onde os Sports Studies parecem se constituir a partir de uma predominância da Sociologia21. Enfim, há cerca de duas décadas iniciou-se no Brasil a conformação do campo da História do Esporte: de ofício e interesse de poucos, paulatinamente o tema vem ocupando espaços e desempenhando papéis de protagonismo. Embora notáveis tenham sido os avanços, cabe-nos seguir investindo na qualidade de nossas investigações e no aperfeiçoamento de nossas

Como exemplo, ver: COAKLEY, Jay, DUNNING, Eric. Handbook of sports studies. Los Angeles: Sage, 2000.

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iniciativas, inclusive ampliando o debate com outras disciplinas e para espaços exteriores à universidade, atraindo maior número de interessados, extrapolando os fóruns específicos, evitando a formação de guetos autorreferentes. Esse desafio, que se coloca para a ciência brasileira, é particularmente caro à História do Esporte, por lidar com um objeto que desperta imenso interesse e paixões. Para além dos desafios em âmbito nacional, uma necessidade premente se impõe: aprofundar o contato com pesquisadores que se debruçam sobre o tema no cenário internacional. Contudo, exortamos que este seja um caminho de mão dupla, traçado não pelos modelos restritivos e etnocêntricos que dificultam e mesmo impedem um intercâmbio amplo, contínuo e intenso. No início da década de 1960, Edward Carr, em livro que se tornou referência, lançou uma provocação, quase um grito de guerra, certamente uma convocação, que teve grande impacto entre os historiadores: “quanto mais sociológica a história se torna, e quanto mais histórica a sociologia se torna, tanto melhor para ambas”22. Parafraseando Carr, parece ser possível afirmar que: “Quanto mais a História olhar para o esporte, e quanto mais o esporte considerar a História, tanto melhor para os dois”.

CARR, Edward. O que é História? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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Parte II Memórias, Narrativas e Histórias de Vida

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Memórias

e narrativas biográficas de atletas olímpicos brasileiros Katia Rubio Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

Introdução Buscando em minha própria memória, tenho lembrança de competições olímpicas desde os Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, menos pelo atentado que ocorreu na Vila Olímpica e muito mais pelas apresentações de Olga Korbut, uma soviética que usava marias-chiquinhas e, juntamente com Ludmilla Turischeva, fazia o impossível para que a ginástica artística de então fosse na trave de equilíbrio ou nas paralelas assimétricas. A ginástica era um sonho para mim, e embora eu sonhasse em ser como elas, sabia de minhas limitações físicas e materiais para chegar até aquilo. Passados quatro anos, essa sensação de impotência ficou ainda maior ao ver Nádia Comaneci ser a primeira atleta a conquistar a nota 10 nas provas de trave e das paralelas assimétricas, elevando em muito o que Olga fizera na edição anterior dos Jogos Olímpicos. Sem saber ou entender das políticas que levavam o país a ser o que era no campo esportivo, buscava de alguma forma estar próxima daquele fenômeno, praticando esporte na escola e participando das competições escolares, que tinham um significado proporcional aos Jogos Olímpicos para estudantes da cidade em que vivia. E naqueles momentos eu buscava reproduzir, fosse na gestualidade ou mesmo no design dos uniformes, o feito dos atletas que admirava. E assim como as ginastas soviéticas, atletas como Adhemar Ferreira da Silva, Joaquim Cruz, Jesse Owens, Aída dos Santos, Jackie Silva e tantos outros não apenas marcaram a história dos Jogos Olímpicos em sua época, mas também perpetuaram seus feitos na memória de diferentes gerações e com isso despertaram ou mantiveram acesa a chama do desejo de crianças e jovens de se tornarem atletas. Foram necessários muitos anos para que eu entendesse que aquele processo de identificação que se deu comigo era muito mais comum do que podia imaginar, e que outras tantas crianças e jovens também começavam a praticar 105

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esporte tendo alguém fabuloso como espelho. E mesmo diante da impossibilidade de vir a ser um atleta de nível olímpico, a paixão despertada por aqueles artistas do movimento tornaram muitos indivíduos amantes, espectadores e seguidores das práticas esportivas, por ver nelas a possiblidade da transformação do humano em algo divino. Essas lembranças que tenho de minha infância me levaram, de forma deliberada ou inconsciente, a estudar a importância da figura dos atletas olímpicos para o desenvolvimento de um imaginário esportivo brasileiro. A relevância de conhecer suas histórias era imperiosa não apenas para o entendimento do que é o esporte contemporâneo, mas para humanizar o atleta, colocando-o no papel de protagonista de um espetáculo globalizado, muito mais do que competitivo do ponto de vista esportivo, tornando os Jogos Olímpicos um dos maiores fenômenos culturais do século XXI. O objetivo deste capítulo é discutir o papel das narrativas dos atletas olímpicos brasileiros para a constituição da memória social do esporte brasileiro e de um imaginário esportivo. Este estudo é possível em função da pesquisa Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros, realizada nos últimos quinze anos a partir da narrativa das histórias de atletas brasileiros que participaram dos Jogos Olímpicos. Por meio dessa pesquisa foram realizadas mais de 1.300 entrevistas em formato de histórias de vida, de onde foi possível extrair não apenas os dados objetivos da trajetória dos atletas olímpicos brasileiros, mas também conteúdos de ordem latente que permitem a inferência sobre questões relacionadas à construção da subjetividade dessas pessoas e da construção de suas identidades tanto como atletas como cidadãos e pós-atletas.

Memória social e histórias de vida Desde o começo do presente século, como que portando um fio de Ariadne, entrei no labirinto das histórias de atletas olímpicos brasileiros. Lanço mão da metáfora do labirinto, uma vez que não é tarefa difícil entrar nesse universo de análise, mas pouco se sabe o que encontrar pelo caminho ou como regressar ao exterior após uma aventura quase iniciática como essa. A questão inicial que mobilizou a pesquisa Memórias Olímpicas por atletas olímpicos brasileiros era a relação que havia entre a escolha pela carreira de atleta e uma atitude heroica que se revelava no tipo de vida que essas pessoas se determinavam a ter depois dessa escolha. Desde então, o desejo de resgatar 106

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essas histórias tornou-se o agente mobilizador de minha carreira acadêmica, responsável pela mobilização para realizar pesquisas e também por buscar caminhos metodológicos que oferecessem a possibilidade concreta de interpelação e interpretação dos dados, que jorravam como água de uma mina abundante. A pesquisa teve início com os medalhistas olímpicos, atletas que desde 1920 participaram de Jogos Olímpicos e por seus desempenhos alcançaram o pódio, local destinado apenas aos três melhores resultados na competição. Isso significava um número restrito de atletas, afinal, dos 1.800 brasileiros que participaram de alguma edição olímpica, apenas 324 (sendo 108 mulheres e 226 homens) alcançaram esse lugar, superando todas as limitações de ordem pessoal, social e material. O contato com esse grupo deu início a um processo denominado cartografia do imaginário esportivo brasileiro (Rubio, 2001), cujas memórias apontaram para situações relacionadas a treinamentos, competições, a estrutura institucional do esporte brasileiro, sempre pela perspectiva e compreensão do protagonista do espetáculo esportivo. Uso o termo “pessoa” porque há nele uma dimensão social, conforme aponta Sá (2007). Segundo o autor, “a referência à ‘pessoa’ implica reconhecê-la como produto de processos de socialização, como ocupando posições e desempenhando papéis sociais, como dotada de uma identidade construída através da interação social e como reflexivamente ciente desta” (p. 292). Essa condição o distingue tanto do sujeito, uma criação moderna e produtor de subjetividade, como do indivíduo, ente isolado no contexto social. A busca inicial pelas histórias de vida deu-se pelo entendimento de que era preciso permitir que os atletas organizassem suas lembranças, trajetórias e memórias, de forma a relatar não apenas os componentes objetivos dessa vivência como as principais conquistas, as participações olímpicas, quem os influenciou, mas principalmente os componentes de ordem pessoal e subjetivos carregados de afetividade e emoções de toda espécie. A associação entre essas duas instâncias traria as pistas necessárias para o entendimento da complexidade de uma pessoa que alia a condição de um nível de habilidade motora extraordinária à condição humana ordinária, que partilha das mesmas angústias e expectativas dos demais que vivem em sociedade Conforme aponta Bosi (1993), muito mais do que qualquer fonte o depoimento oral ou escrito necessita esforço 107

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de sistematização e claras coordenadas interpretativas (p. 277). O esforço inicial, então, em dominar o método resultou na definição do primeiro grupo da pesquisa restrito aos medalhistas olímpicos. A questão norteadora dessas histórias era o entendimento da motivação intrínseca de seres humanos que também vivem uma metavida de duração limitada. Isso porque muitos deles afirmam, ao longo de suas narrativas, que o atleta é um ser que morre duas vezes: uma em vida, ao final da carreira atlética, e outra no momento em que para de respirar. Foram necessários alguns anos para que eu entendesse a natureza desse trabalho, que se aproximava de uma “história das mentalidades”, assim como define Le Goff (1976). Para o autor, “o primeiro atrativo das mentalidades reside precisamente na sua imprecisão”, e efetivamente comecei a perceber, ao longo do encontro e contato com os atletas, que a heterogeneidade e as diferenças eram o agente unificador desse grupo, tornando a própria pesquisa imprecisa. Inúmeras vezes respondi de forma também imprecisa aos questionamentos sobre como realizar a análise dos dados obtidos pelas entrevistas, uma vez que me colocava claramente em uma posição distante da análise do discurso ou do conteúdo, caminho mais curto para quem busca a pesquisa com entrevista. Le Goff (1976) aponta que a falta de limites levou os historiadores das mentalidades a buscar uma aproximação com outras ciências humanas, como a demografia, que permite a quantificação de comportamentos; a etnologia, que busca o entendimento dos aspectos culturais relacionados com o fenômeno; à sociologia, para uma compreensão dos aspectos sociais envolvidos com o indivíduo; e a psicologia, para o entendimento das atitudes individuais e coletivas. Essas aproximações ganharam contornos claros após o contato com a narrativa de atletas de diferentes modalidades, períodos históricos e contextos sociais, distinguindo-os por aquilo que os singularizava, ou seja, suas histórias pessoais, porém aproximava-os quando se tratava das questões que marcavam suas histórias, como as dificuldades ou impedimentos em competições, fosse por questões de ordem política ou institucionais. O entendimento dessas razões aflorava das narrativas mescladas de afetividade, o que favoreceu o reviver de lembranças quase sempre seguidas de expressões como “eu nunca tinha falado sobre isso” ou “eu não imaginei que pudesse me lembrar desses detalhes” ou ainda “eu nunca tinha contado isso a ninguém”. 108

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No processo de organização das lembranças traduzidas em narrativas estão implicadas questões caras ao campo da memória social, isso porque, conforme sugere Halbwalchs (2006), a memória não é uma reprodução literal de experiências vividas, mas uma recriação do passado a partir das vivências acumuladas, do momento vivido e das influências do contexto social e cultural do sujeito. Para o autor, “nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida. Por história devemos entender não uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas tudo o que faz com que um período se distinga dos outros, do qual os livros e as narrativas em geral nos apresentam apenas um quadro muito esquemático e incompleto”. Ao se referir à própria trajetória, invariavelmente, os atletas trazem em suas narrativas a lembrança de pessoas e profissionais que influenciaram o desejo pelo esporte, pela busca de melhores condições de vida e de treinamento ou a convivência com outros atletas que também competiam naquele momento histórico e cujas carreiras se cruzaram, apontando para a necessidade premente de contextualizar essas situações para promover o entendimento de episódios marcantes de suas vidas e de seus resultados. Destaquese, nesse processo, que os resultados competitivos obtidos, sejam eles vitoriosos ou não, estão intimamente associados a conjunções adversativas que visam estabelecer ideias de oposição, contraste ou compensação a respeito desses episódios. Essas construções são ainda mais comuns entre os que ocuparam as segundas ou terceiras posições no pódio ou ainda entre os que não chegaram a nele subir. Em se tratando de atletas de modalidades coletivas, essa condição é ainda mais evidente porque vários deles narram suas memórias sobre um mesmo conteúdo vivido, apontando para a subjetividade que envolve a construção e elaboração desse conteúdo ainda que vivido coletivamente. Percebida essa multiplicidade de interpretações, e, consequentemente, de verdades sobre um mesmo fato, passei a adotar uma postura mais compreensiva e menos analítica da narrativa, por entender que cada pessoa carrega uma verdade sobre uma situação ocorrida. Mais do que verdades universais, o trato com as narrativas sugere verdades parciais, individuais ou mesmo momentâneas, afirmadas na intensidade das memórias que emergem sobre o tema em questão. Lidar com essa imprecisão, além de gerar desconforto sobre a condução do processo, exigiu uma busca constante sobre a condução das entrevistas e também da análise do material que delas emergia. Diferentes histórias individuais ganhavam um 109

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caráter coletivo quando somadas a outras narrativas já colhidas em outros momentos. Isso representava, para mim, um trabalho redobrado de busca desses mínimos múltiplos comuns que permitiram a construção de cenários temporais e pessoais. Ariés (1990) aponta que no tempo presente, vivido pelo historiador, está a origem do interesse pelas mentalidades, que busca a ruptura entre o tempo do historiador e o tempo da história propriamente dita, o passado. “A análise dessas transferências de ideias e de sensibilidade permite subtrair do presente fatias do passado e adelgaçar o presente a ponto de torná-lo transparente” (p. 173). A observação dessas rupturas permite, inclusive, o entendimento das transformações nas instituições e a influência destas no desenrolar da carreira dos atletas. Quando se iniciou a busca pelos atletas medalhistas, encontrei vários deles na condição de “pós-atletas1” com a ruptura entre presente e passado materializada. Diante de mim encontravam-se pessoas com parte de suas trajetórias marcadas pela vida competitiva, pela glória e visibilidade que sua atividade lhes conferia, e após o afastamento dessa etapa desenvolveram outras identidades, vinculadas ou não ao esporte. Alguns desses atletas tiveram sua imagem indelevelmente associada ao longo de anos ou décadas à modalidade que praticaram e aos títulos que conquistaram, mas a maioria deles tem essas imagens de realizações guardadas em álbuns, fitas de vídeo e lembranças pessoais registradas na própria memória. A depender de como se deu esse processo de construção da nova identidade, ou mesmo do sucesso alcançado após a mudança, a narrativa construída como sujeito “do presente” carrega com cores mais acentuadas ou tênues as glórias ou dissabores do passado. Ou, em outros casos ainda, esse processo não ocorreu, ainda que muitos anos tenham se passado, e a narrativa, então, vem carregada de uma mescla confusa do passado com o presente, com referências recorrentes a um sujeito que já não mais existe, mas que permanece maior e mais forte do que a pessoa que narra a própria trajetória no presente. Essa constatação confirma a tese de Pollack (1992) de que a memória é, em parte, herdada e não se refere apenas à vida

Termo utilizado para se referir aos atletas que já viveram a transição de carreira, deixaram de ser atletas competitivos de nível olímpico e no presente desempenham novos papéis sociais (Rubio, 2012). Isso porque entendemos que o atleta não perde o esse vínculo com o seu passado, daí a impossibilidade de ser designado como um ex-atleta.

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física da pessoa. Ela sofre flutuações em função do momento em que está sendo processada e manifestada, por isso a necessidade de se entender os motivos que levam a sua estruturação. Daí a afirmação de que a memória é um fenômeno construído. Entendo por fenômeno construído a expressão verbalizada de um fato ressignificado pelo narrador, posto que se refere a algo já ocorrido e presentemente revivido por meio da fala, na qual ganha nova forma tanto descritiva quanto afetiva. A narrativa, segundo Benjamim (2012), durante longo tempo floresceu em um meio artesão e ela própria é, em certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. “Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (p. 221). Foi possível constatar, ao longo dessas quase duas décadas de trabalhos com os olímpicos brasileiros, que o convite à reflexão sobre a própria história leva a pessoa a uma atitude de recolhimento introspectivo que favorece a criação de imagens e lembranças, permitindo a reconstrução da memória. As diferenças temporais e geográficas marcam as narrações, porém o laço que une os narradores das diferentes modalidades em momentos históricos distintos é a condição de ser atleta que, embora tenha sofrido profundas transformações ao longo do século XX, mantém uma unidade relacionada à busca da excelência, ao caráter competitivo da atividade e a submissão a um sistema marcado pela hierarquização e força das instituições que viabilizam sua vida. Essas aproximações e distanciamentos permite afirmar que a memória social do esporte olímpico é constituída pelas relações estabelecidas com as lembranças geradas por todos os que participaram do processo de construção da carreira dos atletas, seja a partir da escola, dos clubes brasileiros e estrangeiros e dos profissionais que interferiram, direta ou indiretamente, na trajetória de todos aqueles que participaram de Jogos Olímpicos. Pollack (1992) aponta que tantos os acontecimentos vividos pessoalmente como aqueles compartilhados, seja pelas lembranças de outros ou pela oralidade, constituem a memória individual e a coletiva. “Podem ser acontecimentos dos quais a pessoa nem participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não” (p. 02). 111

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Há que se destacar o fato de que a memória pessoal está situada no cruzamento das redes nas quais nos encontramos no presente e das múltiplas interferências determinadas pela vida em sociedade. Halbwachs (2006) afirma que somos levados a lembrar de algo porque assim nos fazem agir aqueles que vivem e compartilham conosco, sem que para isso seja necessário estarmos juntos de forma presencial. “No primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele.” Da inevitável relação entre o indivíduo com o grupo ao qual pertence faz-se a percepção do eu e do outro e também se registram as marcas que pontuam as histórias de vida, tanto em uma perspectiva cronológica e linear quanto na recursividade da memória que trafega de forma cíclica, movida pelas redes de significados criadas com a finalidade de responder aos acontecimentos de uma existência.

As narrativas biográficas O início do percurso metodológico da pesquisa se deu a partir das histórias de vida. Entendidas como uma forma particular de história oral, foram utilizadas como um instrumento para captar e organizar a memória por apreender valores que transcendiam o caráter individual do que era transmitido e que se insere na cultura do grupo social ao qual narrador pertence (Rubio, 2001). Essa construção considera os dados relevantes da trajetória do narrador dando uma ideia do que foi sua vida e do que ele mesmo é nesse momento. Essa atitude reflexiva permite a reexperimentação de situações passadas não apenas do ponto de vista do desenrolar dos fatos, mas pela ressignificação de episódios marcantes para o narrador, que se permite inverter (ou subverter) a narrativa obedecendo a uma cronologia própria da afetividade implicada no evento ocorrido, dando ao seu texto um contexto. Para tanto, busquei Bosi (1993), Delgado (2006), Ferraroti (1983) e Meyer (1998), que apontaram os caminhos da Psicologia Social e da Antropologia para o entendimento de histórias pessoais relacionadas ao esporte. Esse quadro ganhou complexidade no momento em que as questões relacionadas à formação da identidade e ao cenário 112

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político geral e específico passaram a compor as narrativas coletadas. Não escapou à escuta desses depoimentos os processos migratórios vividos principalmente pelos atletas originários do norte-nordeste, a discriminação de gênero enfrentada pelas mulheres ou as raciais e de identidade sexual, a alteração de atitude em função da necessidade de superar o assédio moral ou mesmo o abuso sexual por parte de dirigentes ou membros de comissões técnicas, exigindo outros referenciais de análise para a compreensão desses cenários. A partir de então, entendi e adotei a postura de Hall (2000; 2001) e de Farrarotti (1991), segundo a qual não há isenção para o pesquisador, principalmente nas Ciências Humanas, e que o observador está intimamente implicado com sua pesquisa, que altera continuamente seu campo de observação, na medida em que interage com ele. Estar diante dos fenômenos sociais, descrevêlos, analisá-los, significa atuar. Essa condição é ainda mais aguda quando se está diante de um narrador mobilizado e sensibilizado por remexer uma história que, em muitos casos, estava como que embrulhada cuidadosamente em papel de seda e guardada dentro de um armário distante da luz e do ar. Ao revirá-las, de lá saíram novas significações para fatos devidamente acomodados em um momento histórico em que isso foi necessário. O passado trazido para o presente revive no narrador situações esquecidas ou deliberadamente escondidas, que passam a exigir um tributo por terem sido “acordadas”. Poirier, Valladon e Raybaut (1999) entendem que com as histórias de vida o investigador tentará encontrar o ele, o campo exterior da personalidade, a envolvente do narrador num momento dado, ou seja, aquele a quem atribuiu um valor pessoal (dando-lhe, assim, uma existência em si e fora de si). Dessa forma, a história de vida “é considerada não como um produto acabado, tal como é geralmente apresentada, mas como uma matéria prima sobre a qual, e a partir da qual, se tem de trabalhar” (p. 38). O exercício da narrativa envolve o esforço da busca de imagens e lembranças do passado de alguém que transforma essas informações em verbalização, ou escrita, promovendo, assim, a recriação ou transcriação de uma história. Nessa dinâmica estão implicados o exercício da memória, a ação do recordar, a captura do tempo e a transposição para uma forma de linguagem. Se no passado a oralidade era a via principal das produções narrativas, a linguagem escrita se apropriou dessa construção e, depois, 113

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se desdobrou em diferentes estilos, fosse poético, romanesco, informativo e, porque não, deformativo. Por isso a importância de a narrativa ser tomada como linguagem a partir da dimensão adotada pelos Estudos Culturais (Hall, 2000; 2001; Woodward, 2000), tomada como uma posição privilegiada na construção e circulação do significado, conforme Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003) e Silva (2000). A linguagem vai além do relato ou da transmissão com neutralidade dos significados e passou a constituí-los. Dessa forma, os considerados fatos naturais, também denominados realidade, são tidos como fenômenos discursivos, cujos significados surgem a partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos quais estão inseridos. E assim, o discurso não é entendido no seu aspecto linguístico ou como um conjunto de palavras, mas como um conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito. Nessa perspectiva, tudo o que se pensa ou se diz da realidade é um reflexo e uma projeção da experiência vivida como real, independente da afirmação dessa realidade exterior ao sujeito e dos sentidos que são dados a ela. Isso representa a existência de uma materialidade conectada com o que se pensa e se diz, ligada ao discurso. Embora a realidade seja intangível, é sabido que ela existe e que está conectada com a representação que se tem dela (Veiga-Neto, 2000). As memórias históricas orais englobam fenômenos da memória social que, conforme Sá (2007), constituem as fontes não documentais com que lida a história oral. A preocupação do psicólogo social se dá não com a preservação dos relatos ou com a confiabilidade das fontes, “mas com o processo e com as circunstâncias segundo os quais tais memórias são construídas, reconstruídas ou atualizadas por conjuntos sociais mais ou menos amplos e, por diferentes critérios, suficientemente circunscritos” (p. 294). Se na oralidade a recriação de uma narrativa era uma constante entre as gerações, a linguagem escrita operou uma restrição na forma de comunicação do conteúdo narrado, restando ao leitor a capacidade de multiplicar interpretações sobre o texto. As representações verbais da memória permitem a recriação da história do sujeito, favorecendo a elaboração de construções identitárias. Nesse sentido, essas narrativas biográficas são também narrativas identitárias e favorecem diferentes perspectivas de análise (Carvalho, 2007; Fanton, 2011; Khoury, 2001; Maluf, 1999; Oliveira, 2011; Pena, 2004). 114

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As narrativas biográficas são entendidas como discursos individuais que oferecem uma compreensão do sujeito que narra, do mundo e das próprias experiências acumuladas na trajetória da existência. Schutze (2014) entende que essa forma de narrativa, carregada de experiências pessoais de caráter cotidiano, promove uma proximidade das situações vivenciadas pelo narrador tanto no que se refere à intensidade como à veracidade dos fatos. Isso é possível por se entender que o narrador expressa uma história única e singular. As narrativas biográficas dos atletas olímpicos brasileiros, iniciadas como histórias de vida, constituíram-se como reencontro do sujeito-atleta com sua subjetividade, do indivíduo-atleta com sua identidade, ou identidades, e da pessoa-atleta com a sociedade no momento em que operava um ser competitivo e de vida pública, no caso dos pós-atletas, e, no presente, como atores de outros papéis sociais. Essas posições do sujeito tornaram-se manifestas tanto para alguns atletas, como para mim, na condição de pesquisadora, a partir do encantamento que ambos viviam com a elucidação de um fato não significado anteriormente. Esses insights 2 ajudavam, por um lado, o atleta a elaborar situações vividas e não esclarecidas até aquele momento, fosse pela impossibilidade de revivê-las ou pela simples falta de oportunidade estimulá-las; por outro, permitiram que eu “conversasse” com o método e fosse entendendo o que ele não era. Durante um tempo acreditei que fosse história de vida, depois, que se tratasse de história oral, ou quase biografias, até chegar às narrativas biográficas. Ricoeur (2010) entende que existe, entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana, uma correlação que não é puramente acidental, mas apresenta uma forma de necessidade transcultural. O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal (p. 93). Daí a importância e a necessidade de compreensão da dimensão do tempo nas narrativas biográficas. ara a Psicologia, o termo insight é entendido como compreensão interna, P compreensão súbita, apreensão súbita, visão súbita, discernimento, perspicácia (Sandler, Dare e Holder, 1977). Diante da impossibilidade de tradução literal, refere-se a esse conceito o neologismo intravisão (Abel, 2003).

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A temporalidade e a narrativa O tempo é certamente uma característica fundamental da experiência humana. A experiência direta que se tem dessa dimensão envolve o presente, uma vez que o passado é recriação e o futuro é ficção, e o sentido de duração vem justamente dessas duas formas de criação, mediado pelo uso da linguagem. Nesta pesquisa a questão desencadeadora da narrativa não é uma pergunta, mas um convite em que sujeito é solicitado a contar sua história. A reação subsequente já indica pontos para a análise. Isso porque alguns iniciam suas narrativas pelos pais, local e data de nascimento; outros, pela sua iniciação esportiva, uma vez que já foi anunciada a intenção da pesquisa sobre sua trajetória olímpica; há, ainda, aqueles que, mesmo tendo recebido essa informação, uma vez mais questionam: “minha história de vida, ou minha história de vida no esporte?”. Não bastasse isso, a organização do discurso também remete a outras possíveis interpretações, uma vez que ele pode se dar de forma linear ou cíclica. Se o discurso e sua narrativa se apresentam como um dos pilares para a compreensão das histórias de vida, o desenrolar temporal dessa narração se apresenta como um segundo elemento imprescindível para uma cartografia das memórias do narrador. Em uma primeira categorização ele poderia ser dividido em tempo cíclico e tempo linear. O tempo cíclico relaciona-se com a recursividade presente em eventos que se alternam e se repetem, determinando prazos capturados pelo tempo linear. Assim são as estações do ano, que se repetem incessantemente, mas que os calendários do tempo linear definem em dias e meses precisos em cada um dos hemisférios. Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um elemento linear, tem-se também a concepção daquele tempo que parece nunca se esgotar, transformando-se na medida em que se reveste de significado, o tempo cíclico. A concepção linear (ou aberta) do tempo, segundo Mazzoleni (1992), caracteriza a moderna cultura ocidental e foi a chave teológica para identificar a realidade religiosa hebraicocristã como um unicum cultural; já a concepção cíclica (ou periódica), própria do mundo antigo, da sociedade alto-medieval, das civilizações orientais e das classes rurais, está relacionada com os chamados primitivos e orientada pelos mitos de fundação e pelos ritmos cósmicos, contrapondo-se a um tempo histórico. A diferença básica na concepção dessas duas modalidades de tempo 116

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está na “consciência histórica”, ou seja, para as sociedades que operam numa contínua desistoricização do real por meio do mito e do rito, opera o tempo da previsibilidade e da segurança, oferecido pelo ciclo astronômico e sazonal; já onde há o desenvolvimento dos meios de produção, a sedentarização, o crescimento dos centros urbanos e da articulação social, constituindo um Estado de Direito, há a emersão para a consciência do sentido do tempo em direção ao futuro, que é próprio de uma cultura histórica. A perspectiva histórico-antropológica de tempo busca situar o ser humano enquanto sujeito histórico, o que não implica depreciação das culturas orais ou sobrevalorização daqueles que ofereceram os paradigmas históricos aos “povos civilizados”. Acredita-se que o tempo sagrado se associa ao tempo profano, constituindo a visão global que nossa cultura possui hoje sobre a dimensão do tempo. De uma perspectiva diferente, Cassirer (1977) considera o tempo não como forma específica da vida humana, mas como condição geral da vida orgânica, existente na medida em que se desenvolve no tempo. “Não é uma coisa, mas um processo – uma corrente contínua, incessante, de acontecimentos, onde jamais se repete com a mesma forma idêntica” (p. 89). Sendo assim, o sujeito nunca está localizado num instante isolado. Há em sua vida os três modos de tempo – passado, presente e futuro –, formando um todo que não pode ser desagregado em elementos individuais. Diante dessa ordem, o ser humano desenvolveu a memória e a hereditariedade. Na memória estão implicadas mais que a presença e a soma total de resíduos de vivências ocorridas, supondo um processo de reconhecimento e identificação, não bastando que fatos ocorridos se repitam. É preciso que sejam ordenados, localizados e relacionados com diferentes pontos no tempo, implicando, necessariamente, o conceito de uma ordem serial, correspondendo ao plano espacial. Cassirer (1977) afirma que no homem não se pode descrever a lembrança como o simples retorno de um acontecimento, como uma imagem enevoada ou a reprodução de impressões anteriores. “Não se trata unicamente de uma repetição, senão de um renascimento do passado, supõe um processo criativo e construtivo. Não basta recolhermos dados isolados da nossa experiência passada; precisamos realmente recordá-los, organizálos, sistematizá-los e reuni-los num foco de pensamento. Esta espécie de recordação nos dá a forma humana característica 117

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da memória e a distingue de todos os outros fenômenos da vida animal ou orgânica” (p. 89). Portanto, a memória simbólica seria o processo pelo qual o indivíduo se situa num tempo não linear, indo além da repetição de uma experiência vivida; ele a reconstrói, fazendo da imaginação o elemento necessário para a verdadeira recordação. Diante dessas considerações, seria possível dizer que a criação temporal é subjetiva e se desenvolve ao longo da vida do sujeito, levando consigo os registros armazenados na trajetória de sua história de vida. Safra (1999) aponta que a experiência temporal experimentada em nossa cultura é vivida como sequencial, fruto de deslocamentos no espaço e convencionada pelo uso do calendário ou do relógio. E é esse tempo que permite a apreensão da realidade compartilhada, visto que organiza as experiências do ciclo de vida da pessoa, sua história, seu contato com seu meio social, traçando sua trajetória. Porém, ao longo do processo maturacional, o indivíduo experimentará várias formas de tempo. Seriam eles: tempo compartilhado – no qual se tem a possibilidade do uso da organização do tempo, que se dá pelo contraste entre a presença e a ausência do outro significativo. O tempo já não é só uma expressão do si mesmo, mas articulado com a noção de um outro; tempo convencionado – organizado com as medidas utilizadas pela cultura de um determinado grupo social. É o tempo do encontro; tempo transicional – é o tempo do faz de conta, do encantamento, no qual se pode dispor dos diferentes sentidos da temporalidade sem que o senso de continuidade seja perdido; tempo das potencialidades – território das possibilidades, recursos e anseios do self, a experiência do que está para acontecer. Ainda que já haja construção, é a disposição para novas realizações. Havendo um desenvolvimento satisfatório do self, segundo Safra, o indivíduo pode viver essas diversas modalidades de tempo, permitindo e facilitando suas relações e tornando ainda mais ricas as diferentes experiências vividas. Diante das várias considerações feitas sobre o tempo e seu significado subjetivo e social, é possível, então, reconhecer a dimensão que o relato de história de vida adquire tanto para o narrador como para o pesquisador. Passível de ser analisada numa perspectiva linear ou cíclica, dela se podem extrair elementos históricos coletivos, mas também individuais, capazes de compor uma cartografia do sujeito e do grupo ao qual ele pertence e das transformações significativas ocorridas ao longo dessa trajetória. 118

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Considerações finais Os Jogos Olímpicos da Era Moderna transformaram-se em um dos maiores fenômenos socioculturais do planeta. Ao longo de um século de existência, provocaram mudança de hábitos, introduzindo o esporte na agenda da educação e da saúde, mediante o uso da figura do atleta como o agente multiplicador de grandes feitos e de ideal identitário. O atleta passou, então, a ser utilizado de forma institucional como porta-voz de um estilo de vida e de um devir profissional que o aproxima da figura espetacular do herói. Retirado dessa condição mítica e reumanizado, seja durante o exercício da carreira competitiva ou na condição de pós-atleta, pode o atleta ressignificar sua trajetória a partir do ato reflexivo que envolve a organização e verbalização de suas memórias. Esse gesto envolve não apenas uma imersão nos fatos que marcam sua trajetória de forma objetiva e linear, mas também remete à emergência de conteúdos afetivos, muitas vezes reprimidos para a sobrevivência ao momento em que a situação ocorreu. O momento da verbalização dessa narrativa a torna inequivocamente solidária, pois afirma um compartilhar, ao mesmo tempo em que expõe a pessoa e seus conteúdos mais íntimos e permite ao pesquisador a transcriação dessa biografia, ampliando seu conteúdo para o entendimento de uma esfera maior como o grupo social de pertencimento, a modalidade praticada, os resultados obtidos naquele momento histórico e o esporte olímpico brasileiro de forma mais ampla. Entendo que a principal, senão maior, contribuição das narrativas biográficas dos atletas olímpicos brasileiros é a possibilidade de conhecimento desse ser publicizado como divino em essencialmente humano.

Referências

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universo das narrativas Luciana Ferreira Angelo Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) “Pesar de tudo Pesar do peso Pesar do mundo sobre si mesmo...” Pesar do mundo José Miguel Wisnik/Paulo Neves, para o espetáculo “Onqotô” – Grupo Corpo (2005).1

Compartilhar as emoções que uma narrativa promove faz parte de um exercício de autoconhecimento... Inspirada pelo espetáculo de balé “Onqotô”, do Grupo Corpo, que tem como ponto de partida uma discussão sobre a “paternidade” do Universo apresentando, de um lado, a teoria do Big Bang e, do outro, a máxima formulada por Nelson Rodrigues sobre o clássico do futebol carioca – “O Fla-Flu começou quarenta minutos antes do nada” –, inferindo que a brasilidade teria influenciado a concepção do universo, apresento imagens vivas de atletas de futebol de diferentes épocas e gerações. No espetáculo Tão Pequeno, com coreografia elaborada por Rodrigo Pederneiras e trilha sonora criada por Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, a partir do poema de Luís de Camões e com a presença de um só bailarino sobre o palco, várias interpretações foram instigadas sobre movimentos de acolhimento, encolhimento, nascimento, ressurgimento e explosão muscular, de vida e de transformação. Não é à toa que o futebol, expressão de movimento, cultura, vida e paixão, mostre-se como uma das legitimidades do surgimento do Universo, Universo esse apresentado no texto deste capítulo, que pretende circular nas matrizes reflexivas da linguagem dos entrevistados para que distintos pontos possam ser vislumbrados na constituição das identidades desses indivíduos, assim como os bailarinos desvendam em suas pontas e meias pontas, no seu ritmo e cadência, uma concepção do Universo. Portanto, parto da narrativa e do trabalho com as transcrições das entrevistas realizadas durante a execução da minha tese de doutorado que faz parte do projeto de pesquisa

“Onqotô”, espetáculo de dança do Grupo Corpo, produzido por Alê Siqueira.

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Memórias olímpicas por atletas olímpicos brasileiros, coordenado pela professora doutora Katia Rubio. “Conte-me a sua história”. Convite simples e ao mesmo tempo complexo. O começo de tudo, como o começo do Universo, meu Universo, seu Universo. Universo constituído de memórias, fatos, emoções, singularidades. O convite para a construção de significados na constituição do desejo. Alguns, ora íntimos, por vezes intimidados, ora sagazes e extrovertidos, quase sexualizados pelo reconhecimento público. O fazer dialético, o jogo para conter o todo e a parte, o viceversa, a antítese e a síntese. Ampliando a narrativa e não tendo retorno ao início, aproximando-se do buraco negro. Oferta de uma gama de possibilidades, alternativas, significados, evolução e transformação. O método de História de Vida utilizado neste trabalho se constitui por registrar as narrativas colhidas em entrevistas (Meihy e Holanda, 2007, p. 21) que, neste caso, foram gravadas em câmera de vídeo. Com o olhar e atenção voltados para as significações da narrativa que desvendaram a formação da identidade atlética, seu entendimento de trabalho e carreira, suas fases de transição e criação de “universos”, as perspectivas sociais, econômicas e culturais das diferentes épocas foram reveladas e apresentaram a característica de um grupo que obteve sucesso no futebol, ao mesmo tempo em que viveu sob o regime de amadorismo da prática esportiva. Essa metodologia se torna adequada por permitir recuperar experiências que, apesar de não trazerem do fato sua veracidade propriamente dita, contribui para a compreensão das identidades culturais, de onde provém o pensamento (Rubio, 2006). Inserido em dado contexto, o indivíduo torna-se parte integrante do próprio processo de construção da história, ou seja, uma extensão dela, podendo fornecer indícios de como a cultura incide sobre a correspondência às experiências pessoais. Ou como Bosi (1994) e Pollak (1989) reforçam, essa tradição metodológica considera experiências e observações empíricas como possíveis pontos de referência e indicadores de uma memória coletiva específica, sustentadoras de identidades culturais. A existência da história oral depende da intervenção de um entrevistador que promova uma provocação para acessar a memória, coletando uma versão das histórias gravadas. O resultado deve ser entendido como um ponto de intersecção entre duas subjetividades – a do atleta ou ex-atleta e a do pesquisador, 124

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as visões culturais de ambos, as memórias do entrevistado e as indagações do entrevistador, as percepções do narrador e do pesquisador, entre outros (Rubio, 2001; 2004; 2006; 2011). As entrevistas foram realizadas em locais escolhidos pelos convidados, prevendo local reservado (presencial ou virtual), de forma a preservar a integridade do sujeito, bem como a do entrevistador, e a qualidade da entrevista. O tempo de duração da entrevista também foi determinado pelo sujeito, de acordo com a sua disponibilidade. Os depoimentos foram obtidos com o consentimento prévio do entrevistado, mediante termo de responsabilidade, , no qual são esclarecidos os procedimentos de pesquisa, bem como do destino dos dados fornecidos. As narrativas biográficas dos sujeitos foram transcritas, preservando-se todos os detalhes e idiossincrasias contidas nas verbalizações de cada um tais como repetições, ênfases, silêncios, lapsos, hesitações, rupturas do discurso e aspectos selecionados pelos narradores. Após a releitura dos textos, como parte do exercício de sua interpretação do conteúdo, os dados brutos foram submetidos à análise de perspectiva sociocultural e transcriação. Segundo Meihy e Holanda (2007), a transcriação diz respeito ao processo de reelaboração do discurso, visando preservar sua essência, porém, conferindo-lhe roupagem complementar, de maneira a melhor nos aproximar do real significado do que se quis transmitir. Este último procedimento metodológico busca contribuir com a consolidação de uma cultura de memória e atentar para a responsabilidade do retorno social da pesquisa. Nesse sentido Bachelard (1990) aponta que : [...] quer-se sempre que a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção, ela é sobretudo a faculdade de nos liberar das imagens primeiras, de mudar as imagens (p.1).

Considerou-se neste trabalho a interatividade e a construção dos sentidos, a versão dos fatos, o momento em que o convite ao passado reconstitui (busca fragmentos que compõem a reconstrução) e reconstrói (organiza a memória) o conhecimento, pois além de refletir experiências vividas ativamente pelo sujeito, o atleta ocupa, no mundo contemporâneo, espaço que transcende o aspecto objetivo outrora atribuído, ou seja, é uma instituição em constante processo de ressignificação (Rubio, 2001). Diferentemente de muitas outras áreas de relações e atuação do indivíduo, o esporte é um contexto que propicia, principalmente 125

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ao protagonista, as experiências afetivas e emocionais em graus elevados, que marcam primeiramente seu corpo e podem dar à memória um conteúdo ainda mais humano.

O palco, o Universo Jogador de futebol! Um dos principais “produtos de exportação” nacional!2 Cerca de oitocentos jogadores profissionais deixam o país ao ano – e mesmo assim mantêm-se uma dezena de times com capacidade de competir não só em campeonatos nacionais como internacionais. Atualmente, essa situação tem tido sua lógica minimamente invertida quando da valorização da moeda nacional (real) frente a outras divisas. Esse fato poderia ser interpretado como um sinal de superioridade em relação aos centros de formação futebolistas, mas, na realidade, a nem sempre conhecida trajetória desses jogadores que se tornaram profissionais evidencia uma preparação qualitativa dos jovens para os desafios da profissão, e muito menos para os prováveis insucessos. Segundo Damo (2007), no Brasil são gastas em torno de 5.000 horas de treinamento, em um período de dez anos, focando o aprendizado corporal e quase nada no aprendizado intelectual. A quantidade de horas sugere três fases no processo de formação de um atleta de futebol: endógena (o clube promove os jogadores vindos das categorias de base, estimulando a economia e os vínculos de identidade clube/atleta), exógena (empresas mentoras do projeto que forma os “pés de obra”, lucrando com a venda dos passes) e híbrida (conciliando a formação afetiva das “pratas da casa” com a produção do mercado). Considerando-se o processo de formação e avaliando-se o mercado de trabalho existente para os atletas profissionais da modalidade, não é possível encontrar muitas opções para efetivar a prática profissional. Assim, sem a expansão do mercado e com a presença das grandes torcidas vinculadas ao futebol espetáculo, o autor aponta que o clubismo (identificação com o clube e não necessariamente com o jogador) pode ser um fator limitante para a profissionalização dos atletas, estimulando a circulação O ESTADO DE SÃO PAULO. Força do real ajuda a reverter exportação de jogadores brasileiros, diz “Financial Times”. Disponível em: http://www.estadao. com.br/noticias/esportes,forca-do-real-ajuda-a-reverter-exportacao-de-jogadoresbrasileiros-diz-ft,746336,0.htm. Acesso em: 27 mai. 2012. Disponível  em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110718_ jogadores_brasil_finanial_times_rw.shtml. Acesso em: 05 jan. 2013.

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e vazão dos talentos esportivos no mercado exterior, que vive também esse processo de estagnação, diminuindo a oportunidade e aumentando a competitividade. No início da carreira esportiva, a criança ou jovem carrega não apenas o desejo de uma prática que envolve prazer e esforço, mas também o referencial de outros que, antes deles, criaram uma imagem gloriosa de si mesmos por meio do êxito em competições. A carreira deixa registrada no imaginário do qual o atleta pertence marcas que servirão de exemplo a muitas outras gerações. E da mesma forma que os anos vitoriosos se perpetuam na memória social, os passos seguidos adiante também acompanham os novos rumos adotados pelo atleta ao finalizar sua trajetória competitiva. Se a prática esportiva promove o desenvolvimento da identidade atlética, o final da sua carreira representará a necessidade de mudança de um papel social, construído desde a infância, para o desenvolvimento de uma nova identidade. Assim como o processo de formação, a transição para um novo papel social também se dá como processo, o que demanda do sujeito tempo e recursos emocionais e materiais para sua concretização (Rubio, 2012). O termo identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o mundo “interior” e “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de projetarmos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura o sujeito à estrutura; estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam (Hall, 2001, p. 11). A partir dessa concepção de identidade, entende-se que a construção da identidade atlética passa pela construção do próprio eu e da autoafirmação que dá ao sujeito consciência de si e um lugar no mundo. A identificação faz com que o indivíduo não só se aproprie, mas se torne parte daquilo ao qual está identificado. Em contrapartida, deixar de ser atleta representaria o que Hall (2001) entende como um momento de ruptura ou de descentração do sujeito. Modificam-se as primeiras concepções acerca de si mesmo, de crenças, valores e conceitos, configurando o que o autor vai entender por crise de identidade, ou seja, quando aquilo que acreditamos ser fixo e inflexível passa a se fragmentar e perder sua preponderância central. Para Hall (2001) essa crise 127

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de identidade é parte de um processo maior de transformação, responsável por desestruturar bases e princípios sociais que ofereciam certa solidez no mundo, mas que o submete a novas possibilidades. Considerando-se que na sociedade brasileira o futebol surge como caminho para ascensão social, este capítulo se propõe a discutir, a partir da história de vida de quatro atletas olímpicos brasileiros do sexo masculino, a concepção de carreira e suas fases de transição como fatores constituintes da carreira atlética, bem como situações e fatores que os levaram ou os levarão à finalização das mesmas, assumindo que o próprio trabalhador poder ser produzido como uma mercadoria que nem sempre tem um valor reconhecido pelo mercado e pode ser descartado a qualquer momento no meio do percurso. “Onqotô?” onde é que eu estou? “Pronqovô?” para onde eu vou? ”Qemqosô?” quem eu sou?

Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em agosto de 2005, ano em que o Grupo Corpo completou 30 anos de existência, José Miguel Wisnik ressaltou que “onqotô tanto parece uma palavra africana quanto oriental e indígena, como se rodasse por toda parte”, assim como a companhia de dança, que rodou o mundo em 30 anos de existência. Desde o “não-cenário” pensado por Paulo Pederneiras até a trilha sonora remetem a formas circulares como uma aldeia, um planeta e um estádio de futebol3. Para Rodrigo Pederneiras, coreógrafo, “A busca da identidade se dá na terra, e o corpo é este veículo que viaja sobre ela”. Essa frase é essencial para a ideia da formação de identidade e das histórias de vida também dos atletas de futebol entrevistados. Interessante é ter um grupo mineiro atravessando as narrativas dos entrevistados, mas considerando-se que os mineiros são um exemplo de identidade cultural baseada na cultura popular, a tradição mineira e a mineiridade tornam-se atração! Sabe-se que a história da mineirice tem um aspecto sociopolítico dominante (Costa e Nercolini, 2010)4 e que não há cultura Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u52551.shtml. Acesso em: 24 ago. 2014. 4 Disponível em: http://www.cult.ufba.br/wordpress/24557.pdf. Acesso em: 24 ago. 2014. 3

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que se mantenha em estado original. Sentidos e significados são ressignificados por meio da reconfiguração das relações globais; o rompimento se faz necessário! “Cada indivíduo sentir-se-á mais ou menos atraído, mais ou menos interpelado por cada um desses cenários” (HALL, 1997). Com os termos em mineirês: “onqotô” (“onde é que eu estou), “proqonvô” (“para onde eu vou”) e “quemqosô” (“quem eu sou”), a questão existencial só pode ser entendida através dessas sonoridades se houver um entendimento prévio da linguagem regional. Como bem assinalado por Costa e Nercolini (2010), o trabalho artístico mostra que, para o entendimento das questões globais, faz-se necessário primeiro compreender suas particularidades, a fim de que possam expressar questões maiores que o limite da cultura. Assim, trilhemos pelas histórias de vida dos atletas de futebol para compreendermos mais sobre a identidade atlética e seus aspectos.

Breve história do esporte – “onqotô?” A cronologia do esporte moderno auxilia o entendimento da estrutura de negócios vigente, que interfere diretamente na gestão da carreira esportiva. O esporte moderno surgiu no final do século XIX como produto das transformações pelas quais passava a sociedade inglesa. Originalmente concebido como uma prática aristocrática, uma atividade de ócio e um meio de educação social dos filhos de classes sociais não trabalhadoras, esse fenômeno sofreu transformações quando da apropriação pelas demais classes sociais, resultando na sua massificação e popularização. A estrutura do esporte na sociedade inglesa era estratificada, classificando de diferentes formas seus praticantes. Existia o esporte praticado por profissionais, como era o caso do boxe e das corridas a pé, o esporte escolar praticado nas universidades e Public Schools, e o esporte amador praticado basicamente pela aristocracia, que dominava a direção das instituições esportivas, base para a constituição do Movimento Olímpico (Le Floc’Moan, 1969). Segundo Toohey e Veal (2007), o amadorismo foi uma construção do século XIX cuja função era servir aos ideais da nobreza proclamados pela Era Vitoriana. A proposta original do amadorismo no esporte era não apenas distinguir, mas principalmente separar os chamados gentlemen amateur dos trabalhadores de todas as categorias. O que fundamentou essa 129

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divisão foi a crescente participação da classe média e trabalhadora nas atividades esportivas e de lazer em geral, consideradas, a priori, privilégios da aristocracia. O entendimento dessa dinâmica é fundamental para a compreensão da defesa do amadorismo ao longo de mais da metade do século XX. Hobsbawm e Ranger (1997) apontam a importância do esporte para a classe operária, por ampliar a visibilidade social e questionar a sociedade classista. A competitividade da sociedade contemporânea levou a um inevitável abandono das atividades tidas como amadoras, que na essência do termo seriam aquelas praticadas por amor, em detrimento das ações especializadas, passíveis de serem desenvolvidas dentro de uma estrutura profissional que leva à especialidade máxima, e isso não ocorreria somente com o esporte (Elias e Dunning, 1992). Assim, no passado o amadorismo foi considerado uma virtude humana e condição sine qua non para qualquer atleta olímpico. Mas, mais do que um valor ético, essa imposição era um qualificador pessoal e social dos atletas que se dispunham a seguir a carreira esportiva (Rubio, 2003). A partir da necessidade de quantificar a performance surge a tecnologia corporal, a regulação burocrática, as competições, a espetacularização e a mercadorização das práticas esportivas (Ardoino e Brohm, 1995). E para que se dê sustentação a essa estrutura, o sistema hierárquico é criado com o objetivo de gerir o mundo do esporte: o COI (Comitê Olímpico Internacional), que controla os esportes olímpicos, e a FIFA (Federação Internacional de Futebol), que gerencia especificamente tudo o que se refere ao futebol (Giglio, 2013). A profissionalização alterou a organização esportiva, tanto do ponto de vista profissional quanto institucional. O esporte se tornou carreira profissional cobiçada, um meio de ascensão social e uma opção de vida. A competição atlética ganhou visibilidade e complexidade ao se tornar espetáculo esportivo e produto da indústria cultural (Giglio e Rubio, 2013). No Brasil, o amadorismo seguiu proximamente o modelo desenvolvido no mundo. O que se observa ao longo da primeira metade do século XX é que o esporte praticado de forma amadora gerou uma representação social do atleta, que variava do sujeito excêntrico, caso pertencesse à aristocracia, ou vagabundo, se a sua origem fosse relacionada às classes populares. A via alternativa para esses dois modelos eram os militares, que por força do ofício eram obrigados a praticar esporte, o que levou muito deles 130

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a chegarem aos Jogos Olímpicos. A profissionalização era tão inevitável quanto a competição é para o esporte (Rubio, 2005). No futebol, o profissionalismo tem seu registro datado de 1885, sendo que na Inglaterra, no ano seguinte, foi criada a International Football Association Board, entidade cujo principal objetivo era estabelecer e mudar as regras do futebol quando necessário e garantir a uniformização e o controle (Franco Júnior, 2007; Toledo, 2002). Segundo Giglio (2013), com a estruturação das regras uma nova condição se solidifica no campo esportivo: as competições internacionais. As seleções nacionais representavam um confronto entre nações, e foi isso o que se observou na primeira edição dos Jogos Olímpicos Modernos, em Atenas, Grécia, na qual o futebol foi o segundo esporte coletivo a participar como esporte de exibição. E foi na quarta edição dos Jogos Olímpicos de Londres, Reino Unido, que o futebol participa como esporte de competição. Vale ressaltar que, pela amplitude dos Jogos, as disputas olímpicas valiam como campeonatos mundiais até 1930, quando foi realizada no Uruguai a primeira Copa do Mundo (Franco Júnior, 2007). Com a amplitude de fronteiras, o aumento de público e o número de eventos relacionados à modalidade, as federações perceberam que administrar o jogo significava mantê-lo sob controle e divulgá-lo, e que os custos disso implicavam em estratégias de gerenciamento para a sua manutenção. A mercantilização do futebol fez com que a modalidade passasse de status de esporte para a condição de serviço ou bem comercial, pois já se apresentava como atividade lucrativa (Pereira, 2008). Diante da estrutura hierarquizada da Federation Internacionale de Football Association (FIFA, 1904) a partir da década de 1930, Damo (2008) sugere a necessidade de entender o jogador como pessoa e mercadoria. O conceito de comodificação, desenvolvido por Giullianotti (2007, p. 13) e estudado por Giglio e Rubio (2013), refere-se ao jogador que tem seu trabalho reconhecido, aumentando suas chances de transformá-lo em rendimento financeiro. Deve-se considerar, no entanto, a limitação do mercado do futebol. Giglio e Rubio (2013) apontam que o valor de uso, que atesta quanto vale cada atleta, só será materializado quando o desportista é consumido (vendido). Caso contrário, o jogador poderá ter o seu valor fixado, mas se não for negociado o valor estipulado nada vale. 131

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No Brasil, o futebol tem sua origem datada em final de 1800, tendo uma partida mítica entre marinheiros ingleses no Rio de Janeiro – 1870 (Franco Júnior, 2007), partidas em São Paulo – 1895, organização de jogos entre paulistas e cariocas – 1901 e as primeiras competições oficiais ocorrendo em 1914. Porém, até o início da década de 1930, a organização da modalidade no Brasil possuía um “ethos amador” (Elias e Dunning, 1992), ou seja, era mais uma forma de divertimento e prazer do que um fim em si mesmo. Patrocinados pelo governo de Getúlio Vargas (1930-1936) e com a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1º de maio de 1943 (CLT), a profissão de jogador de futebol foi regulamentada e a democratização se inicia com a contratação de jogadores sem restrição social ou étnica. Mas foi na década de 1970, com a modernização advinda da construção dos centros de treinamento e profissionalização do futebol, que se passou a reconhecer a profissão como fonte de renda vantajosa para todos os agentes envolvidos com a modalidade (jogadores, treinadores, dirigentes e políticos) e a atividade tornou-se veículo de marketing e representação ideológica (Franco Júnior, 2007). A década de 1990 foi importante para o Brasil: a intensa mobilização jurídica estabeleceu regras e leis para a formatação do que hoje chamamos de Sistema Nacional do Desporto. A Lei Zico (nº 8.672/93) pôs fim à tutela do Estado ao esporte, pautando a autonomia das entidades esportivas. Sem muitos avanços, foi promulgada em 1998, a Lei Pelé (nº 9.615/98), que corroborou o futebol e suas prerrogativas, deixando as discussões sobre a estrutura esportiva relegadas a segundo plano. E a partir da Lei Pelé novas leis foram elaboradas, tendo no futebol um modelo a ser seguido como modalidade profissionalizada.

Histórias de vida, narrativas vívidas: “pronqovô?”, “qemqosô?” Profissão: atleta profissional de futebol. No Brasil, apesar de regulamentada pela CLT na década de 1970, e em 1982 fazer parte da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, p. 38), os relatos dos entrevistados selecionados para este trabalho apresentam diferentes realidades vividas.5 Ministério do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Portal do Trabalho e Emprego. Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/ cbosite/pages/saibaMais.jsf >. Acesso em: 25 fev. 2013.

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Para exemplificar a fase de amadorismo nacional, A. M., nascido em 1947, revelou que sua trajetória no futebol começa aos 16 anos de idade jogando no infantil do Corinthians (SP). Progrediu nas categorias de base do clube, chegando até a seleção juvenil paulista. Foi convidado para participar dos Jogos Olímpicos de 1968, no México, ocasião em que o Brasil enviou a seleção ao México sem nenhuma estrutura. Não havia médico, roupeiro nem qualquer tipo de apoio. Apesar de o time ser “badalado”, as condições de transporte e manutenção eram praticamente inexistentes. Na década de 1970, apesar dos investimentos e tentativas de modernização do futebol nacional, encontramos na narrativa de E. L. M, originário do interior do Estado de São Paulo e jogador desde os 17 anos da Portuguesa de Desportos e do Comercial de Ribeirão Preto, uma descrição de fatos que nos remete aos Jogos Pan-Americanos do México (1975) com a conquista da medalha de ouro e a participação na seleção nacional que foi aos Jogos Olímpicos de Montreal (1976). Mesmo com a conquista da medalha e a participação nos Jogos Olímpicos, o atleta, que estava sem contrato formal, ao regressar ficou três meses parado e discutindo valores contratuais, pois o de venda (valor do seu trabalho) estava abaixo do mercado. Na época, era praxe jogadores assinarem em branco os famosos contratos de gaveta, que davam amplos poderes à administração do clube. Nessa época, também é necessário considerar que, para disputar os Jogos Olímpicos, o atleta não poderia ser profissionalizado, o que levou E. L. M., assim como muitos esportistas, a atrasar esse processo, dando justificativas suficientes para que seu clube gerenciasse a situação com vantagens financeiras expressivas. Com a falta de reconhecimento e as negociações frequentes, o atleta conseguiu sua transferência para outros clubes, em outros estados e cidades, até que em 1990 resolveu encerrar a carreira e retornar à sua cidade de origem, que o reconheceu e até os dias atuais lhe fornece condições de investir na carreira do funcionalismo público. O falta de valorização do atleta profissional e a forma amadora pela qual era tratado surge também no relato de A. S., atleta que foi aos Jogos de Sidney em 2000. Sua narrativa aponta que a preparação para os Jogos foi boa na fase da conquista para a vaga olímpica, mas que posteriormente, na fase da pré-competição, por fatores relacionados a dificuldades com planejamento, organização e dúvidas quanto a convocar ou não 133

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jogadores mais experientes, a seleção foi prejudicada e treinou por duas vezes com uma mesma seleção latino-americana, agregando pouco valor aos resultados obtidos. Coincidência ou não, os três atletas relatam que, após os Jogos Olímpicos, no retorno aos seus times de origem, o que vivenciam é uma desvalorização. A. M. é dispensado, tendo de peregrinar por times de menor expressão para se manter na carreira esportiva – o que também ocorreu com E. L. M. e com A. S. –, pois, durante sua participação nos Jogos, foi negociado com um clube italiano que não cumpriu o contrato, fazendo com que o jogador retornasse ao Brasil em busca de recolocação no mercado esportivo. Avalie-se que estamos abordando épocas relacionadas ao “puro” amadorismo (A. M. – final da década de 1960), amadorismo velado (E .L. M. – década de 1970 e início de 1980) e o que se denomina prática profissional (A. S. – final do século XX). O que se pode considerar a partir dessas distintas representações? A palavra trabalho tem sua origem na ideia do trabalho escravo, pois o homem livre não trabalha, pensa. O sentido do trabalho é um conceito complexo que sofreu transformações ao longo do último século, particularmente em função das mudanças tecnológicas observadas na era pós-industrial. Para o atleta de futebol, o trabalho no contexto esportivo é apenas mais um dentre tanto outros. Por isso, A. M., que tem sua vida de trabalho limitada pelo campo de atuação, não sobrevive ao amadorismo existente na sua época e passa a buscar o desempenho em outra atividade profissional para sobreviver, assumindo outros papéis sociais (marido, pai, comerciante, entre outros). E. L. M., no entanto, sem estudo nem opção de trabalho, submete-se às regras do mercado limitante e encerra de forma pouco reconhecida sua carreira atlética. Já A. S., que não vive a fase do amadorismo, mas sim a da espetacularização na modalidade (Damo, 2007), passa a viver as leis da oferta e da procura no mercado, ainda em busca da continuidade do seu trabalho. Os valores e normas impostos pelo modelo atual de organização e gestão dos clubes esportivos entram em tensão com elementos centrais da cultura esportiva e das tradições profissionais. Isso é extraído da narrativa de M. P., atleta que participou dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. Conta que desde a infância seu desejo era ser ídolo, ser reconhecido pela torcida e pelo clube em que jogava. Ao passar os primeiros quinze anos de sua carreira no mesmo clube, vivenciou as agruras do 134

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processo de formação da identidade do ser atleta, gerenciando estudo, trabalho e carreira esportiva. Seu projeto de vida era ser um atleta que teria conhecimento para embasar suas opiniões, e por isso é um dos poucos que finalizou curso superior e uma especialização. Esse caminho o levou a cuidar dos processos de identidade de atletas mais jovens, ao mesmo tempo em que, acreditando no seu planejamento para o futuro, construiu uma carreira em que o trabalho como atleta profissional de futebol alicerçou o papel de gestor esportivo que desenvolve atualmente. As contradições vividas pelos atletas profissionais apresentam as relações de poder em um campo de forças caracterizado pela alta capacidade de quem domina para induzir quem está dominado a locomover-se até a meta ordenada. O que faz a diferença na trajetória de cada um desses atores é a obra esportiva criada a partir do processo de identidade. A construção da identidade se dá durante as fases da vida de um indivíduo em que as angústias surgem em processos de tomada de decisão. Uma delas é a escolha profissional, que faz parte da juventude, tendo como principal característica o aspecto da transição. O mundo do trabalho atualmente é um constructo teórico-prático que alcança, além dos limites institucionais, as diversas dimensões da vida; a profissional é uma delas, e a carreira é constituída na sua relação com o cotidiano. Assim, as teorias de desenvolvimento e gestão de carreira procuram contribuir para auxiliar o indivíduo a ser um agente interpretativo das suas próprias necessidades capaz de planejar a sua própria vida e encarar o papel de trabalhador inserido numa constelação de outros papéis, percebendo que a carreira é individual e compreendendo o seu passado, de forma a delinear o futuro (Super, 1957). Nos exemplos dos atletas citados anteriormente, observamos que nenhum deles teve contato com algum agente que pudesse intervir diretamente no aconselhamento da carreira. No entanto, quando não incentivados pela família na busca do estudo (A. M., E. L. M. e A. S.), a finalização da carreira foi mais difícil e com poucas oportunidades de reconfiguração. Os caminhos para a gestão da carreira esportiva do atleta (M. P.) e uma opção de futuro se tornaram possíveis, desde a infância e adolescência, devido ao apoio dos familiares e grupo social, que permitiu desenvolver alternativas e caminhos de futuro com ancoragens em sua carreira constituídas durante a carreira atlética. Nos estudos da área da Administração, os autores Borges e Casado (2013) apontam que para o desenvolvimento de uma 135

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nova profissão é necessário, além das transformações sociais, maneiras de demarcação de uma posição social e pertencimento a um grupo profissional. Essa relação é constituída individual e coletivamente, por influência dos contextos histórico, econômico, cultural e político. Assim, por meio das narrativas dos quatro atletas entrevistados, observamos que as décadas de 1960, 1970, 1990 e 2000 revelam significados da carreira esportiva no futebol semelhantes em suas concepções culturais, mas diferentes nas estruturas sociais, reguladas pelas leis do mercado esportivo. Porém, os projetos individuais são estruturados na construção de temas de vida (estudo, conhecimento, planejamento, sobrevivência, entre outros) que auto-organizam a personalidade e o autoprogresso na adaptação à carreira, moldando o ajustamento vocacional. Se a carreira atlética é composta por no mínimo três fases – iniciação, competição e aposentadoria –, e até pouco tempo era considerada pelas ciências da gestão como não-carreira (Martini, 2012), é por ser assunto de tão pouco interesse, há necessidade de se desenvolver o tema nas instituições ligadas ao âmbito esportivo, criando a importância do mesmo nas discussões dos grupos de atletas profissionais.

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Narrativa

vivida no desporto paralímpico português Ana Sousa1; Rui Corredeira1,2; Ana Luísa Pereira

Departamento de Atividade Física Adaptada, FADEUP, Portugal 2 Centro de Investigação em Atividade Física e Lazer (CIAFEL), FADEUP, Portugal 1

Introdução Os primeiros Jogos Paralímpicos foram realizados em Roma – 1960. Desde então, distintos marcos históricos e evolutivos transformaram essa prova no auge de realização desportiva para atletas com deficiência (Brittain, 2010; Howe, 2008; Legg & Steadward, 2011). Atualmente, esses Jogos são o reflexo e a expressão máxima do desporto para pessoas com deficiência vocacionado para o alto rendimento: o desporto “(Para)Olímpico”. Tal como nos Jogos Olímpicos, as expectativas face aos resultados do atleta paralímpico têm crescido, sendo acompanhadas por uma crescente visibilidade e notoriedade nacional e internacional (Schantz & Gilbert, 2008). A presença nos Jogos Paralímpicos é, pois, o culminar de um percurso de excelência no desporto. É nesse palco que o atleta paralímpico expõe as suas habilidades, atingindo resultados que, muitas vezes, transcendem limites percebidos como intransponíveis. Mas alcançar tão distinto cenário exige do atleta elevado comprometimento, empenho, treino árduo e a construção de um caminho preenchido de vitórias e derrotas nos mais variados palcos internacionais. A prática de uma modalidade desportiva ao nível da alta competição e a construção de um percurso desportivo de sucesso representam um processo complexo. O fato de um atleta ser detentor de elevado potencial e talento para a prática de uma modalidade não constitui, por si só, garantia para a vitória. O contexto histórico e social também é determinante na sua carreira, e quando nos referimos a atletas de elite com deficiência, a complexidade inerente ao contexto aumenta face à diversidade edificadora do desporto paralímpico. Em Portugal, o desporto para pessoas com deficiência ultrapassa os quarenta anos de existência. Apesar das nove participações portuguesas em Jogos Paralímpicos e das medalhas 139

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conquistadas pelos atletas portugueses, muito pouco se sabe sobre a vida desses atletas (Sousa, Corredeira, & Pereira, 2013a). Nesse contexto, a fim de compreender o desporto paralímpico em Portugal, de entrever o significado dessa prática e de conhecer o percurso desportivo de atletas com deficiência que competem ao mais alto nível, recorremos à narrativa (Sousa, Corredeira, & Pereira, 2013b). Trazer as experiências vividas à memória do sujeito é a única forma de entrever seu sentido e essência (Bruner, 2004). É recorrendo à recordação e à reflexão sobre os fenómenos da vida vivida que somos capazes de lhes atribuir significado (Van Manen, 1990), podendo partilhar com os outros as nossas experiências e vivências marcantes. O ser humano é um natural contador de histórias que através da narração se torna capaz de construir suas próprias realidades e modos de ser (Atkinson, 1998; Josselson, 2006). Narrar uma história pessoal ou uma experiência vivida representa, portanto, um ato eminentemente humano (idem, ibidem). Mas as narrativas representam muito mais do que meras histórias contadas; retratam verdadeiras criações sociais. Cada sujeito nasce e cresce numa cultura constituída por um leque próprio e diverso de narrativas colocadas em prática nas suas atividades quotidianas através das mais variadas formas de interação social (Atkinson, 1998). A narrativa é, assim, intercultural: reflete o tempo, o espaço e a sociedade em que se insere (Bell, 2002). Na experiência do mundo, o ser humano percorre os mais distintos contextos de atuação, preenchendo a sua vivência do mundo de histórias para contar. No caso do praticante, o cenário desportivo é um espaço privilegiado para uma experiência vivida carregada de significado(s), particularmente quando se compete em tão extraordinário cenário como sucede com o atleta paralímpico. Embora os discursos sobre o atleta paralímpico sejam conduzidos no sentido de o habilitar e de lhe reconhecer valor, seus feitos permanecem “anónimos”, sem se ouvir o que esses atletas, realmente, têm para dizer. Foi também com esse objetivo que demos voz a Lenine Cunha: o atleta paralímpico português mais medalhado. Pretende-se valorizar a riqueza e singularidade das palavras do atleta, ambicionando compreender esse tipo de prática desportiva através do seu olhar e da sua vivência única e pessoal. Para tal, apresenta-se a sua narrativa, organizada numa perspectiva temporal e estruturada. 140

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A narrativa de Lenine Cunha Lenine nasceu em 1982, em Mafamude, concelho3 de Vila Nova de Gaia, onde hoje vive. Aos 4 anos, um ataque de meningite levou-o a deixar de falar e de andar, provocou-lhe graves limitações na audição e visão, atraso no desenvolvimento cognitivo e na memória; aspetos que conduziram à deficiência intelectual. Iniciou-se na competição regular com 6 anos, mas foi no atletismo para pessoas com deficiência que se tornou conhecido pelos diversos títulos conquistados. Aos 16 anos ingressou no desporto paralímpico e, desde então, tem marcado o seu percurso desportivo por inúmeras medalhas e troféus, sendo o atleta paralímpico português mais medalhado de sempre. Hoje se dedica exclusivamente à prática desportiva e compete em distintas provas de atletismo: velocidade, barreiras, estafetas4, saltos e provas combinadas para a classe F205, onde representa o Clube de Gaia. No decorrer do seu percurso, evidenciam-se os resultados de excelência obtidos nas diversas competições nacionais e internacionais de que participou. Enquanto atleta de elite, esteve presente nos Jogos Paralímpicos de Sidney 2000 e Londres 2012, onde conquistou o 4º lugar e uma medalha de bronze, respetivamente. Nos Global Games6 realçam-se 3 medalhas de ouro, 2 de prata e 3 de bronze. Do seu vasto palmarés7 fazem ainda parte 33 medalhas de ouro em Campeonatos da Europa, 18 de prata e 17 de bronze; e em Campeonatos do Mundo 34 medalhas de ouro, 30 de prata e 21 de bronze. Num transcendente percurso, Lenine sagrou-se recordista mundial nas provas de triplo-salto8, 60 metros com barreiras,

 ivisão administrativa territorial adotada em Portugal semelhante aos municípios D no Brasil. 4 Revezamento. 5 Para poderem competir, todos os atletas com deficiência intelectual têm de ser submetidos a um processo de classificação. Caso sejam considerados elegíveis para competir, esses atletas enquadram-se nas provas para a classe F20. 6 Esses jogos foram criados pela Federação Internacional de Desporto para Pessoas com Deficiência Intelectual a (International Sports Federation for Persons with Intellectual Disability - INAS-FID) para “substituir” os Jogos Paralímpicos dos quais os atletas com deficiência intelectual foram afastados entre 2000 e 2012, devido a erros na classificação desportiva de atletas da seleção espanhola. 7 Rol de títulos. 8 Salto triplo. 3

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110 metros com barreiras, 400 metros com barreiras, estafeta 4x100 metros e 4x200 metros, salto em comprimento9, pentatlo, heptatlo e salto à vara10 e recordista europeu na prova de triplosalto. Acrescem ainda na sua carreira 14 troféus de “Melhor Atleta” conquistados em Campeonatos do Mundo e da Europa; um troféu de “Melhor Performance” e os troféus de “Atleta mais Medalhado nos Global Games” em 2004 e 2009. Face a essa carreira inigualável, Lenine foi distinguido por diversas entidades públicas, desportivas e autárquicas, destacando-se as nomeações para a Gala do Desporto promovida pela Confederação de Desporto de Portugal, na categoria de Atleta Masculino, nos anos de 2005, 2009 e 2012.

No dia em que tudo mudou Dando início à sua história, Lenine começou por reportarse à forma como surgiu a deficiência intelectual quando era ainda criança. Tinha 4 anos, quase 5, quando tive um ataque de meningite. A minha mãe tinha-me posto a dormir e lembrou-se de ir ao quarto ver como é que eu estava… e ainda bem que ela foi! Quando ela abriu a porta eu estava em convulsões, a revirar os olhos… e ela levou-me logo para o hospital. Na altura eu não estava doente nem nada, foi repentino. A minha mãe sabia o que era porque um irmão dela tinha falecido de meningite. Isto seis anos antes de mim. Então ela ficou logo muito preocupada e levou-me para o hospital.

Esse evento mudou, definitivamente, a vida de Lenine que, até então, era uma criança muito ativa e sorridente. A meningite alterou radicalmente o seu percurso de vida e teve consequências diretas no seu trajeto pessoal. Afetou-me a visão do lado esquerdo e a audição. (…) Hoje ainda vejo mal, fiquei com um olho mais fechado e não consigo pôr lentes. E afetou-me em nível intelectual também um bocado… ou melhor, um “bocadão” [sorriso]. Também deixei de andar. Era como se eu tivesse de começar a viver novamente e tivesse de reaprender tudo de novo. O andar foi rápido porque também não foi assim tão forte. Em nível intelectual, a partir daí, tive sempre muitas dificuldades.

Salto em distância. Salto com vara

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Tive que ir para a escola quase um ano depois desse episódio, aos 6 anos, e fui sem saber falar quase. Ainda falava muito mal, ainda dizia mamã, papá e pouco mais… perdi tudo com a meningite.

A perda de capacidades e competências, numa idade vital em nível do desenvolvimento da criança, tornaram o trajeto escolar de Lenine repleto de obstáculos e percalços. Foi conseguindo progredir até ao 8º ano de escolaridade, momento em que as dificuldades se exacerbaram, desistindo da escola. Pese embora o apoio dado nas aulas de acompanhamento de que se beneficiou ao longo dos anos e na terapia da fala, as dificuldades foram sempre muitas e as retenções começaram a aglomerar-se, ao mesmo tempo em que a sua motivação decrescia. A saída precoce da escola fez com que fosse integrado no mundo do trabalho ainda muito jovem, tendo em vista ajudar a sua família na época. Anos mais tarde, no ano letivo de 2005/2006, Lenine regressou à escola e concluiu o 9º ano.

Encontro com o desporto O desporto surgiu aos 6 anos através do Andebol11. Todavia, rapidamente os treinadores perceberam a sua elevada predisposição para o atletismo e Lenine iniciou, com apenas 7 anos, aquela que viria a ser uma carreira de elevado sucesso no desporto. O desporto vem passado um ano e meio de ter tido o ataque de meningite, isto é, aos 6 anos. Existiam os jogos juvenis de Gaia em que se praticam as modalidades quase todas e as coisas estão organizadas por freguesias. Então, cada freguesia levava, por exemplo, no atletismo, os cinco melhores atletas para representarem a freguesia. Eu comecei pelo Andebol, mas eu não tinha muito jeito para aquilo. Então o meu treinador viu que eu corria bastante, que tinha boa resistência e, não sei se é genético, mas eu tinha duas primas que chegaram a correr com a Rosa Mota e com a Fernanda Ribeiro. O meu pai também corria bem. Não era atleta, mas corria por gosto e tinha boa resistência. Aliás, quando eu era novo ele ia correr e de vez em quando eu ia com ele. Na altura o treinador do Andebol falou com o do atletismo; disse que eu tinha boa resistência e comecei a ir aos treinos. Um ano depois, comecei

Handebol.

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a praticar mais a sério. Mesmo a sério foi desde os 7/8 anos e pronto, até hoje, já lá vão 24 anos [sorriso]. (…) Comecei por fazer corrida de fundo e corta mato12 e depois aos 12 anos iniciei-me na marcha. Quando cheguei aos 15 anos, disse que estava farto de fazer isso… Queria fazer outras coisas, queria lançar, queria saltar, queria fazer velocidade e não tem nada a ver uma pessoa que faz provas de fundo passar assim para saltador e velocista. A conversão levou algum tempo ainda… Nessa altura, com 14 anos saí do Candal e fui para o Boavista, como juvenil. E comecei a fazer outras coisas, mas os treinadores sabiam que eu tinha sido um marchador e que ia ser difícil mudar… Mas viam que eu tinha força de vontade e espírito competitivo e apostaram em mim. (…) Entretanto, comecei a fazer saltos e eu lembro-me que aos 17 anos, no primeiro ano de júnior, fui segundo no desporto “normal”. Fui vice-campeão de juniores em pista coberta, atrás do Nelson Évora13 na altura [sorriso]. (…) Lembro-me que foi o Nelson Évora que ganhou com uma grande margem, mas no fundo fiquei em segundo.

Iniciou-se no atletismo através da competição regular, em regime integrado com os restantes atletas. Nos primeiros anos especializou-se nas provas de meio-fundo e fundo, mas a adolescência marcou a transição para as provas de velocidade e para os saltos, disciplinas em que alcançou o reconhecimento, somando inúmeras vitórias no seu trajeto desportivo. Ainda hoje Lenine está inscrito e compete em provas do campeonato regular de atletismo. Estreou no Clube Desportivo do Candal, passou pelo Boavista Futebol Clube, pelo Futebol Clube do Porto e atualmente representa o Académica de Coimbra.

Deficiência? Eu? Em 1999, aos 16 anos, Lenine passa a integrar o desporto para pessoas com deficiência e a participar em competições adaptadas. Na época, Lenine mostrou-se relutante em aceitar o convite feito pelo engenheiro Costa Pereira, selecionador nacional na área da deficiência intelectual. Explica por que:

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Cross Country. Atleta olímpico português de referência no atletismo nacional. Ao longo da sua carreira, Nélson Évora arrecadou inúmeras medalhas nacionais e internacionais, tendo-se destacado como campeão do mundo e como campeão olímpico nas provas de triplo salto e salto em comprimento, provas em que Lenine Cunha compete.

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No final de 1999, em outubro ou novembro… eu estava no Futebol Clube do Porto e treinava na Maia. (…) Entretanto, o Costa Pereira, que é agora meu treinador e que faz parte da ANDDI [Associação Nacional de Desporto para Pessoas com Deficiência Intelectual], tinha-me visto numa competição… Na altura, uma rapariga, que é minha vizinha, estava no desporto adaptado como federada na ANDDI e disse a esse treinador que eu tinha tido dificuldades na escola e que tinha tido um ataque de meningite. E, então, um dia, o engenheiro Costa Pereira veio falar comigo e perguntou-me o que é que se tinha passado, quis saber o meu currículo académico e, no final, fezme o convite para me federar também na ANDDI e participar nas competições deles. (…) Mas a palavra “deficiente mental” caiu-me muito mal. Há anos que treinava com os “normais” e para mim “deficientes mentais” eram aquelas coisas profundas e não como eu sou. Na altura até fiquei chateado. Lembro-me de lhe dizer: “Está a gozar comigo? Eu não sou deficiente!” e ele respondeu: “Ah, mas não são “deficientes”, é desporto para jovens que tiveram dificuldades na escola, dificuldades de aprendizagem e assim”. (…) Ele então disse: “Se quiseres podes vir ver uma prova nossa e vais ver que não é nada de anormal” e lá aceitei ir, mas fiquei sempre com o pé atrás. Não estava à espera de ver pessoas como eu... mas fui ver a prova e não achei aquilo nada de anormal. (…) Entretanto, fui treinar com o engenheiro Costa Pereira, que é meu treinador desde 1999, início de 2000… já há catorze anos. Fiz a inscrição em 1999 e como já era um bom atleta, rapidamente comecei a ter bons resultados e em 2000 fui logo aos Jogos Paralímpicos. (…) Saíram nessa altura os mínimos para os Jogos e no salto em comprimento o mínimo era de 6 metros. Eu, logo na minha primeira prova que fiz pela ANDDI, consegui 6,15 metros e foi mínimo. Nessa prova entrei logo no projeto paralímpico. Isto em janeiro ou em fevereiro de 2000.

De partida para o sucesso Superada a resistência inicial em incluir o seu nome no desporto para pessoas com deficiência, Lenine rapidamente ascendeu ao palco paralímpico. Na sua primeira competição de atletismo para pessoas com deficiência intelectual, garante um lugar na missão paralímpica portuguesa para Sidney 2000. No desporto adaptado fui ao meu primeiro Campeonato da Europa de pista coberta em 2000, na Suécia. Foi a minha primeira grande viagem de avião. Hoje já viajei tudo, já corri mundo… Foi a primeira competição internacional e fui 3º na 145

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prova de salto em comprimento. E visto ser o 3º já era uma promessa para os Jogos, mesmo sendo o membro mais jovem da missão paralímpica nesse ano. Entretanto, a treinar, no verão, fiz 6,25 metros e bati o meu recorde pessoal.

Os resultados logrados na competição garantiram-lhe o acesso direto aos Jogos Paralímpicos. Sendo o atleta mais novo da missão paralímpica portuguesa presente em Sidney, mas também o mais inexperiente nesse tipo de competição, a experiência anterior que detinha no desporto convencional fez com que Lenine fosse encarado como forte candidato à obtenção de medalhas. Essa rápida ascensão ao desporto paralímpico surpreendeu Lenine, e a notícia de que estava apurado para participar na competição mais nobre do desporto para pessoas com deficiência deixou-o extasiado. Receber aquela notícia de que ia foi totalmente inesperado… Não sabia o que eram os Jogos Paralímpicos. Tinha visto os Olímpicos na televisão, mas Paralímpicos nunca tinha visto nenhum. Não sabia como era, pois não era tão falado como é hoje. Não dava nada na televisão. Na altura, os últimos tinham sido em 96, em Atlanta, e não tinha ouvido falar nada. Mas sabia que ia ser no mesmo estádio em que os Olímpicos, no mesmo espaço… e claro que fiquei muito contente. Ainda por cima na Austrália! Eu queria era viajar na altura, e ir ao outro lado do mundo era um sonho, ainda mais para um miúdo que tinha apenas 17 anos como eu. (…) Mas o trabalho de agosto e setembro foi fundamental para me preparar e viu-se pelo resultado. Foram mais 40 cm que eu consegui saltar nos Jogos. Fui para Sidney com 6,25 metros e fiz lá 6,62. Fiquei em 5º lugar na altura, mas depois subi para 4º quando um atleta foi desclassificado. (…) Mas estar num estádio como aquele foi arrepiante… Aquilo era o maior estádio do mundo, na altura, e levava 110 mil pessoas. No dia da minha prova estavam cerca de 70 mil e claro que eu estava a tremer por todos os lados. Era novo, inexperiente ainda… mas saí-me bem. (…) Mas também eu gosto de barulho, gosto de confusão e pedi palmas ao público e isso me deu motivação para, logo no primeiro salto, fazer 6,40 metros. Bati logo o meu recorde pessoal nesse salto. (…) Foi uma experiência única. É uma das competições que me ficou marcada. Marcou a cerimónia de abertura, a aldeia paralímpica, o estádio, a minha prova em si, as pessoas, os australianos que são muito simpáticos... Os portugueses emigrantes que eu conheci lá e com quem ainda hoje mantenho contacto foram extraordinários nestes Jogos. (…) Marcou-me quase tudo, mas marcou-me 146

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mais porque, a partir daí, o Lenine mudou. O Lenine que se conhece hoje foi devido à presença nesses Jogos. A partir daí dei um salto muito grande no desporto, comecei a me dedicar muito mais… Depois fui vice-campeão “normal” de juniores no ano a seguir, muito pelo trabalho que tinha feito para Sidney e isso me fez perceber que se me dedicasse ia longe. Continuei a trabalhar mais e um mês depois já estava nos 6,80 metros. Começaram a surgir convites entretanto, e quando dou por mim já estou nos 7 metros. A partir daí comecei a fazer as provas da ANDDI e comecei a ganhar 5/6 medalhas por campeonato, porque trabalhava para aquilo e treinava muito bem.

Atentando a esse excerto, é possível depreender o valor atribuído pelo atleta à sua primeira participação paralímpica. Não obstante as inesquecíveis vivências que a participação nessa competição lhe proporcionou, não apenas no que se refere a resultados desportivos, mas também ao ambiente da competição, a maior marca foi deixada na identidade do atleta. No seu discurso, é perceptível um renovado comprometimento com o treino e com a competição. É a partir de Sydney que Lenine define como meta futura a sua presença nos Jogos Paralímpicos seguintes. Em Sidney, nos primeiros Jogos, foi marcante porque, para mim, o Lenine cresceu e tornou-se o atleta que é hoje derivado a esses Jogos. Nessa prova senti que tinha capacidades para chegar longe. Marcou-me porque foram os meus primeiros Jogos e ter ficado em 5º lugar foi ótimo, ainda mais porque tinha apenas 17 anos. E ficou marcado porque a partir daí eu disse: “Vou treinar porque eu quero ganhar uma medalha paralímpica”. Quando regressei de Sidney eu disse: “O meu sonho é ganhar uma medalha paralímpica e não vou desistir”. E marcou-me porque treinei bastante para chegar onde cheguei até hoje e para ganhar tantas medalhas. Mas, sem dúvida, a competição que mais me marcou foi a de Londres e a medalha também… [sorriso].

Empurrado para fora do palco paralímpico Apesar do promissor percurso que Lenine estava a construir no desporto paralímpico, o seu o sonho desabou em 2001. Após os Jogos Paralímpicos de Sidney, em 2000, os atletas com deficiência intelectual foram afastados da competição por fraudes detectadas em nível da classificação desportiva dos atletas da seleção espanhola 147

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de basquetebol. Na época, um jornalista infiltrou-se na equipa e descobriu que vários atletas sem deficiência iriam competir. A INAS-FID (International Sports Federation for Persons with Intellectual Disability), responsável pela elegibilidade dos atletas para competir, foi afastada do IPC (International Paralympic Committee). Consequentemente, todas as modalidades para pessoas com deficiência intelectual ficaram fora dos Jogos. O escândalo destruiu o sonho que Lenine estava ainda a edificar, afastando-o dessa competição por doze anos. Na altura não liguei muito. Vi pelo telejornal quando estava no café e liguei para o meu treinador a perguntar o que se passava e ele respondeu: “Não te preocupes, não temos nada a ver com isso”. Mas dias depois rebenta a bomba de que o IPC nos tinha banido dos Jogos até ordem em contrário. (…) Isto foi a meio de 2001 que rebentou o escândalo de que a Espanha tinha levado atletas sem deficiência aos Paralímpicos. A equipa de basquetebol não tinha nenhum atleta que cumprisse as normas para competir. E isso foi um escândalo muito grande. Veio-se a descobrir que os jogadores estavam a receber do presidente da federação espanhola para se calarem, mas tiveram azar porque se meteu na equipa um jornalista do jornal “A Marca” que contou tudo. Foi muito mau para nós porque, por causa de uns, pagaram todos. E eu se ganhei a medalha de bronze agora nos Jogos [2012], se calhar em 2004 e em 2008 tinha ganho uma medalha de outra cor… Sim, porque o meu recorde pessoal é de 7,16 metros, mas já o consegui em 2005, quando era mais novo. Hoje acredito que já não consigo chegar lá. Mas em 2004 ou em 2008 podia ter ganho uma medalha melhor do que esta… mas pronto, estou contente com esta.

Na época, o sentimento foi de revolta, mas também de incerteza, pois não sabia quando teria novamente a oportunidade de regressar à competição. É com tristeza que hoje fala das oportunidades que perdeu quando estava ainda no apogeu da sua performance desportiva. Na sua ótica, a decisão do IPC não só inviabilizou a conquista de medalhas, como também lhe impossibilitou o acesso às bolsas paralímpicas. A esse respeito, o atleta refere-se à falta de apoio sentida ao longo desses doze anos e à vontade de desistir que muitas vezes o assolou. As provas do INAS-FID havia na mesma, mas já não era a mesma coisa… Depois de teres estado nuns Jogos Paralímpicos só queres regressar e eu estava impedido de fazê-lo. (…) Em 2004, adorava ter ido à Grécia, mais ainda ter ido a Pequim 148

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em 2008... E foram anos de sofrimento sem apoio nenhum. Depois via os meus amigos de outras áreas, que tinham estado comigo em 2000 nos Jogos, a irem para os Jogos seguintes e aí [emociona-se] … vieram-me as lágrimas… Porque eu podia lá estar! Foram coisas que custaram. Eu sofri bastante com isso. Foram doze anos sem apoio nenhum, sem emprego e sem poder ter acesso às bolsas porque estávamos fora do projeto paralímpico, e essa foi a minha maior dificuldade.

A impossibilidade de competir nos Jogos Paralímpicos poderia ter ditado o final da sua carreira desportiva, mas Lenine nunca desistiu. Apesar da falta de apoio, do sofrimento e da escassez de reconhecimento experienciadas nesse período, o espírito competitivo impediu-o de desistir, o que, hoje reconhece, poderia ter sido um grande equívoco. Porém, confessa que a opção de renunciar ao desporto se fixou no seu pensamento diversas vezes. Senti que não me davam apoio e não me davam o respectivo valor quando eu chegava das competições. Às vezes, voltava da competição com 6/7 medalhas e não me davam o respectivo valor... Nós chegávamos das competições e não havia ninguém no aeroporto, nem jornais, nem imprensa, nada… isso dói. (…) Sabia bem se desse uma notícia sobre mim ou sobre o resto dos atletas da seleção que traziam sempre muitas medalhas. A recompensa era muito pequenina pelo esforço todo e claro que a motivação começou a desvanecer. (…) Treinava, mas a motivação não era a mesma! Mas treinava porque tinha as provas do INAS-FID e tinha recordes para bater [risos]. Tinha também compromissos com o clube e não queria deixá-los mal. Claro que me desanimava não ir aos Jogos, mas tinha outras provas para ir, tinha o Campeonato do Mundo do INAS, tinha os Campeonatos da Europa de pista coberta, de ar livre e tinha de treinar para isso. Mas sempre senti falta daquela coisa de preparar-me para uns Jogos… Continuei a lutar para isso porque sabia que nós íamos voltar um dia e eu tinha de lá voltar. E depois porque eu gosto disto também, é verdade, eu amo isto. Por mais motivação que não tivesse, eu, se não estiver a treinar durante dois dias, já estou com saudades [sorriso]. (…) E depois, ganhar aquelas medalhas todas nos campeonatos também me deu ânimo, o bater recordes do mundo sabia mesmo bem [risos].

A paixão do atleta pelo desporto e a responsabilidade assumida com o clube que representava parecem ter sido basilares para que ele se mantivesse na competição. Do mesmo modo, 149

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os extraordinários resultados desportivos que sempre conquistou, aliados ao prazer que a superação dos seus próprios limites lhe proporcionava, formaram um conjunto de condições favoráveis à sua motivação no desporto.

De regresso à competição Oito anos mais tarde, chegou finalmente a decisão tão esperada pelo atleta: Em 2008, depois dos Jogos de Pequim, saiu a notícia de que nós íamos voltar e que íamos passar por testes rigorosos comandados pelo IPC. Passados doze anos, finalmente pude voltar… mas tive medo de não conseguir. (…) Fiquei assustado derivado aos novos testes que íamos fazer. (…) Depois nós começámos a pensar: “Será que os melhores vão ficar de fora?”; “Será que eu vou ficar de fora?”. Eu trabalhei tanto para fazer boas marcas e tinha medo de morrer na praia. (…) Nós fizemos testes psicotécnicos e depois testes específicos para o salto em comprimento. (…) Aí passei uma fase grande de ansiedade porque tive receio de não passar. Mas agora, com o novo exame que fizemos, já fiquei classificado definitivamente. Não tenho de me preocupar com mais nada porque está feito!

Diante da oportunidade de regressar aos Jogos Paralímpicos, a incerteza dominou seus pensamentos durante alguns meses. A possibilidade de não ser aprovado nos rígidos testes definidos para a reclassificação dos atletas aumentou sua ansiedade perante o desejo desmedido de reviver a experiência dos Jogos. Soube que fiquei classificado de vez apenas antes de irmos para os Jogos… Ufa! Custou aquele tempo… Foi na Holanda, em 2012, no Campeonato da Europa que soube. Foi o último teste que nós fizemos, depois de não sei quantos… e finalmente saiu a lista a dizer que tinha sido aceito, foi um alívio! [sorriso]

Durante o ciclo paralímpico precedente aos Jogos de Londres, em 2012, Lenine reconhece que atingiu um dos pontos altos do seu percurso desportivo. Na realidade, em 2008, o atleta conseguiu um forte patrocínio individual que lhe permitiu readquirir o alento e apoio necessários de que sentiu falta nos anos anteriores. O patrocínio foi fundamental para que pudesse dedicar-se por inteiro ao desporto e veio permear todo o esforço e empenho desenvolvidos pelo atleta ao longo de vários anos de uma carreira repleta de troféus. 150

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Os melhores anos para mim foram de 2008 até hoje: consegui o patrocínio do Banif. Tivemos uma reunião em 2008 e depois comecei a ganhar por esse patrocínio até 2012. (…) O patrocínio foi durante os quatro anos e deu-me grande motivação para treinar porque não tinha de me preocupar com mais nada. Tanto é que se não fosse o Banif tinha desistido e tinha arranjado um emprego para sobreviver. (…) Eu dediquei a medalha de bronze também a eles porque sem eles não tinha ganho esta medalha, não tinha mesmo. (…) Entretanto, só voltei a entrar na bolsa em 2010, quando foi aprovado o regresso da deficiência intelectual aos Jogos Paralímpicos. Fui para o projeto paralímpico em 2010 e entrei direto para a categoria mais alta, a dos medalhados em Campeonatos do Mundo e Europa.

Nesse testemunho, Lenine demonstra a relevância que os patrocínios adquirem no percurso desportivo de um atleta de alta competição. Sem apoio, os atletas são forçados a trabalhar e a relegar o desporto para segundo plano. O que, para ele, impede a progressão do desporto para pessoas com deficiência em Portugal, remetendo essa prática desportiva ao amadorismo. Lenine teve de trabalhar para subsistir e relata como é importante que se lute pela profissionalização dos atletas paralímpicos: Já tive de trabalhar em 1999 e 2000, como eletricista numa empresa. Quando cheguei dos Jogos de Sidney, em 2000, fui despedido. E por ir representar Portugal, imagine-se… Depois fui trabalhar para um ginásio e fiquei lá até 2003. E desde 2003 que só consegui mesmo part-times. Por isso o patrocínio foi um alívio. Finalmente pude dedicar-me só ao desporto, isso também é bem visível nos meus resultados.

Regressando à experiência paralímpica de Londres, os momentos que antecederam o regresso à competição foram vividos pelo atleta com grande ansiedade. A época desportiva que precedeu a competição não decorreu de acordo com o esperado e os seus resultados desportivos verificaram uma tendência decrescente. Talvez o misto de sentimentos vivenciados nessa fase o justifique, de certo modo. Saber que ia aos Jogos e treinar para isso, após doze anos, foi uma emoção muito grande. Eu disse que ia ganhar uma medalha! Não é estar a ser convencido, mas eu disse que me ia esfolar todo para ganhar uma medalha. Mas tinha medo das lesões. Com 29 anos, as lesões começam a aparecer e tive muito medo de algo acontecer e de não ir. (…) Entretanto, esta época, 151

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eu falo de 2012, as provas de pista coberta não correram nada bem. As provas de ar livre na Suécia e na Holanda também não me tinham corrido nada bem. Na Holanda era mais um teste para os Jogos e fiz apenas 6,42 metros, fiquei em 3º. Mas acho que isso também foi derivado ao cansaço das competições anteriores. (…) Voltei em grande e até comecei a fazer treinos bi-diários por iniciativa própria. O meu treinador sabia, mas fui eu que tive a iniciativa de fazer bi-diários… eu não ia perder aquela oportunidade, ainda mais porque sabia que conseguia chegar lá e ganhar algo [sorriso].

A consciência anunciava-lhe a conquista da medalha pela qual havia esperado tanto tempo, e a crença nas suas competências levou-o a acreditar que tal feito seria concretizável.

O sonho tornado realidade Na véspera da partida para Londres, Lenine estava extremamente nervoso. Tinha chegado a hora de partir para viver o sonho que idealizara durante doze anos. Quando chegou finalmente a hora de ir… quando dei por nós, eu e o meu treinador, já estávamos a dizer: “Vamos amanhã” e eu só pensava: “Não, não quero ir” [risos]. Depois eu tinha visto os Jogos Olímpicos na televisão e sabia que ia competir naquele estádio… a emoção era enorme! Eu via aquele estádio na televisão, nos Jogos Olímpicos, e ficava com um friozinho na barriga… Só pensava: “Ai meu Deus, eu vou lá estar mais tarde! Eu também vou estar ali!”.

O atleta contou-nos a sua experiência desses Jogos. Seu discurso centra-se sobretudo na competição, pois foi na prova que viveu os episódios mais significativos no retorno ao cenário paralímpico. Fui para os Jogos e revivi tudo o que tinha vivido em 2000. Claro que a aldeia olímpica e o estádio eram diferentes, mas foi espetacular! Só quis aproveitar todos os bocadinhos que tive lá… (…) Dois dias antes da minha prova fui treinar e estava a fazer 6,10 metros. Eram os nervos, era a pressão também e eu estava a sentir muito aquilo. (…) Ainda por cima, dois dias ou três antes da minha prova, o coordenador do atletismo tinha-me dito que o chefe de missão, o Carlos Lopes, lhe tinha confidenciado que no atletismo eu e a Inês Fernandes éramos os únicos aspirantes a medalhas. E na altura saiu uma grande fotografia minha nos jornais quase todos cá em Portugal… porque nessa altura não tínhamos 152

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ganho nenhuma medalha ainda nos Jogos. (…) Soube disso porque falava com os meus pais todos os dias e eles disseramme: “Olha, compra o jornal porque saiu uma notícia a dizer: ‘Lenine, uma das esperanças’” (…), e senti um bocado de pressão nessa altura. Se bem que os meus amigos diziam: “Vais conseguir ganhar, vais ganhar uma medalha”. Sabia bem esse apoio… mas não aliviava em nada a pressão que estava a sentir. (…) Depois… não é bem ter dever com essas pessoas porque eu podia chegar lá e podia-me lesionar, mas eu gostava de lhes dar essa alegria. Gostava de dar isso aos meus pais, ao meu treinador, aos meus amigos e aos portugueses… Gostava de mostrar-lhes que o Lenine está cá para lutar por eles também! (…) E lembro-me que dois dias antes fui treinar e tudo me corria mal, mas eu sentia-me bem… eram os nervos… não sei. Entretanto, fui para a prova, comecei o aquecimento e estava nervoso à “brava”! Lembro-me de estar a correr com os “phones” e estar a pensar naquela gente toda que vai lá ao estádio e que me estava a ver… Depois sentir aquele frio na barriga, a sério que foi difícil de gerir, mesmo com os anos de experiência que tenho. Fiz o aquecimento e na despedida para a câmara de chamada, com o meu treinador, vieramme as lágrimas aos olhos e eu disse: “Seja o que Deus quiser, vou fazer o meu melhor”. (…) Eram seis e meia e o estádio ainda estava a começar a encher. Entrei lá dentro, comecei a olhar à volta e pensei: “Vamos concentrar, Lenine, porque este é o teu momento”. Comecei a descontrair mais e a tentar libertar ao máximo. Mas no aquecimento estava-me a dar tudo nulo, eu bem que puxava para trás, mas dava-me tudo mal. Nessas provas ganhas mais velocidade por estares ali com a confiança toda e é normal que a corrida dê sempre um pé a mais. Mas mesmo começando mais atrás, nesse dia, estava-me a dar sempre nulo…. Nessa fase vieram muitos pensamentos à minha cabeça: “Será que eu vou ganhar medalha?” Os treinos não tinham corrido bem, mas uma pessoa que treinou para aquilo, que se sente bem fisicamente só pensa nisso. Só pensava: “Eu quero muito ganhar a medalha, gostava muito de ganhar a medalha”. Sabia que havia uma chance e eu queria era uma medalha, não queria saber a cor sequer. (…) Na apresentação, nós estávamos todos em fila antes de começar a prova e eu era o penúltimo a saltar. Estava a decorrer uma prova de fundo e, entretanto, um atleta inglês ganha e nós estávamos em fila virados para o público… com o público já ali. Nem ferros tem a separar… E eles começam a gritar… uma coisa completamente arrepiante, mas que me deu uma “pica” imensa para a prova [sorriso]. 153

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O nervosismo, sentido e alimentado pela pressão social que lhe era incutida através dos meios de comunicação social e dos elementos da comitiva portuguesa em Londres, tornou os episódios que precederam a competição marcantes. Esses acontecimentos elevaram o próprio sentido de responsabilidade de Lenine, para quem, corresponder às expectativas daqueles que lhe eram mais significativos, se constituía como um objetivo primordial. O primeiro salto realizado pelo atleta na prova garantiu-lhe a medalha de bronze em Londres e permitiu-lhe viver um dos momentos mais importantes da sua vida. A emoção e o entusiasmo com que narra a conquista do bronze transparecem na entoação de cada uma das palavras, no sorriso sempre presente na sua face e nas lágrimas que surgiram no seu rosto. Só de recordar o momento da prova já estou a ficar arrepiado [emocionado]. Lá em baixo ouve-se muito o público! Só me lembro de estarmos todos em fila e as pessoas a gritarem com as bandeiras todas em pé e nós a olharmos uns para os outros a sorrir porque o ambiente era incrível! Era um barulho insuportável! Comecei a chorar por ver a motivação do público… Entretanto, ainda fiquei mais nervoso. Começaram a apresentar os atletas e quando foi a minha vez senti o meu coração “tum tum tum”. Aí tentei agarrar o público porque gosto de confusão, gosto de barulho. Há pessoas que não se dão bem com isso, mas eu dou-me muito bem. Tentei agarrar o público, fiz logo uns corações com as mãos voltadas para eles, porque sei que tens de ser simpático se queres o apoio deles… Entretanto, saltam todos os atletas. O espanhol fez nulo no primeiro salto, o croata faz logo 7 metros, o polaco fez 6,20 metros (…) e eles saltaram todos primeiro do que eu. Eu era o penúltimo a saltar. Começa a chegar a minha vez e a cabeça parece que começa a ver a medalha (…). Quando começa a chegar à minha altura o coração dispara completamente… Ponho-me na minha zona de corrida… puxei meio passo para trás e estava-me a dar aquela pica toda… Aí, quando me virei para frente, estava a minha imagem no ecrã, eu estava a ser filmado naquela altura. Começo a pedir palmas ao público e a mim bastou-me 3 ou 4 palmas e… a sério… foi o estádio todo a apoiar-me, foi incrível! Lembro-me de respirar fundo e lá vou eu. Só sei que quando acabo de saltar ouço assim “OHHHH”... Eu tenho a mania de acabar de saltar e espreitar para ver onde é que ficou, mas dessa vez nem olhei para trás e vimme embora, nem quis ver. Não tinha dado nulo pelo menos, mas não fazia ideia que o salto tinha sito ótimo. Claro que eu depois olhei para o público para agradecer, bati palmas para mostrar também o carinho que senti da parte deles. 154

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Entretanto, sai a marca no monitor, de 6,95, e eu fiquei… nem sei explicar… Vou para a beira do meu treinador na bancada e digo: “Não acredito!” Comecei a ficar nervoso com aquela mistura de sentimentos. O meu treinador deu-me apoio, a minha fisioterapeuta chorava e a mim vieram-me as lágrimas aos olhos. Não contava nada com aquela marca logo no primeiro salto. Estava tudo a correr-me mal antes… E eu sabia que com aquela marca era quase certo, eu sabia: “Isto é medalha!”. E depois eu sentia-me tão bem que só arrisquei nos saltos seguintes. Então o segundo salto foi nulo, mas era para 7,10... E nesse salto eu posso dizer que senti que voei… esse daria o ouro. Não consegui, mas foi muito bom mesmo assim.

Em nível motivacional, Lenine manifesta a imensa gratidão pelo apoio do público, destacando o seu papel fundamental. A relevância desse elemento foi enaltecida, não apenas durante as provas, como também nas diversas mensagens de reconhecimento recebidas através das redes sociais. Para o atleta, a conquista da medalha de bronze foi vivida e festejada como se de ouro se tratasse. Embora o lugar ocupado não fosse o mais elevado no pódio da competição, para Lenine o feito alcançado no seu pódio pessoal e na vida foi, sem dúvida, o mais elevado que algum dia poderia ter obtido. O seu sonho finalmente concretizou-se e os momentos posteriores à vitória foram relatados como se de uma conquista titânica se tratasse. Depois da prova recebi comentários no “Facebook” de ingleses que foram lá ver a prova a dizer que tinha sido um espetáculo e que o Lenine tinha sido um espetáculo dentro do espetáculo. Porque eu sei que chamo pelo público e eu, depois do primeiro salto, comecei-me a divertir. Comecei-me a rir, comecei a dizer adeus ao público, ainda cheguei a dar um autógrafo no meio da prova na bancada [risos]. (…) E o público agarrou-se a mim mesmo. E eu fiz uma festa depois quando acabou… Quando fiz o último salto, fiquei à beira do meu treinador na bancada, ele deu-me a bandeira e só me lembro que comecei a chorar no meio da pista de cócaras. Entretanto, eu dou-me muito bem com o atleta espanhol, é um grande amigo meu, já treinámos juntos várias vezes. Ele acabou de saltar e eu só me lembro de dizer-lhe: “Vai buscar a bandeira”. E fomos dar a volta ao estádio. Isso era algo que sempre quis fazer. Antes da prova já pensava: “Eu, se ganhar uma medalha, vou dar a volta ao estádio!” Porque doze anos depois eu tinha de aproveitar aquilo tudo! (…) Eu tinha de aproveitar aquilo que não aproveitei em 2004 e em 2008, até porque pode ser a minha última medalha nos Paralímpicos. 155

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A consagração do herói A experiência da subida ao pódio foi marcante para Lenine. Nessa fase da entrevista, seu discurso tornou-se mais pausado devido à forte emoção associada às recordações do evento, e as lágrimas surgiram no seu rosto muito naturalmente. Entretanto, foi a hora da cerimónia [hesitação]. Desculpa… Eu quando recordo isto ou quando vejo a cerimónia no vídeo começo a chorar, completamente [lágrimas nos olhos]. A cerimónia (…) aí é que senti o carinho do público, aí sim. Eu subi ao pódio e disseram: “O representante de Portugal a ser imposto, Lenine Cunha” e eu estava a tremer por todos os lados…. Entretanto, recebo a medalha, faço assim [faz um coração com as mãos que é a sua imagem de marca] para a câmera e aí o público dá um berro enorme… porque as provas param todas quando é a cerimónia e está a dar no ecrã. Quando fiz isso o estádio veio abaixo, eles gritaram tanto que, aí sim, comecei a chorar… não aguentei. Comecei a chorar, pus as mãos na cara para tentar esconder, mas eu estava sufocado com tanta emoção e com tantos sentimentos que iam cá dentro. Só eu sei o que passei e sofri para conseguir chegar ali... E não quero falar mais porque a emoção não deixa (…) depois eu quero-me exprimir e não há sentimentos, não consigo exprimir aquilo porque foi tão bom [muito emocionado, chora].

À saída do estádio paralímpico, as emoções fortes continuaram. O reconhecimento de que tanto sentiu falta durante os anos em que se viu impedido de participar nos Jogos Paralímpicos foi, enfim, reconquistado pelo atleta. A experiência do pódio estendeu-se para além da cerimônia de entrega das medalhas e prosseguiu no seu regresso à aldeia paralímpica. Quando cheguei cá fora foi tudo a pegar em mim ao colo (…) eu fui no autocarro até à aldeia com a medalha ao pescoço e, entretanto, chegámos à cantina e vieram darme os parabéns! Começaram a chover mensagens! Já tinha 30 mensagens porque havia gente que tinha visto a minha prova em direto na internet. Quando cheguei ao quarto, fui ao meu “Facebook” e tinha 600 e tal notificações [risos]. Depois, eram os telefonemas…. Mas antes disso, quando cheguei cá fora, liguei para os meus pais e aí é que foi mais marcante para mim. O meu pai é muito difícil de chorar e (…) [o atleta começa a chorar, muito emocionado]. Desculpa… Ele sabia que eu tinha sonhado tanto com aquilo… E depois eu, quando 156

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saí da prova, tinha dito que esta medalha era dedicada à minha falecida irmã, aos meus pais, aos meus amigos e a todos aqueles que me apoiaram e ao meu treinador também, claro. Foi uma vitória muito especial para mim, mas também para todos aqueles que me rodeiam, daí ter sido tão sofrida e tão emocionada. (…) Na realidade, eles sabiam que o meu sonho era ganhar uma medalha paralímpica, e doze anos depois o sonho tornou-se realidade.

Nesse momento do percurso de Lenine, o reconhecimento do seu valor foi uma das melhores recompensas face ao esforço empregado até então. Depois de passar anos a conquistar medalhas em competições internacionais sem ser noticiado, a obtenção da medalha de bronze nos Jogos Paralímpicos revelouse primordial na notoriedade alcançada pelo atleta. Quando chegámos ao aeroporto… o voo já vinha atrasado e eu queria era chegar cá fora, dar as entrevistas e ir, porque ainda tínhamos de vir de carro para o Porto. Mas eu, quando saio cá fora… eu e o Macedo [atletas medalhados]... foi uma loucura! Quando entrámos, o público começou a gritar e viraram-se as câmeras para nós. Começaram a fazer perguntas e eu tinha dito em 2000 que o meu sonho era ganhar uma medalha paralímpica e o sonho realizou-se doze anos depois. Quando cheguei ao Porto, estavam os meus pais, a família, os vizinhos… todos a darem beijinhos e abraços… Depois, na rua, e até mesmo no shopping, houve pessoas que me reconheceram e me deram os parabéns. Foi tudo muito gratificante. E depois foram as entrevistas todas… Senti que finalmente fui reconhecido e que tive visibilidade. Entretanto, saíram os nomeados para a gala do desporto e eu fui nomeado com o Cristiano Ronaldo. Em quarenta e tal atletas, ficar no grupo de finalistas foi ótimo. Senti que tive visibilidade e isso deu-me motivação para continuar. (…) Quando eu ia a competições internacionais, às vezes saía qualquer notícia pequenina no jornal, mas não estava ninguém no aeroporto como está quando vêm os atletas “normais” de uma competição. Eu às vezes vinha de competições com tantas medalhas (…) era um feito! Cheguei a vir com 8 medalhas, 7 de ouro e uma de prata, por exemplo. Nessa competição bati o recorde do mundo em duas provas, no pentatlo e no triplo-salto, ganhei o troféu de melhor atleta dos Campeonatos, mas cheguei cá e continuei a treinar como se nada fosse. Só em 2005 é que recebi, pelo presidente da Câmara de Gaia, a medalha de mérito da cidade. É um prémio que só se ganha uma vez na vida e foi gratificante, mas nada como foi agora nos Jogos. 157

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Facilmente se depreende a relevância atribuída pelo atleta à visibilidade dos seus feitos desportivos. É importante que a mídia assuma um papel mais ativo na difusão dos resultados obtidos por esses atletas, não apenas durante os Jogos Paralímpicos, mas, fundamentalmente, no decorrer dos quatro anos de preparação realizada ao mais elevado nível.

As batalhas de um campeão O trilho percorrido por Lenine foi pautado por diversos obstáculos. Além das adversidades referidas, como a falta de apoio, a escassez de reconhecimento e a desmotivação associada ao afastamento dos atletas com deficiência intelectual das competições organizadas pelo IPC, nem sempre a intensidade e volume de treino realizado pelo atleta foram fáceis de tolerar. Treinar para a multiplicidade de provas em que compete revelouse uma tarefa complexa, mas também essencial para manter a motivação elevada. Nesse contexto, a conquista de um número elevado de medalhas por competição surge como um prémio superior que Lenine sempre ambicionou conquistar e que está relacionado com a sua própria personalidade. Partindo do conhecimento adquirido no decorrer da sua carreira, Lenine partilhou a sua perspectiva sobre a conjuntura atual do desporto para pessoas com deficiência em Portugal. Para ele, é fundamental que esse tipo de prática desportiva assuma uma maior visibilidade em contexto nacional, através de uma efetiva divulgação e informação da sociedade em geral. Concomitantemente, o atleta atribui um papel primordial ao CPP, entidade que deverá liderar um trabalho sério e refletido, orientado para a seleção de talentos, uma vez que é evidente a elevada média de idades dos atletas paralímpicos portugueses que ainda competem no desporto de elite. Nessa conformidade, destaca as escolas como contexto privilegiado e primário de intervenção e realça a necessidade de as estruturas organizativas atuarem no sentido da aproximação das condições proporcionadas a atletas olímpicos e paralímpicos. Para Lenine, este representa o único meio viável para a manutenção dos atletas paralímpicos portugueses em lugares cimeiros. Primeiro, eu acho que não há visibilidade que chegue porque há muitos miúdos com deficiência, seja ela qual for, que não sabem onde é que se pode praticar desporto paralímpico. E acho que o Comité Paralímpico (…) devia investir nas escolas. 158

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Ir às escolas e dar palestras. Falar um bocadinho do que são os Jogos Paralímpicos e do que é o desporto adaptado… para chamar jovens. Ir às escolas primárias, secundárias, preparatórias, procurar pessoas com deficiência que talvez estejam interessadas em praticar qualquer desporto seria essencial. Falta maior divulgação nessa área. Este ano foram comigo a Londres atletas que agora têm quase 40 anos e temos de renovar a equipa. Também a questão das bolsas. O que nós ganhamos não chega para nada (…) Se os olímpicos ganham o triplo de nós e eles já se queixam, o que faremos nós? Eu, com o valor de uma bolsa olímpica, treinava de manhã e à tarde e já não precisava trabalhar. (…) Portugal, se quer trazer medalhas no futuro, tem de apostar mais no desporto paralímpico. Porque os outros países estão a apostar nisso. A minha primeira competição foi em 2000, em termos paralímpicos, e eu vejo uma diferença brutal nos últimos doze anos, brutal! O nível competitivo é muito maior e hoje em dia o desporto paralímpico é muito mais competitivo.

Os mais significativos Refletindo no seu percurso, Lenine enaltece os pais e o treinador como as pessoas que mais o marcaram nas suas proezas desportivas. No que se refere aos pais, o atleta destaca a sua educação. Apesar das suas limitações cognitivas, os pais de Lenine sempre atuaram no sentido do desenvolvimento da sua autonomia e nunca o impediram de aproveitar as oportunidades que lhe foram surgindo ao longo da vida. Os meus pais desde os 12/13 anos, sabendo o problema que eu tinha, sempre me prepararam para o que vinha a seguir. Eles já estavam a pensar no meu futuro e trabalharam para que eu fosse o mais autónomo possível. Às vezes as pessoas perguntam-me qual é a minha deficiência porque eu sei falar bem, mas foi derivado à educação que eu tive em que os meus pais tentaram compensar as minhas dificuldades. (…) Estou muito agradecido porque se não fossem eles não tinha a vida que tenho hoje... (…) Depois, quando surgiu o convite de ir para a ANDDI, os meus pais aceitaram de bom grado porque sabiam o problema que eu tinha. Mas há alguns pais que não aceitam, e eles podiam ter-me impedido. (…) Então, quando eu lhes disse que ia representar Portugal aos Jogos, eles apoiaram-me ainda mais. (…) Os meus pais acompanhavamme muito, foram ver algumas provas minhas e apoiaram-me imenso. (…) Tudo o que tenho hoje e tudo o que ganhei é devido à motivação que eles me deram também. 159

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Também o treinador é referido como significativo na sua caminhada desportiva. O fato de ser orientado há catorze anos pelo mesmo treinador fortaleceu a cumplicidade e a amizade existentes entre ambos e que se estende para além da pista de atletismo. Sem dúvida o meu treinador. Foi ele que me aturou esses anos todos. Nós somos cão e gato às vezes, mas a amizade está sempre lá. Ele também sabe o atleta que tem, sabe as dificuldades que eu passei e sei que posso contar com ele como um amigo. Se não fosse ele, eu não era o Lenine que sou hoje, não tinha ganho as medalhas que ganhei, principalmente a deste ano, porque ele sempre acreditou que eu a ia ganhar. (…) Sempre esteve lá, sempre disse que eu ia ganhar uma medalha e fazer um grande feito. (…) Quem esteve lá sempre foi o meu treinador e os meus pais, que me puseram a praticar desporto. O meu treinador é muito importante por ter feito de mim o atleta que sou hoje, e os meus pais, a pessoa que sou.

O porvir Ao perspectivar o seu futuro desportivo, Lenine é prudente. As suas capacidades já não correspondem ao pico de forma atingido anos antes e a vontade de assumir diferentes papéis sociais começa a manifestar-se, ainda que ligada ao meio desportivo. Daqui para frente quero ganhar medalhas e ter os olhos no Rio de Janeiro. Ainda falta muito, mas é agora que se começa a trabalhar para isso. Estou apurado automaticamente porque fui medalhado. (…) Eu gostava de ganhar uma medalha e gostava de acabar em grande, mas vai ser difícil. Vão começar a aparecer atletas mais jovens agora… A competição está muito mais forte e isso se vê pelos resultados das medalhas que Portugal tem trazido. (…) Depois vamos ver… um ano antes eu faço as contas. (…) Eu fiz um balanço, para entregar ao Banif, do que ganhei em quatro anos… e foram 51 medalhas internacionais. Hoje não vou dizer que vou ganhar isso outra vez, mas acho que vou pôr um limite de 40. (…) Também há provas que eu vou deixar de fazer porque a idade já não perdoa e já não tenho aquela resistência de correr para um lado e para o outro como na minha juventude. (…) Depois, eu gostava muito de trabalhar em algo ligado ao desporto. (…) Por exemplo, se fosse ali no estádio onde eu treino era ótimo. Nem que seja para recepcionista ou até mesmo para 160

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segurança, não sei. (…) Depois dos Jogos do Rio de Janeiro, como tenho o curso de grau 1, gostava de ser treinador. (…) Estou a pensar também em voltar a estudar. Para mim vai ser difícil, mas vou tentar. Ou então gostava de dar aulas aos miúdos na escola primária, ensiná-los a correr e a viver para o desporto como sempre fiz.

Eu sou o desporto Da história de Lenine emana o ideal olímpico e, também, paralímpico: “citius, altius, fortius”. Um desportista nato, que vive a competição ao limite e que se supera a cada instante para se revelar o melhor de todos os atletas. É alguém que “ama” o desporto e que por isso se entrega para o experienciar profundamente. No palco desportivo, Lenine gosta de assumir o protagonismo nas provas, representa o papel principal como se fosse sempre seu e de forma gloriosa. Tal como um autêntico guerreiro faz quando enfrenta uma batalha, Lenine domina a cena desportiva. O seu dinamismo, a ambição, a força de vontade e o espírito competitivo que fazem parte da sua própria identidade, levaramno à conquista do mérito desportivo que hoje lhe reconhecemos e em que as 153 medalhas internacionais conquistadas à data da entrevista falam por si só. Sou muito ambicioso. Como atleta tenho muita garra, muita garra… Acho que basta ver pelos anos em que lutei para não desistir e pela minha determinação. Quando estou determinado a conseguir uma coisa vou até ao fim e às vezes até excedo as expectativas, às vezes até fico admirado comigo mesmo… Por isso acho que foi a minha ambição, determinação, paixão e garra que me levaram bem alto. Mas, acima de tudo, tenho muito espírito competitivo. (…) E nas provas eu tenho de sofrer até ao fim; mesmo que doa, eu tenho de sofrer até ao fim. É esse o meu espírito competitivo.

O desporto assume, então, uma função vital na vida do atleta, sendo enaltecido diversas vezes: O desporto é o que eu gosto, é a minha vida. Às vezes a motivação de que precisava para continuar vinha daí. Porque eu gosto disto, eu amo isto! Não sei mais nada, eu só sei fazer isto. (…) Uma vez perguntaram-me assim: “Se não tivesses o ataque de meningite como é que seria?” E eu não posso dar graças a Deus, mas às vezes penso que se não fosse o ataque de meningite eu não tinha ganho as medalhas que ganhei nem 161

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ninguém conhecia o Lenine. (…) Mas confesso que já pensei várias vezes em desistir, principalmente depois de sabermos que não íamos aos Jogos em 2004 e 2008. Mas eu amo isto e não consigo desistir. Eu não sei como é que vai ser a minha vida quando acabar a minha carreira no desporto… Não sei como é que vou reagir, nem quero pensar sobre isso. Tenho muito receio, porque acho que não vou conseguir viver.

Conclusão Para Lenine Cunha, o desporto assume um significado primordial, sendo relevante pelas experiências vividas nesse contexto desportivo, mas também pelas marcas visíveis deixadas na construção da sua identidade: uma identidade atlética. A experiência vivida no imaginário paralímpico revestiu-se de significado, sendo destacadas na narrativa do atleta, através de episódios marcantes, histórias de superação e de transcendência. No seu percurso desportivo salientam-se a iniciação precoce no desporto regular e, mais tarde, no desporto para pessoas com deficiência; a rápida ascensão ao desporto de elite; a longa carreira edificada na alta competição e a excelência dos seus resultados de alto nível. Um trajeto que se distingue pelo elevado comprometimento com a prática desportiva, pelo sucesso e pelo reconhecimento social, mas também por inúmeros obstáculos. Como um verdadeiro ser dotado de transcendência, Lenine foi superando cada barreira que colocavam no seu caminho e tornouse o atleta português mais medalhado de sempre. Através dos seus resultados de excelência foi ganhando notoriedade e visibilidade, conquista que partilha com os seus “mais significativos”. Na sua narrativa é ainda exposto um contexto desportivo nacional adverso, onde se reclama maior apoio e se impõem amplas e profundas transformações no sentido de impulsionar o desporto paralímpico e valorizar o atleta paralímpico nacional. A história de Lenine mostra-nos a necessidade de profissionalização do atleta paralímpico, considerando-a como fator crucial para o êxito desportivo, a par com o comprometimento e a dedicação exclusiva ao desporto. Percebemos o mesmo noutros atletas paralímpicos portugueses que entrevistámos num estudo mais amplo e representativo da realidade nacional e do qual Lenine também faz parte.

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A onipresença de João Havelange no esporte Sérgio Settani Giglio Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Introdução Em 2014 a Federação Internacional de Futebol (FIFA) completou 110 anos de existência. Com mais filiados do que a Organização das Nações Unidas (ONU)1, a FIFA, apesar das recentes acusações de corrupção, apresenta-se como uma entidade sólida e de grande influência no mundo esportivo. Ao longo desse tempo, oito presidentes ocuparam o posto de mandatários do futebol mundial, sendo que apenas um deles não era da Europa ocidental. O único presidente de “fora” foi o brasileiro de descendência belga Jean-Marie Faustin Goedefroid de Havelange ou apenas João Havelange. Mas qual brasileiro Havelange representa? Descendente de europeus, de família aristocrática e que falava várias línguas, atributos que o colocavam em um determinado lugar dentro da sociedade brasileira. Os postos administrativos que ocupou fizeram com que outros dois elementos de distinção, a vestimenta (uso de terno) e a alimentação (comidas elaboradas e restaurantes finos) reforçassem que Havelange não era um brasileiro comum (ROCHA, 2013a) exatamente por se afastar das características de muitos brasileiros. Enfim, tinha uma série de capitais culturais que o colocavam no metiê esportivo. Portanto, Havelange possuía o capital simbólico para traçar sua trajetória dentro do campo esportivo (BOURDIEU, 1983), que fora construída, especialmente, com a conquista do tricampeonato mundial de 1970 quando era presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). E graças a esse capital simbólico, construído ao longo de sua trajetória, ele não era apenas um brasileiro tentando o posto de presidente da FIFA2.

A FIFA possui 209 países filiados, enquanto a ONU tem 193. Disponível em http://pt.fifa.com/aboutfifa/organisation/associations.html; http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/paises-membros/ – Acesso em: 5 jul. 2014. 2 Agradeço a esses apontamentos feitos pelo professor doutor José Paulo Florenzano na defesa do doutorado. 1

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Não bastasse ser o “único” no rol do seleto grupo de presidentes da FIFA, foi o segundo que mais tempo ficou no poder, perdendo apenas para o fundador Jules Rimet (que ficou 33 anos, enquanto Havelange permaneceu por 24 anos). Portanto, a trajetória de João Havelange no mundo esportivo necessita ser investigada. Exatamente por ter ocupado uma série de cargos no campo esportivo brasileiro e o maior posto do mundo do futebol profissional, Wisnik (2008, p. 331) refere-se a Havelange como o “cartola dos cartolas”. Essa referência é construída exatamente porque “a figura de Havelange é conhecida por incorporar nela os traços singulares e as características paradigmáticas do que se espera de como deve agir um dirigente” (ROCHA, 2013b, p. 84). A proposta desse texto é discutir a sua trajetória tendo como foco a “memória viva” do esporte. Para isso, utilizo uma entrevista feita com João Havelange no início de 2012 no Rio de Janeiro3. Foram dois encontros realizados em dias consecutivos, totalizando 3h30 de entrevista, mais uma hora e meia de almoço em uma conversa informal. Como forma de dialogar com a sua história, tendo claro que o entrevistado conta a sua verdade (BOSI, 2003), trouxe outras fontes – livros, artigos e jornais – para compor um mosaico da trajetória de Havelange, sem pretender, com isso, estabelecer verdades e mentiras sobre o que tenha contado. Pelo contrário, a utilização de várias fontes é uma forma de analisar o mesmo fato por diversos ângulos. Na primeira parte do texto apresento os elementos da entrevista para, depois, na segunda parte, discutir e analisar os pontos levantados a partir da história de Havelange, mesclando as diferentes fontes. Portanto, analiso como a imagem de Havelange, na qualidade de figura pública, fez com que certos discursos se solidificassem em detrimento de outros. Além disso, por meio de suas representações – entendidas no sentido trabalhado por Chartier (1988) de que não são neutras, pelo fato de terem sido construídas, o que faz com que sejam determinadas pelos grupos que as produzem – foi possível entender como, de fato, Havelange e sua equipe foram ágeis ao definir as estratégias políticas adotadas para ser manter no poder durante tanto tempo.

A entrevista foi realizada para o projeto de pesquisa coordenado pela professora doutora Katia Rubio, intitulado “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos”. A entrevista foi conduzida pela professora Katia Rubio e por mim.

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Frente a frente com João Havelange Após muitos anos de tentativas sem sucesso, e entendendo como funciona o jogo de relações do alto escalão da política e do esporte brasileiro, a professora Katia Rubio conseguiu agendar, por meio de um amigo em comum, uma entrevista com João Havelange. Ele foi atleta olímpico da natação em 1936 e do polo aquático em 1952. Seguimos para o Rio de Janeiro, eu e a professora Katia Rubio, para realizarmos uma série de entrevistas naquela semana em que lá permanecemos. Entre elas, estava a entrevista de João Havelange, que, para o meu doutorado, em que discuti a relação de oposição entre o COI e a FIFA em relação ao futebol olímpico (GIGLIO, 2013), muito me interessava ouvi-lo falar sobre o esporte brasileiro e o tempo em que ficou na presidência da FIFA. Pela experiência acumulada ao longo do projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos”, deduzi que o horário agendado para a entrevista (11h), especialmente pelo fato de ser um senhor de idade e estar perto do horário do almoço, seria um sinal de que talvez não quisesse falar, sobretudo por ter chegado com uma hora de atraso. De imediato vieram as desculpas justificadas por uma série de desencontros em sua rotina diária, que se inicia sempre com o nado de 1.500 metros e fisioterapia. Como a professora Katia Rubio foi o contato inicial, Havelange centrou nela a sua narrativa. Esse fato também se fez presente em outras entrevistas e, assim como aconteceu com Havelange, isso não impediu que outros entrevistadores pudessem interagir. Sem se importar com o horário, falou sem parar durante uma hora e meia e interrompeu sua narrativa apenas para nos convidar a almoçar com ele. A conversa se prolongou de modo informal na churrascaria localizada no Aterro do Flamengo. Ao final do almoço fomos surpreendidos com outro convite, para continuar a conversa no dia seguinte no Country Club, um clube inglês localizado em Ipanema. Havelange nos contou sua história de vida e por ser uma figura pública foi requisitado inúmeras vezes a contá-la. Tanto é que as histórias que nos contou também aparecem – e não poderia ser diferente – em outras fontes, tais como um especial publicado pela Folha de S. Paulo em 19984, em sua biografia Muito do que falou na entrevista também foi contado por Havelange para o jornal Folha de S. Paulo em um caderno especial por ocasião da Copa de 1998 quando estava prestes a deixar a presidência da FIFA. Consultar: “Era Havelange – Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 1-12.

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oficial (PEREIRA e VIEIRA, 2011) e na biografia não autorizada (RODRIGUES, 2007), além do documentário “Conversa com JH”, do diretor Ernesto Rodrigues (2013), que é fruto do livro que trata da sua biografia não autorizada. Desse modo, pôde reelaborar constantemente os fatos vividos fazendo com que as mesmas histórias fossem contadas. Em suma, nesse processo de contar e recontar a sua história, estabeleceu fatos que poderiam ser contados e, portanto, se tornaram fatos públicos, enquanto outras experiências foram relegadas ao esquecimento por terem ficado restritas ao ambiente privado. Ao trazer a sua versão dos fatos e de sua história, conforme já dito, Havelange contou a sua verdade (BOSI, 2003). Por possuir uma intensa vida pública desde a época em que assumiu como diretor de polo aquático do Botafogo em 1937, passando depois a presidente da Federação Paulista de Natação de 1949 a 19515, presidente da Federação Metropolitana de Natação em 19526, vicepresidente da CBD em 19567 e, finalmente, presidente da CBD em 19588, sua história se confunde à do esporte brasileiro. Por esse motivo, em sua narrativa está presente aquilo que Halbwachs denominou de “quadro social da memória”. De acordo com Halbwachs (2006), sempre nos relacionamos com duas memórias: a nossa, que é individual, e a coletiva, que é construída a partir da relação com a sociedade. Em suma, por conta dessa relação, afirma o autor, essa memória está conectada a uma memória histórica. Seguindo essa linha, Pollak (1992) sustenta que existem três elementos constituintes da memória: os acontecimentos, as pessoas e os lugares. E podemos interseccionar esses três aspectos apontados por Pollak com a memória histórica, afinal, estarão presentes nela. A narrativa de Havelange pode ser analisada a partir do quadro social da memória proposto por Halbwachs, inclusive como forma de perceber a onipresença do dirigente em vários aspectos do esporte nacional e mundial, bem como de sua relação com a política e os políticos brasileiros e estrangeiros.

Em carta ao sócio, cita a existência de caixa dois em sua empresa. “Natação. O novo presidente da F. M. N.”. O Estado de S. Paulo, 5 de março de 1952, p. 11 7 “Eleito o vice-presidente da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 20 de dezembro de 1956, p. 20. 8 “A Posse dos Novos Diretores da C. B. D.”. O Estado de S. Paulo, 16 de janeiro de 1958, p. 14. 5

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Desse modo, muitas de suas lembranças são fruto daquilo que se sobrepôs, enquanto imagem, do que ele viveu, pelo simples fato de que o exercício de relembrar é feito a partir do presente. Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. É como se estivéssemos diante de muitos testemunhos. Podemos reconstruir um conjunto de lembranças de maneira a reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de certas divergências (HALBWACHS, 2006, p. 29).

A dificuldade em relembrar alguns fatos ou a predileção do entrevistado em explorar outros aspectos de sua trajetória de vida que não tanto de suas participações olímpicas também aconteceu com Havelange ao privilegiar a narrativa dos fatos relativos ao período em que foi presidente da FIFA. Ao menos enquanto detalhamento das informações, sua narrativa pode ser entendida nas palavras de Halbwachs (2006, p. 34-35): “Entre esses fatos, os que neles estavam envolvidos, em nós há uma descontinuidade, não apenas porque o grupo no seio do qual nós os percebíamos materialmente já não existe, mas porque não pensamos mais nele e não temos nenhum meio de reconstruir sua imagem”.

Havelange no poder e o poder de Havelange Antes de chegar à FIFA, Havelange tinha construído uma carreira no âmbito esportivo. Se na sua adolescência fora atleta de natação e futebol, este último vetado pelo seu pai, na fase adulta assumiu uma série de cargos administrativos. Quando perguntado como gostaria de ser lembrado, se como esportista ou o estadista que fez a FIFA maior que a ONU, Havelange disse que queria “[...] ser lembrado como administrador, que é o que eu sou”9. Toda essa experiência acumulada e especialmente o tempo que ficou à frente da CBD, ajudado com a visibilidade da conquista dos três campeonatos mundiais de futebol, indicavam que Havelange estava pronto para concorrer à presidência da FIFA. No entanto, teria que enfrentar um forte rival: o inglês Stanley Rous. A rivalidade entre Rous e Havelange foi fortemente estabelecida quando houve a indicação de Havelange como

“Polêmica e bilionária, negociação sobre Copa de 2002 divide a Fifa. Era Havelange – Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 9.

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candidato para a presidência da FIFA pela Confederação SulAmericana de Futebol. Segundo Rous, “havia um compromisso entre nós dois. Havelange não se candidataria desta vez”10. O início dos desentendimentos entre os dois é ilustrado por Havelange11: Em 1966 eu tive uma maldade do Stanley Rous que eu ganhei dele. Os ingleses é que mandavam. Então, a Copa do Mundo foi na Inglaterra e eles não queriam que eu fosse tricampeão, eu fui com a delegação, avisa, antes fui lá para ver hotel, tudo, avisei que chegaria a Sochaux, e que a tal hora e de tal maneira. Isso era a FIFA e a Federação local alemã, inglesa. Me deixaram esperando duas horas no aeroporto e eu não disse nada. Fui para o hotel e perguntei se podia ver onde o time ia treinar, me disseram: “não, doutor Havelange”. Trouxeram a chave e eu fui, mandei abrir tudo, tinha capim, o campo tinha capim deste tamanho (indicando cerca de 1 metro de altura), esse foi o presente! Até cortar tudo, botar em ordem, eu treinei dez dias no fundo do hotel, veja a delicadeza. Bom, tive os três primeiros jogos, veja bem, Portugal, Hungria e Bulgária, são três. Foram dois, quatro, seis, três jogos, nove, dos nove, sete eram ingleses e dois eram alemães. Voltei pra casa, me acabaram com o time. Foi o presente, não disse nada. Antigamente, havia a despedida que era feita na municipalidade. O prefeito me convidou, o time vinha embora, e o Rous estava na porta, me estendeu a mão e eu fiquei como estava, ele ficou me olhando, faz um exame de consciência e você vai saber a razão, que ele tinha feito comigo uma maldade e eu voltei.

Essa rivalidade foi apresentada pelo semanário francês Nouvel Observateur a partir de uma oposição entre os candidatos quando afirmou que a disputa seria entre “Stanley Rous, o reacionário do futebol, contra Havelange, um progressista que deseja modificar o esporte”12. Essa dualidade era representativa da forma como cada candidato se posicionava em relação ao futebol. Rous era visto como um conservador por não querer mudanças no futebol, enquanto Havelange posicionava-se como uma pessoa que ampliaria a ação do futebol no mundo todo.

“Um empresário no futebol”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 20. Texto de Teixeira Heizer. 11 Sempre que algum nome aparecer sem data e com uma citação, corresponderá à fala do entrevistado. 12 “Os franceses já esperavam a derrota de Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 21. Texto de Reali Júnior. 10

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Rous imaginava que poderia ser reeleito nas eleições da FIFA em 1974, tendo como discurso a manutenção da tradição conservadora da entidade, e via Havelange como uma ameaça à manutenção dessa condição: “Não concordo com os métodos de João Havelange e espero vencê-lo em Frankfurt para que ele não coloque em prática seus planos que não acredito que sejam os ideais para uma entidade como a FIFA”13 Durante muitos anos, Rous foi um defensor de uma tradição futebolística que privilegiava a Europa em detrimento dos demais continentes. Segundo Darby (2002, p. 48), essa hegemonia europeia começou a ser ameaçada quando houve um aumento do número de filiados da FIFA. Com essa expansão, independentemente da tradição futebolística ou da qualidade dos jogadores, toda associação membro tinha direito a voto. Foi muito atento a essa configuração que Havelange, como um estrategista, percebeu que os continentes africano e asiático estavam esquecidos na gestão de Rous e sabia que principalmente a África, devido aos inúmeros problemas que haviam tido com Rous, seria uma forte aliada à sua campanha para chegar ao poder. No entanto, a tática de Havelange de visitar todos os países que votariam fez a diferença14. Segundo Darby (2002, p. 85), o sucesso de Havelange foi reconhecer e entender as conexões entre a política internacional e o esporte e, em seu caso específico, o futebol, enquanto Rous, ao separar o esporte da política, acabava por demonstrar uma visão conservadora. Quando Stanley Rous foi derrotado por João Havelange nas eleições para a FIFA, assim declarou: “Quero dar minhas congratulações a João Havelange. Espero que a FIFA continue florescendo. Fiz tudo para desenvolver o futebol, até ter uma triste manhã como esta”15. Além do pequeno número de presidentes eleitos, a presença maciça de europeus revela quem comandou e comanda o esporte no mundo. Nessa estrutura esportiva, com o passar do tempo os votos das regiões consideradas periféricas, tais como América do Sul, África e Ásia, tornaram-se imprescindíveis para que um presidente fosse eleito, conforme indica a manchete da Folha de S. Paulo: “Voto africano decide hoje o sucessor de Havelange”16. “O velho sir abandona sua tradicional fleuma: vai derrotar Havelange”. Folha de S. Paulo, 9 de abril de 1974, p. 24. 14 “O Brasil ganhou a FIFA”. Folha de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 17 – Esportes. 15 “A triste manhã de Stanley Rous”. O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1974, p. 20. 16 “Voto africano decide hoje o sucessor de Havelange”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 6 – Esportes. 13

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Anos antes, em 1972, as mudanças na estrutura da FIFA já podiam ser vistas no lugar ocupado pelos continentes africano e asiático: “os afro-asiáticos, contudo, possuem quase a metade dos votos da FIFA e podem assim fazer impor sua presença agora, mais do que no passado”17. De acordo com Darby (2002, p. 43), durante os anos 19501960 havia um domínio europeu na FIFA canalizado por meio do seu presidente, Stanley Rous. Em sua análise, essa hegemonia europeia foi enfraquecida com a eleição de Havelange em 1974, e a perda de poder dos europeus se materializou com uma resistência à democratização e à globalização do futebol. Nesse contexto, o continente africano teve um papel importante nesse processo, pois foi com o apoio da África que Havelange venceu Rous na disputa pela presidência da FIFA. Até aquele momento, em 1974, Rous detinha o segundo maior tempo de presidência da entidade (13 anos) ficando atrás apenas do francês Jules Rimet. Por seu trabalho a favor dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, recebeu o título de “Sir”. Antes disso, havia sido árbitro com atuação internacional, além de ter participado da redação das novas regras do futebol em 1938. O site da FIFA destaca que em sua gestão a Copa do Mundo transformou-se em um espetáculo televisivo, sendo transmitida em cores a Copa de 1970. Durante os primeiros 70 anos da FIFA, o poder esteve concentrado nas mãos de dois presidentes franceses (35 anos) e três ingleses (31 anos)18. O restante ficou dividido entre a ausência de um presidente (1918 a 1921) e o curto mandato de um belga (apenas um ano)19. Essa dominação europeia acabou quando João Havelange foi eleito para assumir a presidência em 1974. Havelange foi o sétimo presidente da FIFA20 e o primeiro não europeu a dirigir a entidade. Porém, antes de chegar à presidência da FIFA, Havelange presidiu a CBD:

“Rous com medo dos rebeldes”. Folha de S. Paulo, 20 de agosto de 1972, p. 57 – Esportes. 18 Os presidentes franceses foram Robert Guérin (1904-1906) e Jules Rimet (19211954) e os ingleses foram Daniel Burley Woolfall (1906-1918), Arthur Drewry (1955-1961) e Stanley Rous (1961-1974). 19 O belga Rodolphe William Seeldrayers ficou no cargo entre 1954-1955, ano em que faleceu. 20 Perfil de Havelange no Boletim Olímpico. Consultar: Bulletin du Comité International Olympique, n. 86, maio de 1964, p. 82-83. “Are our Members Sportsmen?”. 17

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[...] foi de 1955 a 1974, não 1952, eu fui eleito vice-presidente do Sylvio [Padilha] em 52 e depois assumi e fui até ir para FIFA, em 1974. [...], eu lhe faço uma pergunta: quantas vezes um presidente da República foi a um estádio? Não conhece. Eu, quando estava na CBD, todos os anos, quando tinha o futebol e mais 24 modalidades amadoras, eu ia quatro vezes por ano a todos os estádios, a todas as federações. Assim que a gente deveria dirigir o Brasil e na FIFA dos 178 eu só não fui ao Afeganistão e o mínimo que eu fui foi 3 vezes [...].

Um ano antes de ser eleito presidente da FIFA, Havelange acompanhou a solicitação de Maurício Toledo (ARENA), deputado federal por São Paulo, para abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o prejuízo na CBD, que vinha sendo causado pela campanha de Havelange ao posto de presidente da FIFA21. Embora presidindo a CBD por quase duas décadas, Havelange diz que sofreu muitas críticas por não ter sido um atleta do futebol, apesar de sua experiência nos juniores do Fluminense. Segundo ele: [...] recebi críticas muitos fortes do meu país quando eu assumi porque eles diziam que eu era nadador e não entendia nada de futebol, e eu disse a eles que amanhã eu posso ser presidente de um banco, não entender nada, mas ter um diretor pra cada coisa. No futebol tem o técnico, tem o supervisor, tem o massagista, tem isso, tem aquilo, pronto.

Havelange não recebeu apenas críticas internas, sofreu também pelo fato de ser um brasileiro no meio de europeus, e, durante a entrevista, em vários momentos destacou tal dificuldade. Apesar de ressaltar essa condição, já em 1975, após seu primeiro ano no cargo de presidente, afirmou que era normal a Europa ocupar uma posição prioritária dentro do mecanismo da FIFA22. Seus 24 anos à frente do futebol mundial ficam somente atrás dos 33 anos que o francês Jules Rimet ocupou o cargo. Dias antes da eleição da FIFA, o então presidente da UEFA, o italiano Artemio Franchi, declarou que “[...] se o candidato brasileiro derrotar Stanley Rous na eleição de terça-feira, os países europeus poderão se desligar da FIFA e fundar uma federação independente. Isso porque eles não podem imaginar a FIFA “Era Havelange – Especial Copa 98”. Folha de S. Paulo, 8 de junho de 1998, p. 4. Olympic Review, n. 95-96, setembro – outubro de 1975, p. 419. Fédération Internationale de Football Association (FIFA). One year of Presidency.

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controlada por um sul-americano”23. Essa condição adversa e de resistência de boa parte dos europeus era manifestada, segundo Havelange, de várias maneiras, inclusive em uma reunião do COI: Eu fui com a Ana Maria [sua esposa]. Nós chegamos, eu fui à suíte, descemos quase na hora do jantar e estavam todos os membros no hall do salão em que eu ia tomar a minha posição na assembleia, que era presidida pelo Stanley Rous, pelo Avery Brundage, desculpe. E, quando eu desci, estavam todos no salão, a maioria ingleses, e eu me apresentei, e apresentei a minha senhora, Ana Maria. Ninguém se levantou pra cumprimentar a minha senhora. Como se eu fosse lixo. Como se eu cheirasse mal. Então, veja, não é fácil ser brasileiro no exterior.

Naquele momento, os europeus discordavam que um país sem representatividade no futebol pudesse ter o mesmo voto de um país europeu, por exemplo. Reclamavam porque, se houvesse privilégio de algumas nações na hora da votação, certamente a Europa conseguiria eleger um presidente, pois naquele momento havia 33 federações vinculadas a ela, enquanto na América do Sul eram apenas 10. Havelange foi uma peça chave quanto à mudança do futebol para um negócio altamente lucrativo. Desde o seu discurso, após ser eleito presidente da FIFA em disputa com Rous (venceu por 68 votos a 52), Havelange indicou o caminho que seguiria: unidade e expansão do futebol24. Como ele mesmo disse na entrevista: “[...] modéstia à parte, eu modifiquei tudo no mundo [do futebol]”. Sua estratégia foi a de atrair patrocinadores para a Copa do Mundo, e, a partir dessa relação, conseguiu realizar seu ambicioso projeto de transformar a FIFA em uma grande potência esportiva, afinal, conforme Havelange ressaltou: “qual é a companhia de publicidade ou firma que faz publicidade, que não quer estar ao lado?”. Como o próprio Havelange informou, para ser um patrocinador de destaque a empresa precisa investir “150 milhões de dólares” e como “são 15, 1 bilhão e 750 milhões já vem daqui, foi um dos presentes que eu dei à FIFA, são 15”. Essa visão de transformador do cenário futebolístico mundial também é partilhada pelo site da FIFA quando pontua que Havelange comandou um “[...] período de profundas “O candidato visita a sua seleção”. O Estado de S. Paulo, 9 de junho de 1974, p. 57. Olympic Review, n. 80-81, julho – agosto de 1974, p. 367. Fédération lnternationale de Football Association (FIFA).

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mudanças na organização”25. As transformações promovidas por Havelange estavam indicadas em seu plano de ação caso fosse eleito presidente da entidade. Entre os oito pontos, destacavamse: aumento do número de equipes para disputar a Copa do Mundo, criação da Copa do Mundo de futebol júnior, construção da sede da FIFA e ampliação das competições de clubes da Ásia e da África26. O plano de ação de governança de Havelange era, ao mesmo tempo, ambicioso e preciso. Ambicioso por querer se expandir para regiões e categorias até então pouco atendidas, e preciso por entender que essas ações garantiriam, como de fato aconteceu, a sua permanência no cargo durante muitos anos. Para Rocha (2013a, p. 18), “Havelange quer passar a imagem daquele que calcula e antecipa todos os movimentos, prevê as jogadas dos agentes do campo, porque tem nele incorporado valor social fundamental na sociedade capitalista: uma ética do trabalho e a vontade de vencer, a partir da racionalização extrema do mundo social”. Entendo que Havelange, de fato, era uma pessoa que entendia muito bem como estava constituído o campo esportivo (BOURDIEU, 1983) pelo qual transitava. Sabia que para se manter no poder era preciso criar uma rede de relações, pois sem elas seria rapidamente colocado fora do sistema. Portanto, sem essa racionalização provavelmente não teria ficado tanto tempo no poder. Entre os patrocinadores mais fiéis à FIFA estão a Adidas e a Coca-Cola. A Adidas tornou-se, ao longo do tempo, uma grande aliada de Havelange ( JENNINGS, 2011; SMIT, 2007), porém, ele diz que nem sempre foi assim: “Quando eu cheguei à FIFA em 1974, a Adidas já era [a patrocinadora] e ela fez naquela ocasião uma campanha a favor do Stanley Rous contra mim”. Já a Coca-Cola, muito atenta à visibilidade e disseminação de sua marca por meio do esporte, patrocina os Jogos Olímpicos desde 192827 e, segundo Soares e Vaz (2009, p. 488), o contrato com o COI vai até 2020 e ela “[...] foi uma dessas empresas que nos anos 1970 investiu na disseminação da imagem que o gosto de seu produto atinge todas as culturas, povos e etnias”.

Disponível em – Acesso em: 8 jul. 2014. 26 Olympic Review, n. 80-81, julho – agosto de 1974, p. 368. Fédération lnternationale de Football Association (FIFA). 27 Olympic Review, n. 247, junho de 1988, p. 222. Tribute to sixty years of support. 25

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A transformação promovida pela FIFA durante a presidência de Havelange é assim indicada no site da entidade: [...] Havelange se destacou como administrador de futebol pelo aumento do número de participantes da Copa do Mundo da FIFA de 16 para 32, pela criação de novas competições (os Mundiais Sub-17 e Sub-20 no final da década de 80; a Copa das Confederações da FIFA e a Copa do Mundo Feminina da FIFA no início da década de 90) e pela maior participação de seleções da Ásia, África, CONCACAF e Oceania, regiões que juntas haviam tido apenas três vagas na Copa do Mundo da FIFA 1974. O número de funcionários da sede da FIFA em Zurique passou de 12 para quase 120 em função das maiores responsabilidades comerciais e de organização28.

Ao conseguir expandir o futebol para todos os cantos do planeta, a FIFA também ampliou seu controle e conseguiu transformá-lo em um negócio altamente rentável. De acordo com Havelange, isso nem sempre foi assim: [...] quando eu fiz a primeira Copa como presidente, que foi na Argentina, o resultado bruto da Copa: 78 milhões de dólares, quatro anos depois, ela foi na Espanha, 82 milhões de dólares, modifiquei tudo. A senhora sabe quanto é hoje? Dois bilhões e 400 milhões. Agora tem um outro lado, hoje a FIFA tem 210 países filiados, e se puser em cada país não sei quantos clubes, para cada clube, se eu tenho o treinador, tenho o massagista, tenho o roupeiro, tem isso, tem aquilo, sabe quantas pessoas com o futebol comem todos os dias? Duzentas mil! E tem mais, se multiplicar por cinco, que é a família, um milhão de pessoas comem todos os dias graças ao futebol. Esse foi o presente que eu dei. Em vinte anos, não dá. Então, veja a importância do futebol e como ele deve ser bem tratado e, aqui, a força que ele é hoje em dia.

Após a gestão de Havelange, o futebol transformou-se rapidamente rumo à valorização dos grandes contratos, tanto dos eventos quanto de muitos dos jogadores mais famosos. Um homem que fez parte da trajetória de Havelange foi o suíço Joseph Blatter, que já trabalhava na FIFA há 23 anos quando assumiu a presidência da entidade em 1998, sendo 17 como secretário de Havelange. O site da FIFA destaca que, em sua gestão, ampliou as competições da entidade, implantou o

Disponível em . Acesso em: 8 jun. 2014.

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Torneio de Clubes da FIFA e os mundiais de Futebol de praia (Beach Soccer) e de futsal29. Segundo Tomlinson (2005), os rumos do futebol ao longo do século XX estão diretamente entrelaçados com as trajetórias de Rimet, Rous, Havelange e Blatter, devido às relações políticas e sociais que cada um deles estabeleceu, permitindo que o futebol se transformasse em uma força globalizada. No entanto, essa força globalizada se viu abalada em 2012 quando a FIFA divulgou, durante a gestão de Blatter, um documento que citava o envolvimento de João Havelange e seu ex-genro e ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, no final dos anos 1990, no recebimento de pagamentos da extinta empresa de marketing esportivo, International Sport and Leisure (ISL), em troca de facilidades na aquisição dos direitos de televisão das competições organizadas pelas FIFA30. Devido à repercussão do caso, e para não ser julgado pelo COI e pela FIFA, Havelange renunciou ao cargo de membro do COI em 2011 quando se iniciaram as denúncias e em 2013 deixou o cargo de presidente de honra da FIFA31. Em 2011, uma denúncia da TV inglesa BBC apontou que João Havelange e seu ex-genro e então presidente da CBF, Ricardo Teixeira, receberam propinas da empresa ISL, que era a responsável pela comercialização dos direitos de TV da Copa do Mundo. A FIFA decidiu que não levaria para o Comitê de Ética tal denúncia32. Sobre esse episódio e a repercussão dentro do COI, Havelange comentou: [...] eu fui do Comitê Olímpico como membro 48 anos, por eleição. O tempo passou e eu presidente, e nesses, quanto, 48 anos, devem ter se realizado mais do que 110 assembleias e eu faltei, acho que a 4 ou 5. Uma eu me lembro, foi no Japão, porque eu tinha a Copa do Mundo, no dia que tinha, tinha a abertura da Copa, não ia deixar de ir. Enfim, Disponível em . Acesso em: 8 jul. 2014. 30 O documento da FIFA, datado de 2010, pode ser consultado no próprio site da entidade sob o título Order on the dismissal of the criminal proceedings. Disponível em: – Acesso em: 18 jul. 2014. 31 “Havelange deixa Fifa para não ser punido”. O Estado de S. Paulo, 1º de maio de 2013, p. A29; “Havelange, 96, renuncia a cargo na Fifa para não sofrer punição”. Folha de S. Paulo, 1º de maio de 2013, p. D4. 32 “Havelange é investigado por caso de suborno”. O Estado de S. Paulo, 15 de junho de 2011, p. E2 – Esportes. 29

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nunca faltei a nada. Bom, agora eu recebo uma carta do Rogge, pra eu me apresentar na Comissão de Ética. E, eu aí, respondi a ele, isso baseado em um jornalista inglês, e eu aí fiz uma carta a ele, mandando um documento, eu nunca fui chamado ao processo, rodou dez anos, ele está arquivado e só pode ser aberto daqui há dez anos, é a lei suíça. Então, por essa me mandou um carta, assim, e me disse que então eu seria recebido para o Comitê Olímpico para dar explicações. E aí fiz uma carta a ele dizendo que depois de 48 anos, e haver cumprido com todas as minhas obrigações e missões sem nunca faltar, que eu não aceitava esse sistema de ser interrogado por membros e digo, ao lado dessa sua carta tem uma outra carta em que o senhor tem a minha demissão e acabou, eu saí. Então, depois de 48 anos, ouvir isso e ter isso, e ter eleito esse filho daquilo é duro, sabe por quê? Nasci aqui.

As dificuldades encontradas por Havelange à frente da FIFA foram constantemente justificadas pelo fato de ser um brasileiro diante de uma estrutura europeia. Um de seus grandes rivais em busca do poder, o inglês Rous, ilustra de forma simbólica esse duelo entre a América do Sul e a Europa. No entanto, Havelange desconsidera que possuía uma série de requisitos para estar ali, desde o domínio de varias línguas até a experiência acumulada na presidência de várias instituições esportivas brasileiras e de empresas particulares. O fato é que a reclamação de Havelange traz à tona o controle exercido pela Europa no esporte mundial, seja dentro do COI ou da FIFA. E que sem a rede de relações estabelecida pelo “circuito-Havelange” (ROCHA, 2013b) não teria conseguido chegar e se manter no poder. Devido ao grande número de europeus presentes nas duas entidades, o resultado é a presença de uma forma de pensar parecida que faz e fez com que as duas entidades, COI e FIFA, estejam constituídas dentro dos mesmos princípios. Nesse sentido, sob o ponto de vista financeiro, tanto os Jogos Olímpicos quanto a Copa do Mundo estão estruturados dentro de um mesmo discurso e de uma mesma lógica: a possibilidade de gerar negócios diretos e indiretos (RUBIO, 2010). A referência a uma presença majoritariamente europeia não significa que sempre existiu unidade e consenso entre os membros desse continente, mas enquanto grupo eles possuíam mais poder, isto é, maior número de votos que os demais. Essa condição circular das decisões refere-se aos interesses da maioria, por exemplo, quando da escolha das sedes. 178

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Nesse jogo de poder a troca de votos concede o direito de sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo, os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo de futebol. Na FIFA a distribuição de seus membros apresenta-se, atualmente, de modo mais homogêneo em comparação à distribuição do COI. Embora a Europa ainda tenha a maioria, o aumento dos membros da Ásia revela o funcionamento da estrutura, afinal, as próximas sedes do evento serão Rússia (2018) e Catar (2022). O aumento do número de membros provavelmente foi conquistado por meio de apoios aos países que sediaram a Copa do Mundo nas últimas décadas. Esses vínculos entre os membros e a quantidade de votos são explicitados nas palavras de Havelange: Agora foi decidida a Copa do Mundo na Rússia pra 2018 e eu recebo, um dia, uma carta do Putin e outra do Medvedev, que é o presidente, duas cartas lindas em russo, já traduzidas em francês, eu as tenho aqui, me pedindo se eu podia fazer alguma coisa. E eu respondi a eles que não tinha condições, porque já não votava, mas não faltaria a eles, pela estima e o respeito, para dar uma palavra ao presidente. Telefonei pro Blatter, eu disse: olha eu recebi assim, assim e eu gostaria que tu pensasse. Eu fui e disse a ele: não esqueço que eu fiquei 24 anos e tu estiveste ao meu lado durante 18 anos. Ele disse: “é verdade”. E os mais leais na minha administração foram a União Soviética e todos os países satélites, nunca me faltaram!

Havelange revela a lógica estabelecida nesse jogo de poder. A condição essencial da qual ele fala é a gratidão que se consolida quando existe retribuição ao apoio recebido por algum país. Rocha (2013b, p. 86) denominou de “circuito-Havelange” essa estrutura na qual Havelange estava inserido, a qual possuía uma grande “cadeia de ligações por meio de intensa distribuição e troca de dádivas” que iam além de meros presentes e se estabeleciam por meio de “festas, gentilezas, recepções, trocas jocosas, tributos, até mesmo fofocas [...]”. Também fazia parte dessa dinâmica a distribuição de ingressos, o envio de cartões natalinos e o conhecimento dos nomes das pessoas com quem se convivia. Portanto, a expressão “nunca me faltaram” evidencia que sempre soube por onde articular as ações para obter apoio no comando da FIFA e como tudo estava vinculado à troca de dádivas, o que o colocava numa complexa rede de relações. Essa circulação de ações em torno do poder, que colocou regiões periféricas como centro das decisões, revela o que Foucault (2005, p. 51) denominou de teoria da dominação. Segundo ele: 179

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[...] em vez de partir do sujeito (ou mesmo dos sujeitos) e desses elementos que seriam preliminares à relação e que poderíamos localizar, se trataria da própria relação de poder, da relação de dominação no que ela tem de factual, de efetivo, e de ver como é essa própria relação que determina os elementos sobre os quais ela incide. Portanto, não perguntar aos sujeitos como, por quê, em nome de que direito eles podem aceitar deixar-se sujeitar, mas mostrar como são as relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos. [...] mostrar como os diferentes operadores de dominação se apoiam uns nos outros, remetem uns aos outros, em certo número de casos se negam ou tendem a anular-se.

A ideia colocada por Foucault é fundamental para entender como se estabeleceram as relações entre os membros das entidades para definir o voto de cada um. Nesse caso, sujeitar-se a uma condição de dominação revelou ser uma estratégia para, ao longo dos anos, conseguir ampliar o número de membros de seu país. Ou seja, essa subordinação em aceitar a condição de dominação funcionou como uma dinâmica de todo o sistema da entidade, pois somente por meio dela é que os membros dos países periféricos poderiam conquistar alguma posição de poder dentro da estrutura. Em troca do apoio por meio do voto a favor das potências, os países periféricos do cenário esportivo tiveram a promessa de que em algum momento teriam mais representantes e com isso o direito de sediar os grandes eventos esportivos. Como a estrutura está apoiada sob os mesmos alicerces, e seus membros, independentemente do local de origem, são sustentados por essa estrutura, pode-se prever quais são as escolhas quando as votações são realizadas. Nesse sentido, Havelange ilustra a escolha do presidente do COI para explicar como se constituem os apoios nesse jogo de poder: A eleição do Samaranch tinha mais quatro candidatos, tinha um canadense e mais dois ou três da Europa. E o Samaranch tinha vindo aqui e eu me dava com ele, desde a Copa do Mundo na Espanha, enfim, essas coisas. E eu tinha dito a ele que ficava com ele, em 1980, e antes de se realizar a eleição eu fiz uma carta a ele dizendo que ele ia ter tantos votos, 54 votos, e ele precisava de 53 pra passar na primeira. Mandei a carta e fiquei esperando a eleição, veio a eleição, ele teve não os 54 que precisava, dava 53, ele teve 55 e foi eleito, em 1980. E ele deixou em 2001, em Moscou, quando entrou o Rogge. O Rogge se apresenta a ele e mais quatro pessoas. E todos quiseram me ver, eu era presidente da FIFA e era o mais 180

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antigo, e aí não o mais velho, o mais antigo. E aí, eu os recebi cada um de Leipzig e no final eu disse: “Samaranch eu fico com você”. No dia da eleição, em 1981, de novo em Moscou, eu fiz uma carta a ele, dizendo que ele seria eleito no segundo turno com 54 votos. Ele foi eleito no segundo turno com 54 votos. E ele tem essa carta em mãos.

Nessa estrutura do COI, os votos são realizados pelos membros da entidade. Embora atualmente existam membros de todos os continentes, ao longo da história olímpica nunca houve uma igualdade numérica entre os membros de cada país ou continente. Essa desigualdade gera uma concentração de poder entre os membros com maior número de representantes, e essa condição faz com que várias alianças sejam estabelecidas a fim de obter mais votos para um determinado representante. Sob essa perspectiva das alianças, faço uma analogia da estrutura da FIFA (que pode ser estendida para entender o COI) com um brinquedo chamado popularmente de cubo mágico, também conhecido por cubo de Rubik. Trata-se de um cubo (cada face é formada por nove pequenos quadrados) com seis faces de diferentes cores (amarelo, azul, branco, laranja, vermelho e verde). O objetivo é que, ao mesmo tempo, cada face possua apenas uma cor. Nessa analogia com a FIFA, podemos caracterizar os cinco continentes com uma cor e a restante representaria a FIFA. Como o objetivo é fazer com que cada face tenha apenas uma cor, considero as ações de movimentar os pequenos quadrados como representativas das relações internas e externas de cada continente. Ao mover uma peça, altera-se diretamente a configuração da face movimentada – no caso, um continente –, o que pode afetar ao outra face, portanto, os outros continentes. As ações nunca são isoladas, pelo simples fato de as peças (continentes) pertencerem a uma mesma estrutura (FIFA). Os movimentos das peças, fazendo com que as cores se misturem, representam as articulações dos membros do FIFA em busca de apoio para determinadas candidaturas. A definição da escolha acontece quando cada uma das faces apresenta apenas a sua cor. Estabelecida a ordem das cores, o brinquedo está pronto para ser recomeçado e, nesse caso, representa o início de uma nova disputa para sediar a Copa do Mundo. Por meio dessa analogia com o cubo mágico é possível entender que João Havelange realmente sabia o número de votos que cada candidato receberia. Sendo membro do COI, ele 181

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tinha acesso ao fluxo de poder que se estabelecia a cada disputa para sediar os Jogos, além de saber o número de membros que poderiam votar e quem eles tradicionalmente apoiariam ao longo dos anos. Tendo em vista a existência de um pequeno número de membros votantes, essas disputas, estabelecidas sob uma perspectiva democrática, faz com que uma série de alianças e trocas de favores (ora se apoia alguma candidatura e ora se é apoiado) se estabeleça entre os membros. Há algum tempo existe uma disputa em torno do COI e da FIFA para realizar a maior competição esportiva de todos os tempos. A cada nova edição, seja dos Jogos Olímpicos ou da Copa do Mundo de futebol, espera-se um crescimento da audiência e, consequentemente, do número dos patrocinadores. Foi possível perceber que as duas entidades são muito mais próximas do que se imaginava. Membros da FIFA integram o quadro do COI, como no caso do presidente da FIFA, Joseph Blatter, membro do COI desde 1999, do qual João Havelange também foi membro durante muito tempo (1963-2011).

Considerações finais De atleta a dirigente, Havelange consolidou sua presença no campo esportivo brasileiro e mundial. No primeiro capítulo de sua biografia autorizada, inúmeros momentos históricos são listados e de alguma forma relacionados com a trajetória de Havelange (PEREIRA e VIEIRA, 2011). Desse modo, o texto sugere a onipresença de Havelange no cenário mundial. Em outras palavras, funciona como forma de sugerir que ele foi uma pessoa muito influente, com muito poder e que estabeleceu uma extensa rede de relações. Essa onipresença também foi indicada por outros dirigentes quando denominaram Havelange (ROCHA, 2013a) como o “cartola dos cartolas” (WISNIK, 2008). Ao longo de todo esse período em que foi dirigente esportivo, Havelange acumulou poder, circulou junto a vários presidentes da ditadura militar brasileira e visitou praticamente todos os países membros da FIFA para se estabelecer no poder por 24 anos. No Brasil, mesmo quando assumiu a presidência da FIFA quis continuar na presidência da CBD. Como não conseguiu, viu o poder da entidade mudar de mãos. Nunca pretendeu se manter longe do poder, porquanto, muito tempo depois de ter perdido o controle da CBD (posteriormente CBF), conseguiu eleger seu então genro, Ricardo Teixeira (1989-2012). 182

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O maior passo de Havelange foi vencer a eleição para a presidência da FIFA. A ação de Havelange, por ser calculada e por entender como estava estruturado o poder (FOUCAULT, 2005), permitia-lhe projetar sua vitória na disputa pela presidência da FIFA33. Isso era possível porque ele tinha clareza de três elementos essenciais do mundo esportivo: o que, como e por que assumir determinados posicionamentos no mundo do futebol. Para concretizar esses três elementos, Havelange sabia que precisaria conhecer de perto e de dentro os seus possíveis eleitores, e para isso sabia que se recebesse “[...] o voto de todos os países onde estive, terei mais do que o necessário para alcançar a vitória, ainda na primeira votação, obtendo mais de dois terços dos votos34. Portanto, Havelange apostou na política certa quando investiu na criação de uma rede de relações sustentada pela “troca de dádivas” (ROCHA, 2013b). Sua vitória evidenciou que a convicção de Rous em se manter no poder fez com que investisse em uma política infrutífera, pois sem oferecer “dádivas” aos membros se isolou no poder e não teve o apoio necessário para vencer a disputa. Afinal, a ação de João Havelange ao assumir a FIFA estava centrada em dois aspectos: desenvolvimento do futebol entre os países membros (100 países naquele momento) e organização de uma Copa do Mundo para juniores (sub-19)35, patrocinada pela Coca-Cola36. Em sua entrevista, ressaltou o “presente que deu ao futebol” transformando-o em um verdadeiro negócio que movimenta bilhões de dólares e que gera uma grande quantidade de empregos. No entanto, não destacou que a atual estrutura do esporte brasileiro também é fruto de sua gestão à frente da CBD, da centralização do poder que construiu em sua gestão e da maior atenção dada ao futebol em relação aos demais esportes. Sua saída do COI (2011) foi justificada como sendo perseguição pelo fato de ser brasileiro. No entanto, mesmo antes

“Havelange faz contas: já venceu”. O Estado de S. Paulo, 9 de dezembro de 1973, p. 92. No mesmo jornal, porém do dia 19 de abril de 1974, na entrevista feita com Havelange (“Buscar os votos, tática de Havelange”), são indicados 141 países filiados, mas dois deles estavam suspensos (África do Sul e Rodésia). 34 “Buscar os votos, tática de Havelange”. O Estado de S. Paulo, 19 de abril de 1974, p. 21. 35 Olympic Review, n. 113, março de 1977, p. 165. “Two initiatives by the Fédération lnternationale de Football Association by João Havelange, President of the FIFA and IOC member in Brazil”. 36 Olympic Review, n. 130-131, agosto – setembro de 1978, p. 560. Fédération Internationale de Football Association (FIFA). 33

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da entrevista realizada, Havelange e Ricardo Teixeira foram acusados de receber suborno. Em 2013, renunciou ao cargo de presidente honorário da FIFA para não sofrer punições em meio às acusações de corrupção. Em sua narrativa, Havelange ressaltou as dificuldades encontradas pelo fato de ser brasileiro e, assim, explicou como perseguição, especialmente do jornalista inglês Andrew Jennings, as acusações que vinha recebendo sobre corrupção. O fato é que, ao narrar a sua história de vida, Havelange ressaltou o que o valoriza como administrador esportivo, seus feitos em prol do esporte, deixando de lado os acordos ilegais que fez para se consolidar no poder. Desse modo, ao traçar uma trajetória de sucesso, tenta consolidar sua imagem como alguém que promoveu ações favoráveis ao esporte de modo geral, e ao futebol de modo específico, consolidando-se como uma figura onipresente no mundo esportivo.

Referências

bibliográficas

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entre

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e

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Memórias

cruzadas: histórias que reescrevem o esporte olímpico brasileiro

Isaias Sodré da Nóbrega Junior; Júlia Frias Amato; Roberta Cardoso Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) “Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes”. (BENJAMIN, 1985, p. 203)

As pesquisas sobre eventos históricos atualmente são facilitadas pela possibilidade de se encontrar informações sobre qualquer assunto via internet. No entanto, a relação entre a divulgação da informação e a confiabilidade dos dados é inversamente proporcional, ou seja, quanto mais amplo o campo para publicar, menor a preocupação em checar e esclarecer os fatos. Além da falta de credibilidade, a quantidade de notícias irrelevantes relacionadas a determinados episódios também aumentou e dificilmente são encontradas histórias que contém novas versões para os acontecimentos. As narrativas de outros personagens imprimem novo significado a um fato contado a partir de uma perspectiva já relatada. Com a intenção de buscar histórias que contassem a experiência de representar o Brasil em edições de Jogos Olímpicos, partimos em busca daqueles que são os personagens principais dos Jogos Olímpicos e tornaram-se o grande legado esportivo: os atletas (RUBIO, 2013). “Podemos notar que é crescente o reconhecimento dos atletas como principal legado, se tornando importante ferramenta para a propagação do ideal olímpico” (RUBIO, 2007). O projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros” tem como objetivo dar voz aos personagens principais do esporte olímpico nacional que, ao contarem suas trajetórias, descrevem, através de suas próprias narrativas, a história do esporte olímpico brasileiro. Ao longo dos anos, o Brasil foi representado em 22 edições de Jogos Olímpicos por 1.800 atletas.

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Seria ideal se tivéssemos a oportunidade de ouvir todos eles, porém, o tempo é um adversário cruel nessa tarefa. Ao buscarmos informações específicas sobre os jogadores brasileiros de futebol que disputaram os Jogos Olímpicos de Helsinque em 1952, encontramos fontes que, ao longo da pesquisa, mostraram-se equivocadas e conflitantes, muitas vezes devido à despreocupação em esclarecer histórias semelhantes. Existe uma grande distância temporal entre o fato e a pesquisa, e nesse período muitas transformações ocorreram no mundo. Com o avanço da internet e a quase completa extinção das editorias específicas nas redações de jornais e revistas, a informação veiculada é cada vez mais rápida e acessível, porém, muitas vezes pouco confiável. A busca pela exclusividade dos fatos e a urgência em se divulgar uma notícia em primeira mão faz o jornalismo atual cometer imprecisões e tornar-se refém de falsas entrevistas, histórias inventadas e notícias incompletas. Com isso, a atualização de uma matéria postada na rede ocorre de minuto em minuto. O desencontro de informações faz com que as erratas estejam muito mais presentes nas edições. Na internet, é comum encontrarmos diversas fontes de informação replicando a mesma versão de um fato, sem a preocupação de checar se o relato aconteceu como está descrito. Com isso, é recorrente que a busca por alguma informação obtenha resultados diversos, todos eles com o mesmo conteúdo. Ironicamente, o mesmo meio que descrevemos como um fator que prejudica a pesquisa acadêmica com a publicação de notícias imprecisas é o mesmo que facilita a busca por informações que esclarecem e “encurtam” a distância temporal. Para exemplificar essa situação, utilizamos como exemplo o que encontramos no acervo digitalizado e de acesso livre disponibilizado pela Fundação Biblioteca Nacional. Trata-se da Hemeroteca Digital Brasileira, que viabiliza a visualização de jornais, periódicos e revistas antigas, datadas desde o século XVII. A qualidade desse material foi vital para localizarmos informações sobre personagens que viveram suas experiências olímpicas no passado e os quais não tivemos a oportunidade de entrevistar. Foi a partir desse acervo que encontramos informações de resultados, clubes que os atletas representavam, notícias do embarque às vésperas das competições, relatos de jornalistas enviados às cidades-sede dos Jogos Olímpicos dos quais o Brasil participou e até mesmo “minibiografias” daqueles que competiram pelo país em uma edição olímpica. 188

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Além das fontes de informações básicas de internet, existem outras que apresentam a mesma facilidade de acesso, porem, com conteúdo único e cuidadoso. Na maioria dos casos, são blogs de pessoas que pesquisam temas específicos, escrevem seus textos baseados em anos de vivência e, em geral, são movidas pela paixão por aquele assunto. Trata-se de estudiosos informais de determinadas áreas, cujo conhecimento também pode ser importante para pesquisas acadêmicas. Através da pesquisa em documentos oficiais do COB e do COI, listamos os nomes dos jogadores de futebol que representaram o Brasil nos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, e buscamos seus dados demográficos para incluí-los em nosso banco de dados. São atletas nascidos, em sua maioria, na década de 1930, e que após a passagem pela seleção olímpica não tiveram grande destaque em suas carreiras. Em um desses documentos oficiais constava o seguinte registro como atleta participante da delegação brasileira de futebol: “Paulo Almeida (Paulinho de Almeida)”. A busca de informações sobre a carreira do atleta citado nos documentos oficiais nos levou ao blog “Tardes de Pacaembu – O futebol sem as fronteiras do tempo”. Nele havia uma descrição detalhada da carreira de um certo Paulinho, nascido na década de 1930. Segue abaixo um resumo do texto publicado no blog: Paulo Almeida Ribeiro atuava como lateral-direito e teve passagem marcante na história de mais de cem anos do Clube de Regatas Vasco da Gama. Nascido em 1932, em Porto Alegre, e revelado pelo Internacional, assinou seu primeiro contrato profissional com o Vasco em 1951. “Paulinho de Almeida”, como era conhecido no futebol, é descrito como um jogador de grande capacidade técnica, forte na marcação e que apoiava muito o ataque, uma característica incomum para um defensor na época. Além de ter atuado por muitos anos e figurar na seleção cruzmaltina de todos os tempos, Paulinho de Almeida teve sucesso também pela seleção brasileira, sendo convocado para a Copa do Mundo de 1954 na Suíça. Ao observar esse currículo após todos esses anos, e distante das questões que envolviam o esporte olímpico na época, alguns detalhes escaparam das fontes usuais da internet, que informam ter esse jogador participado dos Jogos Olímpicos de Helsinque, e esse engano acabou sendo replicado. Durante muito tempo as equipes olímpicas de futebol eram representadas por jogadores amadores, e o futebol era um dos esportes considerados profissionais no Brasil. 189

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A descrição da carreira do lateral Paulinho de Almeida continha um dado incompatível com a informação de que o atleta teria participado dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952. Segundo o escritor do blog, Paulinho de Almeida assinou um contrato profissional com o Vasco da Gama em 1951, fato que o tornava um atleta profissional e automaticamente o impedia de disputar os Jogos Olímpicos de Helsinque no ano seguinte, competição que exigia dos atletas a condição de amador. Essa foi a indicação e o motivo da busca pela informação precisa. Da paixão desses aficionados pelo esporte surgem as lacunas que contradizem uma informação inicial, e assim foi no caso do atleta olímpico Paulinho. Se o Paulinho de Almeida, do Vasco, não tinha condições de representar o Brasil nos Jogos Olímpicos, quem era o jogador presente nos documentos oficiais do COI e do COB? Aqui cabe uma informação relevante: em um período de doze anos, a seleção brasileira principal conquistou três Copas do Mundo (1958, 1962 e 1970) e foi representada por 51 diferentes jogadores. No período de 1952 a 1972, o Brasil disputou cinco edições do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos (1952, 1960, 1964, 1968 e 1972), e dos 51 jogadores campeões mundiais, apenas três representaram o Brasil em Jogos Olímpicos. Esclarecido o motivo do engano replicado pelos meios de informação, é importante contextualizar a discussão que havia na época em relação ao termo amadorismo. Em termos de comparação, ser atleta profissional era o mesmo que ser imoral, tal a forma como era encarado o fato de se receber um salário em troca de representar um clube ou seleção em uma competição esportiva. “O secretário geral do Comitê Executivo Schricker, reforçava que o amador era aquele que sempre se envolveu com o esporte em busca do prazer e de benefícios físicos e morais sem que existisse algum ganho material” (GIGLIO, 2013).

Amadorismo x profissionalismo Nas primeiras décadas dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, o esporte era praticado por membros da aristocracia dos países competidores e encarado como atividade amadora, porém, esse termo era interpretado de diferentes formas. A entrada do futebol como modalidade inscrita no programa oficial dos Jogos Olímpicos se dá em Londres, em 1908, apesar de ter sido apresentada como modalidade exibição em Paris, em 1900. 190

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Nessa época, já havia sido criada a Football Association (FA) na Inglaterra e o esporte crescia em popularidade em vários países do mundo. Embora o futebol já fosse praticado por profissionais e os clubes crescessem cada vez mais, principalmente na Europa, na competição olímpica ficou decidido que participariam apenas jogadores amadores. A dificuldade em definir o termo amador se estendeu durante os ciclos olímpicos seguintes, e a cada edição dos Jogos havia uma iminente ameaça de se retirar o futebol do programa olímpico. De acordo com Giglio (2013), “As definições do termo amador continuaram a aparecer. Porém, pelo fato das Associações Esportivas dos diversos países adotarem diferentes leis no sentido de definir o conceito, tornou-se difícil se chegar a um consenso”. Em 1912, nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, iniciou-se um movimento pela permanência do futebol no programa dos Jogos Olímpicos, fato que ocorreu, principalmente, em virtude da popularidade que o futebol conquistou, proporcionando a oportunidade de competir também aos jogadores que não faziam parte da aristocracia. Afinal, não se pode esquecer que foram sobretudo os operários das indústrias os responsáveis pela popularização do futebol. Após o cancelamento da edição olímpica de 1916, ocasionado pela Primeira Guerra Mundial, cada vez mais o movimento olímpico foi influenciado pelo aspecto político, e é na edição de 1920 que acontece o primeiro boicote da história dos Jogos Olímpicos. “A relação entre o esporte e a política começa a ficar mais evidente quando os Jogos voltam a ser disputados no período após a Guerra, com a recusa da Bélgica, país sede de 1920, em convidar a Alemanha” (GIGLIO, 2013). Outros países se recusaram a participar dos Jogos de Antuérpia, em virtude da exclusão dos alemães da competição. Segundo Rubio (2010), “Por causa disso Áustria, Hungria, Bulgária, Polônia e Rússia, países também atingidos pelo conflito, recusaram-se a participar do evento, marcando o primeiro boicote da história dos Jogos Olímpicos”. A discussão sobre o tema amadorismo continua nos anos seguintes. Nos congressos e reuniões realizados após os Jogos Olímpicos de 1928, as entidades que controlavam os Jogos (COI) e o futebol (FIFA), fundada em 1904, não entraram em acordo. Ficou decidido, então, que na edição de 1932, em Los Angeles, o futebol seria excluído do programa olímpico. Em resposta 191

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à exclusão dos Jogos Olímpicos, em 1930 foi disputada a primeira edição da Copa do Mundo de futebol organizada pela FIFA. Apesar de ter criado o seu próprio torneio mundial, a FIFA ainda mantinha grande interesse em sustentar o futebol como modalidade olímpica. As discussões sobre o amadorismo foram retomadas e, após novas resoluções estabelecidas pelas partes interessadas, o futebol retornou aos Jogos Olímpicos em Berlim, em 1936. A edição olímpica de Berlim é considerada como a responsável pela modificação do panorama dos Jogos Olímpicos no mundo, em virtude da utilização da competição esportiva como propaganda de um regime político. Após a sua realização, o tema amadorismo volta a ser discutido. Com os efeitos da Segunda Guerra Mundial, as edições olímpicas de 1940 e 1944 foram canceladas. Segundo Rubio (2010), antes da Segunda Guerra Mundial os Jogos Olímpicos se firmaram como um grande evento mundial e o pós-guerra colocou o movimento olímpico dividido pela Guerra Fria em dois blocos: os capitalistas e os socialistas. Nesse momento, o debate sobre o tema amadorismo começa a ganhar novos parâmetros, que seguem em pauta até a disputa dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948. Com a disputa de capitalistas versus socialistas, as indefinições sobre a competição justa nas atividades esportivas aumentaram, pois os países do bloco capitalista alegavam que a preparação de seus atletas era inferior em relação à dos atletas do bloco socialista. Nos países socialistas, os atletas eram tratados como funcionários do Estado e se dedicavam às atividades atléticas em tempo integral. Essa vantagem era mais evidente no futebol, pois as equipes dos países ocidentais eram representadas por jogadores jovens e que ainda não haviam se profissionalizado, aumentando, assim, a diferença técnica dentro de campo, pois o futebol profissional havia tomado conta dos clubes nesses países e os jogadores amadores eram muito poucos. A FIFA criticava a organização do COI, deixando claro que não abria mão da participação do futebol nos Jogos Olímpicos, exaltando a popularidade da modalidade no mundo. O COI, por sua vez, discutia internamente as demandas de amadorismo e profissionalismo, que eram cada vez mais questionadas em função da vantagem que as equipes do bloco socialista levavam em relação aos adversários. Alguns países, como a Argentina, diziam que não participariam do torneio olímpico de futebol em virtude do baixo nível técnico de seus jogadores amadores. No COI havia a intenção de buscar uma aproximação entre os países 192

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do Ocidente e do Oriente, porém, também era defendida a ideia de exclusão do futebol em virtude da questão do amadorismo. “A aristocracia presente no COI esteve dividida entra a retórica da congregação e a efetiva antipatia em relação ao comunismo” (RUBIO, 2010). Ou seja, o COI vivia um dilema entre o ideal olímpico de Pierre de Coubertin e os movimentos políticos. É nesse contexto histórico que a seleção olímpica brasileira de futebol foi formada para participar pela primeira vez de uma edição do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952. A equipe era constituída por jovens jogadores, em início de carreira e sem contrato profissional com os clubes em que atuavam.

Desatando os nós Enquanto fazíamos a busca, Paulinho não tinha rosto, não era um jogador dos mais populares, nem havia matérias exclusivas com ele em jornais e revistas da época. Infelizmente, o fator tempo foi limitante mais uma vez, quando soubemos da notícia, em um portal de internet de Campos dos Goytacazes, de que o jogador Paulo Almeida, que havia atuado no Flamengo no início dos anos 1950, havia falecido em novembro de 2013. Conforme Bosi (2003), “Quando se trata da história recente, feliz o pesquisador que se pode amparar em testemunhos vivos e reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época”. Uma estratégia de que dispúnhamos era procurar informações por meio dos clubes nos quais os jogadores falecidos haviam jogado. Entramos em contato com o departamento histórico do Clube de Regatas do Flamengo e conseguimos a informação, naquele momento surpreendente, sobre a existência de um torcedor rubro-negro que manteve contato com Paulinho nos seus últimos anos de vida e é reconhecido como seu maior fã. Até os dias atuais, em todas as partidas do Flamengo o torcedor leva uma faixa com o nome de seu ídolo e a seguinte frase atribuída a Paulinho: “O Flamengo foi o sonho da minha adolescência. É amor pra vida inteira”. Esse torcedor é Fabiano Moço, que reside em Campos dos Goytacazes, e através das redes sociais conseguimos nos aproximar e conhecer um pouco mais sobre a trajetória de Paulinho. A partir desse contato, chegamos ao jornalista Péris Ribeiro, conterrâneo e conhecedor da história de Paulinho, o qual inclusive publicou alguns textos que contavam o caminho percorrido pelo atleta. Da paixão de um amante do 193

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futebol antigo à dedicação de um jornalista e de um amigo do exjogador, fomos revelando a seguinte história: Paulo de Almeida era atacante e atuou por algumas temporadas pelo Flamengo, depois se transferiu para o Palmeiras e rodou por países da América do Sul. Mais conhecido no meio do futebol como Paulinho, mas chamado por alguns jornais da época como “Paulinho Almeida” (sem o “de”), nasceu em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, em 1933, e é um quase homônimo do primeiro e mais famoso Paulinho.

Dois jogadores de futebol, nascidos em datas próximas, que atuaram por equipes do Rio de Janeiro e tiveram passagens pela seleção brasileira. Essa coincidência de datas, nomes e trajetórias criou certa confusão. Provavelmente, ao buscarem os relatórios oficiais dos jogos, alguns autores de livros e sites, que apenas informam dados demográficos dos atletas, encontraram os nomes Paulinho, Paulinho Almeida e até mesmo Paulinho de Almeida, e associaram-no ao primeiro e mais famoso jogador, defensor histórico do Vasco e que disputou uma Copa do Mundo.

Contextos e versões Se a História é escrita através das versões contadas por aqueles que dominaram ou foram vitoriosos em determinadas situações, isso talvez explique a importância de se fazer uma busca minuciosa e consultar fontes distintas quando se tem a intenção de escrever sobre um fato histórico e de onde podem surgir várias versões. Para Rubio (2010), “Não há dúvida de que os eventos históricos são ditados pelas ações humanas, que imprimem suas marcas diante da projeção dada àquele que narra o fato ou a ideia que o anima”. A possibilidade de se produzirem diferentes versões de uma mesma história e a questão da imagem criada pelos vencedores demonstram uma relação curiosa, como por exemplo, com o grupo de descendentes japoneses Shindo Renmei, descrito no livro Corações Sujos, do escritor brasileiro Fernando Morais. Durante o período pós-Segunda Guerra, em 1945, alguns descendentes japoneses que viviam no Brasil fundaram essa associação e passaram a perseguir os imigrantes japoneses que aceitavam o fato de que o Japão havia perdido a guerra. Esse grupo atuou, principalmente, no interior dos estados de São Paulo e do Paraná “caçando os conterrâneos traidores”, que foram denominados 194

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“corações sujos”. Seus integrantes acreditavam que as notícias veiculadas no Brasil sobre o fato de o Japão estar sendo derrotado eram falsas, fruto de conspiração dos países inimigos na batalha. Passaram, assim, a divulgar avisos em jornais e rádios deturpando os fatos para convencer os imigrantes japoneses no Brasil de que o Japão, pelo contrário, estava vencendo a guerra. Utilizamos esse exemplo para dizer que a perspectiva de um fato tem relação com a oportunidade de se contar uma história. Para cada episódio existem diferentes versões, e todos os que tiverem oportunidade contarão o caso de uma determinada forma. Portanto, a credibilidade de uma fonte é importante quando se deseja extrair uma informação para contar uma história que não pode ser narrada pelo próprio personagem. O sociólogo francês Marc Bloch (2002) define a História como a “ciência dos homens no tempo”, pensando o passado como uma “estrutura em progresso”, pois não se pode saber tudo a partir de um documento, por mais completo que seja. As observações feitas com base em documentos oficiais levou-o a pensar nas diferentes versões descritas sobre um mesmo fato que, se analisadas em conjunto, poderiam fornecer mais informações ao leitor. Para o autor, quando se busca apurar a verdade de um fato, nada deve ser descartado, sequer um documento falso. Isso porque, inclusive a falsificação pode conter indícios que levem à veracidade das informações nele veiculadas. Ainda sob a ótica de Bloch, é de grande importância contextualizar o período histórico ao se analisar um documento, mas o autor enfatiza que mesmo os mais claros e mais complacentes documentos não falam senão quando sabemos interrogá-los. Os vestígios que nele aparecem funcionam como possibilidades de análise, e se o pesquisador estiver atento a esses elementos poderá caminhar a partir das pistas fornecidas pelo próprio documento. Em uma das entrevistas do projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”, nos deparamos com uma situação inusitada. Com o intuito de entrevistar determinado atleta para a pesquisa, realizamos buscas em acervos de jornais. Localizamos, então, o clube ao qual ele era filiado, procuramos pelo departamento da modalidade e conseguimos contatá-lo para marcar um encontro. Na entrevista o atleta nos contou sua trajetória no esporte e, ao narrar sua experiência olímpica, emocionou-se ao dar detalhes precisos e peculiares, como descrições da vila olímpica, refeitório dos atletas e sobre a própria competição, porém alguns vestígios 195

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foram deixados. Nada fazia supor que ele estivesse se passando pelo atleta olímpico. A constatação do equívoco surgiu apenas quando o entrevistado assinou o termo de consentimento da pesquisa e percebemos que seu sobrenome não era o mesmo do atleta que buscávamos. Ao refazer as pesquisas em acervos de jornais e sites sobre a modalidade, percebemos que seu nome não condizia com registros sobre a competição e por isso passamos a questionar seu depoimento. Apesar de ambos os atletas terem o mesmo nome e defendido o mesmo clube, os sobrenomes eram distintos. Após rever a entrevista concedida foi possível observar que o atleta se apropriou de outros testemunhos e, a partir disso, construiu sua identidade, afirmando-se como atleta olímpico. Segundo Bloch (2002), nossa memória pode pegar emprestado testemunhos de outros que sejam mais exatos, fazendo-nos corrigir e rearranjar as nossas próprias lembranças, estas que são ligadas a questões afetivas e podem ser reconstruídas ou simuladas através dessas vivências. De acordo com Bruner (1986), “A estratégica tarefa de contar – seja a história contada para consumo próprio ou de outrem, e as duas coisas sempre acontecem – é tornar a narrativa crível. Criar essa narrativa não significa mentir deliberadamente ou, como devem fazer os escritores de ficção, usar um fragmento de memória para a elaboração de uma história; ao agirmos assim, buscamos uma verossimilhança que satisfará a nós e a nossos ouvintes”. Apesar do registro da narrativa do atleta não-olímpico, ainda não tivemos a oportunidade de ouvir a história daquele que competiu, de fato, nos Jogos Olímpicos. Continuamos a pesquisar sobre seu paradeiro nos meios digitais, nos clubes e na confederação, mas por enquanto sem êxito.

Reconstruindo a memória Os mais de sessenta anos que separam a participação nacional nos Jogos Olímpicos de Helsinque e nossa pesquisa acabaram sendo determinantes para que não tivéssemos acesso a essa narrativa, que poderia ser esclarecedora e impediria a ocorrência de erros. Afinal, nada é mais autêntico que a narração do próprio personagem. Conforme aponta Bosi (2003), “Mais que o documento unilinear, a narrativa mostra a complexidade do acontecimento. É a via privilegiada para chegar até o ponto de articulação da História com a vida quotidiana”. 196

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Os acontecimentos históricos são percebidos pelos indivíduos de maneira subjetiva, e para isso é preciso sempre buscar nos testemunhos de outros uma melhor compreensão dos fatos. Para o pesquisador, não basta conhecer os fatos ocorridos; é necessário compreender seu significado dentro dos contextos históricos em que foram concebidos. Sendo assim, a recorrência às testemunhas é valiosa, pois o documento, tal como qualquer testemunho, pode apresentar erros, incoerências ou omissões. “O vocabulário dos documentos não é, a seu modo, nada mais que um testemunho precioso, sem dúvida, entre todos; mas como todos os testemunhos, imperfeito; portanto, sujeito à crítica” (BLOCH, 2002). É importante ressaltar que essa busca parte do zero, tamanha a falta de informações pessoais a respeito do futebol olímpico brasileiro. A participação do Brasil no torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, foi a primeira da História. Nessa época, os jogadores que representaram a seleção brasileira eram jovens, com média de idade de 19 anos. Poucos tiveram a oportunidade de seguir carreira no futebol profissional em grandes clubes de repercussão nacional, tendo em vista a concorrência que havia nas equipes. Além disso, os jogadores que se destacavam precocemente eram contratados pelas equipes profissionais e por isso não poderiam disputar a competição olímpica. Paulinho vestiu a camisa 8 e as cores do Flamengo, onde é reverenciado por torcedores até o presente. Defendendo o time carioca, sagrou-se campeão e foi artilheiro. A história de Paulinho não acaba, mesmo após seu falecimento. A memória coletiva e as referências dos grupos de que participou nos ajudaram a resgatar e evidenciar sua história. Paulo de Almeida (Paulinho Almeida) nasceu em 15 de setembro de 1933, em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, e começou a se destacar jogando pelo Goytacaz Futebol Clube. Dizem os jornais da época que atuava como ponta-direita e tinha grande habilidade. Logo foi chamado pelo Flamengo, onde começou a atuar aos 17 anos e já se destacou na categoria de aspirantes. Aos 18 anos participou do grupo que foi aos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, mas não jogou, sendo preterido por outro atacante, Milton Bororó, que mais tarde seria seu companheiro de clube. O fato de não ter atuado em nenhuma das três partidas da seleção nacional na competição 197

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o exclui de outras fontes de informação sobre os atletas que participaram de Jogos Olímpicos. O site “Sports Reference” é uma ferramenta utilizada para a busca de resultados obtidos por equipes e atletas. Nele existe uma seção que contabiliza a participação de atletas olímpicos com resultados das provas de que participaram, porém, aqueles que não entraram em campo, os chamados reservas, não estão relacionados no site. Nessa época, a regra oficial do futebol não permitia substituições durante as partidas. Por exemplo, caso algum atleta se machucasse, a equipe deveria continuar competindo com um jogador a menos. Por essa razão, dos 18 jogadores brasileiros que viajaram para a disputa dos Jogos Olímpicos de Helsinque, em 1952, apenas 11 constam na relação do “Sports Reference”. Após voltar da competição olímpica, Paulinho foi integrado à equipe principal do Flamengo e começou a ter oportunidades, embora o time fosse formado por jogadores mais experientes. Paulinho participou da campanha do Flamengo no tricampeonato estadual nos anos de 1953, 1954 e 1955. Essa equipe foi marcante na história do clube rubro-negro e é retratada pelo jornal O Globo e pela Revista Placar como “rolo compressor”. Paulinho foi o artilheiro do time na temporada, fazendo 23 gols em todo campeonato, inclusive marcando três vezes na goleada por 6x1 aplicada no clássico contra o Fluminense em dezembro de 1955. A edição do jornal O Globo de 19 de dezembro de 1955 elegeu Paulinho como um dos destaques da partida: “No ataque Paulinho e Dida foram as figuras principais, desbaratando a defesa adversária com a rapidez de movimentos e boa classe de jogo”. Suas atuações na temporada de 1955 o credenciaram à seleção brasileira principal e Paulinho participou da primeira excursão de amistosos pela Europa feita pela seleção, em 1956. Foram sete jogos no período de 8 de abril a 9 de maio de 1956. Paulinho entrou para a história da seleção brasileira ao marcar o primeiro gol pelo Brasil em uma partida no estádio de Wembley, na derrota sofrida por 4x2 contra a Inglaterra, como consta no livro Seleção Brasileira 1914-2006 (2006). Após essa série de amistosos, Paulinho deixou de ser convocado para a seleção brasileira principal e não participou da equipe que, em 1958, tornou-se campeã do mundo, com nomes consagrados como Gylmar, Djalma Santos, Didi e Nilton Santos. Paulinho permaneceu no Flamengo até 1957, onde marcou 60 gols em 127 jogos. Jogou, ainda, pelo Palmeiras e conquistou o Supercampeonato Paulista 198

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em 1959. No entanto, não conseguiu se firmar como titular, pois tinha como companheiro de equipe e posição o grande Julinho Botelho, jogador histórico do clube alviverde. Jogou também pelo River Plate em 1960, marcando 4 gols em 14 jogos; e no Estudiantes de La Plata na Argentina, em 1961, registrando 3 gols em 17 jogos. Jogou por equipes da Venezuela e do Equador, mas infelizmente não temos dados sobre os clubes em que atuou nesses países, nem por quais temporadas. Em conversas com Péris Ribeiro, o jornalista nos contou que, após encerrar sua carreira de atleta, Paulinho passou por dificuldades típicas de jogadores de futebol da época, e uma de suas últimas alegrias foi participar de um encontro com os tricampeões dos anos 1950 – promovido pelo Flamengo –, no qual pôde encontrar seus companheiros de clube, como Índio, Esquerdinha, Evaristo e outros. Seu aniversário de 80 anos foi também bastante comemorado em Atafona (município de São João da Barra, vizinho a Campos dos Goytacazes). O ponta-direita teve três filhas, era viúvo e veio a falecer em 09 de novembro de 2013, três meses após seu aniversário, de enfisema pulmonar. Ainda que nosso objetivo seja contar um pouco da trajetória de Paulinho e tantos outros personagens olímpicos que já se foram, os fatos, os números, os jogos e as estatísticas não substituem os sentimentos de cada indivíduo ao contar sua própria história e seus “causos”. O registro obtido de informações e documentos oficiais resulta apenas uma formalidade para não deixarmos à sombra aqueles que já foram esquecidos por tanto tempo. Assim como no caso de Paulinho, outros atletas olímpicos não tiveram seus depoimentos registrados, não nos permitindo conhecer a subjetividade, o olhar, a expressão que dá vida à pesquisa. Nesse caso específico, não pudemos ouvir do próprio personagem qual sua reação frente a sua ausência da seleção brasileira nos anos seguintes, visto que ele fez parte do grupo base que venceu a primeira Copa do Mundo pelo Brasil na Suécia. Não tivemos a oportunidade de ouvir suas impressões sobre a Vila Olímpica de Helsinque, lugar até hoje distante do imaginário de atletas e nãoatletas. Não soubemos quais suas sensações ao jogar no Maracanã lotado e marcar três gols em um “Fla-Flu”.

Considerações finais Conforme Halbwachs (2006), não há apenas uma memória individual, mas também uma memória do grupo, que existe 199

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para além do indivíduo, uma vez que o ponto de referência para recordar e localizar essas lembranças parte dos contextos sociais que servem como base para a reconstrução da memória. Ou seja, a memória individual é formada a partir de referências da memória coletiva dos grupos nos quais o indivíduo está inserido, sendo um ponto de vista que sempre se modifica conforme as relações mantidas entre o indivíduo e os diversos meios. O autor denomina esses grupos, ou suportes sociais, de “quadros sociais de memória”, e Casadei (2010) faz referência sobre a obra de Halbwachs quando cita: “As memórias de um indivíduo nunca são só suas, uma vez que nenhuma lembrança pode existir apartada da sociedade”. Buscando esclarecer e conhecer melhor a história do jogador, conseguimos – com o jornalista já mencionado – o contato de um sobrinho e afilhado, que leva o mesmo nome de seu tio olímpico. Mas após sucessivas tentativas frustradas, não foi possível ouvir o relato dos familiares sobre sua vida fora dos gramados ou detalhes sobre seu pós-carreira. Em sua obra O Narrador (1985), Benjamin destaca que, com o passar dos anos, as pessoas estão perdendo o contato comunicável, a capacidade de intercambiar experiências e a qualidade de escutar e entender o que alguém narra. Segundo o autor, “Ao longo do tempo, a experiência de narrar e contar histórias entrou em decadência e as trocas entre as pessoas estão deixando de ser comunicáveis”. Assim como ocorreu em algumas entrevistas feitas ao longo do projeto “Memórias Olímpicas por Atletas Olímpicos Brasileiros”, o primeiro contato, nesse caso com a família, foi recebido de forma desinteressada e houve certa resistência em abordar o assunto em relação à história de Paulinho. Podemos relacionar isso ao timing do participante, ou seja, o tempo próprio ou tempo pessoal que ele necessita para se sentir à vontade para compartilhar sua versão da história. Às vezes isso não ocorre ou até mesmo há recusa em participar da pesquisa por ausência de entendimento ou desinteresse. Como pesquisadores, é preciso respeitar o espaço pessoal de cada indivíduo e compreender a dor que talvez possa existir para certas pessoas e/ou famílias em rememorar o passado. O silêncio tem sua importância, podendo significar muitas questões. “Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um elemento linear, onde, ao nascer, o sujeito traça uma linha e por ela segue até chegar à morte numa perspectiva de continuum, tem-se também a concepção daquele tempo que parece nunca 200

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se esgotar, transformando-se na medida em que se reveste de significado” (RUBIO, 2013, p. 35). O passado não pode ser modificado, mas pode ser ressignificado e esclarecido, de acordo com o que o pesquisador descobre e quais pistas ele busca. Ao olharmos por essa lente que aproxima mais as histórias, nos damos conta do quanto o depoimento vivo informa mais que qualquer estatística.

Referência

bibliográfica

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Entre

o passado e o presente: o jogo dos papéis nas narrativas de transição de carreira de Paula e Agra Neilton de Sousa Ferreira Júnior Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP) O herói parte do mundo cotidiano e se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (Joseph Campbell)

“Paula, após 28 anos dedicados à carreira atlética, passou a compartilhar suas experiências no esporte na condição de gestora. Assumiu a coordenação do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa de São Paulo e a Secretaria de Esporte de Rendimento no Ministério do Esporte do Governo Federal, cargo que deixou para criar o próprio Instituto, Passe de Mágica, onde alcança centenas de crianças e adolescentes com educação através do esporte” (Enciclopédia Olímpica Brasileira). “Eduardo Agra, após 22 anos como atleta, deu continuidade à carreira de professor de inglês e anos depois tornou-se coordenador da Associação Alumni. Era tradutor e intérprete de jogadores e treinadores de basquetebol estrangeiros, quando foi convidado a atuar como comentarista de esportes norte-americanos para os canais ESPN” (Enciclopédia Olímpica Brasileira).

Ambos os desfechos correspondem a questões que nos últimos anos têm ganhado cada vez mais repercussão: o que acontece quando o atleta deixa de ser atleta? Que caminhos percorre para dar continuidade à vida? O que é ser um pósatleta? Longe de querer entrar na discussão sobre o movimento de valorização da memória que vem mobilizando meios de comunicação e vertentes diversas das ciências humanas, minha intenção neste ensaio é promover uma reflexão mais densa sobre como o pós-atleta lida com a condição de ex e de que maneira o passado interage em seu processo particular de mudança de papel e reinserção no presente.

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As experiências de Paula e Eduardo Agra nos oferecem elementos para a compreensão desse processo, pois, através de suas narrativas biográficas, podemos nos aproximar do contexto das significações e ressignificações de papéis, bem como das peculiaridades cotidianas que estruturaram e estruturam suas transições e que só a arte de narrar pode capturar. Segundo Benjamin (1987:200), a narrativa é rica de um saber e sapiência práticos: [...] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir, seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se dar conselhos parece hoje algo de antiquado é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis.

Assim, os pós-atletas vão representar aqui esse tipo raro de narrador, classificado por Benjamin como “aquele que tem muito para contar, por muito conhecer das viagens que fez”, ao mesmo tempo em que é “aquele que, ganhando a vida sem necessariamente ter saído de sua terra, tornou-se conhecedor de suas histórias e tradições”. Segundo Halbwachs (2006), através da memória e experiência narradas é possível pôr em questão o que está dado, ampliar o que já é conhecido, ou mesmo reforçar um conhecimento consagrado. Para Rubio (2001: 2004), é por meio da narrativa que o atleta/pós-atleta pode traduzir experiências vivenciais, inerentes à sua carreira esportiva, trazendo-nos um panorama do contexto em que construiu e desconstruiu sua identidade, em outras palavras, quem ele foi, o que ele é.

O atleta olímpico e o contexto da transição Atletas que atingiram o nível olímpico, o prestígio popular e, em alguns casos, a ascensão financeira através de grandes feitos, enfrentam um dos maiores dilemas de suas carreiras quando chega a hora de sair desse papel e dar novo rumo a vida. Essa transição implica a mudança de uma identidade particular e publicamente significada para outra a ganhar significado, processo marcado tanto por desencantos e desencontros quanto por redescobertas e renascimentos (COAKLEY, 1983). Além dos primeiros questionamentos sobre o que fazer e o que ser, atletas de alto nível têm pela frente o desafio de integrarem-se a um mercado de trabalho e ao mundo cotidiano 204

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que, a priori, não compreende quem eles são, senão através de quem eles foram. Nesse momento, pressupostos pessoais e mundo pretendido também permanecerão em desacordo, até que as ressignificações e pontos de virada aconteçam (EBAUGH, 1988; SCHLOSSBERG, 1981). Segundo Rubio (2001: 179): Assim como para o herói, que viveu a experiência do chamado e da aventura, retornar consiste em aceitar o real, depois de ter passado por uma experiência da visão da completeza, que traz satisfação à alma, as alegrias e tristezas passageiras, as banalidades e ruidosas obscenidades da vida, para o atleta, deixar o cenário competitivo é se adequar a um mundo cotidiano do qual há muito ele se afastou e se desacostumou a pertencer.

É consenso na literatura da transição de carreira atlética a ideia de que a imersão no contexto esportivo e a forte identificação do indivíduo com o papel de atleta são nocivas ao processo de saída desse papel para o desempenho e satisfação em outros (BAILLIE e DANISH, 1992; WEBB et al., 1998; LALLY, 2007; GROVE et al., 2007; PRICE, MORRISON e ARNOLD, 2010). Segundo Lally (2007), a identidade pode ser entendida como uma visão multidimensional de si tão estável quanto dinâmica, mas é possível que uma dessas visões se torne preponderante, bem com uma lente através da qual o indivíduo passa a ver a si mesmo e o mundo. Price, Morrison e Arnold (2010) acrescentam que a formação atlética unidimensional dificulta o reconhecimento de competências de enfrentamento e exploração de outras configurações, tornando o atleta vulnerável à transição. Essencialmente, a carreira atlética é caracterizada por um forte compromisso psicológico, físico e de tempo, com um papel cujas expectativas de realização não são apenas individuais, mas sociais. O indivíduo que a aspira, desde a tenra idade é estimulado a internalizar a imagem do ídolo, representante vitorioso de emblemas que ascendeu social e financeiramente através dos grandes feitos (RUBIO, 2001). Essa imagem acaba por dominar aquilo que Webb et al., (1998) chamaram de autoconceito global, restringindo, assim, a capacidade do atleta de se ver em outros papéis e contextos. Embora impere a crença de que a dedicação exclusiva à carreira atlética seja indispensável para se alcançar bons resultados, é crescente a discussão que reconhece o desenvolvimento de interesses para além do esporte como uma fonte de recursos psicológicos e sociais de enfrentamento bem205

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sucedido das implicações da transição. Segundo Price, Morrison e Arnold (2010), atletas que desenvolvem, equilibradamente, interesses significativos durante a carreira esportiva constroem identidades atléticas “mais elásticas”, tão flexíveis à possibilidade de descontinuidade no esporte de alto nível e às implicações da perda de um papel significativo quanto aos desafios da transição e dos novos papéis da vida pós-atleta. O envolvimento com o papel de atleta integrado a interesses da vida cotidiana também está relacionado às experiências de transição voluntariamente desencadeadas (RUBIO e FERREIRA JUNIOR, 2012), aos comportamentos de enfrentamento sustentados por maior percepção subjetiva de controle sobre a mudança (WEBB et al., 1998) e à utilização de competências transferíveis. Segundo Mcknight et al. (2009), competências transferíveis são atributos aprendidos na carreira atlética como, por exemplo, a necessidade de trabalho árduo para alcançar metas, que na vida pós-atleta pode se traduzir na obstinação com que novos papéis são aprendidos e metas profissionais são buscadas. A capacidade de liderança, resiliência e administração de situações fortemente estressantes também são atributos muito presentes no papel de atleta e encontram amplo espaço de aplicação na vida cotidiana e profissional (COAKLEY, 1983; RUBIO, 2001; MCKNIGHT et al., 2009; RUBIO e FERREIRA JUNIOR, 2012). A questão é que esse tipo de carreira atlética, integrada à interesses para além do esporte, não é a realidade da grande maioria de atletas que buscam ou que tentam se manter em alto nível. A característica arrebatadora do imaginário e contexto esportivo contemporâneo tem sido um dos principais empecilhos ao desenvolvimento de identidades atléticas. Segundo Rubio (2001), o processo de desenvolvimento do esporte no mundo moderno foi amplamente influenciado pelas transformações socioculturais ocorridas principalmente durante o século XX, e seus desdobramentos estenderam-se até os dias de hoje, trazendo para a prática esportiva características do modelo industrial e neoliberal, como a racionalização do elemento mítico do esporte, a orientação para os resultados e a espetacularização do desempenho. Essas mudanças foram fundamentais para a constituição das representações sociais sobre o protagonista esportivo, que em tempos mais remotos foi idealizado como extensão da necessidade humana de contato com o divino; em finais do século XIX, pensado como um nobre e descompromissado amante da prática esportiva; mas hoje tornou-se uma das figuras mais 206

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exploradas pela indústria cultural e científica, um profissional, referência de sucesso financeiro idolatrada enquanto ídolo, ao mesmo tempo marginalizada e esquecida na sua condição humana (RUBIO, 2001; 2006). Diferentemente do princípio da superação dos próprios limites e da ritualística que justificavam sua presença na cultura esportiva da Antiga Grécia, o atleta contemporâneo é aquele que tem na sua preparação competitiva o meio pelo qual pode superar os outros, manter-se em alto nível e, assim, garantir seu sustento. Seu corpo, amplamente utilizado como instrumento de afirmação político-ideológica em tempos de guerra, agora é arena da batalha tecnológica contra os limites humanos e recordes. Diante desse contexto, é no mínimo razoável afirmar que não haveria outro papel cujas expectativas sociais se estendam a tantas dimensões como o de atleta. Ser atleta é destacar-se entre os comuns, alcançando feito suficientemente satisfatório aos anseios sociais por referências de conduta e reforço da autoestima. É fazer parte de um plano tão superior que deixar de ser atleta pode representar não mais saber quem se é, e, para a sociedade, não mais existir. Esse imaginário se evidenciou e continua a se evidenciar nas centenas de histórias de vida de pós-atletas e atletas olímpicos brasileiros, que devido às suas proezas não explicadas e à obstinação com que perseguem metas, são comparados a heróis mitológicos, plenos de autossuficiência. Tal crença é capaz de dessensibilizar e afastar a sociedade da preocupação em conhecer e reconhecer as dificuldades por que passa o atleta em sua busca por um lugar no pódio e por um lugar na vida. À espera de mais um grande feito do atleta, ignoramos o último, talvez o mais significativo, que é o retorno à vida comum, quando recupera sua condição humana e passa a compartilhar suas experiências como que “cumprindo com o propósito” do seu chamado à aventura (RUBIO, 2001). Maria Paula Gonçalves da Silva, Magic Paula, nasceu em Oswaldo Cruz, interior de São Paulo, em 11 de março de 1962. Era praticante assídua de diferentes modalidades esportivas durante a infância, mas na adolescência começou a se destacar jogando basquetebol. Aos 12 anos, recebeu convite para jogar na cidade de Assis. Dois anos depois foi jogar em Jundiaí, quando passou a ser convocada para a seleção brasileira. Profissionalizou-se pela equipe Unimep/Piracicaba, onde jogou por oito anos. Jogou por uma temporada na Espanha numa equipe madrilena chamada Tintoretto. Com a seleção brasileira, foi medalhista de ouro nos 207

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Jogos Pan-Americanos de Havana, em 1991, e integrou a primeira equipe feminina de basquetebol brasileira a disputar uma edição olímpica, em 1992. Sagrou-se campeã mundial na Austrália, em 1994, e foi medalhista de prata nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996. No ano seguinte, disputou seu último campeonato mundial pela seleção. Em clubes, Paula ainda passou por Ponte Preta/Campinas, Leite Moça/Sorocaba e BCN/Osasco, quando, em 2000, encerrou definitivamente a carreira atlética. Formada em Educação Física e Gestão, passou a encarar novos desafios dentro do contexto esportivo. Eduardo Nilton Agra Galvão, o Agra, nasceu em 31 de julho de 1956 e começou a jogar basquetebol no Clube dos Portugueses em Recife, sua cidade natal. Era apenas um adolescente e coadjuvante entre os melhores jogadores da cidade quando aceitou convite para seguir carreira atlética em São Paulo. Após participar de um campeonato sul-americano pela seleção brasileira juvenil, transferiu-se para a equipe do Esporte Clube Sírio, com a qual se sagrou campeão mundial de clubes em 1979. A vontade de dar mais visibilidade à carreira atlética o levou, no mesmo ano, para os Estado Unidos, onde passou quatro anos estudando na Kansas State University, rodando o país inteiro a disputar a Elit Eights e Sweet Sixteens. De volta ao Brasil para jogar pelo Palmeiras, quis retornar à seleção brasileira e realizar seu maior sonho: participar de uma edição olímpica. Exibia ótima condição física e técnica, o que lhe permitiu integrar a equipe que disputou os Jogos Olímpicos de Los Angeles em 1984. Do Palmeiras, transferiuse para o Corinthians, onde ganhou notoriedade. Em finais dos anos 1980, passou a jogar profissionalmente na equipe da Pirelli, em Santo André. A essa altura conciliava a função de professor de inglês com a carreira atlética, atividades que se tornaram concorrentes na medida em que a demanda de trabalho e as necessidades da família aumentaram. Agra ainda voltaria para o Sírio nesse período, mas para encerrar a carreira atlética em 1991. O processo de saída do papel de atleta para outro papel segue ritmo e formas distintas para cada indivíduo. Soma-se a isso o conjunto de experiências que acumulou ao longo da carreira esportiva e a forma particular de lidar com a mudança. Embora apresentem semelhanças, as experiências de Paula e Agra trazem distinções importantes para que possamos pensar de forma ampla o jogo dos papéis na transição de carreira. A seguir, estabeleço um diálogo entre as narrativas de transição de cada pós-atleta e a teoria da saída de papel. 208

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Tornando-se um pós-atleta Drahota e Eitzen (1999) realizaram importante trabalho sobre a saída do papel de atletas para outros papéis, acrescentando características específicas a um modelo de análise que desenvolveram com base na teoria da saída de papel de Helen Ebaugh. Socióloga e ex-freira, Ebaugh investigou a experiência de saída de papéis sociais relevantes em adultos e percebeu que, apesar das distinções individuais no que diz respeito à experiência de mudança de papéis, tendemos a obedecer certos padrões de comportamento dentro de um processo de transição classificado como tornar-se um ex, que inclui quatro estágios: primeiras dúvidas, buscando alternativas, ponto de virada, criando o ex-papel.

Primeiras dúvidas ou dúvidas originais? [...] foi como que por intuição! Algo me dizia que eu tinha que me preparar. Sempre fui muito observadora, acompanhava atletas que iam chegando nesse momento e falava comigo: “Quero ser que nem aquele”. Muita gente se perde nesse momento e eu não poderia cometer o mesmo erro. De livre e espontânea vontade, falei para mim: “Preciso entender o que vai ser isso na minha vida”; então, fui buscar a terapia para entender um pouco quem sou eu. Quando você está no meio do esporte, você pensa: “Só sei fazer isso e acabou! Sou boa nisso e acabou!”. E é aí que a gente peca, porque a hora que acaba tudo isso é que começa uma nova fase [Paula]. Nasceu meu filho em 1990, eu tinha começado a pegar outras responsabilidades nas escolas e o meu corpo também não aguentava mais. Eu era um cara que ia a 110 km/h, mas passei a ter muitas dores e não conseguia me recuperar tão rapidamente. Mas eu sempre vi na minha carreira muitos exemplos daqueles que não conseguem parar, e eu sempre falava pra mim: “Eu quero parar quando estiver por cima” [Agra].

Conforme ilustram as narrativas, as primeiras dúvidas são provocadas por variáveis situacionais diversas, marcando um primeiro momento de questionamento, avaliações e considerações sobre o papel atual e os significados da mudança (EBAUGH, 1988). Por ser o papel de atleta desempenhado em um contexto altamente competitivo e instável, é próprio dessa atividade que a mudança para outro papel seja encarada como algo iminente. Foi pensando nisso que Drahota e Eitzen (1998) sugeriram que as primeiras 209

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dúvidas são, no caso atleta, dúvidas originais, considerando os riscos (lesões, decréscimo de desempenho, demissões, quebras de contrato com patrocinador) que continuamente levam os atletas a pensarem a forma como sairão desse papel e buscarão outro. Paula, ciente da finitude da condição de atleta e estimulada pela experiência de transição de outros atletas, no alto dos seus 25 anos de carreira esportiva buscou recursos que lhe permitissem compreender melhor a própria transição, a qual foi elaborada não como um fim, mas como o início de uma nova fase da vida, com a possibilidade de assumir papel na gestão do esporte. Agra, por sua vez, teve sua saída do papel de atleta pensada a partir do decréscimo no desempenho atlético, que, se desconsiderado em virtude da continuidade na carreira atlética, poderia frustrar a transição que queria vivenciar voluntariamente e não como resultado de demissão desmoralizadora. A concorrência de atividades também foi determinante para a sua mudança, que não se configurou como uma transição propriamente dita, mas como uma reorganização de prioridades em que o papel de atleta passou a dar maior espaço para os papéis de pai e professor. O fato de terem vivenciado carreiras atléticas longevas (28 e 22 anos, respectivamente) e a obtenção de metas pessoais importantes parecem abrir espaço para a reflexão sobre a possibilidade de exploração de outros horizontes. Importante ressaltar, também, que a saída do papel dos pós-atletas ocorreu de forma voluntária, do contrário eles não passariam pelas primeiras dúvidas, como é o caso da maioria dos atletas, que terminam suas carreiras esportivas repentina e abruptamente. A saída voluntária, por sua vez, sugere o fechamento de um ciclo.

Buscando alternativas ou diferença de época As pessoas me dizem: “Você não tem vontade de estar lá?”. Não! Eu sinto que foi tudo muito bem digerido. Acho que uma coisa em que tem que se estar muito atento é quando você quer que aquilo perdure para a vida toda. Seu passado vai ficar, não há como ignorar, mas você tem que construir algo que te faça bem, que te dê prazer, que faça com que se sinta útil e continue... Não precisa nem ser no segmento que você viveu. A partir do momento que você começa a se envolver com outras coisas, você não dá margem para as incertezas ou fica vivendo do passado. Ficar naquele luto não é legal se não for como algo que foi bom lá, no passado, mas que passou. A gente passou a vida inteira buscando se 210

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realizar e ter sucesso, e chega uma hora em que você fala “Não busco mais nada?” [Paula]. Pra mim não foi uma coisa imediata porque, assim que parei de jogar, eu já estava dando aula à tarde na Associação Alumni e no Colégio Santo Américo todas as manhãs. Então eu não tive muito tempo para pensar nisso. É óbvio, você sente falta, mas eu continuei frequentando o Clube, joguei nos veteranos do Sírio junto com os meus contemporâneos. Na verdade era só por farra, mas era uma forma de continuar mantendo o espírito competitivo, até que a frequência foi abaixando [Agra].

Depois de passar por um período de dúvidas (originais), avaliar possibilidades, perdas e ganhos, o pós-atleta segue em busca de alternativas, ensaiando novos papéis, filiando-se a outros grupos e contextos, compartilhando experiências e/ou recorrendo à ajuda profissional (DRAHOTA e EITZEN, 1998). A estratégia que Paula encontrou para lidar com a saída do papel foi, primeiramente, atribuir significado distinto ao término da carreira atlética, recurso que estruturou a maneira como encarou as mudanças. Em outras palavras, os primeiros passos que deu rumo à transição não foram concebidos como um fim, mas como uma possibilidade de exploração de novos horizontes, certa de que as exigências internas e externas por resultados, resiliência para lidar com altos graus de estresse e bom desempenho permaneceriam fazendo parte de sua vida. A experiência de Agra, por sua vez, sugere que a saída do papel de atleta pode ser menos custosa quando sustentada pela vivência de papéis da vida cotidiana em paralelo com a carreira atlética. O tipo de recurso que utilizou para lidar com a diminuição da intensidade e frequência da prática esportiva foi o desengajamento paulatino através de competições na categoria veterano, pelo tempo que considerou necessário. Drahota e Eitzen (1998) sugeriram que à fase buscando alternativas devam ser acrescentadas diferenças de época, pois atletas profissionais se diferem dos atletas amadores no que se refere ao tipo de transição e conjunto de alternativas de enfrentamento das implicações da mudança. Atletas profissionais carecem de tempo hábil para desenvolver outros interesses e papéis e se tornam mais vulneráveis às crises da transição do que os amadores, por sua vez mais habituados à dupla jornada de trabalho e, consequentemente, menos vulneráveis às crises de transição, condição que encontra 211

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apoio em outros estudos que abordam direta ou indiretamente o tema (OGILVIE e TAYLOR, 1993; DRAHOTA e EITZEN, 1998; RUBIO e FERREIRA JUNIOR, 2012).

Ponto de virada e (des)identificação Eu acho que você tem que se preparar para isso, dizer assim: “Ou começo a viver uma outra fase ou vou ficar vivendo daquilo, do passado, e que cada vez mais vai ser algo que vai diminuir”, entendeu? [Paula]. O técnico me deu a bola na mão, e disse: “Toma conta”. Então, nesses três anos que joguei no Corinthians eu virei uma espécie de líder. Eu era um cara que, para a TV aberta, falava mais e tinha mais oportunidades de representar a equipe em programas de rádio e TV. Foi uma fase da minha vida em que eu me conheci melhor como líder. Isso veio a me ajudar, logo em seguida, na minha profissão como professor [Agra].

O papel de atleta nunca é integralmente encerrado – não raros os exemplos de atletas que mudam de níveis altamente competitivos para níveis menos competitivos, mantendose em atividade por motivos de saúde, para continuarem experimentando do protagonismo esportivo em alguma escala, ou para compartilharem suas experiências de vida com outros atletas e pós-atletas, dentre outras possibilidades. Nesse sentido, o maior desafio enfrentado pelos pós-atletas talvez não seja a forma como eles se retiram do papel de atleta, mas sim como se identificam enquanto ex (DRAHOTA e EITZEN, 1998). Um aspecto comum entre as experiências de ponto de virada de Paula e Agra foi a maneira ressignificada com que lidaram com o papel de atleta. Ebaugh (1988) classificou esse aspecto como uma (des)identificação, momento em que os indivíduos deixam de se relacionar consigo mesmos e com o mundo mediante o papel do qual se retiraram e seguem em busca de novas identificações. Num primeiro momento dessa transição, a condição de atleta – no plano do autoconceito e da identidade pública (WEBB et al., 1998) – pode se apresentar como um recurso de enfrentamento da tensão entre passado, presente e futuro causada pela saída de um papel significativo e mudança para outro a ganhar significado. Num segundo momento, o pósatleta tende a quebrar essa condição, reunindo seus fragmentos para estruturar um novo papel (DRAHOTA e EITZEN, 1998). 212

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Embora os pontos de virada dependam da disponibilidade de mecanismos e recursos do próprio pós-atleta, a forma como a sociedade lida com a condição de ex também é fundamental para a concretização dessa transição. Segundo Ebaugh (1988), o desafio nesse processo encontra-se não só na forma como concebe a si mesmo enquanto ex e como ele encara a forma como a sociedade lida com sua condição de ex e com o novo papel. Pós-atleta e sociedade articulam, de forma distinta, características do papel anterior, e as condições de ex-participante de... ex-vencedor do... medalhista nos... proeminente quando... tanto pode constituir estruturas centrais do reconhecimento da condição de ex quanto “vias” de acesso ao novo papel. Nesse sentido, uma característica em comum nas experiências de Paula e Agra é que o pós-atleta não traz para o novo papel apenas os feitos no esporte, mas representações sobre as condições necessárias para alcançálos, transferindo esse princípio para outras instâncias da vida. Em outras palavras, o momento de saída de papel e apropriação de outro também é uma fase de aplicação de competências aprendidas no esporte para outro contexto. Ainda no que se refere a essa fase de ponto de virada, é importante ressaltar que não há um tempo determinado para seu desfecho, ou mesmo um desfecho que se possa considerar final, tampouco uma transição “bem-sucedida” ou “malsucedida”. A busca pelo quem eu sou é um processo contínuo, não determinado apenas pela percepção de ajustamento e nível de satisfação do ex em seu novo papel (WEBB et al., 1998). Ajustamento e satisfação com a vida de pós-atleta são dimensões essencialmente subjetivas, e apenas duas dentre as diversas janelas através das quais o ponto de virada deve ser avaliado.

Criando o ex Então, é algo que não é fácil, vou ser sempre vista como a jogadora de basquete, por mais que eu esteja me esforçando como uma nova gestora. Já estou há dez anos nessa história (como gestora) e vou ser sempre vista como a Paula que jogou basquete [Paula]. Teve uma época na minha vida que, além de tudo o que eu fazia nas escolas, nunca deixei de acompanhar o esporte norte-americano. Sem internet, toda semana eu ia na Far Book Store buscar periódicos da New York Times, e assim eu fui me atualizando. Foi uma época também em que os 213

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jogadores e treinadores vinham aqui ministrar clínicas, e numa oportunidade dessas procuram na Associação Alumni, onde eu trabalhava, um intérprete com um mínimo de conhecimento de esporte. Daí fui indicado pela empresa e então passei a trabalhar com isso. Em um desses eventos eu conheci o Luciano Silva, da ESPN, que quando precisou de um substituto para a função de comentarista de basquetebol internacional, pensou: “Um cara que fala inglês, acompanha a NBA, jogou basquete em alto nível? Vou trazer o Agra” [Agra].

A quarta e última fase da saída do papel, denominada por Ebaugh como criando o “ex-papel”, segundo Drahota e Eitzen (1998), pode ser entendida também como comportamentos associados à saída do papel de atleta. É o momento mais importante para o processo de saída do papel de atleta, e também o mais difícil, visto que muitos atletas podem levar anos para romper com o papel anterior, ou mesmo não conseguir. No entanto, segundo Ebaugh (1988), o processo de tornar-se um ex sempre envolverá tensão entre o passado e o presente, em que uma identificação com aquilo que se foi têm de ser incorporada em um papel futuro. Ter sido um atleta proeminente é diferente de nunca ter sido atleta. Não-atletas não trazem consigo as marcas de um papel anterior tão distinto e, portanto, não enfrentam o desafio de inserirem a condição de pós-atleta em um novo autoconceito e contexto. A autora ainda ressalta que uma das últimas implicações da saída de um papel significativo para outro está relacionada às implicações que essa mudança gera sobre outras pessoas. No caso da saída do papel de atleta, os impactos negativos estão relacionados aos problemas financeiros e processos de mudança que familiares, amigos, equipes esportivas, clubes, empresas e patrocinadores sofrem. Já os impactos positivos podem ocorrer quando, por exemplo, o pós-atleta projeta-se ou passa a interferir na sua realidade a luz das experiências, conhecimentos e atributos que trouxe do esporte consigo. Paula, por exemplo, é a idealizadora e gestora do Instituto Passe de Mágica, o qual atende mais de 700 crianças e adolescentes usando o basquetebol como ferramenta educacional e de desenvolvimento social. Ela também gerencia recursos financeiros de incentivo ao esporte olímpico brasileiro, além de compartilhar suas experiências de superação na carreira atlética, realizando palestras e consultoria para profissionais das mais distintas áreas. Agra, por sua vez, há nove anos trabalha para os canais ESPN 214

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como comentarista de esportes norte-americanos. Antes de chegar à TV, trabalhou por quase trinta anos como professor de inglês em colégios, e até hoje é professor e coordenador da Associação Alumni, instituição voltada ao ensino da língua inglesa. Sua experiência como atleta ampliou-se quando foi jogar e estudar nos Estados Unidos, de onde trouxe o novo idioma e o apreço pela cultura esportiva estadunidense. Hoje, minha situação em relação ao esporte olímpico brasileiro acho que é muito forte. A partir do momento em que o Instituto Passe de Mágica passou abrir espaço para o núcleo de alto rendimento, um projeto que me fascina, que é o apoio ao atleta, eu começo aí a ajudar muito. Com uma visão de ex-atleta, do que eu vivi como ex-atleta, e agora como uma gestora... essa mescla [Paula]. Eu estou realizado assim. Esse trabalho aqui [comentarista] me dá muita satisfação. Continuo ainda dando aulas. E a minha família está em Recife, sempre visito. Então, hoje em dia eu me considero um cara realizado [Agra].

No que diz respeito à relação que os pós-atletas estabelecem com os novos papéis no momento presente, suas avaliações, embora distintas, se complementam. Paula sugere um processo de criação do ex que envolve a inserção e intervenção do indivíduo no mundo como forma de significação do novo papel, narrando que as características de sua experiência como atleta de alto nível interferem significativamente em sua função como uma gestora mais sensível às necessidades dos atletas que buscam a condição olímpica. Agra, por sua vez, parte de uma dimensão de satisfação com a condição de ex, tendo a realização profissional como um desdobramento do desempenho de atividades sobre as quais detém significativo conhecimento, bem como os esportes norteamericanos e a língua inglesa. Em última análise, as narrativas biográficas em diálogo com a teoria da saída de papel sugerem que ser um pós-atleta é transitar pelo passado e trazer para o presente um conjunto de experiências, expectativas, atributos, conhecimentos, perspectivas e poder aplicá-los em um novo contexto e papel. Esse novo papel, no entanto, é articulado conforme as pressuposições e relações que a sociedade estabelece com a condição de ex, possibilitando ou inviabilizando sua inserção no mundo. Segundo Ebaugh (1988), ser um ex é um fenômeno sociologicamente único e envolve tensão entre o passado, o presente, bem como um 215

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processo de (des)identificação com um papel anterior, para que seus fragmentos estruturem novos papéis. As experiências aqui descritas sugerem que o papel de atleta profissional nunca é encerrado completamente e que o maior desafio imposto a essa carreira talvez não esteja na (des) identificação, mas sim na forma ressignificada com que indivíduo e sociedade lidam com a condição de ex. Os tipos de enfrentamento da saída de papel variaram significativamente, destacandose a atribuição de significados (em Paula) e a manutenção de atividade paralela à carreira atlética e o desengajamento paulatino da atividade atlética em alto nível (em Agra). As narrativas apresentam formas distintas de enfrentamento da saída do papel de atleta, indicando não haver uma forma mais eficaz que outra. No entanto, a preparação para o término se apresentou em ambas as experiências como fator crucial da construção de novos papéis. A relação que a sociedade estabeleceu com os pósatletas estava fortemente relacionada à memória de seus feitos. E foi através dessa memória que expectativas e atributos da experiência atlética contribuíram com a inserção dos pós-atletas no cotidiano. A narrativa de Agra, em concordância com as considerações de Ogilvie e Taylor (1993), Drahota e Eitzen (1998) e Price, Morrison e Arnold (2010), sugeriu que a manutenção da vida profissional, em paralelo com a carreira atlética, constitui uma identidade suficientemente flexível e menos vulnerável aos problemas da transição de carreira. Price; Morrison e Arnold (2010) complementam essa consideração discorrendo sobre a importância da relação equilibrada entre carreira atlética e interesses para além do esporte, de maneira que o atleta não esteja tão distante dos papéis e da vida cotidiana que passarão a fazer parte da sua realidade quando se tornar um pós-atleta. As narrativas biográficas mostraram-se úteis à discussão sobre a saída do papel de atleta, pois sendo uma forma distinta de traduzir para a linguagem memórias de experiências vivenciais, nos levam até a dimensão cotidiana dos encontros, desencontros, rupturas e ressignificações que determinam as mudanças. Como foi possível perceber, as experiências de Paula e Agra trazem em si, implícita e explicitamente, sugestões práticas. Contido nas expressões “você tem que...” e “eu vi muitos exemplos de atletas que...” há um saber trazido de uma experiência vivencial e de observação dos sucessos e infortúnios de atletas contemporâneos que indicaram para os pós-atletas – e foram transmitidos por eles – caminhos, sugestões e significados. 216

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condição do gregário no ciclismo de estrada. Aspectos de uma prática competitiva singular no esporte contemporâneo. Rafael Campos Veloso Grupo de Estudos Olímpicos – Escola de Educação Física e Esporte (EEFE-USP)

Introdução O ciclismo de estrada possui características muito singulares no tocante à construção da vitória. Tais características possuem origem no sistema de competição dessa modalidade. O formato mais famoso de disputa é o esquema de “grandes voltas”, em que os atletas percorrem longas distâncias por dias seguidos. O cenário de disputa são estradas de uso comum da população, que ligam cidades e vilarejos, com centenas de quilômetros de altimetrias variadas, situadas entre as mais altas montanhas até estradas de planície ao nível do mar. Esporte popular entre os europeus e originário desse continente, possui competições com tamanha tradição que nos dias atuais se tornaram verdadeiros monumentos e instituições do ciclismo e do esporte moderno (Dauncey e Hare 2005). Dentre as competições mais tradicionais podemos destacar o Giro D’Italia, a Vuelta de España e, principalmente, o Tour de France. Competições popularmente conhecidas como as “Grandes Voltas”, nas quais centenas de quilômetros são percorridos em cada etapa diária e com duração de até três semanas, como acontece nos dias atuais. Duas delas, o Tour de France e o Giro D’Italia, são competições centenárias, cujas primeiras disputas datam de 1903 e 1909, respectivamente. A Vuelta de España, igualmente antiga, mas um pouco menos tradicional que suas vizinhas, conheceu sua primeira edição em 1935. Durante todo o período de existência, essas competições foram interrompidas apenas durante as grandes guerras e as guerras civis (Dauncey e Hare 2005). Outra forma de disputa muito tradicional no ciclismo de estrada são as chamadas Clássicas da Primavera. As Clássicas são corridas de poucas etapas, ou de apenas uma, que acontecem durante a primavera europeia. São marcadas por percorrerem centenas de quilômetros por estradas rudimentares dos campos europeus, sendo algumas originais do período medieval. Entre 219

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as mais tradicionais estão Paris-Roubaix, Milano-Sanremo, Tour de Flandres, Tirreno-Adriatico e Liège-Bastogne-Liège. Para sagrar-se vitorioso em tamanha jornada competitiva, os atletas utilizam-se de situações de apoio indireto e direto. O apoio indireto é dado, principalmente, por uma caravana de veículos, valendo-se de mecânico, diretor-técnico, médico e equipamentos de reserva, que acompanham o pelotão por todo o percurso de competição. O apoio direto é formado por um ou mais atletas da equipe, conhecidos como ciclistas gregários. A função dos ciclistas gregários é, literalmente, doar sua energia, sacrificar sua performance e resultado, para apoiar e aumentar as condições de sucesso e chances de vitória do líder (capitão) de sua equipe. O ciclismo de estrada possui um jogo estratégico intrincado e complexo em sua disputa semelhante ao jogo de xadrez. Com as peças sobre rodas, as estradas assumem a forma de um verdadeiro tabuleiro de xadrez, no qual os atletas protagonizam uma campanha para favorecer – e defender – a vitória do capitão de sua equipe. Ainda conforme essa analogia, uma equipe de ciclismo é formada por peças de especialidades, habilidades e funções distintas, além de seu respectivo capitão. Nesse contexto, os ciclistas gregários assumem o front dessa batalha para garantir o êxito do estratagema ideal contra os adversários, as dificuldades de cada terreno, as forças da natureza e até mesmo contra o acaso e o imponderável. Dentro da competição toda a tática é pautada em uma espécie de manipulação da resistência do vento, criando situações para a formação de vácuos aerodinâmicos que reduzem o desgaste do ciclista. Esse é o motivo pelo qual os ciclistas se agrupam em “pelotões” durante as corridas, pois os atletas posicionados à frente, geralmente gregários, se desgastam com “a cara no vento”, reduzindo a resistência do vento para os demais ciclistas e poupando a energia de seus líderes. Esse é um dos motivos pelos quais a unidade básica do ciclismo de estrada é coletiva, uma equipe. No ciclismo de estrada um líder forte não é capaz de vencer sem o apoio de uma equipe. E uma equipe forte não é capaz de vencer sem um líder forte (Brewer, 2002). Outro fator que alimenta a peculiaridade dessa condição é de que no ciclismo de estrada, apesar de o atleta vitorioso se valer de esforços individuais e coletivos de uma equipe atuante dentro e fora do jogo, o reconhecimento formal é apenas individual. A modalidade nos jogos olímpicos, não obstante contar com apenas uma etapa, também é disputada com tais características 220

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e estratagemas. Nesse caso, quando presente a função do gregário, temos candidatos diretos a uma medalha olímpica com o objetivo de abnegar seu sucesso na missão de favorecer a vitória (medalha) de outro atleta da equipe de sua delegação. Na condição de gregário, o atleta entra no campo de disputa não em busca da vitória, como é a tônica do esporte moderno, mas para uma missão de doação de sua potência aos objetivos de vitória de outro atleta, que é o líder da equipe. Tal condição caracteriza uma prática singular no esporte, visto que toda a organização da prática esportiva profissional contemporânea é estruturada na valorização da vitória e celebração do vitorioso (Rubio, 2006). Considerando a condição do gregário no ciclismo constituirse de uma série de ações coletivas na disputa, tal prática se torna singular e destoante da tônica das modalidades individuais por caracterizar o sacrifício de sua energia em favor de outro atleta que, mesmo sendo da mesma equipe, representa um adversário no campo formal da disputa e competição. Essa prática propõe ao atleta na condição de gregário um vertedouro de valores e representações imaginárias singulares com um toque de contraponto quando consideramos que, na estrutura do esporte contemporâneo, o objetivo é vencer (Rubio, 2006).

Contextualização histórica do surgimento da prática do gregário no ciclismo Para uma boa compreensão e contextualização da condição do gregário no ciclismo de estrada é necessário lançar o olhar para a estrutura, a história e as bases institucionais dessa especificidade do ciclismo. Uma característica marcante dessa modalidade é que, ao longo do século XX, seu desenvolvimento ocorreu de forma simbiótica com suas principais competições. Seria impossível qualquer análise a respeito do ciclismo de estrada, e de seus atletas, ausente o conhecimento dessas competições. Daucey e Hare (2005) referem-se a uma delas, o Tour de France, como uma instituição do esporte moderno. Essas competições, ou verdadeiras instituições, são alvo do desejo dos ciclistas, e, para a maioria, esse desejo se traduz em ir até o final e concluir a competição. Tais competições formam o que hoje é conhecido como o circuito Pro Tour, formado pelas três “grandes voltas”, (o Tour de France, o Giro d’Italia a Vuelta de España) e algumas outras competições de menor porte, mas com grande pontuação da União Ciclística Internacional. O entendimento do formato dessas competições 221

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é essencial para se compreender a origem e o papel dos ciclistas gregários. Com o intuito de contextualização, farei uma breve explanação dessas competições. As três “grandes voltas” possuem estruturas similares quanto ao formato de competição. As três são disputadas em vinte e uma etapas diárias, que podem atingir mais de duzentos quilômetros, e são interrompidas por apenas dois dias de descanso. O trajeto de cada etapa geralmente é a ligação de um município a outro, passando por estradas vicinais e cruzando campos, montanhas, vilarejos e até pelo centro das cidades que cruza, formando um grande “cinturão” no país em que é disputada. Essas competições provocam grande mobilização da população local, que geralmente enfeita as cidades e corre para a beira das estradas para apoiar seus atletas favoritos com gritos, empurrões e até distribuindo água aos atletas. As montanhas, palco de lendárias disputas, são os locais mais concorridos entre os torcedores, que chegam a acampar uma semana antes da etapa apenas para garantir um bom lugar à beira da estrada. São consideradas as competições mais extenuantes do planeta, e os atletas que concluem essa jornada chegam a percorrer mais de três mil quilômetros em apenas vinte e um dias. O atleta que não conclui alguma etapa é automaticamente desclassificado e excluído da disputa. O vitorioso é aquele que conclui todas as etapas somando o menor tempo, e quem garante as condições ideais para o herói são seus gregários e demais trabalhadores da equipe1. Tour de France – Considerada a mais importante e tradicional entre as “voltas”, conheceu sua primeira edição em 1903 e obtém a maior repercussão na mídia. Configura-se como o maior objeto de desejo dos ciclistas, tanto pela vitória quanto pela simples participação. Giro d’Italia – Considerada pelos atletas e especialistas como a mais difícil de concluir entre as três provas. Isso porque o percurso inclui as mais duras e altas montanhas da Itália. Sua primeira edição realizou-se em 1909. Vuelta a España – Menos tradicional entre as três, porém igualmente antiga, foi disputada pela primeira vez em 1935.  odas as informações básicas sobre esses eventos podem ser obtidas em seus T respectivos sites oficiais: - Tour de France: www.letour.fr - Giro d’Italia: http://www.gazzetta.it/Speciali/Giroditalia/2013/en/index.shtml - Vuelta a España: www.lavuelta.com

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Também com duras montanhas em seu percurso, tem sido palco de competições muito acirradas nos últimos anos. É caracterizada por uma prova mais aberta, tendo em vista que os principais nomes do ciclismo dão preferência ao Tour e ao Giro. Postas essas informações preliminares, é notória a extensão da história do ciclismo. A modalidade já integrava a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, realizados em 1896 na cidade de Atenas. Para evitar que o foco deste trabalho seja desvirtuado entre os fatos históricos, limitar-meei à contextualização histórica referente a pontos e períodos de grande influencia nas relações institucionais que fundaram o profissionalismo na modalidade. Benjamin Brewer (2002) analisa as transformações institucionais do ciclismo a partir da década de 1950, na qual o fator da comercialização começava a acontecer com mais força, erigindo o profissionalismo no ciclismo. Brewer (2002) divide o ciclismo profissional em três fases: 1950-1984 – período Clássico ou de Pré-reforma, 1984-1989 período de Rapid Change ou de Reforma e período de Pósreforma ou Contemporâneo.

Período Clássico (1950-1984) Para o referido autor, esse foi o período de maturação do que ele chamou de “o esporte mais popular do Oeste Europeu”. Em relação aos atletas, o período é marcado por pouca especialização técnica e grande hierarquia entre ciclistas líderes e gregários. O padrão das equipes consistia em menos de quinze atletas para todas as competições da temporada e poucos trabalhadores de apoio. Esse apoio consistia em um ou dois mecânicos, um diretortécnico e um assistente, e um profissional que, depois, cuidava da saúde e recuperação dos atletas. Quando esses times com poucos integrantes eram montados, não se levava em conta que os atletas poderiam ficar doentes, lesionados ou fora de forma, desfalcando o time. A pouca estrutura das equipes era financiada até a década de 1950 por fábricas de bicicleta. As temporadas de 1953 e 1954 ficaram marcadas pela entrada dos primeiros patrocínios de empresas de produtos não esportivos, a Nivea beauty products e St. Raphael alcoholic behavior. Entretanto, o patrocínio ainda era insuficiente e não permitia bons salários e boa infraestrutura. Segundo Brewer (2002), na hierarquia das equipes a tônica era a formação em torno de um ciclista líder, que seria 223

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responsável pela tentativa de vitória em todas as empreitadas da equipe. Ciclistas com falta de talento e (ou) carisma para assumir o papel de liderança eram relegados ao trabalho subordinado de gregário. No período Clássico, esses ciclistas trabalhavam em outros empregos fora da temporada de competições, pois o salário era insuficiente para garantir-lhes a subsistência. Para o historiador George Nicholson (1991), poucos esportes possuem um sistema de hierarquias tão rígidas quanto o ciclismo. Em sua descrição, depois do líder a equipe continha um ou dois atletas de destaque, que ele chamou de senior protected, e os demais eram subordinados ao trabalho de gregário. O autor ainda sugere que a condição de gregário teria “queimado” muitos talentos antes que tivessem a chance de serem exibidos. Quanto ao período em questão, afirma que o ciclismo era praticado por atletas provenientes da classe baixa, assistidos por fãs que eram do mesmo meio e apenas os líderes ganhavam dinheiro suficiente para manterem a si próprios e os treinos, mas poucos alcançavam riqueza. Voltando a Brewer (2002), nesse período os ciclistas eram oriundos principalmente de quatro países do Oeste Europeu: Itália, França, Bélgica e Espanha. Países menores como Suíça, Holanda e Portugal também contribuíram com alguns corredores. Alguns poucos ciclistas britânicos também mantiveram carreira em algumas equipes continentais2, mas sem muito sucesso. Muitos profissionais e times raramente saíam de seus países para competir, preferindo focar em corridas de significância regional e nacional. Ciclistas de fora do Oeste Europeu eram muito raros e os poucos que haviam eram tratados como novidade. E assim se manteve até meados da década de 1970. Para o autor, a função de gregário faz com que muitos atletas convivam em condições similares, por muitas corridas, durante muitos dias, enfrentando as mesmas dificuldades. Essa situação

A UCI (União Ciclística Internacional) promove uma divisão de nível de equipes pela obtenção de licenças, que lhes garantem o direito de participar em determinadas competições. Atualmente, essas licenças são distribuídas mediante a classificação das equipes em um ranking submetido a, basicamente, três níveis: equipes regionais – equipes e clubes filiados a federações nacionais, equipes continentais – que recebem a licença para disputar competições internacionais da UCI e podem ser convidadas a participar de competições do circuito ProTour (essa licença é referida como Wild Card), e, finalmente, as equipes com o selo ProTour, que recebem licença para disputar as três grandes voltas (Tour de France, Giro d’Italia e Vuelta a España) e atualmente representam vinte e duas equipes, todas oriundas do continente europeu.

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cria um clima de fraternidade entre os atletas que culminou em uma espécie de código de conduta dentro das corridas, conhecido como rules of the road. Os líderes são respeitados por atletas também de outras equipes. Um bom exemplo dessa ética vinda do respeito e da fraternidade é a situação onde os competidores não realizam ações de “ataque”3 quando algum líder tem problemas mecânicos ou um grupo de atletas resolve parar para urinar. Essa ação clara de fair play permite que os atletas voltem tranquilamente ao pelotão4, que não para de rodar, para então continuar o jogo. É uma espécie de pausa combinada entre os atletas, mas como o pelotão não pode parar, os atletas apenas diminuem o ritmo e não realizam ações de ataque que possam interferir no resultado da corrida. A formação das equipes como é conhecida hoje, com a consolidação da função do gregário, decorre de motivos práticos e de necessidades básicas de sobrevivência. O fato que afirma essa ideia ocorreu durante a edição do Tour de France de 1953, quando a estrela francesa Louison Bobet convenceu um grupo de trabalhadores e corredores a sacrificar suas chances de sucesso, aplicando suas forças a seu favor em troca de receberem parte da divisão da premiação em caso de vitória de Louison (Woodland 2000, p. 163-164). Para Brewer (2002), esse tipo de arranjo foi a tônica do período Clássico. Esse tipo de esquema passou a ser utilizado também em corridas menores, realizadas em pequenas cidades e vilarejos situados no interior da França e Bélgica por onde passava o Tour de France. Essas pequenas corridas representavam a espinha-dorsal do rendimento dos ciclistas. A partir deste momento, os líderes de equipe passaram a insistir que seus gregários fossem incluídos nos contratos dos circuitos mais lucrativos, recompensando-os durante a temporada. Em resumo, o período Clássico foi marcado por novos acordos financeiros, estrutura hierárquica rígida, baixos salários e pouca interface com a ciência da medicina e treinamento, Os ataques no ciclismo constituem ações em que o atleta desprende grande energia para tentar definir o resultado da competição, buscando andar destacado do pelotão para a tentativa de vitória ou por questão de estratégia, como no caso dos gregários. 4 No ciclismo, os atletas agrupam-se em “pelotões” para obter vantagens aerodinâmicas. A literatura especializada aponta que um ciclista, aproveitando-se do vácuo aerodinâmico, reduz significativamente o desgaste físico em relação aos atletas que se localizam à frente com a “cara no vento”. Os valores de redução de desgaste apontados variam entre 6% até 30%, dependendo do autor e do protocolo adotado. 3

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mesmo porque estes últimos não contavam muitos avanços. Diante desses novos arranjos financeiros e da hierarquia dentro do time, vemos o papel do gregário reforçado.

Período de transição e reforma (1984-1989) O ano de 1984 foi o ano da revolução do ciclismo moderno, pois foram observadas mudanças significativas no campo do treinamento e na estrutura das equipes. Nesse período houve um aumento significativo de ciclistas não europeus nas grandes corridas, com destaque para atletas oriundos da Colômbia, que realizaram sua primeira participação no Tour de France de 1983 e retornaram em 1984 com resultados significativos. Nesse espírito inclusivo ocorreu, no mesmo período, grande aumento da participação de ciclistas de países de língua inglesa. Frequentemente referidos como “legião estrangeira”, eram oriundos principalmente do Reino Unido, Austrália e um pouco menos dos Estados Unidos. O fluxo de ciclistas estrangeiros nessa época acarretou algumas mudanças no pelotão Pro Tour, mas não suficiente ainda para alterar as estruturas tradicionais do esporte (Brewer 2002). A chegada do ciclista estadunidense Greg LeMond representou mudanças mais significativas na estrutura do esporte, principalmente no tocante a negociações e salários. O atleta assinou contrato com uma tradicional equipe francesa chamada La Vie Claire, que era organizada por Bernard Hinald, um dos maiores ídolos do ciclismo francês. Com um estilo rígido de negociação, o atleta conseguiu um contrato de um milhão de dólares por três anos, valor que jamais havia sido pago no ciclismo. O contrato milionário de LeMond provocou rapidamente uma onda de aumento na escala de salários das estrelas das equipes. O executivo francês da La Vie Claire, Bernard Tapie, possibilitou a aquisição de diversas estrelas na tentativa de “arrastar” o ciclismo profissional para dentro do século XX (Brewer 2002). Vale ressaltar que nesse período a comercialização do esporte ganhava cada vez mais força, impulsionada pelo capital privado em lucrativos esquemas como direitos de transmissão, patrocínios e disputas comerciais, ao exemplo do famoso caso da disputa entre as fabricantes de material esportivo Adidas e Puma, que se infiltraram em grandes entidades do esporte e alteraram as relações mais internas e ideológicas, alavancando a estrutura profissional no esporte (Smit, 2007). 226

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Apesar de a estrutura intraequipe permanecer com poucas alterações em relação ao período Clássico, essa nova tendência parece apontar mudanças nas relações dentro da equipe, ajudando a firmar o papel do gregário. O autor traz o depoimento de um dos gregários da La Vie Claire, o americano Andy Hampstein, para quem a vitória pessoal é secundária. Segundo o atleta, algum ciclista da La Vie Claire tem que ganhar e eles (equipe) sempre trabalham uns pelos outros. Diz, ainda, que a filosofia dos atletas dessa equipe era de que a própria La Vie Claire era a capitã e todos deveriam trabalhar e sacrificar suas forças por ela (Brewer 2002, p. 286). Observamos, então, a transição de pequenos investimentos de fabricantes de bicicletas no período Clássico, para uma sofisticada estrutura de marketing de grandes corporações que seguiam as tendências comerciais e do esporte em voga naquela época.

Reforma institucional: campanha de mundialização Nesse período transicional, diversas tendências do esporte moderno começavam a influir no ciclismo profissional. O ciclismo se encontrava em uma fase de monotonia e encontrou significativas mudanças sob as ações do então novo presidente da FICP5, Hein Verbruggen. Na visão de Verbruggen, o ciclismo era um “velho trem parado”. Um dos motivos devia-se ao fato de que estrutura competitiva das equipes era baseada em uma espécie de “estrela solitária” (líder), que obtinha a função de tentar a vitória em todas as competições. Esse esquema era uma espécie de cartas marcadas, no qual os gregários controlavam6 o jogo de todas as corridas deixando a dinâmica da competição sempre isomorfa e pouco atraente. Os outros motivos, segundo o presidente, decorriam de práticas que estagnavam a modalidade, tal como a corrupção na compra e venda de resultados e o doping. Verbruggen empreendeu três ações que se tornaram os pilares dessa fase de reestruturação institucional: a globalização Fédération Internacionale du Cyclisme Professionel. Controlar uma corrida significa realizar uma série de ações realizadas por parte dos gregários, para anular qualquer desempenho que possa alterar o resultado e desfavorecer o seu líder. A mais comum delas é anular todos os ataques adversários. Quando todas as equipes realizam a mesma estratégia, a competição perde a dinâmica, tornando o resultado previsível.

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da modalidade, a criação da copa do mundo de ciclismo e a elaboração de um sistema de ranking para a classificação de competições. Globalização: A ação da globolização foi marcada mais por uma mudança ideológica, cujo intuito era atrair novos atletas e fãs de várias partes do mundo. Assim, o calendário de corridas foi expandido para além do Oeste Europeu e houve maior abertura para novas equipes e atletas de países não tradicionais na modalidade. A globalização coincidiu com o colapso e reintegração das nações comunistas, que rapidamente forneceram excelentes atletas. Copa do Mundo: Com a criação da Copa do Mundo de Ciclismo, a modalidade, além de ganhar corridas adicionais que vieram a se tornar tradicionais, possibilitou a especialização de ciclistas de “corridas de um dia”. Embora a função do gregário seja a mesma nessas disputas, essas competições permitiram a vitória de outros tipos de ciclistas que não os tradicionais líderes das “grandes voltas”. Houve aqui uma mobilização hierárquica com relação à busca pela vitória. A Copa do Mundo seguiu os princípios da globalização. Ranking de competições: Considerada a ação mais poderosa em termos de transformação da dinâmica da modalidade, consiste em um sistema de classificações de pontos de todas as competições da temporada, conhecido como o ranking de pontos da UCI7. O ranking não leva em conta somente a vitória em corridas, mas também em fatores como a participação em competições e a permanência em várias etapas de uma “grande volta”. Essa mudança deu visibilidade a bons atletas, além dos grandes vitoriosos, abalando um pouco mais a estrutura hierárquica do período Clássico e colocando alguns gregários mais na mira dos holofotes. O ranking, que também é por equipes, possibilitou maior dinâmica na modalidade, atraindo maior atenção da mídia

Órgão máximo e controlador, a UCI (União Ciclística Internacional) tem sua jurisdição existente há mais de cem anos. Durante sessenta anos a UCI supervisionou o ciclismo de estrada amador e profissional. Em 1964, por pressões do Comitê Olímpico Internacional para eliminar a possível influência do profissionalismo no ciclismo olímpico, a UCI foi dividida em duas subfederações: a Fédération Internacionale du Cyclisme Professionel (FICP), que cuidava do ciclismo profissional, e a Fédération Internacionale Amateur de Cyclisme (FIAC), responsável pelo ciclismo amador olímpico (Ibid). Com a admissão de profissionais a partir dos anos 1990, essas instituições foram eliminadas e o ciclismo passou a ser governado por uma única autoridade, retornando à UCI em 1993 (Brewer 2002).

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e de investimentos em patrocínio. O ranking de pontos da UCI passou a ser a porta de entrada na modalidade, tanto de atletas e equipes quanto de investimento (Brewer 2002).

Período Contemporâneo A estrutura de “estrela única” da equipe do período Clássico era um risco para o patrocinador, que via suas chances de espaço na mídia depositadas na expectativa de vitória de apenas um atleta. Diante da racionalização do investimento do capital, a nova estrutura intraequipe diminui esses riscos. Na década de 1990, as mudanças do período de Reforma foram verdadeiramente institucionalizadas, solidificando-se na modalidade. Na organização da equipe, a maior característica foi a maleabilidade da rígida estrutura hierárquica do período Clássico entre líderes fixos e gregários subordinados. O sistema de ranking parece ter firmado a condição do gregário no profissionalismo e clareado algumas motivações de sua prática, pois permitiu maior visibilidade e melhores contratos. Nas palavras do gregário australiano Alan Peiper: So points became really importante. Points really became money. The old system of team leaders and domestiques 8 was to be undermined. (…) With no points, domestiques had no bargaining power at the end of the year. When it came time to talk contract, the sprints you had led out and the work you had done became overshadowed by ‘how many points do you have’. Domestiques began to be inspired by points, and the desire to do well grew (Peiper 1992, in Brewer 2002 p. 290).

As equipes passaram, então, a realizar contratações igualitárias, trazendo para o mesmo time vários atletas com talento para assumir a liderança do time em uma corrida. Essa situação proporciona o trânsito de funções em diferentes tipos de corrida. Nessa condição, o gregário, em uma determinada corrida, pode se tornar líder, desde que o percurso e as condições o favoreçam. Além da quebra de hierarquias, esse sistema proporciona às equipes acumular mais vitórias durante a temporada. Brewer (2002), ao comparar a estrutura da função do gregário do período Clássico como o do período Contemporâneo, chama a atenção ainda para a existência de um tipo de atleta gregário (Contemporâneo) que emergiu em razão da visibilidade Expressão para designar os gregários na língua inglesa.

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alcançada pela fama pela mídia. Trata-se de um gregário com notáveis talentos para assumir a condição de capitão e líder de uma equipe, designado pelo autor como “super gregário”, mas que escolhe seguir a carreira de sacrificial worker como forma de amenizar ou escapar das pressões inerentes do esporte profissional. Aqui se configura uma relação completamente distinta dos gregários do período Clássico, que não tinham tal possibilidade. No período Contemporâneo, a estrutura financeira que mantém as equipes seguem as mesmas características da organização do esporte moderno visto em outras modalidades. A estrutura de patrocínios que sustenta os times profissionais geralmente segue a mesma racionalização e lógica da comercialização e investimento de grandes corporações, que culmina na influência de todos os níveis da estrutura do esporte. Para a esfera do atleta essa organização refletiu em salários até então jamais vistos na modalidade. Apesar de ainda haver bom grau de hierarquia no ciclismo, os gregários também passaram a ser contratados com boa remuneração. Esse fator de carreira e subsistência parece configurar um elemento motivacional na função de gregário no ciclismo de estrada. Essa essência pode ser captada no discurso do ciclista brasileiro de Murilo Fischer, que representou o Brasil no ciclismo de estrada nos Jogos Olímpicos de Sydney, Atenas, Pequim e Londres. Fischer é gregário da equipe francesa Française de Jeux e compete por equipes do Oeste Europeu há dez anos, sempre na função de gregário: Para ter uma carreira longa, é preciso ser honesto e fazer o que tem que ser feito. Esta é uma mentalidade que se aprende com tempo. Hoje, sendo sincero, não penso em vencer. Nesse tempo todo como profissional sempre fiz o meu trabalho. (...) Hoje em dia é mais difícil encontrar ciclistas comprometidos com isso, gente com vontade de trabalhar, e isso, acredito, fez a diferença (Fischer, 2013 pp. 16).

Porém, o ranking de pontos da UCI estimula a competitividade também nos gregários que encaram a corrida de forma mais agressiva com o intuito de obter boa classificação. Como dito antes, uma boa posição no ranking de pontos da UCI permite maior visibilidade e bons contratos. Dessa maneira, temos uma grande mudança na dinâmica das competições em relação ao passado, pois na atualidade não temos mais o gregário passivo do período Clássico. O gregário contemporâneo, além de trabalhar 230

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para a vitória de seu líder, empreende uma jornada de motivações pessoais. Ironicamente, a competitividade e o nível das corridas aumentaram, tornando cada vez mais difícil a vitória dos líderes. O gregário australiano Adan Hansen entrou na temporada de 2012 para um seleto grupo de trinta e dois atletas que conseguiu concluir as três “grandes voltas” no mesmo ano, sendo inclusive o único ciclista a alcançar tal proeza nessa temporada. Sobre a essência de uma atuação mais ativa e competitiva do gregário contemporâneo, Hansen diz: Foi uma grande conquista pessoal. Como um gregário, é muito difícil poder estabelecer os meus próprios objetivos e brigar por eles. Não é esta a minha função no time. Conseguir fazer algo tão difícil foi um feito muito legal para mim. (...) Acho que é isto que tenho feito. [Hansen refere-se aqui sobre a questão de ser bem sucedido profissionalmente no ciclismo]. Não sou líder do meu time, não sou um grande campeão, mas tenho uma carreira consolidada (Hansen 2013, pp. 16-17).

Considerações finais O ciclismo de estrada é um esporte conhecido por envolver esforço coletivo, glória e consagração individuais. Quando ao pódio, na celebração maior do vitorioso, a luz que encontra o herói forma à sua sombra o rosto de seu gregário. A estratégia realizada ao longo da competição transforma o ciclismo em uma modalidade semelhante ao jogo de xadrez, com a realização de um jogo de equipe em uma modalidade individual, favorecendo a figura individual do capitão. Os ciclistas gregários, como soldados em um front, garantem o êxito de uma estratégia que visa facilitar a vitória do capitão, destacando uma atitude de abnegação e entrega incomum no esporte, que valoriza a competição e a busca da excelência capazes de gerar a vitória. As histórias de vida desses atletas apontam que o conceito de ética no esporte, e mesmo o de fair play, passa necessariamente pela compreensão da cultura da modalidade, constituída a partir da sua própria história. A nobreza da performance desse peão do tabuleiro de xadrez, colocado em xeque ao longo da competição, promove o brilho do rei e a continuidade de outras partidas, que podem ou não ser jogadas no mesmo tabuleiro. Essa forma de competir reforça e valoriza o caráter heroico do atleta, que lança mão da conquista, desejo maior de quem dedica a própria vida a chegar em primeiro lugar. 231

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os

Autores

Ana Luísa Pereira Doutorada em 2004 em Ciências do Desporto. Professora e investigadora de Sociologia do Desporto entre 1999 e 2013 na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Foi membro das associações científicas EASS, ESA e integrou as I&D CIFI2D e ISFLUP; coordenou e fez parte da equipe de diversos projetos financiados; ganhou dois prêmios de mérito científico; orientou inúmeras dissertações de licenciatura, mestrado e doutoramento; publicou cerca de 40 artigos em revistas nacionais e internacionais peer-review; coeditou dois livros. Atualmente é aprendiz de escritora de ficção. [email protected] ou [email protected]

Ana Sousa Doutorada em 2014 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade Física Adaptada. Professora e investigadora na área do desporto para pessoas com deficiência na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto desde 2009; orientou duas dissertações de mestrado; tem publicações em capítulos de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais peer-review.

Bárbara Schausteck

de

Almeida

Professora colaboradora no curso de Bacharelado em Educação Física (DEF-CEFE) na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Aluna do programa de doutorado em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná, atuando na linha de pesquisa Sociologia e História do Esporte. Tem experiência na área de Educação Física, atuando principalmente nos seguintes temas: sociologia do esporte, megaeventos, políticas públicas, financiamento, gestão esportiva e marketing esportivo.

Isaias Sodré

da

Nóbrega Junior

É bacharel em Educação Física (PUC-PR). Especialista em Ciências do Treinamento Desportivo (PUC-PR). Mestrando em Psicologia do Esporte (UAB-Barcelona) e membro do Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP)

Julia Frias Amato É psicóloga formada pela Universidade Mackenzie. Especialista em Psicologia do Esporte pelo Instituto Sedes Sapientiae e membro do Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP).

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Katia Rubio Graduada em Jornalismo e Psicologia. É mestre em Educação Física pela EEFE-USP, doutora em Educação pela FE-USP. Fez pós-doutorado em psicologia social na Universidade Autônoma de Barcelona. É professora associada da Escola de Educação Física e Esporte da USP. Autora e organizadora de 19 livros, coordenadora do Centro de Estudos Socioculturais do Movimento Humano e do Grupo de Estudos Olímpicos da EEFE-USP e membro da Academia Olímpica Brasileira. Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Luciana Ferreira Angelo Psicóloga, mestre em Educação pela FEUSP. Coordena o Curso de Especialização em Psicologia do Esporte e do Exercício do Instituto Sedes Sapientiae (SP). Presidente da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (ABRAPESP) 2013-15.

Maria Alice Zimmermann Graduada em Educação Física pela Fefisa. Professora de Educação Física da Rede Municipal de Ensino, Coordenadora das Olimpíadas Estudantis da Rede Municipal de Ensino e das atividades de Esportes da Secretaria Municipal de Educação desde 2006, envolvendo os CEUs e Escolas Municipais. É integrante do Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Física da USP. Realiza especialização em Gestão Pública na UNIFESP.

Neilton

de

Sousa Ferreira Junior

Graduado em Educação Física pelo Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É mestre em Educação Física pela Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo e membro pesquisador do Grupo de Estudos Olímpicos na mesma instituição. Em 2013, tornou-se membro da Academia Olímpica Brasileira (IOA).

Pedro Paulo Funari Bacharel em História, mestre em Antropologia Social, doutor em Arqueologia, sempre pela USP, livre-docente e professor titular da Unicamp, distinguished lecturer, Stanford University.

Rafael Campos Veloso Bacharel e licenciado em Educação Física pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Especialista em Treinamento Desportivo pelo 234

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Centro de Estudos em Fisiologia e Treinamento (CEFIT-SP). Integrante do Grupo de Estudos Olímpicos (EEFE-USP).

Raoni Perrucci Toledo Machado Professor adjunto na Universidade Federal de Lavras. Bacharel em Esporte, mestre e doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo. É membro da Academia Olímpica Brasileira.

Roberta Cardoso É jornalista formada pela Universidade São Judas e pós-graduada em Gestão e Marketing Esportivo pela Trevisan Escola de Negócios. Atua há 10 anos na área de comunicação e faz parte do Grupo de Estudos Olímpicos da EEFE-USP.

Rui Corredeira Doutorado em 2008 em Ciências do Desporto e mestre em Atividade Física Adaptada. Professor e investigador na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto desde 2002, sendo Diretor do curso de mestrado em Atividade Física Adaptada na mesma faculdade desde 2009. Tem como principais interesses de estudo as variáveis psicossociais na área do desporto para pessoas com deficiência, a saúde mental e a sua relação com a atividade física; orientou várias dissertações de mestrado e doutoramento; tem diversas publicações em capítulos de livros, artigos em revistas nacionais e internacionais peer-review.

Sérgio Settani Giglio Professor da Faculdade de Educação Física da Unicamp. Doutor em Ciências pela Escola de Educação Física e Esporte da USP e mestre em Educação Física pela Unicamp. Líder do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre o Futebol (GIEF) e integrante, do Grupo de Estudos Olímpicos (GEO-USP) e do Núcleo de Apoio à Pesquisa do Futebol e Modalidades Lúdicas (LUDENS-USP) e é um dos editores do site Ludopédio.

Silvana Vilodre Goellner Mestre em Ciências do Movimento Humano (UFRGS), Doutora em Educação (UNICAMP) e Pós-Doutora em Desporto (Universidade do Porto) É professora da Escola de Educação Física da UFRGS onde atua na graduação e no programa de pós-graduação em Ciências do Movimento Humano. Coordenadora do Centro de Memória do Esporte (ESEF/UFRGS) e do Grupo de Estudos sobre Esporte, Cultura e História (GRECCO). Pesquisadora Produtividade em Pesquisa do CNPq. Email: [email protected] 235

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Victor Andrade

de

Melo

É professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atua na graduação e nos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História Comparada/Instituto de História. É coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (www.sport.historia.ufrj.br). É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Wanderley Marchi Júnior Graduado em Educação Física e Técnico Desportivo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1987), Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (1994), Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e Pósdoutorado em Sociologia do Esporte pela West Virginia University/USA (2012). É professor associado da Universidade Federal do Paraná atuando na pós-graduação, nível de mestrado e doutorado, respectivamente nos departamentos de Educação Física e de Ciências Sociais. Coordena o grupo de pesquisa CEPELS/Centro de Pesquisas em Esporte, Lazer e Sociedade/UFPR e é vice-presidente da Asociación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte/ALESDE. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

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Lançamentos de Livros da Editora Laços 1000

pensamentos inspiracionais para viver em equilíbrio,

de Fagner Gouveia

A Caminho do Sucesso, de Edno de Souza A Legitimidade do Poder Judiciário no Regime Democrático: Uma Reflexão no Pós-Positivismo, de Gabriel Dolabela Raemy Rangel

Alice

no mundo das

Comunicações,

de Ferenc Richter Filho

e Kendi Sakamoto

A nova era da Administração, de Mara Lúcia Diotto Aproximações ao Imaginário, de Marcos Ferreira-Santos e Rogério de Almeida

Aromaterapia

na

Vida Diária - Receitas

para

Viver Melhor,

de Rosângela Vecchi Bittar

A Terapia Floral

na Oncologia: tratando a pessoa, não a doença, de Rosângela Vecchi Bittar

Blanko Cinema

e e

Outras Histórias, de Fábio De Bari Contemporaneidade, de Rogério de

Almeida e Marcos

Ferreira Santos

“Coaching” Financeiro - Criando um estilo de vida vencedor, de Carlos Eduardo de Athayde Guimarães

Destruição C riativa ou P asárgada, de Ronaldo Rangel Desvendando os segredos do Argan, de Inocência Manoel Deus Joga dados, de Hilton James Kutscka

Disfunção competitiva. A Q ualidade de Serviços Conquistando Clientes, de Rubens Cukier, PhD Educação e Culturas Infantis: crianças pequeninas brincando na creche, de Patrícia Dias Prado

Emagreça sem medo, de Adriana de Araújo Ética nas Empresas em um Mundo globalizado,

de Roberto

Vertamatti

Gerenciando Relacionamentos,

fidelizando clientes, de João

Prestes de Oliveira Neto 238

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Gestão da Hospitalidade Aplicada nas Igrejas Cristãs em Luanda, de Faustino Bala Francisco, Ph.D Hipnose: Marketing das Religiões, de Fabio Puentes Hospitalidade em Shows de Música: Um Estudo Sobre as Relações entre os Profissionais dos Bastidores, Artistas e Espectador nas Casas de Espetáculos, de Isaira Maria Garcia de Oliveira

Hot Rod - A essência, de Fernando Serra e Seldio Gomes Identidades & Sensibilidades: o cinema como espaço

de

leituras, de Iranilson Buriti e José Otávio Aguiar

Imagem Pessoal

e Etiqueta – o caminho mais curto para o sucesso, de Agni Melo e Cristina Gontijo

Inconsciência Secreta, de Sandro Vera It Coaching, de Allan Rangel Jogos Tradicionais, de Soraia Chung

Saura e Ana Cristina

Zimmermann

Leitura Dinâmica, de Adriana de Araújo Localização do Ponto de Venda – O Marketing em Boa Companhia, de Carlos Alberto Dias e Roberto Garcia de Oliveira Manual das Essências Florais do Sistema Saint Germain no Alzheimer, de Rosangela Vecchi Bittar Manual Prático de Coaching, de Noscilene Santos Multimodalidade Logística – O Modal Rodoviário e suas Implicações, de Prof. Me. Cláudio Roberto Gomes e Prof. Esp. Daniel Gomes Ribas

O Call Center

do

Dr. Hanz, de Kendi Sakamoto, Luiz Edmundo

Cunha e Claudir Franciatto

O Bicho da Maçã, de Regiane Napoli O Português de Angola, de António Francisco Armando, MSc O professor como gestor universitário, de Claudia Bock Os benefícios das essências florais de Bach na cura Alzheimer, de Rosangela Bittar Palavras, simplesmente palavras, de Edvan Cajuhy Poder do propósito, de Olimar Tesser e Andréia Severino

do

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Processo Coletivo -

curso de

Direito

processual coletivo,

de Alexandre Zeitune

Produção

dinâmica na Logística cliente, de Claudiney Fullmann

-

o fluxo de satisfação do

Psicologia Positiva - A Arte de Materializar Sementes de Sonhos, de José Claudemir Oliveira Sob as asas de uma borboleta contos, poesias e reflexões, de Ana Paula Tome

Sobre

a ideia do ser humano, de Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio

e Rogério de Almeida

Social C ontact C enter - A

revolução das

R edes S ociais,

de Kendi Sakamoto

Socorro!!! Não Sei Mais Educar! (E

agora???), de Prof. Rafael

Angelo Abud

Terapia floral e Cabala - o repertório das 22 essências florais - Árvore da vida, de Glória Salviano Tópicos de Economia, de Ronaldo Rangel e Dirceu Raiser Trabalho Acadêmico - G uia prático para elaboração, de Hilda Maria Cordeiro Barroso Braga

Editora Laços Ltda. Av. Paulista, 1.159 – cj. 815 – CEP 01311-200 – Jardins – SP Website: www.editoralacos.com.br E-mail: [email protected]

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